Entrevista de Sebastião Alves dos Santos
Entrevistado por Sofia Tapajós
Ibimirim, 12/06/2025
Projeto: Vidas, Vozes e Saberes em um Mundo em Chamas
Entrevista número: PCSH_HV1459
Realizado por Museu da Pessoa
Revisada por Luiza Gallo
P/1 - Tião, obrigada mais uma vez por estar aqui com a gente. Queria que você começasse falando seu nome completo, local e data de nascimento.
R - O meu nome é Sebastião Alves dos Santos. Eu sou potiguar. Nasci no estado do Rio Grande do Norte, lá no município de João Dias, na Fazenda Boa Vista. Eu nasci em cinco de janeiro de 1962.
P/1 - Tião, qual o nome dos seus pais?
R - Meu pai era um paraibano de Campina Grande. Ele se chamava João Alves dos Santos. E minha mãe era potiguara no município de Alexandria. E depois se... passou pra Vila de João Dias, pra sua cidade, né? Fica no oeste do estado. Ela se chamava Francisca Alves de Oliveira.
P/1 - E você sabe como eles se conheceram?
R - Sei. Meu pai saiu de Campina Grande muito jovem, viajando, andando pelo Nordeste, procurando coisas melhores, eu acho. Terminou que ele conheceu minha mãe lá em João Dias e aí se apaixonou e ficou lá. Foi mais ou menos essa a história deles. Daí ele começou a trabalhar lá na agricultura e foi ficando. Então começaram o namoro que resultou no casamento e tiveram quatro filhos. E aí passamos a vida toda lá na Boa Vista, local que eu nasci.
P/1 - Como era essa fazenda, a Boa Vista?
R - Na realidade, a fazenda era do meu bisavô. Era uma fazenda que tinha uma extensão de terra grande. Com o falecimento do meu bisavô, houve a partilha da terra e aí a parte que coube à minha avó foi a que eu nasci e fiquei. É interessante essa história porque a água no Nordeste é uma preciosidade, e da fazenda toda, a minha avó herdou exatamente a área seca, que não tinha água, porque era mulher. Então, essa história de racismo, de discriminação já vinha lá de trás, né? Minha família fez isso. Então: “Não, essa...
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Entrevistado por Sofia Tapajós
Ibimirim, 12/06/2025
Projeto: Vidas, Vozes e Saberes em um Mundo em Chamas
Entrevista número: PCSH_HV1459
Realizado por Museu da Pessoa
Revisada por Luiza Gallo
P/1 - Tião, obrigada mais uma vez por estar aqui com a gente. Queria que você começasse falando seu nome completo, local e data de nascimento.
R - O meu nome é Sebastião Alves dos Santos. Eu sou potiguar. Nasci no estado do Rio Grande do Norte, lá no município de João Dias, na Fazenda Boa Vista. Eu nasci em cinco de janeiro de 1962.
P/1 - Tião, qual o nome dos seus pais?
R - Meu pai era um paraibano de Campina Grande. Ele se chamava João Alves dos Santos. E minha mãe era potiguara no município de Alexandria. E depois se... passou pra Vila de João Dias, pra sua cidade, né? Fica no oeste do estado. Ela se chamava Francisca Alves de Oliveira.
P/1 - E você sabe como eles se conheceram?
R - Sei. Meu pai saiu de Campina Grande muito jovem, viajando, andando pelo Nordeste, procurando coisas melhores, eu acho. Terminou que ele conheceu minha mãe lá em João Dias e aí se apaixonou e ficou lá. Foi mais ou menos essa a história deles. Daí ele começou a trabalhar lá na agricultura e foi ficando. Então começaram o namoro que resultou no casamento e tiveram quatro filhos. E aí passamos a vida toda lá na Boa Vista, local que eu nasci.
P/1 - Como era essa fazenda, a Boa Vista?
R - Na realidade, a fazenda era do meu bisavô. Era uma fazenda que tinha uma extensão de terra grande. Com o falecimento do meu bisavô, houve a partilha da terra e aí a parte que coube à minha avó foi a que eu nasci e fiquei. É interessante essa história porque a água no Nordeste é uma preciosidade, e da fazenda toda, a minha avó herdou exatamente a área seca, que não tinha água, porque era mulher. Então, essa história de racismo, de discriminação já vinha lá de trás, né? Minha família fez isso. Então: “Não, essa parte aqui é a que vai ficar pra Maria” - que era o nome dela. Era exatamente a parte que não tinha água. E aí foi quando ela se casou e meu avô disse pra ela que ia fazer água na propriedade, e fez. Conseguiu fazer. E aí isso serviu de inspiração pra mim.
P/1 - E como que ele fez a água?
R - Ele construiu com os próprios braços, as próprias mãos, ele construiu um açude. Um açude pequeno. Praticamente sozinho. Foi fazendo ano após ano. Foi fazendo no riacho. Foi fazendo muretas de pedras secas. Sem argamassa, sem cimento. Só depois, estudando por aqui, foi que eu descobri o valor que isso tinha. Então eu carreguei muita pedra pra botar nos rios lá, que a intenção dela era não deixar a água ir embora, ela permanecer pra abastecer o subsolo. Naquela época, ninguém tinha noção disso, né? “Ah, ele é louco, ele tá fazendo coisa aí de louco e tal”. E só depois que eu cresci, foi que vim perceber o tamanho da obra que ele fez. E aí como abasteceu o lençol freático, nós ficamos com a melhor água da região toda. Então, meus próprios parentes que não permitiram que minha avó herdasse a parte do riacho grande que passava lá, pra consumir, pra beber água, eu ia buscar lá. E a gente, com muito orgulho, leva água. Tem muita água aqui. Até hoje a propriedade se mantém lá no Rio Grande do Norte, ainda é da família, com água no subsolo. Então essa história da água vem de muito tempo na minha vida. E aí eu sei o valor que tem a água, porque nasci nessa região de muita, comparando com outras regiões de pouca água. Mas terminei que cresci num lugar que já tinha fartura de água, o que consolida um pensamento que eu tenho. No Nordeste seco… existe mais de um Nordeste, né? Tem o Nordeste que chove, tem o Nordeste de transição e tem o Nordeste seco, que é o semiárido, que é praticamente um país, 28 milhões de habitantes, pouco mais de 10% do território nacional, nosso semiárido passa aí de 10% do território, mais de novecentos mil quilômetros quadrados, chega aí quase a um milhão de quilômetros quadrados hoje, com as mudanças climáticas. E o que eu tenho afirmado muito aqui para os meus alunos, para os amigos, para os agricultores, para quem estuda, para a universidade, para todo mundo é que o Nordeste, o semiárido, é um recanto do universo perfeito e que não falta água. A água do semiárido é suficiente para todo ser vivo do semiárido viver bem. O problema é que as plantas aprenderam essa lição, os animais aprenderam essa lição, os micro-organismos aprenderam essa lição, os insetos aprenderam, mas o homem ainda não aprendeu. No dia que o homem aprender vai ver que a gente vive num paraíso que tem água suficiente para a vida digna. E aí talvez a gente esteja perto de reconhecer isso, né? Porque... As pessoas vão mudando esse conceito de que precisamos de água, água, água, água. Ou precisamos aprender a conviver com a água que a gente tem. É outra história. No dia que a gente aprender, aí seremos Caatinga. Seremos Caatinga. Porque somos seres vivos desse bioma, e infelizmente, enquanto a gente não entender de que somos Caatinga, exatamente para saber captar, saber armazenar e saber utilizar a água como o umbuzeiro faz, como as plantas da Caatinga fazem, como os animais consomem da água caatinga com parcimônia, com cuidado, não polui absolutamente nada, tiram só o que é necessário, e aí vive lá todo mundo bem, aí a gente, como humano, também vai viver bem aqui. Eu, particularmente, já vivo muito bem. Não consigo me desligar da minha terra. Não consigo me desligar do bioma. Porque já cheguei, assim, a um nível de ver o meu reflexo em cada coisa que tem aqui no semiárido. E olha que eu preciso aprender muito, hein? Muito ainda. Mas pelo menos, graças a Deus, já tenho o entendimento de que sou caatinga, de que preciso, com a caatinga, aprender essas lições E já me sinto muito feliz de ser catingueiro. Ter nascido aqui foi uma dádiva muito grande, um presente de Deus. Poderia ter nascido em qualquer outra região. Mas eu acho que Deus, na sua perfeição, me colocou nesse pedaço do universo, porque consigo ver aqui tanta riqueza, tanta beleza. E consigo pisar num chão que a cada passo que dou assim é um passo de envolvimento com tudo que existe aqui. Em qualquer época do ano, em qualquer hora do dia ou da noite, já consigo me relacionar com a natureza do semiárido, com os pássaros, com os animais, com as plantas. Por isso que quando você me perguntou assim, para saber quem sou eu, eu tive vontade de dizer a vocês o que eu sempre digo para os meus alunos quando chegam, na apresentação inicial, no primeiro dia de aula. Peço para ele se apresentar, ficar calado, e eles perguntam: “Professor, e o senhor, quem é?” “Eu sou um bicho da Caatinga”. Eu gosto de me identificar desse jeito, como um bicho, como um animal. Nós todos, seres humanos, somos animais. Não na forma pejorativa, mas animais. E ser animal da Caatinga é um privilégio. Porque saber ler o clima, saber conviver com pouco também, saber viver bem a partir do quase nada, do pequenininho, do pouquinho. Eu acho que essa é a maior lição que a gente pode ter. Aprender a viver com pouco, que não é pouco. A água que tem no semiárido, por exemplo, não é pouco. Pouca é a nossa capacidade de interpretar o bioma e se associar a ele efetivamente e afetivamente.
P/1 - E aí, voltando um pouquinho para a fazenda, você consegue descrever um pouco a paisagem, os cheiros que você sentia, o que você via, os sabores que você sentia?
R - Pois é, eu nasci no pé da serra. Aquela região do Oeste é bastante acidentada geograficamente. E escutar, por exemplo, o som da cachoeira quando chovia era um acalento aqui para o ouvido. Continua isso, eu sonho ainda ouvindo o barulho da cachoeira. O riacho, quando vinha com a enchente, aquele barulho fantástico, a gente acordava pela madrugada e escutava. A gente chamava “o ronco do riacho”. Eita, como aquilo era bonito, né? Até mesmo nos períodos de secas. Porque eu nasci muito próximo a duas serras grandes, assim, enormes, e nasci com o vento mais forte. E aí, a gente escutar o barulho do vento. Tinham dois momentos espetaculares. Durante o dia, quando estava muito quente, era um barulho mais assustador pelo deslocamento de ar por conta da temperatura. Mas o vento também, na seca, ao amanhecer, fazia um som suave. E por incrível que pareça, com o vento vinha associado a um cheiro gostoso. E depois, assim, a gente ficava perguntando, minha mãe perguntava: “Que cheiro gostoso”. Meu pai dizia: “Olha, é porque tem árvores de... tal árvore tá florando ali na frente”, na direção, o vento trazia aquilo lá. Me lembro do cheiro da água do açude que meu avô construiu. Aquilo tá impregnado ainda até hoje. Por isso eu não posso ver um açude assim que eu sinto o cheiro e volto para o meu lugar, o lugar de origem que eu nasci, ali. Fico lembrando, fazer uma, duas cabaças amarradas numa corda para botar aqui para entrar na água, afunda para não afundar, como um colete. São lembranças de infância, né? Que me guarda muito, me lembro muito ainda de ir pra Caatinga cortar uma varinha pra fazer um cavalo de pau pra brincar e normalmente era de marmeleiro, uma planta da Caatinga que tem um cheiro característico. Fazia aquela vara, depois desenhava na casca tirando ali. Era fácil de fazer o desenho na casca do marmeleiro por isso é que dava preferência, porque eu queria o meu cavalo enfeitado, bonito, mas era um cavalo de pau, sabe? Coisas que eu acho que só a gente, praticamente, tem aqui no semiárido, talvez um pouco em Minas Gerais, mas nos outros biomas não tem essa tradição, né? E era, assim, muito legal. Se a gente olhar direitinho, eu tenho lembrança dos cinco sentidos, né? Dos sabores da Caatinga, da terra onde eu nasci. Tá muito aqui, né? Dos frutos que eu colhi na Caatinga. O araçá do mato, por exemplo. Que delícia, né? Que assim, com quinhentos metros, quando tem um fruto maduro, a gente já sentia o cheiro. Então ia, fácil de encontrar, fácil de ir buscar. É... O amanhecer, né? Você se levantar assim, sentir na pele o tato, né? O sereno, né? Da madrugada. O orvalho da manhã, bater na perna da calça, assim, e aquilo ficar molhado, pingando água, sem ter chovido. Coisas, assim, fantásticas. Marca muito, tá muito na minha lembrança o cheiro das coisas, o sabor. E também a visão. Até hoje, acordo ainda às quatro horas da manhã, porque meu pai acordava essa hora pra ir pro curral, tirar leite, pra ir pro engenho, pra fazer rapadura ou pra roça mesmo, eram as quatro horas. Ele levantava, fazia o café, tomava um cafezinho e depois voltava pra comer alguma coisa. Mas aproveitava esse horário. E eu me acostumei com ele. Então, desde que me entendo por gente que acordo essa hora. Aprendi a fazer o café também. Mas o café, o meu café não tem o mesmo cheiro do café que meu pai fazia. Nem o cuscuz que eu faço tem o mesmo sabor do cuscuz que minha mãe fazia. Talvez porque o amor deles era grande demais. Aí tudo que fazia pra gente, chegava de... Acho que até com excesso. Excesso de carinho, excesso de afeto. Não é bem excesso, mas eu não acho a palavra para substituir agora. E aí você junta o amor materno, o amor paterno, mais os frutos, o cheiro da terra, como é que isso não fica marcado na nossa mente, na nossa história? Isso dá saudades.
P/1 - E tem alguma história que eles te contavam, ou da região, da Caatinga, da família, que você lembra?
R - São muitas histórias, né? Eu cresci ouvindo meu avô materno, minha avó materna - morávamos muito próximos - contando a história dos pais deles, dos avós deles. Meu pai também. Meu pai veio de uma região que chovia mais, próximo ali ao brejo paraibano, região de Campina Grande, aquele município ali onde chove muito mais do que no sertão. Mas tem história de tudo. Tem histórias de religião, de fé, de crença, história política. É o que chamavam lá no Rio Grande, histórias de trancoso, que eram aquelas histórias que contavam para nos assustar, né? Enquanto menino. História de papa-figo, de lobisomem, dessas coisas todas. Mas também de histórias reais, né? Da política, que teve uma briga por conta da prefeitura, porque cada família ali que queria ir para a prefeitura. A história de como era aquela região ali, cheia de cana, de açúcar, mas no sertão, para fazer melaço, mel, fazer rapadura. A história do cultivo do algodão, algodão Mocó, algodão do Seridó, originário daquela região do Rio Grande do Norte, fonte de recursos e história econômica. Então, tem muitas histórias na minha cabeça que, de vez em quando, essas mesmas histórias me inspiram até hoje. Me inspiram até hoje. Por exemplo, quando eu fico na sala de aula e a gente fica trabalhando o Bem Viver. Porque a escola quer formar as pessoas para se darem bem do ponto de vista do capital, ganhar dinheiro e com o dinheiro você comprar felicidade. E eu tenho dito muito aos meus alunos que isso não é bem verdade. Talvez porque eu fiz essa opção de ser missionário da Caatinga. A minha religião está relacionada a essas coisas de missão. Venho da família católica, estudei em colégio católico, a igreja católica influenciou toda a minha formação, mas tem esse gancho de que viver bem não é só ganhar dinheiro. Ganhar dinheiro também faz parte do viver bem, mas é preciso ter outras relações com o espaço geográfico de onde você está, que é o território. A minha relação com o território, que o território se relaciona com outros territórios, e esse mosaico de território vai formando esse bioma, que aí, no meu caso, o meu território ficou pequeno para mim. Pela ânsia de eu querer conhecer mais a Caatinga, mais o semiárido, o meu território terminou sendo o próprio semiárido como um todo. Então, eu tive que andar muito no semiárido para tentar buscar nessa caminhada de busca mesmo, de missão, o que esse meu território tem aqui de belo, de rico, que eu pudesse estudar, que eu pudesse ver, que eu pudesse aprender e que eu pudesse compartilhar. Então eu gastei a minha juventude, já não sou mais jovem, essa fase adulta minha, e agora na velhice, fazendo isso. E agradecendo a Deus todos os dias por ter me dado a coragem de sair migrando dentro do meu próprio bioma, sem sair dele. E poder, quem sabe um dia, juntar tudo isso assim e fazer com que outras pessoas possam acreditar de que esse nosso bioma, esse nosso semiárido é uma potência. Que é outra coisa que falta os homens aprenderem. Porque assim como os animais, as plantas, os insetos, os micro-organismos aprenderam, a usar a água aqui - que eu já falei - nesse espaço todo que não falta água. Então, agora a gente precisa que os homens também aprendam que aqui não falta absolutamente nada para a promoção do desenvolvimento. Tem de tudo aqui. E o que mais se falou assim na minha infância, na minha adolescência, quando estava na escola técnica e depois na universidade. De que a região é pobre, é mais pobre, é mais pobre. Mais pobre de quê? Temos água suficiente para nos manter vivo aqui, atendendo todas as necessidades. Quando essas necessidades não são atendidas é porque a gente não aprendeu. Então falta escola para isso. Falta escola entre aspas. Eu acho que faltam mestres, pessoas que possam dizer: “Olha, tua escola mesmo, a tua universidade é esse mundo todo aí, de mais de novecentos mil quilômetros quadrados. Esse semiárido todo, aonde você estiver, tem condição de aprender. E aprender muito com ele”. Segunda coisa é o tamanho das coisas que a gente tem aqui. Por exemplo, nós temos aqui cerca de 3 mil horas de sol ao ano. Isso já foi considerado como um problema. Mas quem tem, na face do planeta todo, quem tem 3 mil horas de sol, tem uma fortuna na mão. Aqui é energia. Lamentavelmente, a forma como isto está sendo trabalhado é de exploração mesmo, não é de cooperação. É outra história, que é ruim, muito ruim. Talvez fosse melhor sem. Ou fazendo aquilo que deveria ser feito. Energia, assim como o sol nasce para todos, que essa captação de energia fosse para todos, fosse distribuída, não fosse concentrada, não tirasse mais caatinga para fazer usinas, porque a gente já tem 13% do semiárido já considerada área de desertificação e, na melhor das hipóteses, de savanização. Então essas áreas já mortas, ou prestes a morrer, poderiam estar sendo aproveitadas e deixando a caatinga em pé. Mas as questões econômicas, políticas, não permitem. Então matam centenas de hectares para fazer usinas... usinas-salários que não mudou muito a vida da gente aqui. É muito mais limpa a energia do que se a gente estivesse produzindo energia atômica. Eu sei disso. E é muito mais barata também do que fazer mais hidroelétricas e por aí vai. Mas aí a pergunta é, por que concentrar? Aí no semiárido não tem nada concentrado, tá tudo aí distribuído pra quem quiser. A riqueza tá aí. Então é mais um erro ir para as usinas eólicas, usinas solares e etc. E a gente vai com essa vontade de ganhar dinheiro, ganhar dinheiro, vai esquecendo exatamente da essência: é que as pessoas possam viver bem e dignamente no lugar que elas estão. Porque ninguém quer sair do seu lugar. As pessoas saem do seu lugar porque está faltando na cabeça dele alguma coisa. Mas se a escola do campo se preocupasse também, se o nosso modelo de ensino se preocupasse para que a gente tivesse uma educação do campo, no campo, e educação eficiente, e que viesse carregada disso que eu falei, de efetividade e afetividade, aí a gente estava caminhando exatamente para o Viver Bem, inclusive com dinheiro. Porque, na minha cabeça, o viver bem à custa do meio ambiente não vale a pena.
P/1 - Tião, voltando, se puder contar um pouco da escola, quando você foi à escola, como que era a escola que você ia?
R - Bom, há 64 anos atrás, a escola no Nordeste era difícil, né? Na realidade, quem me alfabetizou foi minha mãe. Então minha mãe foi minha primeira professora. E aí eu fui crescendo, seis, sete anos. Aí eu fui pra escolinha da comunidade lá, Escola João Alves de Oliveira Mello. E lá eu tive uma professora, dona Odília Nonato da Silva. Acho que ela já tem noventa anos hoje. Está viva ainda. De vez em quando ela me liga e eu ainda tenho o prazer de conversar com ela. Então foi minha mãe a primeira professora. E quando eu fui pra escola, era o grupo escolar da comunidade, era multisseriado. E lá eu tive a alegria de Dona Odelha ser minha professora. Uma mulher negra extraordinária, eu tenho muitas lembranças dela. E terminei que… Chega a terceira, quarta série e acabou, não tinha mais escola na comunidade. E aí eu tive que sair da minha comunidade e fui pra morar na cidade de Pombal, na casa de um irmão do meu pai, meu tio. Passei um ano lá. Sou agradecido até hoje a eles. Mas aí meu pai conseguiu comprar uma casa na cidade de Catolé do Rocha. E minha avó já era viúva, então eu fui morar. Minha avó me acompanhou. Veio pra cidade de Catolé do Rocha. Naquela época se chamava Ginásio, né? E eu fui fazer o Ginásio no Colégio Franciscano, que tive a maior sorte da minha vida de ter recebido a formação das Irmãs Franciscanas. E aí, por conta disso, eu me liguei muito à igreja. E quando terminei o Ginásio, então eu tinha a opção de entrar na escola técnica. Eu fui fazer técnica em agropecuária, porque a minha vontade era aprender as coisas da agricultura pra voltar pra Boa Vista pra ajudar meu pai. Eu fiquei em Catolé do Rocha. Esse período foi de muita efervescência porque vivíamos na Ditadura Militar e aí eu como estudante, muito jovem naquela época, comecei a militar contra a Ditadura Militar, ao mesmo tempo que estava fazendo o curso técnico e tal, e muito ligado às pastorais da Igreja Católica, CPT, Comissão Pastoral da Terra, e das comunidades eclesiais de base. Que aí eu, digamos, dei a carga toda nessa missão lá de ajudar na evangelização, mas eu tinha conhecimento técnico já, da escola, e a gente vivia uma grande seca no semiárido, de 79 a 83, 84, e aí fui fazendo essas coisas tudo juntos. Tinha uma atuação política, inclusive ajudando a reorganizar os sindicatos, tinha uma atuação evangelizadora, uma militância, e tinha uma ação técnica. E aí as comunidades que a gente assistia, os agricultores muito pobres, passando muita necessidade, fome, muita gente viajando, indo embora da região. E assim, onde tinha uma condição, a gente começou a trabalhar fazendo pequenas hortas com a comunidade. E isso foi ganhando até um certo status, um volume assim. E já no final do curso, eu conheci o padre casado aqui de Pernambuco, Paulo Crespo, que foi um dos fundadores das ligas camponesas junto com o João Pedro Teixeira, com o Francisco ______, que era deputado, inclusive deputado federal e tal. E aí o padre viu o meu trabalho lá na Paraíba, aquela região de Catolé do Rocha e lá da minha terra, João Dias, porque na divisa, Catolé do Rocha, João Dias, é muito próximo, o que divide é uma serra, Rio Grande do Norte, Paraíba. E o resultado foi que eu disse pra ele que não vinha pra Pernambuco porque eu queria voltar pra ajudar meu pai. E ele me disse: “Não, você não nasceu pra ajudar só seu pai, você nasceu pra ajudar muitos outros pais. Vamos comigo pra Diocese de Olinda e Recife, lá tem uns projetos sociais que Dom Helder está conduzindo e você vai ajudar lá nos projetos, chamava-se projetos São Francisco”. E eu vim para Pernambuco para experimentar isso aqui. Terminei ficando por aqui. E aí nós aqui criamos, através disso, a primeira escola, digamos, de Agricultura Orgânica do estado. Então, essa satisfação de ter ajudado a criar o movimento agroecologista de Pernambuco. Naquela época não existia nem esse nome agroecologia como ciência, não tinha essa ciência ainda. Ela já existia no mundo, mas ainda não tinha chegado aqui. Então a gente abriu aqui praticamente essa contribuição para o que é hoje o movimento agroecológico de Pernambuco. Finais de 1983, lá novembro, dezembro. Em maio de 84, a gente criou, na Diocese de Pesqueira, o primeiro centro de treinamento para agentes pastorais, sindicalistas e agricultores em geral, agricultores familiares. Aí nasceu a agroecologia, que a gente chamava, naquela época, agricultura alternativa, chamava naquela época também agricultura orgânica. Mas vem desse traço da escola, que comecei lá na Boa Vista, no grupo escolar. Depois estudei em outro grupo escolar, já na cidade, o Dom João da Mata, na cidade de Pombal. Volto pra Catolé, aí vou estudar no Colégio Francisca Mendes, que é um colégio franciscano, conduzido pelas irmãs franciscanas. Depois, na escola técnica de Catolé do Rocha. E só depois a universidade, o curso superior aqui já em Pernambuco, Biologia. Mas essa passagem pela Paraíba me foi muito importante. Porque foi ali em Catolé, onde eu arranjei, digamos, as bases para o que sou hoje. Então sou muito grato à cidade de Catolé do Rocha. Não me sai da cabeça, Catolé. Assim como não sai a minha terra lá, João Dias, né? Mas Catolé fez uma marca, assim, muito grande, porque... foi toda a... como eu disse, a base de minha formação cristã, minha formação técnica, né? De ser um profissional diferente, não é? Não correr só atrás dos recursos para acumular para mim essas coisas, mas de fazer com que pelo conhecimento, pela atividade técnica, a gente pudesse contribuir para todo mundo, para que a gente pudesse melhorar a vida das pessoas. E eu encontrei isso, sou grato demais à cidade de Catolé do Rocha.
P/1 - E nesse período na Paraíba, você consegue descrever um pouco também como eram essas comunidades? O que te marcou? Se tem alguma história em alguma delas que te marcou?
R - Eu não escrevi, né? Mas alguns companheiros e companheiras ainda estão vivos, tudo velhinhos, né? Alguns estão vivos ainda que eu tenho até vontade de escrever, de fazer esse registro. Mas assim que eu cheguei pra Catolé, na seca, era muito difícil a vida. Então, eu vi naquela época ainda as levas de retirante. Muitas das vezes a feira se acabava por conta dos saques. Então, ameaçavam o saque. O saque acontecia, as pessoas com fome, quem tinha alguma coisa iam lá nos armazéns, às lojas, fechavam todas. E diante do quadro político, a Ditadura Militar era outro inferno. A gente tinha o inferno da seca, mas tinha um pior, que era a ditadura de um governo que não olhava para o Nordeste com bons olhos, jamais. O Nordeste era simplesmente para prover as outras regiões de mão de obra barata, e aqui as pessoas não valiam praticamente nada, porque não tinham cultura na cabeça deles, mas cultura tinha, não tinha educação, era todo mundo pobre. Então não interessava muito as mudanças. Era um inferno. E aí eu fui chegando na... no colégio dirigido pelas feiras, eu fui estudando a vida de São Francisco e aprendendo com o exemplo das irmãs que conduziam o colégio. A simplicidade delas e a dedicação que ela tinha com as periferias, com os mais pobres. E não me faltava convite delas para ir para as reuniões nas comunidades e eu fui tomando gosto por aquilo, porque eu fui vendo a oportunidade de ser útil, de ajudar aquelas pessoas ali, que muitas delas eu conhecia, que muitas delas, inclusive, eram parentes. Ficava, assim, triste. Por que Deus castiga? Depois a gente vai descobrindo que não é um castigo de Deus. O castigo era da repressão, era político. E aí fui descobrindo com o Frade, o vigário da paróquia, que era dinâmico, autêntico, que as comunidades eclesiais de base eram um lugar onde a gente podia conversar com o outro, era um lugar que a gente virava irmão. Pela fé, pelo evangelho, a gente virava irmão. Era um lugar para pesquisar, era um lugar para aplicar conhecimentos. Era um lugar para produzir conhecimento. E era um lugar que a gente podia fazer transformação. Então eu fui nessa aí. E aí deu certo. Porque aí foi que eu botei na cabeça: Poxa, eu não preciso ser frade e padre para servir as comunidades, eu preciso ser um bom técnico aqui e eu preciso ser um militante político para lutar contra essa ditadura. Não é para disputar a Câmara de Vereadores, para ser político local, mas para ser militante contra a repressão, contra a Ditadura Militar. E eu vou por aqui. E aí a gente foi sedimentando essas ideias e a gente foi se fortalecendo, a gente foi se somando a outros movimentos no país. E graças a Deus chegou 88, final da ditadura, até com a Nova Constituição de 88. Eu acho que isso marcou, sabe? A vida, aquele período ali. Porque parece que a vida tem... Vai assim numa escadinha, você vai subindo, mas chega num ponto que você diz: Pronto, é aqui agora que eu tenho que... descer e tudo isso que eu subi aqui eu tenho que levar lá pra baixo de novo pra agora exercitar isso profissionalmente, colocar isso com mais força para que os outros possam se apropriar também disso. Foi isso. Foi bom.
P/1 - E como você se sentiu quando você foi para Pernambuco?
R - Sim. Bom, eu vim para Pernambuco mas a minha cabeça estava no Rio Grande do Norte, né? E aí eu já tinha um círculo de amizade muito grande em Catolé, mas ali de Catolé para João Dias eram doze quilômetros, não é para onde eu morava, meus pais moravam a 24 quilômetros, eu fazia isso de bicicleta. Nos finais de semana, eu estudava no colégio, no final de semana eu ia trabalhar com meu pai na roça. De bicicleta. Eu nem sabia que isso era bom para a saúde. Acho que devia ter guardado a bicicleta até hoje. Mas aí ficava nisso assim e tal. E a minha vontade era melhorar mesmo a propriedade do meu pai. Eu saio técnico aqui e agora a gente vai melhorar a propriedade. Mas esse chamado, essa missão assim, né? E eu vi o alcance do meu trabalho. Se eu ficar na propriedade do meu pai, vou ajudar meu pai e vou ficar ali. Mas aqui em Pernambuco eu vou ter condição de chegar inclusive lá. Mas assim, colocar tudo isso aí, jogar isso pra esse meio de mundo todo. Vim também por essa questão que eu acho missionária, meio que religiosa, meio, né? Puxa, tenho que atender mais gente. E um dia, Padre Paulo Crespo, Crespo, como a gente chamava, dizia: “Olha, se tu é farol, não pode ficar debaixo da mesa, porque só vai clarear ali debaixo. Tu tem que sair debaixo da mesa e ir pra cima da mesa, porque vai clarear pra todo mundo”. Eu me apeguei a essas palavras dele lá. “Eu vou com o senhor”. Quando chego aqui, me encanto com as possibilidades que foi aparecendo. Mas tinha uma referência aqui que era apaixonante, era convocante, convocava, que era estar próximo de Dom Helder. Ver o trabalho dele, até conversar com ele, escutá-lo, a ajudar em alguma coisa ligada a ele. Então, o projeto era um projeto do regional, que Dom Hélder era arcebispo de Olinda e Recife. E o projeto era exatamente lá. Ele era quem coordenava com os bispos do Nordeste. Aí o projeto se ampliou, né? Porque... Quando falaram assim: “Não, é para o regional. O Secapas não vai ser uma coisa de uma diocese, de uma paróquia, vai ser para o regional”. Quais, que regional? Nordeste Dois, aí pegava exatamente aqui os estados de Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte, né? E Alagoas. Aí a gente teve chance, eu tive muita sorte porque naquela época tinha um grupo de bispos progressistas na Igreja Católica. Invejável, né? Aqui em Pernambuco, por exemplo, a gente tinha Dom Hélio da Câmara, Dom Francisco Austregésilo, aqui na Diocese de Afogado da Ingazeira. Lá em Natal, a gente tinha Dom Costa. No Ceará, em Crateús, Dom Fragoso. Imagina, assim, na Paraíba, a gente tinha Dom José Maria Pires, que aí apoiava toda essa luta nossa, do meu final de adolescência, lá em Catolé do Rocha, e vim pra cá ter a oportunidade de trabalhar com eles. E aí treinar os agentes de pastorais dessas dioceses todas, eu como técnico. Aí profissionalmente eu me realizei nisso, sabe? Me realizei. E aí era o conhecimento transmitido e tal. Aí depois eu fui aprendendo e virei pesquisador nato da Caatinga. Continuo até hoje nessa luta aqui, procurando entender a Caatinga para repassar, para construir conhecimento hoje aqui como professor, com os estudantes. Não é um repasse, é uma construção de conhecimento e formando técnico para soltar no meio do mundo. Acho que ainda tenho algum tempo para fazer isso, para estar fazendo isso. Tem outros sonhos, evidentemente, que vou colocar em prática depois, penso que coloco, mas vem de toda essa base. Por isso o Catolé do Rocha, eu tenho um olhar especial para aquela terra, porque foi lá um nascedor, foi lá um nascedor da minha vida.
P/1 - E aí você estava falando de quando começou a escola de agricultura orgânica, né? Como se chamava, como começou esse processo?
R - Foi exatamente isso, né? O padre Paulo Crespo visitou as comunidades lá onde eu desenvolvia isso juntamente com o Frei Dimas, o Frei Francisco, com as irmãs do Colégio Francisca Mendes, as freiras e tal. E ele viu e disse: “Poxa vida, é isso aqui o que a gente precisa”. E me convidou, quase que trazendo… meio que puxado assim mesmo, para vir ajudar ele aqui a criar esse centro. Eu terminei o técnico em 83, no final de 83 ele estava lá. Eu já vim aqui para Pernambuco as primeiras vezes, ainda como estudante do curso técnico. Depois que terminei o curso, fui algumas vezes lá, fiquei mais tempo aqui em Recife, conhecendo os projetos de Dom Helder, os projetos da diocese. Depois comecei a viajar com o Paulo Crespo por essas outras dioceses todas, no semiárido, conhecendo outras comunidades de base feita em outras regiões. E aí a gente andou quase que o Nordeste todo, do Ceará, do Maranhão, da Bahia, da Lagoa, Sergipe, enfim, tudo isso, né? E conhecendo experiências aí. Mas eu tinha uma bagagem de trabalho comunitário, né? Perdão, gente. De trabalho comunitário. Assim, boa, né? Porque... Tive essa oportunidade de encontrar as comunidades eclesiais de base e, nessas comunidades, a gente estudar a vida política, por exemplo, do país naquele momento. De ajudar a organizar sindicatos, as questões do associativismo, o valor do mutirão, de fazer uma horta ali no mutirão, o valor de alguns projetos que até hoje me encantam. Eram muitas crianças subnutridas, algumas morrendo de subnutrição, porque as mães tinham as crianças, mas não tinham leite porque as mães passavam fome pela seca, né? Aí comprava-se cabras pra tirar o leite pra alimentar, suprir as crianças, né? E o negócio era o seguinte: a mãe recebia, digamos, duas cabras e depois ela pagava as duas cabras com as duas fêmeas que nascessem, duas filhotinhas, porque aí já ia para uma outra uma outra família, uma outra mulher que ia cuidar disso. E a gente começou a fazer isso e isso virou um encanto porque assim, em dois anos, a gente já tinha cabras espalhadas nesse semiárido em tudo quanto era lugar, sabe? E as crianças lá, tudo robusta, tudo forte. E aí nasce a questão técnica. Olha, se a gente pensar no elemento biológico para trabalhar aqui, a seca não é problema. Porque a seca é um desenho do universo. É chover pouco aqui, é passar um período sem chover. Isso já foi desenhado pelo próprio universo para ser assim. Então a seca nunca vai ser um problema. Se a gente aprender isso aqui, olha… Tem caatinga, que tem vegetação rica, que é uma ração boa para os animais que conseguem comer a caatinga, tem espaço para esses animais serem criados. A água que a gente tem aqui é suficiente para eles. E eles têm resistência, não têm medo do sol. Têm resistência e eles produzem. Então, olha, coisa bem simples. E aí, com isso aqui, é técnico, a gente muda as condições sociais de uma família. “Puxa, meu filho não adoece”. Porque ele se alimenta com o leite da cabra que comeu a caatinga. Aí o filho vai crescer catingueiro. Não precisa importar do centro-oeste. Não precisa importar do sudeste, não precisa trazer do sul pra cá. Pode criar isso aqui, porque eu não posso imaginar os pampas no semiárido. Pampa é dos gaúchos, eles que cuidam do bioma deles lá. Que é lindo, por sinal. Fantástico. E que estão acabando. Se eu não estou enganado, tem só 6% de vegetação nativa lá. Mas nós, aqui no semiárido, a gente precisa cuidar do que é nosso. E eu estou dizendo do que é nosso como filho da terra, brasileiro, que sou filho disso aqui. Então, a minha potencialidade aqui é só. A minha potencialidade é resistência. E a Caatinga tem. A minha capacidade é resiliência. Por isso é que nós somos fênix. O sertanejo aqui é fênix. Tá quase que invisível, e de repente se agiganta. Pensa que tá morto, que morreu, mas volta novamente. Das brasas que viram cinzas, as cinzas ressurgem. Então, essa é a minha característica. Eu tenho que cuidar disso aqui, tenho que fazer com que os que estão próximos de mim aprendam também que cada um da gente é responsável pelo Viver Bem aqui, é responsável pela manutenção dessa vida toda. Daí a nossa preocupação de preservar o meio ambiente, de preservar a Caatinga, de cuidar da Caatinga como algo muito especial, como preciosidade. Porque daqui a gente pode exportar, inclusive, modelos para outras regiões. E agora, com as mudanças climáticas, com aquecimento do clima, com distúrbios naturais violentos, essas coisas todas precisam dar uma olhada para o que se tem feito no semiárido, porque isso pode reverberar soluções para outras regiões. Estava lendo um dia desses aqui, de que 13% de São Paulo, da região metropolitana de São Paulo, não tem água potável. Aí eu fiquei assim: Meu Deus do céu! Porque 13% daquela área gigantesca, cidade de São Paulo, mais os seus municípios agregados ali, que formam a área metropolitana, é muita gente. 13% é muita gente ali. Não tem água potável, não tem água disponível para beber, água pura. É grave isso. Então o problema não é falta d'água aqui, que não falta água aqui, nós não sabemos utilizar, não sabemos captar, não sabemos armazenar e não sabemos utilizar. Então tem que acelerar esse processo. Acho que aí a escola deve contribuir com isso. E quando eu falo escola, não tem uma classificação para qual nível de escola, não. Para todas as escolas. Desde a alfabetização até a universidade, das formações de cursos superiores. A gente tem que pensar nisso. Como é que a gente vai fazer o melhor para que... A ASA tem dado um exemplo fantástico. Cisternas, mais de um milhão e duzentas mil cisternas construídas. Mudou a vida de muita gente. Muda uma realidade que era muito triste. Agora, é uma tecnologia extremamente simples, que nem sequer nasceu na universidade, foi um agricultor que descobriu. Mas as cisternas estão tomando conta e estão mudando a vida. É uma calha aqui - é matemática aplicada - para cada metro dessa telha que está aqui em cima, no semiárido, na média, vai em torno de seiscentos milímetros, quinhentos, seiscentos milímetros. Já criança começa a aprender que cada metro da minha casa, por ano, é capaz de captar até seiscentos litros de água. Quando ela faz a conta do telhado, ela vai ver que tem muita água. Agora, essa água toda, se ela não for captada, ela vai embora. Vai embora, vai embora, vai embora. O nosso lençol freático que é raso. Não acumula muito lá. Então a gente precisa acumular água, não é só frear, precisamos acumular água na cisterna, precisamos captar, precisamos utilizar de forma diferente. E aí a gente muda as realidades. Não é seca. Às vezes o problema aqui não é a seca, é o latifúndio, é quem chega aqui com dinheiro e compra uma pequena propriedade aqui pra fazer agronegócio na beira do São Francisco. E depois compra a vizinha e depois compra a vizinha e vai comprando as pequenas parcelas e depois faz uma grande área e todas aquelas famílias que estão ali vão para as periferias, aí chegam lá nas periferias das cidades e não sabe o que vão fazer, não tem o que fazer e aí começa todo um distúrbio social, todo um distúrbio social. Mas é preponderante que a gente tenha no semiárido escolas que pensem o semiárido, que pesquisem o semiárido, que produzam ciência no semiárido, para o semiárido. É claro que se for bom a gente traz de fora, não desprezamos ciência de modo algum, pesquisa lá de fora, o conhecimento produzido lá de fora, nós também precisamos dele, mas nós precisamos produzir o nosso próprio, inclusive depois para exportar, para mandar para as pessoas lá de fora e para outros semiáridos do mundo. Não existe só o nosso, existe outro. O nosso é o mais belo, o nosso é o mais rico, o nosso é o maior. O nosso é que é só nosso. Não se divide ele com ninguém, só dos brasileiros. E dentro dos brasileiros, só de nós nordestinos aqui. Essa área rica, bela, potente precisa ser trabalhada não na perspectiva da exploração dos recursos, mas tudo isso aproveitado na perspectiva da cooperação. Se o meio ambiente me dá, o que eu dou de volta para o meio ambiente? Como eu posso fazer isso sem destruir? Como eu posso fazer isso para preservar, para manter? E esse é um desafio que nós, humanos, deveríamos ter vergonha. Se os calangos da Caatinga aprenderam diferente, se os pássaros da Caatinga aprenderam diferente, se as plantas da Caatinga esbanjam potencialidade para nos oferecer. E nós, humanos, é só para acumular, para tirar, tirar, tirar. O que nós devolvemos? O que os homens devolvem? Eu estou falando desse ponto aqui onde eu boto os pés do semiárido, mas eu creio também que outros biomas também estão fazendo a mesma coisa. Olha o cerrado como é que está. Olha a Amazônia aqui. Inventam de tocar fogo na Amazônia, de queimar a Amazônia, de destruir a Amazônia, de extrair o minério da Amazônia, acabando com todos os rios, com os solos, destruindo, matando a população em Ribeirinho. Olha o Rio Grande do Sul, o último exemplo que a natureza deu. Pelaram tudo, tiraram tudo. Não tem mais vegetação nativa quase no Rio Grande do Sul, tiraram tudo. Porque tem solos muito bons, tem clima bom, chove muito e tudo. Mas a natureza veio e levou o boi na enchente. A natureza veio e levou o arroz na enchente, levou a soja. Levou tudo em quinze dias. Veio o alerta. Assim como no Rio Grande do Sul, pode acontecer aqui. Já temos 13% do semiárido. Já é uma área semelhante à do Rio Grande do Sul, todinha. A área do Rio Grande do Sul, todinha aqui no semiárido, 13% de novecentos mil quilômetros quadrados. É muita, muita terra. Isso é deserto e savana. Mas eu não vi esse deserto, não, porque você não vai ver o deserto como você vai para o Atacama, no norte do Chile. Você não vai ver como você vê o Saara, o outro deserto grande com outra parte do mundo. Os nossos desertos aqui são manchas, uma mancha aqui, outra ali, são manchas relativamente pequenas se comparadas aos desertos que existem, né? Essas manchas que estão distribuídas no território do semiárido. Qual é o problema? É uma mancha encontrar com a outra, encontrar com a outra, encontrar com a outra, aí nós vamos virar o quê? Um Atacama da vida aí, um Sahara. E aí? Aí vira deserto mesmo.
P/1 - Tião, falando das mudanças climáticas, você lembra a primeira vez que você estranhou a Caatinga?
R - Assim, é difícil sentir na pele para quem vive dentro de muitas Caatingas. Porque foi sempre, sobretudo aqui em Pernambuco, de uma caatinga… Caatinga do Pajeú, catinga do Moxotó, catinga do Araripe, catinga do São Francisco, entendeu? São muitas caatingas. Caatingas do Rio Grande do Norte, a caatinga do Ceridó, por exemplo. Caatinga do Alto Piranhas, na Paraíba. As caatingas da parte superior do Planalto da Borborema, da Baixa Depressão, da Paraíba. Então, como eu fiquei muito nisso, talvez eu não tenha percebido com tanta... com um olhar mais atento de quem está no lugar só: Eita, aqui não tem mais água, o olho d'água secou. Dessa convivência mais, digamos assim, mais localizada mesmo, sabe? Quando eu tô falando assim de meu território, aí o meu território, por conta da minha formação, da minha missão, da minha dedicação, virou esse mundo todo, esse semiárido todo, não é? Eu não tenho um palmo de terra, eu não tenho um pedaço de semiárido. É, não tenho. Assim, meu. Pra dizer que é meu, não tenho. Então, fui vivendo na terra dos outros, dos agricultores. Desde o Rio Grande do Norte, a Paraíba, Pernambuco, Ceará, Lagoas, enfim, Bahia. Eu sou bicho da Caatinga, então, onde eu estiver na Caatinga, estou bem. E a Caatinga tem essas diferenças todas, e como um bicho que anda no mato, ele se adapta às diversas realidades. Então, eu não percebia, assim, no olho, essas mudanças tão... Agora, aí vem, por exemplo, vocês passaram agora nessa região aqui de floresta. Petrolândia é floresta. E ali é savanização pura já. Aí você puxa a vida. Lá no Rio Grande do Norte, por andar tanto, passo algum tempo sem pular. Mas quando eu volto para o Ciridó, o Ciridó está mais baixo. Quando eu passo aqui no Cariri, vou no Cariri paraibano, eu só vejo bonsai no Cariri. Árvores como a angico, arueira, braúna. Árvores grandes, dez, doze, quinze metros de altura. Agora estão da minha altura ali. Não crescem mais, tudo tortinhas ali. Ficam até bonitas, como um bonsai ali, aquelas coisinhas pequenas. Nasce um capim muito rico em fibra dura, os animais não conseguem comer. A terra querendo reagir ali, o meio ambiente querendo reagir. A gente para, olha e se assusta. Agora, uma coisa que foi muito sensível, que eu percebi claramente, foi, por exemplo, as alterações no regime de chuva. E outros sinais, por exemplo, que a gente não tem mais. Por exemplo, isso é químico, é físico. Cadê o sereno da madrugada, o orvalho? Nessa região do Moxotó já acabou, não tem, reduziu bruscamente. Aquele sereno da infância que ficava ali no orvalho, da infância que molhava a perna da minha calça, não tem mais aqui. Puxa vida! Aí vem outras indicações biológicas. Cadê os vagalumes que eu brincava? Ontem eu saí à noite aqui, são as nove e meia, fui ver a lua ali, e vi dois agapórnis. Aí corri atrás pra tirar fotografias porque não tinha mais agapórnis, não tem mais , um sinal biológico. Não tem mais agapórnis. Então a gente vai vendo essas transformações. O que eu vejo é que as fruteiras do semiárido daqui estão se acabando, não tem mais mangueiras nas várzeas, não tem mais cajueiros na várzea. Não tem mais... porque desmataram muito, a água não se infiltra no lençol freático. E aí a tecnologia chega. Aí nesse caso, a tecnologia que era pra ajudar, não tá ajudando. Porque aí faz o poço profundo, bota a bomba lá e vai tirando a água e o nível do lençol freático vai descendo numa velocidade incrível. O sistema radicular não consegue acompanhar. Morre de sede a planta. Por que a mangueira morreu? Essa mangueira tinha trinta anos, vinte anos. Agora tá secando tudo. Porque não dá pra passar um ano sem beber água, dá? O Poço Profundo, o Poço Artesiano, que a gente não conhecia antes, era cacimbões, poços feitos aqui, ó, no muco e na mão. Agora chega a mata e a gente ia até dez, quinze metros, aí já era um poço profundo, quem sabe aí uma raridade é um poço com vinte metros de profundidade. Mas a máquina chega, perfura cinquenta, sessenta, cem, 150, duzentos, vai buscar a água lá de baixo. E aí chove pouco, mudou também, né? Não há uma recarga mais no lençol freático que as plantas, as fruteiras podem... Então esses sinais são muito evidentes, que vai mudando, vai mudando, vai mudando. Cadê as chuvas? Cidade que eu moro hoje, em Arco Verde, a mais bela cidade de todo o semiárido. Linda cidade, clima gostoso demais. Nem é quente, nem é frio, Arco Verde. Nem é pequeno nem é grande. Fantástica a cidade. Mas mudou demais o clima. Cadê o clima frio agora do meio de São João? Não tem mais. Era pra estar lá. Agora... O clima ameno, bonzinho. Sem alterações grandes. Da noite pra o dia. Agora, não tem mais. Eu, quando cheguei pra morar em Arcoveira, era aquele encanto de clima. O clima era estável, né? Mudava durante o ano, mas não tinha essas alterações bruscas e etc. É isso, né? E vai vir outras e outras mudanças. E a gente percebe também que alguns animais da caatinga, os insetos da caatinga já não produzem mais na mesma quantidade, nem tem mais nas mesmas quantidades. Enfim, tem uma alteração já visível para todos.
P/1 - E hoje, como é seu cotidiano, seu trabalho aqui?
R - Hoje eu dou aulas. Aqui na escola eu ensino agroecologia e permacultura. Continuo estudando, semeado, continuo com as condições que eu tenho pesquisando. Eu continuo com as condições que tenho também fazendo ecotecnologias. E continuo assim, com a mesma dedicação de quando eu tinha quarenta anos. Dedicado. A perna aqui tá curta já. Tá curta, não dou mais o salto que eu dava, né? Mas tô consciente de que é uma fase nova na minha vida, né? Uma fase nova. E que, nessa fase nova, eu tenho que descobrir formas, jeitos de continuar ativo, e que isso pode ser um presente também. Eu não preciso mais... Estou querendo entender que não preciso mais estar viajando, tá correndo atrás, subindo a serra, descendo a serra. Mas agora tô entendendo que ficando mais quieto, mais sentado aqui, posso contribuir com essas coisas que aprendi na vida. E tô ficando feliz de poder tá ativo nisso aí. Porque faço parte da... do processo vital da vida mesmo. Eu me lembro muito dos indígenas. Os mais velhos ficam no conselho, estão para aconselhar, para enxergar o que circula por fora, porque, às vezes, no ativismo a gente nem enxerga. Por isso que os índios formam o Conselho de Ancião. Porque aí o cara mais sentado aqui, mais quieto, ele consegue focar, tirar uma fotografia das realidades mais elaboradas, mais próximas, mais detalhadas. É isso. Eu fico agradecendo muito a Deus, a felicidade de estar envelhecendo e já começando a compreender de que eu não vou mais precisar correr. Eu não vou mais precisar correr. Já teve um tempo que eu precisava correr. Agora já não preciso mais correr, só preciso caminhar. E a passos lentos mesmo. Mas assim... Acho que com mais qualidade, com mais... Com mais dedicação, com mais calma. Mas uma coisa é preciso. Enquanto o coração pulsar, a mente funcionar, os olhos verem, a gente precisa, todo dia, ajudar a construir um mundo melhor. Até que um dia todo mundo, “todo mundo”, entre aspas, os que são catingueiros, os que são sertanejos, os que nasceram no semiárido, possam se assemelhar de alguma coisa à vida dos outros seres vivos daqui. Daí a importância que tem a formiga, a abelha, a lagarta, a borboleta, o pássaro, tudo isso é vivo. E ele lembra de Mujica, né? Não há indiferença entre a minha vida e a vida deles. Não tem uma maior importância. A minha inquietação é que eu ainda não aprendi a ser como as formigas, eu ainda não aprendi a ser como os pássaros, como os répteis, como os anfíbios. Essa é a minha inquietação. Talvez eu tenha tempo ainda para compreender muito mais, para ser mais catingueiro, ser mais formiga, ser mais... Talvez eu tenha. Mas se eu não tiver, foi a dose do universo. Olha, o teu pedaço foi esse e está bom demais. Vai virar pó. Para, sendo pó, alimentar o micro-organismo do sertão e se tu levar muita sorte um pássaro vai estercar ali uma semente de mandacaru e de repente tu vira um mandacaru e ressuscitarás nessa planta que vai alimentar outros pássaros, as abelhas que vão trazer um verde para o semiárido, e que vai continuar dando a lição de resistência.
P/1 - E como a sua história pode ajudar nesse novo mundo?
R - Eu nem sei, né? Se minha história tem esse valor tão grande de ajudar para o novo mundo. Talvez a minha intenção tenha, mas a minha história não tem muita coisa para ser contada, não. A intenção tem aqui. Eu me vejo, assim, como uma estrela, como uma personalidade que seja capaz de influenciar. Parece que o meu limite é só o tamanho que um homem pode ser, assim, na simplicidade. Agora, o que eu gostaria era que esse carinho e esse apego que eu tenho pela caatinga, que ele fosse transbordante. Ah, se eu conseguir, se eu conseguir que antes de partir, que isso pegue, que outras pessoas comecem a pegar, já estava na medida, não precisava de mais. Esse apego aqui. Ninguém vai me tirar da Caatinga. Ninguém. Absolutamente ninguém. Por que eu não saio daqui? Porque aqui é a minha vida. Tudo aqui na Caatinga eu acho bonito. Tudo eu acho gigante, grande. Tudo eu acho potente. Mas eu não consigo ver essas coisas no lugar dos outros. Os outros que nasceram em outros lugares, veem tudo isso no lugar deles lá. Mas eu vejo na caatinga. Então é esse aqui o meu lugar, o meu espaço. E é esse espaço de riqueza, de prosperidade, de potencialidade. É o que eu queria que as outras pessoas vissem. Porque não consigo ver escassez. Já vi antes. Agora não consigo mais ver escassez. Não consigo ver mais pobreza. Seca, que antes eu pensava que era problema. Seca não é um problema. Seca é um fenômeno que a gente tem que aprender a conviver com ele. Eu me lembro muito do saci, né? O saci não tem duas pernas, mas o saci corre mais do que quem tem as pernas, só tem uma, né? Ele saltita e tá em todo lugar, e o saci chega, né? O saci tá na floresta, o saci tá nas várzeas, o saci tá na serra, tá nas pedras, tá em todo canto, o saci chega. Ele só tem uma perna, né? E ele, o pezinho é virado, né? Então... se essa ideia, se esse apego virasse aí um saci, era bom. Mas eu acho que a gente conseguiu, sabe, Sofia, alguma coisa. Porque muita gente que vem de outras regiões, inclusive aqui do Nordeste, do Nordeste chuvoso, do litoral, né, chove muito, E o que acham? Pensavam que a Caatinga era um inferno, era um lugar sem vida, um lugar morto, um lugar sem beleza. Eu acho que a gente já conseguiu, né? Muita gente já não pensa mais assim. Muita gente chega aqui pra se encantar com a Caatinga, que voltam pra cá, que trazem a família, que querem até sair lá da cidade grande para vir aqui para as cidadezinhas pequenas, para uma vila, para um pedaço de terra aqui, um sítio, um lugar, para viver a essência, a essência da natureza. E a Catinga acolhe aqui todo mundo. É isso.
P/1 - O que você achou de contar essa história hoje?
R - Talvez tenha sido uma... Não sei dizer, eu nunca contei essa história assim, desse jeito que eu contei para vocês. Mas eu gostei de contar essa história. Talvez sabendo que essa história pode virar uma aula para alguém, essa história pode influenciar alguém. Essa história pode levar alguém a compreender a potencialidade dessa minha região. Me traz esperança contar essa história. Me traz uma perspectiva, um pensar de que: Poxa, isso vai ajudar alguém. E se vai ajudar alguém, mesmo que seja uma, duas, três pessoas, já valeria a pena muito ter parado aqui para falar isso.
P/1 - Tem mais alguma coisa que você queira colocar?
R - Não, só agradecer a paciência de vocês, a compreensão.
P/1 - A gente que agradece. Pode encerrar.
R - Obrigado.
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