Ruth Schneider nasceu em Passo Fundo (RS), onde passou sua infância envolta em histórias populares contadas por sua avó Ida — figura fundamental na formação da sua imaginação e sensibilidade artística. Em especial, as narrativas da Rua 15, conhecidas como “a rua da zona”, povoaram sua mente com personagens caricatos, trágicos e cômicos, que mais tarde habitariam o universo singular da artista. Desde cedo, Ruth criou um vínculo forte com o papel, a tesoura, os recortes de revista, os quadrinhos e os almanaques— ferramentas que viriam a compor sua técnica por excelência: a colagem.
Aos dez anos, após um acidente na perna que a deixou acamada por um tempo, Ruth começou a desenvolver com mais intensidade sua relação com a criação. Isolada, mas fértil em ideias, ela transformava dor em narrativa e realidade em fantasia. Esse período serviu como catalisador para a poética que desenvolveria ao longo da vida: íntima, provocativa e autobiográfica.
Adulta, Ruth mudou-se para Porto Alegre. Lá, ingressou no curso livre de artes do Atelier Livre da Prefeitura e foi aluna do renomado artista Fernando Baril, que exerceu grande influência em sua trajetória. Mesmo se dizendo “fujona do pincel”, Ruth explorava diferentes técnicas com liberdade: monotipia, pastel, acrílico, óleo, colagem, objetos e recortes de eucatex. Ainda que autodidata, Ruth encontrou no atelier um espaço de experimentação e fortalecimento de seu estilo. Sua obra, de forte tom expressionista e traço naïf, foi tomando forma através de personagens e narrativas visuais, sempre muito coloridas e repletas de ironia e emoção.
Um dos grandes pilares da sua criação foi o projeto \\\"Cassino da Maroca\\\", iniciado nos anos 1980. Baseado nas histórias da sua cidade natal, Ruth deu vida a uma série de figuras como a cafetina Maroca, Maria Bigode, Zica Navalha, Chico Beriborro, Garoto de Ouro, Canhotinho e tantos outros. Mistura de cordel, bordel e memória...
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Ruth Schneider nasceu em Passo Fundo (RS), onde passou sua infância envolta em histórias populares contadas por sua avó Ida — figura fundamental na formação da sua imaginação e sensibilidade artística. Em especial, as narrativas da Rua 15, conhecidas como “a rua da zona”, povoaram sua mente com personagens caricatos, trágicos e cômicos, que mais tarde habitariam o universo singular da artista. Desde cedo, Ruth criou um vínculo forte com o papel, a tesoura, os recortes de revista, os quadrinhos e os almanaques— ferramentas que viriam a compor sua técnica por excelência: a colagem.
Aos dez anos, após um acidente na perna que a deixou acamada por um tempo, Ruth começou a desenvolver com mais intensidade sua relação com a criação. Isolada, mas fértil em ideias, ela transformava dor em narrativa e realidade em fantasia. Esse período serviu como catalisador para a poética que desenvolveria ao longo da vida: íntima, provocativa e autobiográfica.
Adulta, Ruth mudou-se para Porto Alegre. Lá, ingressou no curso livre de artes do Atelier Livre da Prefeitura e foi aluna do renomado artista Fernando Baril, que exerceu grande influência em sua trajetória. Mesmo se dizendo “fujona do pincel”, Ruth explorava diferentes técnicas com liberdade: monotipia, pastel, acrílico, óleo, colagem, objetos e recortes de eucatex. Ainda que autodidata, Ruth encontrou no atelier um espaço de experimentação e fortalecimento de seu estilo. Sua obra, de forte tom expressionista e traço naïf, foi tomando forma através de personagens e narrativas visuais, sempre muito coloridas e repletas de ironia e emoção.
Um dos grandes pilares da sua criação foi o projeto \\\"Cassino da Maroca\\\", iniciado nos anos 1980. Baseado nas histórias da sua cidade natal, Ruth deu vida a uma série de figuras como a cafetina Maroca, Maria Bigode, Zica Navalha, Chico Beriborro, Garoto de Ouro, Canhotinho e tantos outros. Mistura de cordel, bordel e memória inventada, esses personagens representavam o submundo, os excluídos e as mulheres livres — figuras que, à sua maneira, eram heroínas e anti-heroínas, delicadas e ferozes. Esses nomes não só povoaram seus quadros como viraram extensão da sua própria subjetividade: “Eu sou um pouco de cada um deles”, dizia.
Nos anos 1990, Ruth iniciou um processo de documentação íntima em vídeo. Gravou com uma câmera VHS mais de 70 fitas, hoje preservadas. Nelas, aparecem conversas com amigos, familiares, outros artistas e, principalmente, momentos em que ela própria se filma — pintando, refletindo sobre a vida e comentando suas obras com humor, melancolia e paixão. Esse material revela uma Ruth cotidiana e genial, registrando desde a preparação de exposições até confissões solitárias em seu ateliê. São arquivos sensíveis que ampliam a compreensão sobre sua trajetória como mulher, artista e mãe.
A vida de Ruth foi marcada por perdas profundas. Teve quatro filhos: César (morto por afogamento), Fátima Maria (sua única filha, falecida logo após o nascimento), Juarez Loberti (que cometeu suicídio) e Willy, o único filho vivo. Também perdeu seu marido, Juarez, pouco depois da morte de Juarez Loberti. Essas tragédias se refletiram em sua obra, que, embora repleta de cor, sempre transbordou dor, memória e resistência. “O artista morre na pobreza”, dizia, “mas enquanto estou viva, eu vou criando”. Nessas fitas, Ruth também aparece conversando com a câmera sobre os tempos difíceis, sobre seu amor pela arte e sobre sua vontade de deixar um legado.
O cotidiano de Ruth era recheado de poesia. Tinha um humor afiado, uma postura crítica e uma leveza rara, mesmo ao falar de temas difíceis. Conversava com suas obras como se fossem amigas. Numa das fitas, diz a uma pintura: “Ó Eva, tu vai ser expulsa do paraíso se tu não fizer comida pro Adão, viu?”. Seus personagens ganhavam vida, suas esculturas falavam, e até os pedaços de madeira tinham alma.
Participou de importantes exposições, como a 22ª Bienal Internacional de São Paulo, a Bienal de Santos e várias mostras coletivas e individuais no Brasil e no exterior. Ganhou prêmios e homenagens, mas o que mais prezava era o contato direto com o público, especialmente nas oficinas que ministrava. Via a arte como algo que deveria ser compartilhado. Em uma de suas gravações, ela afirma: “Gosto de passar a arte sem compromisso. Se continuar, tudo bem. Se não continuar, vai fazer outra coisa boa. A arte está em tudo.”
Ruth Schneider também foi reconhecida por seu trabalho com arteterapia. Sem jamais abandonar sua visão autoral e livre, ela estimulava outras pessoas a encontrarem na arte um caminho de expressão e de cura. Ensinava o valor do erro, do gesto espontâneo e da criação como força vital.
Em seus últimos anos, já com a saúde fragilizada, Ruth sonhava em montar um museu com seu acervo. “Estou trabalhando para vocês, para deixar tudo isso aqui”, dizia nas fitas. Deixou centenas de obras, entre colagens, pinturas, esculturas, monotipias e vídeos. Mas, acima de tudo, deixou um mundo: um universo pessoal, feminino e latino-americano, construído com paciência, humor e dor. Um mundo onde arte e vida se confundem, onde cada recorte é uma memória e cada personagem, um espelho.
Entre os que conviveram com ela e aparecem nas fitas estão Willy Schneider (filho), Minna Schneider (mãe), Juarez (marido), os filhos César e Juarez Loberti (em registros antigos), amigas como Tânia Rösing, Roseli Preto, artistas como Paulina Eisery, Maria Leda, Júlia Soluzione, além de registros de oficinas com estudantes e universitários, exposições, críticas de arte e memórias pessoais.
Hoje, sua obra segue viva, inspirando novas gerações de artistas e pesquisadores. Ruth Schneider é, sem dúvida, uma das vozes mais autênticas da arte brasileira — uma cronista visual das mulheres, dos marginalizados e dos afetos. Seu legado é feito de memória, de cor e de coragem. E permanece conosco.
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