Programa Conte Sua História
Entrevista de Rubneusa Leandro de Souza
Entrevistada por Felipe Rocha
São Paulo, 2 de Maio de 2024
Entrevista n.º: PCSH_HV1394
Revisado por Estfani da Costa
P/1- Entrevista de Rubineusa Leandro de Souza, entrevistada por Felipe Rocha, São Paulo, 2 de maio de 2024, Programa Conte Sua História, entrevista PCSH_HV1394. Para a gente começar, pergunta então seu nome completo, local e data de nascimento.
R- Rubineusa Leandro de Souza, nasci em Itamaraju, Bahia.
P/1- E você sabe um pouquinho sobre a história do seu nascimento, sobre o dia? Te contaram alguma coisa sobre?
R- Bom, mais ou menos. Você falando aí, eu lembrei. Meu pai trabalhava em uma fazenda, lá na minha cidade tem um monte que é chamado Monte Pescoço. É uma pedra que você visualiza de vários cantos da cidade. E essa fazenda ficava perto dessa pedra. E meu pai trabalhava nessa fazenda e minha mãe conta que eu nasci nessa fazenda. Acho que eu não lembro o nome da fazenda, mas era... uma fazenda de um cara, inclusive, que foi prefeito depois da minha cidade.
R- Doutor Almir. Mas eu não me lembro o nome. Não me lembro o nome da fazenda. Eu nasci numa fazenda.
P/1- E você sabe o motivo da escolha pelo seu nome?
R- Eu, porque... o meu nome tem… (risos) o meu pai, ele... botou o prefixo dos filhos todos com o nome dele. O meu pai se chama Rubens, enquanto nascia um filho, ele ia inventando aí. Então, Rubineusa, mas também tem Rubinéia e assim por diante. Então, meu pai colocou o nome dos filhos quase todos com as iniciais do nome dele.
P/1- Então, vamos pegar esse gancho. Poderia falar um pouquinho sobre o seu pai? Como você descreveria ele?
R- É... O que eu lembro, sendo meu pai, é que eu era muito apegada a ele, né? Assim, eu me lembro... Ele se separou da minha mãe, eu deveria ter uns oito anos. A gente era muito apegado. A... Minha relação com meu pai era muito... Era uma afetividade, assim, eu acho que eu era apegada…
R- É...
Continuar leituraPrograma Conte Sua História
Entrevista de Rubneusa Leandro de Souza
Entrevistada por Felipe Rocha
São Paulo, 2 de Maio de 2024
Entrevista n.º: PCSH_HV1394
Revisado por Estfani da Costa
P/1- Entrevista de Rubineusa Leandro de Souza, entrevistada por Felipe Rocha, São Paulo, 2 de maio de 2024, Programa Conte Sua História, entrevista PCSH_HV1394. Para a gente começar, pergunta então seu nome completo, local e data de nascimento.
R- Rubineusa Leandro de Souza, nasci em Itamaraju, Bahia.
P/1- E você sabe um pouquinho sobre a história do seu nascimento, sobre o dia? Te contaram alguma coisa sobre?
R- Bom, mais ou menos. Você falando aí, eu lembrei. Meu pai trabalhava em uma fazenda, lá na minha cidade tem um monte que é chamado Monte Pescoço. É uma pedra que você visualiza de vários cantos da cidade. E essa fazenda ficava perto dessa pedra. E meu pai trabalhava nessa fazenda e minha mãe conta que eu nasci nessa fazenda. Acho que eu não lembro o nome da fazenda, mas era... uma fazenda de um cara, inclusive, que foi prefeito depois da minha cidade.
R- Doutor Almir. Mas eu não me lembro o nome. Não me lembro o nome da fazenda. Eu nasci numa fazenda.
P/1- E você sabe o motivo da escolha pelo seu nome?
R- Eu, porque... o meu nome tem… (risos) o meu pai, ele... botou o prefixo dos filhos todos com o nome dele. O meu pai se chama Rubens, enquanto nascia um filho, ele ia inventando aí. Então, Rubineusa, mas também tem Rubinéia e assim por diante. Então, meu pai colocou o nome dos filhos quase todos com as iniciais do nome dele.
P/1- Então, vamos pegar esse gancho. Poderia falar um pouquinho sobre o seu pai? Como você descreveria ele?
R- É... O que eu lembro, sendo meu pai, é que eu era muito apegada a ele, né? Assim, eu me lembro... Ele se separou da minha mãe, eu deveria ter uns oito anos. A gente era muito apegado. A... Minha relação com meu pai era muito... Era uma afetividade, assim, eu acho que eu era apegada…
R- É tanto que eu lembro muito mais do meu pai do que da minha mãe, assim. Uma relação muito forte com o meu pai. Só que o meu pai, ele... Ele e minha mãe viveram uma relação estável, tiveram sete filhos juntos, mas meu pai tinha muitos casos fora do casamento. E eles viviam numa relação assim, separa, volta, separa, volta. E foi muito conflituoso pra gente, porque quando eles se separavam, ele levava os filhos. E nessa relação foi muito dolorosa pra minha mãe, pra nós. E até que eles se separaram definitivamente.
R- A gente foi morar numa fazenda. E aí eu volto pra cidade. do lugar que a gente morava, Fazenda, para a escola, era uma caminhada grande, que era no povoado. Então, eu fazia esse trajeto caminhando, e aí foi ficando muito difícil. E aí eu volto para a cidade, morar com uma tia para poder estudar. Aí eu tinha, o quê? Uns sete anos. Quando…
R- Não, sete anos? Ah, primeira série. Ah, eu me perdi agora na idade. Então, eles se separaram, eu não tinha medo de sete anos. Fez confusão agora na minha cabeça. Mas eu acho que quando eu fui fazer a primeira série, eu já deveria estar com um pouquinho mais, acho que eu estava com oito, porque eu tinha uma distorção aí de série. Acho que eu tinha por volta de uns oito anos. Nesse vai e volta do meu pai com minha mãe, a nossa diferença de idade geralmente é de um ano e meio.
R- Então, mais ou menos por aí, eu venho para a cidade morar com minha tia para poder estudar. E volto e meia a voltar a morar com ele, porque a minha mãe já tinha se separado definitivamente, até que em uma certa altura a gente volta a morar com a nossa mãe, exatamente por causa das mulheres do meu pai, a gente madrasta, então não era uma relação muito boa. E aí a gente acaba voltando morar com a nossa mãe e assim ficamos. Depois que a gente cresceu mais, a gente não quis mais morar com ele e nós tomamos ele. Ele tirava a gente da nossa mãe e levava com ele. Mas quando a gente foi crescendo, a gente teve a iniciativa de voltar e morar com a nossa mãe.
P/1- Você falou que ele trabalhava mais no campo mesmo, né?
R- É, até uma certa altura ele trabalhou muito em fazenda, depois ele veio pra cidade e trabalhou de taxista, com um bom tempo trabalhando de taxista. Depois ele mudou para Rondônia e não voltou mais, ficou em Rondônia, ele continua em Rondônia.
P/1- A gente falou um pouquinho sobre o Rubens, agora eu queria que você falasse, contasse um pouquinho pra gente sobre a sua mãe, o nome dela, o que você se lembra.
R- A minha mãe é Regina Maria da Conceição. Ela é uma índia muito guerreira, que viveu um casamento muito conflituoso com o meu pai, que era, a gente fala, mulher engobete. Mas, assim, a referência com a minha mãe de uma mulher muito forte, porque quando a gente volta pra morar com ela, também eram muitos filhos pra ela ter que dar conta sozinha. Então, ela se submeteu a vários tipos de trabalho. No início, ela trabalhava num restaurante e a relação com o dono do restaurante era um pouco que acolheu a gente. Então, pro nosso estudo naquele período, a gente tinha que comprar tudo, né? Material de escola. A gente ainda morava com o meu pai.
R- Quando ele volta pra cidade, a gente volta a morar com ele, depois que a gente... Mas ele não assumia essa despesa e acabava sendo minha mãe. Quando a gente vai morar com ela definitivamente, a despesa ficou bem maior. E aí... ela... Ela ficou um bom tempo nesse restaurante e, recentemente, ela lembrou de uma história que nem eu mais lembrava, porque nenhuma das vezes que eu tinha que... que eu cheguei para ela com material da escola para comprar, ela estava desempregada, e ela foi trabalhar de gari. E quando ela me relatou, eu nem lembrava mais disso.
R- Quando eu a vi trabalhando, eu falei com ela que eu pararia de estudar, parece que ficou mais referência para mim em um período da minha história. Como meus pais eram separados, então a gente estava com um outro, a minha tia parece que me dava uma estabilidade melhor, porque ela cobrava, ela tinha uma disciplina. E aí, como... com pai e mãe eu ficava à vontade e eu acho que eu gostava daquele jeito dela poder me dar um pruma de poder tu cobrar, fazer cobranças. Então, e eu fiquei um bom tempo copara ela não estar naquele sol quente, trabalhando. Então, isso foi muito forte, que nem eu lembrava mais dessa história. Então, assim, foi uma vida muito difícil para poder garantir que a gente tivesse as condições. E ela assumia tudo isso sozinha, meu pai não assumia nada. A gente teve que... Depois a gente começa a trabalhar, começa a contribuir, mas foi bem dura a nossa infância, nossa adolescência e parte da nossa juventude.
P/1- Voltando um pouquinho, antes da gente entrar um pouco mais nos estudos, você sabe como eles se conheceram, a ocasião que eles ficaram juntos, tem alguma lembrança desse período juntos?
R- Por curiosidade, esses dias eu perguntei para ela. Parece que foi numa festa que teve, e aí eles se conheceram. Ela vinha de um casamento, e, assim, é uma história bem esquisita, porque ela era casada, teve um filho, o filho morreu. Só que eu fiquei em dúvida agora, acho que o filho morreu... E o marido dela, naquelas histórias que a gente ouve e pensa que é a história da carochinha, o marido saiu para comprar carne e nunca voltou, nunca mais voltou. É, parece que ela estava grávida. Eu nunca aprofundei a conversa com ela, esses dias, por curiosidade, que eu estava perguntando como é que ela tinha conhecido o meu pai. Mas essa história do marido dela, que foi comprar carne e não voltou mais, a gente achava engraçado, porque como é que pode o cara sair?
R- Ela falou que anos atrás ficou sabendo que ele estava no Espírito Santo, constituiu família por lá e parece que tinha morrido. Mas esse filho que ela teve com esse primeiro casamento, a criança morreu. E aí, quando ela conheceu meu pai, ela estava vindo desse casamento. Meu pai tinha um filho, mas não era de um casamento, era de uma relação que ele tinha tido. E aí eles foram viver juntos, foram morar na fazenda da minha avó. E ela falou que minha avó era muito... porque ela é uma índia, ela tem uns traços indígenas muito fortes, minha mãe. E ela falava que minha avó era muito dura, assim.
R- Tinha um tratamento muito ruim com ela. Depois eles vieram morar na cidade. E aí ele ficava assim, ora arrumava trabalho na fazenda, depois voltava. Até que a maior parte do que eu conheço da história dele, depois dessa última fazenda onde eu saí, vim trabalhar, morar com minha tia para estudar, ele ficou trabalhando taxista depois disso.
P/1- E essa tia que você morou um tempo, qual era o nome dela? Como era a sua relação com ela?
R- A tia Maria, eu acho que eu tenho mais relação assim, acho que eu tive mais relação com minha tia do que com a minha mãe, até um período, porque eu morava com a minha tia, tia Maria, Maria José, faleceu faz uns três anos, e como tinha minhas primas, então, a gente acho que esse núcleo aqui com a minha tia e minha tia, assim, mesmo depois de jovem, ficava com minha mãe, mas também ficava na casa da minha tia. Tinha uma relação, assim, bem legal com ela.
P/1- E além da tia Maria, tem algum outro parente que você se lembra, mais próximo?
R- A minha avó, porque quando minha mãe se separava, porque foram várias separações, a minha avó era essa referência. Por isso que eu falo assim, como ela saía para trabalhar, quem ficava em casa era a minha avó, a avó Maria, Maria Vitória. Ela era bem dura com a gente, mas também carinhosa, aquela de contar história. Me lembro muito de eu deitada no colo dela e ela contando história à noite. Ela foi uma fortaleza pra minha mãe, sabe? Nessas separações, ela era o braço ali que cuidava da gente, que... Então, a minha avó, nesses parentes aí.
P/1- Tem alguma história dessas que ela contava sobre a região que ficou marcada, assim, pra ti?
R- Que contava sobre?
P/1- Dessas que você ouvia no colo dela?
R- As histórias da minha avó eram sempre de princesas e príncipes, mas eram umas histórias elaboradas, porque tem Cinderela, mas não eram essas histórias que ela contava de Cinderela, embora era princesa, mas eram umas histórias de reinos, de transformações que essas princesas passavam, sempre essas princesas também tinham momentos duros, mas o que eu me lembro é que não eram histórias tradicionais, embora os traços eram parecidos, mas as histórias que minha avó contava não eram dessas tradicionais, mas tinham os traços.
R- As histórias da minha avó eram sempre de princesas e príncipes, mas eram umas histórias elaboradas, porque tem Cinderela, mas não eram essas histórias que ela contava de Cinderela, embora era princesa, mas eram umas histórias de reinos, de transformações que essas princesas passavam, sempre essas princesas também tinham momentos duros, mas o que eu me lembro é que não eram histórias tradicionais, embora os traços eram parecidos, mas as histórias que minha avó contava não eram dessas tradicionais, mas tinham os traços.
P/1- E ela que inventava?
R- Eu acho que não, porque ela sempre contava. Mas, assim, eu nunca vi essas histórias em outros espaços. Embora, saindo do campo das princesas, ela me contou uma história uma vez de... Como é que é? Caju roxo e melancia? Era alguma coisa assim. E ela me contou essa história, e anos depois, não muitos anos depois, eu encontrei uma literatura de Cordel, que era o mesmo título e a mesma história.
R- Mas quando eu vi aquilo, eu falei, meu deus, essa é a minha história. Ela me contava como história, assim, e depois estava lá em Cordel. Aí eu comprei esse Cordel, levei feliz da vida para mostrar para ela. não era caju roxo, mas era alguma coisa assim, melancia, que era a forma de dois namorados, que acho que a família não queria, e que eles inventaram esses nomes para poder disfarçar. E aí, esse cordel, quando eu vi, falei assim, olha só, a história que minha avó contou, provavelmente ela viu algum cordelista, alguém, e ela gravou como história e contou. Era bonita, assim, esse negócio de romance aí era bonito. O Romeo e a Julieta.
P/1- Incrível. E falar um pouquinho agora sobre os seus irmãos, você falou que tem bastante, né? Como era essa relação com eles? Quantos eram?
R- Um dos meus irmãos, o único, minha mãe teve... o filho que morreu era homem, e ela teve mais um com meu pai. Então, os filhos do meu pai são quase todas mulheres. As filhas, né? Eram quase todas mulheres. E com minha mãe, então, ele teve sete. Um era o menino, que foi com ele, embora a gente não quisesse, a gente segurou, porque meu pai mudou para Rondônia.
R- E naquele período, as viagens eram em pau-de-arara. Eu não sei se ele, empolgado pela viagem, que era um acontecimento, né. Todo mundo se preparava, passava, não sei lá, uma semana na estrada. Então, as pessoas tinham que se preparar. Não sei se aquilo encantou ele, porque meu pai foi e nós não deixamos ele ir. Meu pai foi, depois ele mandou buscar a mulher dele e meu irmão queria ir. E nós não deixamos ele ir. E, numa segunda leva de viagem, ele driblou a gente e foi embora.
R- Ficou anos para lá. Ele voltou, mas era um homem feito. Acho que na época ele tinha uns oito anos. E aí a gente tinha... Minha mãe teve... a gente, no momento que a gente voltou tudo, porque a gente ficava com o meu pai, então uma começou a voltar, ficar com a minha mãe, outra volta, mas as meninas, outras tiveram que sair para trabalhar, tinha uma irmã que foi morar em outros municípios, então a gente ia conviver. Quando a gente estava convivendo junto, era muito, imagina, um monte de mulher, a gente tinha uns pega. Mas a gente, tinha minha irmã mais velha, mais velha do que eu, depois dela sou eu, e ela praticamente que criava a gente, assim, né.
R- Nessa relação, principalmente quando a gente estava com o meu pai, quando a gente estava com a minha mãe, tinha a minha avó por ali, mas quando a gente estava com o pai, era ela que era, um pouco essa figura mais velha que cuidava dos demais.
R- E…
R- E a gente teve momentos juntos, mas teve momentos muito cada um no seu canto. Eu ficava mais na casa da minha tia, porque a minha convivência era mais com minhas primas. Mas era, sim, aquela união de sobrevivência em um casal separado, um casal pobre. Então, a gente tinha que se apoiar umas às outras para poder sobreviver aquela vida turbulenta ali de…
P/1- Tá legal. E você mencionou algumas casas aí, né? Tem alguma dessas casas que vocês passaram na infância que ficou um pouco mais marcante pra você? Talvez a da Tia Maria, talvez a da mãe. Se você falasse um pouquinho sobre essas casas também. Os espaços, o que que era marcante nesses espaços?
R- A gente teve uma infância muito pobre, né. Então, assim, os espaços não é um espaço com uma memória, assim... Como, por ser criança e dentro dessa situação mais de precariedade, o quintal da casa. O quintal é um lugar que me remete muito... É um quintal com frutas e que a gente... Tanto quando meu pai morava na fazenda, o quintal, para mim, sempre é isso. A gente morava em um município que tinha muita jaca, jaqueira. A gente gostava de…
R- de tentar subir dos pés da jaca para tirar a jaca. Minha irmã, como era mais velha, ela que subiu. Uma vez ela caiu e ficou com o pé. Até hoje ela tem problema do pé, porque caiu dessa... Mas, assim, a relação... A gente mudava, né? Meu pai morava em fazenda, eu ia pra casa da minha tia. Então, assim, a relação da casa mesmo, assim, não me recordo muito, a não ser o quintal de uma das nossas casas, que era a casa própria mesmo, quando meu pai ainda vivia com minha mãe.
R- E depois que eles se separaram, ele vendeu. Então, de casa mesmo, não tenho muita... Me lembro muito, assim, do espaço que se passa, né. Não tem... e ainda quando o meu pai morava com a minha mãe, eu gostava de ficar doente, pra ir para o quarto da minha mãe. Então, é uma memória que eu tenho de que quando a gente estava doente, meu pai era muito, embora ele fosse... Talvez por isso que eu era muito apegada a ele, porque ele era muito cuidadoso ao mesmo tempo. Então, eu me lembro muito do cuidado quando a gente estava doente.
R- Eu tenho uma memória afetiva com a doença, porque ele era muito cuidadoso e a gente ia para o quarto da nossa mãe. Então, essa coisa do cuidado me lembra muito. Penso nessa agitação de uma vida não estável, mas esses momentos me marcaram.
P/1- Você falou um pouquinho dessas idas para a cidade, etc. Eu queria que você falasse um pouquinho sobre esses espaços, como que era na fazenda? como que era na cidade? por onde vocês transitavam? crianças, se tinha alguma brincadeira que vocês, primas, irmãs, faziam com mais frequência?
R- Na minha infância, é o que eu lembro. Quando a gente morava nessa casa ali, que era uma cidade... É o período, mais do que a cidade, o período. Ainda não existia saneamento, as ruas não eram calçadas. Eu me lembro que a construção da rodoviária foi um acontecimento. A cidade era de interior e não tinha muito isso. aos poucos que veio essa questão do saneamento, do calçamento. E eu me lembro de uma infância muito brincante.
R- Nessa rua, a gente fazia rodas, brincadeira de rodas. Então, era muito... Com toda essa dificuldade, a brincadeira infantil era muito forte. Então, a gente fazia grandes rodas, as criançada . Os pais ficavam na frente da casa, contando histórias, e a gente ficava na rua brincando. Aí era brincadeira de roda, de ciranda. Depois, a gente, já maior, a gente brincava com umas brincadeiras de pega, de queimada. Então, tem muito isso.
R- Na roça, na fazenda, era meio sinistro, porque não existia televisão. Até um grande não tinha televisão nessas cidades do interior. O que passava era a gente sentar no quintal de casa e os adultos começaram a contar casos de assombração. Eu até hoje, não vou mentir. Até hoje eu tenho medo de ficar só, porque eu me lembro dessas histórias e fico com medo. Eles começavam a contar as histórias e a gente começava a se encolher. Então, assim, é... essa coisa gostosa que hoje a gente não vê.
R- A gente tinha uma vida difícil, mas tinha esses momentos. É muito... é muito... Sei lá, afetivo quando a gente pensa nesses momentos. Era interessante. Minha avó gostava de contar histórias. Acho que para botar medo na gente, Mas na roça era pior, porque na roça não tinha energia elétrica, você tinha que vir de noite, de lua. A gente estava ali contando história e a gente ficava um pouco com medo.
R- Então, acho que tem essas coisas assim de infância que hoje a gente... Eu sinto... uma mudança muito grande, de diferença. Na cidade a gente tinha essas amigas, essas da rua, na fazenda era a gente mesmo, então não tinha casa próxima, então era um pouco isso.
P/1- E tinha alguma assombração que te dava mais medo que todas as outras?
R- Acho que não. Acho que as histórias gerais, a gente só ficava com medo daquelas coisas aparecerem, mas são traumas. A gente gostava de ficar ali ouvindo, mas cria um adulto medroso.
P/1- E você falou bastante das frutas, dos quintais. Tem alguma comida feita por alguém, ou mesmo, é isso, fruta que era muito comum, que te marcou muito, que dá um gostinho da infância, assim?
R- Eu acho que não para o bem, de querer. O abacate era muito presente. Tanto na cidade, a gente tinha um pé de abacate no quintal, quanto nas fazendas tinha abacate. O abacate deu uma memória boa. Mas, como a gente morava na roça. A minha região usa fubá, mas diferente da maior parte do Nordeste, que é o cuscuz, a gente não tinha o cuscuz, a gente tinha o mingau. E aquele mingau era terrível, porque a gente tinha... Eu não. Aí eu ia andar com a minha irmã.
R- A gente era menor, não podia mexer, porque ele pipocava na hora que está cozinhando. Então, a minha irmã que conta que ela tinha pânico daquele, ficava pipocando. Mas a gente tinha que comer aquele mingau praticamente todos os dias. A felicidade da gente era no sábado, quando meu pai ia para a cidade e trazia pão. Então, o pão, para mim, é uma referência de escassez que, quando você tem, te dá um prazer. Então, quando ele ia para a cidade, todo sábado ele ia para a cidade e fazia a compra, a gente já ficava esperando ele chegar para comer pão. Então, o pão era um acontecimento para sair daquela rotina de mingau.
P/1- Quando você era criança, tinha alguma coisa que você tinha muita vontade de ser? Esses sonhos de criança que você falava, quando for adulto, vou ser tal coisa?
R- Eu lembro, não. Eu só lembro que eu gostava de estudar. Mas eu acho que isso faz parte... Porque hoje a gente tem, para o campo, a gente tem a ideia do... da escolaridade, o nosso limite era o nível médio, então... Estou pensando nisso porque tu fez a pergunta agora. Nunca falei se eu quero ser isso. Eu gostava de estudar.
R- Para mim foi muito marcante a minha história da luta para eu poder estudar. Mas de querer ser alguma coisa não estava no nosso imaginário. Acho que as condições e também o acesso não eram postos para a gente. o acontecimento da gente era a formação no nível médio. Quando eu entrei no movimento, eu estava concluindo o ensino médio. Na minha cidade, o ensino médio era o máximo que a gente poderia chegar.
P/1- Por quê?
R- Porque para fazer uma faculdade, você tinha que ir para a capital.
R- E eu acho que bem anos depois foi que foi ter faculdade Acho que na minha cidade ainda nem tem, tem na cidade vizinha. Tem em particular, mas pública, não. Tem na cidade vizinha. Então, assim, não era... não tinha. Eu nunca falei, assim, que eu lembro de falar assim, eu quero ser isso. Nem professora, que era o mais comum a gente dizer, embora eu fiz magistério. Mas, dali na infância, estar imaginando o que é que eu queria ser, nunca passou para…
R- que eu lembro, não tinha essa.
P/1- Você falou dessa importância do estudo na sua trajetória. Qual a primeira lembrança escolar que você tem?
R- Ainda quando eu morava com a minha mãe, hoje em dia tem as escolas primárias, mas tinha professoras que faziam escolas em suas casas, ali a pré-escola. Hoje tem as escolinhas mesmo de pré-escola, mas antes eram as professoras que montavam na sua casa e a gente, eu me lembro, pelo menos ali quando eu morava com a minha mãe, de duas escolas que eu fiz, que ali estudava o ABC, tinha o ABC, e depois a cartilha. Triste, viu? Porque o ABC, que tortura! Você tinha que decorar aquelas letras lá e tinha o dia da sabatina. Parece mentira, mas é o viver isso. Eu levei uma palmatória de uma professora um dia, porque eu não acertei. E ela me deixou de castigo.
R- Esses dias até eu fui perguntar pra minha mãe, eu queria saber o que ela fez com a professora. Porque deu a hora de eu chegar em casa e eu não cheguei. Mas por quê? Era sabatina lá, com alfabeto. E pegava mesmo, eu sou desse tempo. O papel abria um buraco e botava em cima da letra, você tinha que acertar aquela letra. E eu não acertei e a professora me deu uma palma atorada que minha mão inchou. Ainda me deixou de castigo.
R- Então, deu a hora de eu chegar em casa e eu não cheguei. Minha mãe foi atrás. Só que ela tinha me liberado. Eu encontrei com minha mãe no caminho. Minha mãe mandou eu ir pra casa e foi pra casa da professora. Esses dias eu perguntei pra ela, mas nem me lembro o que ela respondeu. Acho que ela nem lembrava mais. Mas…
R- Aí eu lembro que eu não voltei mais nessa escola. E... E depois, quando a gente foi morar com meu pai numa fazenda, que era essa distante, era muito... era difícil, porque a gente tinha que ir a pé e voltar. E eu sofria bullying. E eu ficava chateada, porque meu pai já estava com uma mulher que era dessa mesma fazenda, ela tinha uns irmãos, e a gente ia junto pra escola. E aí as crianças ficavam tirando onda. E aí eu decidi que eu não iria mais pra escola.
R- E foi daí que eu fui pra casa da minha tia estudar. Ali eu estava no nível que era chamado de cartilha. Você tinha um ABC, você tinha cartilha. Aí eu vou para a cidade. Eu fiz o primeiro ano duas vezes. Eu acho que... Ou foi... Eu não me lembro ali da Constituição, ou eu não passei no primeiro ano e eu tive que repetir, ou tinha a ver ali com...
R- Mas não me lembro. Eu tive um... Porque hoje você aumenta um ano para dar conta das crianças que não chegam alfabetizadas. Então, ao invés de ser quatro anos, ampliou para cinco, mas você também diminuiu um ano, você entrava com sete anos na primeira série. E agora você entra com seis para dar conta desse processo de alfabetização. Então, é um pouco essa lembrança que tenho desse período. desses momentos iniciais. Mas era interessante também esse processo, que a minha mãe encaminhava a gente para a pré-escola, mesmo que era de bar, mesmo que tinha castigo.
R- Tinha essas professoras que se colocavam para ensinar, já que o poder público não assumia essa pré-escola. E aí eu me lembro desses momentos.
P/1- E aí depois você vai para essa escola quando você estava na casa da sua tia?
R- É, aí já é escola pública. Aí eu vou para a primeira série. Nessa mesma escola eu concluo a quarta série. Depois eu vou para o que era chamado de nasial do quinto ao oitavo ano. Depois eu vou para o magistério, que eram três anos. Aí, quando eu vou concluindo o magistério, eu já estava também ali iniciando uma militância política. E...
R- Ali... Final... Final do oitavo ano, início do nono ano, do primeiro ano, eu venho de uma trajetória da igreja, tinha uma participação na igreja. Entrando no ensino médio, eu começo a ter uma inserção mais política. Quando eu concluí o magistério, aí eu já estava casada, já tinha sido candidata à prefeita da minha cidade, casei, Tive um filho, não, estava grávida e tinha sido candidata à prefeita, então, ali no ensino médio.
P/1- Então, vamos voltar um pouquinho. A gente deu um salto agora. Ainda no período escolar, né? Você teve um pouco mais de infância para esse ginásio, né? Enfim, tem algum professor que foi marcante nessa trajetória?
R- Tem. Na quarta série, eu lembro que a gente veio morar com a nossa mãe, né? Então, a dificuldade financeira e eu trabalhei pontualmente com duas professoras. Uma na terceira série, porque a professora perguntou se a gente sabia de alguém que pudesse ficar na casa dela, porque a empregada dela ia tirar férias, e eu me coloquei à disposição. Falei com ela que eu queria. Por quê? Porque eu estava para fazer a primeira comunhão e eu tinha que comprar roupa da primeira comunhão. Aí eu perguntei se eu podia ir.
R- Ela topou. Eu fiquei com ela ali um mês. E uma foi na quarta série. Essa professora perguntou também se tinha alguém, se a gente conheceria alguém. E eu me coloquei à disposição. Com essa professora eu fiquei mais tempo. porque a menina, inclusive, saía, eu fiquei mais tempo com ela, e foi, assim, interessante, porque eu gostava de ler, e ela tinha uns romances lá, e eu comecei a pegar os romances para ler. Então, essa professora ali, viver ali com ela me possibilitou ter acesso a essas literaturas.
R- Então, acho que foi interessante.
P/1- Teve algum romance que te marcou nesses daí?
R- Eu lia uns que não podia. Adelaide Carraro, eu pegava os livros lá escondidos para ler. Acho que também teve José de Alencar, E eu também pegava livros ali na biblioteca da escola, que a gente pegava os livros. Então eu gostava. Teve um período que eu... Acho que influenciado. E eu sinto que foi influenciado da minha avó. As histórias que minha avó contava...
R- E quando eu conseguia alguma coisa de coisas que ela tinha contado ou que eu gostava, eu levava para ler para ela. Então, acho que essa relação minha com a minha avó me despertou para esse gosto, para a literatura. Mas para ler mesmo, eu gostava. Não consigo lembrar muito do Coisa, mas era mais pela história. Gostava de ler.
P/1- E das amizades na escola? Teve alguma amizade marcante, que perdura? Teve alguma coisa nesse sentido?
R- De escola, não. Teve uma amiga de infância. Dessa rua que a gente brincava, a gente ficou amigas. Éramos muito próximas. E mesmo saindo da rua, mesmo em volta e meia a gente se encontrava, em volta e meia eu ia para a casa dela. Então, tinha uma relação. E com a minha prima também, que foi a amizade de... ali no início da juventude, de ir para a igreja, de ir para…
R- mesmo com a cobrança da nossa tia, que tinha que marcar a hora para ela chegar. Então, era a minha parceira ali. E essa minha amiga de Ivani, que a gente era uma amiga de infância. de amiga de infância que eu tive. Claro que depois eu saí da minha cidade, a gente perdeu o contato, mas ela até ali... Foram minhas madrinhas de casamento. Então, era... De amiga mesmo, era essa da rua que eu morava.
P/1- Ainda nesse período. Queria que você contasse um pouco mais, você mencionou rapidinho agora, sobre a igreja, sobre como que era para você ir para a igreja, qual que era a relação, como que era a igreja?
R- O que marcou a minha ida para a igreja? Veja que, como eu te disse, a gente era solto. Meu pai e minha mãe, assim, a gente vivia uma vida solta, mas, ao mesmo tempo, muito assim. Minha irmã tinha feito a catequese e quis que eu fizesse. E aí, um dia, eu tô lá lavando os pratos, Minha irmã falou assim... Era um sábado. Começou a nossa rua, subia e tinha tipo uma praça e tinha uma escola. Minha irmã falou assim, Roberto, começou a aula de catequese, vai lá.
R- Do jeito que eu tava, eu fui. Descalço. Larguei tudo ali e fui. E... fiz a catequese. Aí, nesse período, eu fui trabalhar na casa da minha professora para poder comprar roupa para o dia da cerimônia, da primeira comunhão. E aí começa o meu processo, porque eu faço a catequese, fiz a primeira comunhão, e eu saio dali já para ser catequista. E aí eu vou ser catequista, E, de catequista, eu começo a inserir também na Pastoral da Juventude.
R- E era... Aí veio a Teologia da Libertação, né? Então, os padres ali... Era... Era um espaço que encantava, né. A gente se envolvia. E era uma participação real, assim. Não só nesses espaços, mas também a gente promovia coisas nas comunidades.
R- Então, eu saio ali de catequista, entro na Pastoral da Juventude, aí os encontros finais de semana, os debates, as leituras da Bíblia contextualizada, cursos bíblicos. A gente tinha uma inserção muito grande nas comunidades, então, nossa tarefa da Pastoral da Juventude era ir para as periferias, fazer o debate com o pessoal, organizar. E o nosso padre lá, ele era muito atuante. As nossas reuniões e esses momentos eram muito vinculados ao processo de estudo e de inserção. E... E a forma que os padres organizavam nos possibilitava ir constituindo uma leitura dessa realidade. Então a gente, as procissões dele, a gente fazia, todo ritual da igreja a gente fazia, mas tinha esse elemento, né? As vigílias, a gente passava a noite em vigília e de madrugada a gente saía.
R- procissão nas comunidades, cantando. Então, era um momento muito rico para a juventude. E todo o contexto do que a gente cantava, do que a gente estudava, as músicas, remetiam a esse compromisso. Somos gente nova vivendo a união, somos povo semente de uma nova nação. Somos gente nova vivendo o amor, somos comunidade, povo do Senhor. Então, a gente era forjar, a gente foi sendo forjado nesse processo ali de uma igreja inserida. A gente tava ali, tava na comunidade, tava debatendo as questões. A gente fazia leitura da Bíblia, mas também contextualizava como é que tava a situação desse povo de Deus hoje.
R- Então, é... é dali que eu vou me forjando, né? Então, que começa lá numa catequese, que vem e esse momento aqui de pastoral da juventude para uma militante social, porque ali a gente era um agente social dentro da igreja, né? E nossos padres lá eram muito atuantes, tinham dois, o Frei Dilso e o Frei Chico, que a gente começou, antes ainda do movimento chegar lá, a gente estava lá organizando as famílias para ocupar as casas, então a gente tinha um processo muito... Quando chega o movimento Sem Terra lá, a gente... Também antes ali teve a questão do partido também, que também começa a... Quando eu entro no partido, ele já estava fundado. O movimento não.
R- O movimento, quando chegou, a gente foi vendo quem eram as pessoas que o presidente do sindicato me convida para ir para uma reunião para discutir sobre o Movimento Sem Terra. Então, quando as lideranças do movimento chegaram ali para organizar o movimento, porque não existia, e vai mapeando quem é, com quem pode contar. Então, o Sindicato dos Trabalhadores Rurais, a igreja. Então, a gente é identificado por essa atuação que a gente já tinha. E a gente é convocado para isso. Então, você está aqui com... Ainda com uma gente pastoral, está aqui, mas aí você já começa também... Inclusive, eu queria ser freira.
R- Só que depois que eu conheci a militância política, aí eu disse, não, não precisa ser freira, dá para ajudar. Então, começa uma inserção mais política ali da Constituição do Partido dos Trabalhadores. É tanto que me colocam como candidata e aí chega o movimento. Eu trabalhava numa escolinha, uma escolinha particular, como secretária. Cheguei a dar aula de religião na outra, porque tinha uma da pré-escola e tinha uma outra que era do ensino fundamental. E aí eu ainda cheguei a dar aula de religião nessa do fundamental, mas eu trabalhava na de cá como secretária. Quando eu conheço o movimento, eu trabalho nessa escola, estava fazendo magistério e estava com uma inserção política já, ali entre a igreja e já uma... uma atuação mais política lá no município.
R- Então, mas foi resultado desse processo que eu fui me constituindo por dentro da igreja.
P/1- E teve algum momento nesse processo todo que te fez, que virou a chave assim, que você falou, nossa, é aqui que eu queria estar?
R- Não teve esse momento, mas teve uma construção. Dessa saída ali, pra mim foi muito marcante ali. Ter saído naquele dia ali que minha irmã falou, ó, começou... Ela só achava que eu tinha que fazer a primeira caminhada. Eu já era batizada. Minha mãe batizou a gente. Então... e ela fala comigo, e eu vou…
R- Pra mim, aquela ida, naquele dia, eu acho que me marca, porque, assim, a forma que eu saí, inclusive, descalço, já que eu tava, né. Fiquei com vergonha depois. Porque aí, minha irmã falou assim.. vai, vai… depois eu levo a sandália pra você, porque eu não podia perder, que já tinha começado. Então, pra mim, ali, foi um marco. Porque a partir dali, de ter feito... Nem me lembro muito se ali teve uma liturgia, alguma coisa que me trouxe isso, mas eu fui sendo encaminhada. Saio dali, me coloquei à disposição de ser catequista. Então, para ser catequista, você passava por todo um processo de formação.
R- E depois dali, eu já vou para a pastoral da juventude. Então, eu fui fazendo essa trajetória, não sinto que teve um momento ali de uma chave, mas que eu fui caminhando. E quando chega na Pastoral da Juventude, a forma que a gente conduzia, de ter ido, de fazer trabalho nas comunidades, o debate político, antes de eu conhecer o movimento, eu fui lá, porque acho que para... para uma comunidade onde o lixão estava sendo um problema para o pessoal. E a gente faz esse debate com as pessoas, discutir o problema daquele lixo naquela comunidade, fazer toda a mobilização para a retirada daquele lixão. Então, assim, era... a preocupação dessa juventude, que era do meio popular e que tinha a ver com o contexto da teologia da libertação, das comunidades eclesiais de base. Então, a gente estava lá inserido mesmo.
R- Fazia parte desse contexto, ao mesmo tempo também como agente de ajudar a organizar para alterar essa situação. Então, acho que tive que caminhar. A chave foi, assim, eu não preciso ser freira para ajudar a fazer essas transformações.
P/1- Para fechar um pouco e a gente entrar de vez nessa parte mais ligada ao movimento, queria que você contasse para a gente por que você optou pelo magistério? O que é que te levou a...ou se foi uma escolha mesmo, enfim.
R- Falta de opção. Eu acho que nós só tínhamos dois cursos. Era magistério e contabilidade. Eu não gostava da contabilidade, então fui para o magistério. Eu não me lembro de outro curso que tinha administração, mas acho que era. Então, assim, nós não tínhamos outra escolha. Ou era a contabilidade... Tinha três cores lá naquela formatura.
R- Era o rosa, o vermelho e o azul.
P/1- Então, tinha um terceiro curso?
R- Sim, era a contabilidade, se não me engano, administração e magistério. Então, assim, era aquilo que estava dado para a gente. É tanto que, no estágio, eu falava para a professora, porque tinha que fazer aqueles… Mas isso era muito didático. Acho que a gente perdeu muito, assim, porque a gente trabalhava com a didática, então tinha que construir aqueles materiais e me dava raiva de construir. Aquilo porque eu falava para a professora, eu não vou ser professora, eu não quero ser professora.
R- Então não foi uma opção ser professora, foi o que tinha. Mas, se você me perguntar também o que eu queria ser, eu também não vou saber te dizer, porque eu acho que não tinha dessa...Até hoje, olhando em retrospectivo, não sei o que eu faria se não fosse professora. Talvez dentro da... Quando vai para o nível superior, aí... Talvez, mas eu acho que ficaria por aí mesmo. Então, assim, pra nossa situação, você era das exatas, ia pra lá, gostava mais, ou das humanas só tinha o magistério.
R- Então, não tinha muita escolha, não.
P/1- Você mencionou que enquanto estava cursando o magistério, tem duas coisas que aconteceram no meio do caminho, o casamento e a prefeitura. Essa candidatura à prefeitura, né? Primeiro, queria saber desse casamento. Como você conheceu essa pessoa? Como se deu essa história?
R- Então... A gente está nesse contexto de pastoral da juventude. O Movimento Sem Terra está no seu processo de expansão. Já tinha visto o seu primeiro encontro nacional que foi em 1984, o congresso em 1985. Embora tivesse participação da Bahia, o movimento marca seu início em um estado quando faz a primeira ocupação. Então, as pessoas voltam, mas não tem um processo de organização para isso. Então, o movimento desloca militantes do Sul para ir para o Nordeste e chega ali pela Bahia.
R- Ele vem de Santa Catarina e vai para a Bahia com essa tarefa de organizar mesmo o processo de ocupação. Já tinham vindo alguns antes, dois, na área da formação, que foi o Bogo e o Pizzetta, ambos também de Santa Catarina, e fazia a formação. Aí vem o Jaime com a tarefa de fazer, de organizar. E aí é isso, chega no município, porque era uma região, era Teixeira de Freitas, Itamaraju, e o Nápoles, e aí vai mapeando com quem pode contar. E aí eles vão no sindicato, e o sindicato, como a gente já tinha uma relação com o pessoal do sindicato, convida a gente para fazer parte desse processo, desse trabalho de base. Aí eu fui, fui convidada e fui. E eu conheci meu companheiro que estava vindo com essa tarefa. Mas a gente não começou a namorar logo de cara, não.
R- E aí a gente ouve a proposta, eu estava naquela já ali, né, com uma inserção mais política, né. Porque eu, mesmo sendo tarefa das pastorais, a gente já estava com um processo mais ali de questionar mesmo, porque a igreja você pode ir até uma certa altura. Quando você começa a questionar o sistema aí, eu já estava tendo algumas broncas ali com os padres, que foi substituído pelos que me formou. Então, porque como aqueles padres estavam muito organizando o povo, nós fizemos ainda antes uma ocupação de casa, um padre foi preso, então assim, o bispo já não estava muito contente porque... estava tendo implicações. Então, veio alguns outros padres para ali. Então, já estava naquela transição entre o que é um trabalho mais pastoral, que você até organiza o povo e tal, mas essa inserção política de questionar o sistema, de organizar o povo, fazer algo que não tira todo mundo do lugar dos filhos de Deus. Então, já começa a ter problema. Então, já estava nessa crise ali mesmo, não crise, mas sentindo que precisava dar esse passo à frente de algo mais político.
R- E aí... Quando eu ouvi a proposta do MST, eu me identifiquei de cara, me coloquei à disposição. Eu trabalhava nessa escolinha particular, mas eu tinha os finais de semana que eu ia para as comunidades fazer o trabalho de base. Primeiro a gente passou por um processo de formação, teve as assembleias do sindicato, que discutiu a questão da reforma agrária, a importância da reforma agrária, e aí depois a gente foi organizando o grupo que toparia mesmo entrar no processo de organizar o povo para a ocupação. E aí a gente passa por todo o processo também de formação, como é que se dá esse processo de ir nas comunidades, organizar o povo, não tinha ainda, não se ouvia falar do movimento sem terra. A gente tinha conflitos agrários dos posseiros com os grileiros. E aí também tem um elemento importante que, quando o movimento chega, eu também já estou inserida nesse processo.O que é que os padres faziam?! Tinha um conflito muito forte na minha região dos grileiros, de assassinato dos poceiros.
R- E aí tinha uma comunidade muito antiga, e os padres entraram com os advogados para garantir o uso campeão das pessoas. Então, tinha que fazer todo um processo de levantamento. Então, o padre tratou disso durante a missa. A gente se colocou à disposição, foi para lá, ouviu o povo fazer o cadastramento. Então, antes do movimento, também já estava via igreja com essa inserção. E aí, quando chega o movimento ali pra organizar o povo pra ocupação, então, eu me coloquei à disposição. E aí, a gente... a gente mapeou pra quem acompanhava o quê, e eu acompanhei, fui fazer trabalho de base num bairro da minha cidade, inclusive no nome Liberdade.
R- E aí, é isso, né, de ir de casa em casa, convidar as pessoas, como eu era da igreja, Eu já me articulei com o pessoal que me liberou a igreja para eu fazer a reunião. Então, depois você tem que ir de casa em casa, bater na porta, convidar as pessoas, falar ó… tem uma reunião uma da tarde, queremos tratar da reforma agrária. Eu acho que isso me impressionou muito, porque, assim, era uma jovem chegando numa comunidade, batendo na porta e chamando as pessoas para ir para uma reunião, porque era para falar de reforma agrária, de ocupação de terra. É impressionante que, quando chegou no horário, o povo começou a chorar e a igreja ficou lotada. Eu acho que isso me marca até hoje. Tinha uma colega que ia comigo, e não foi. Cada ônibus que parava na porta da igreja, eu falava, ela vai descer.
R- E eu acabei fazendo todo o trabalho sozinha, de mobilizar, e conduzia a reunião sozinha com aquelas pessoas, que era pra falar da reforma agrária, porque a gente já estava em preparação para a ocupação. O processo levou três meses de preparação, mas esse primeiro contato de ir na casa da pessoa, de chamar, então isso é algo que me marca. Segundo, a igreja lotou, e aí a gente tinha o passo a passo de como abordar o assunto, de discutir com as pessoas, pessoas que chegavam bêbadas lá, fazendo perguntas. Tem um senhor que me marcou muito, porque foi o que mais me incomodou nessa reunião, porque ele estava bêbado, e quando a gente realizou a ocupação, que ele foi assentado, o prazer que ele tinha de mostrar aquela terra marca muito a alteração na vida das pessoas. Então, aquele processo ali, e ali naquela primeira reunião, como a igreja ficava um pouco mais distante do espaço onde estava a maioria das pessoas, aí uma senhora colocou a casa, ela já me conhecia pelo trabalho que eu tinha feito do lixão, e aí ela colocou o quintal da casa dela à disposição para a próxima reunião, ela tinha um quintal grande. Eaí, a próxima reunião, e aí tinha tarefa de quem saía dali, já trazer outro e tal. E no dia, na semana seguinte, aquele quintal estava lotado de gente. Então, foram três meses de preparação. Junho até setembro.
R- E aí, a gente... É... foi preparando as pessoas, foi dizendo. Só que, paralelo a isso, nesse momento, a UDR se organiza. Como estava uma movimentação de trabalho para ocupação, a UDR se organiza no meu município. A UDR, União Democrática Ruralista, que é o grupo de fazendeiros. E aí começa ali, mais próximo já de setembro, eles começam um processo ali de intimidação das pessoas. Eles tinham controle da rádio, então eles faziam um programa de rádio.
R- Tem falsos líderes aí nas comunidades, enganando o povo e tal. E aí era tensionamento, era luta de classe ali. Não era mais só a Pastoral das Juventudes, você vai lá... Não, tinha um tensionamento real ali. E aí a gente... chega o dia da ocupação, muito tenso, né. Era a primeira vez que a gente ia fazer uma ação de ocupar mesmo um latifúndio. A gente tinha uns conflitos, mas ali já era consolidado, né.
R- Era muito violento, você tinha uns posseiros resistindo pra manter a posse da terra. Mas, a gente ia lá apenas ouvir e fazer. Mas ali era você conduzindo o processo. Você estava ali responsável por aquele grupo de famílias que ia para a terra. Por azar, o ônibus ainda que vinha, caiu dentro do rio. E aí a gente vai. A gente... a tensão, mas a gente entrou dentro do ônibus e a gente foi para a ocupação.
R- Então, foi muito tenso, assim, porque... era novo pra todos que estavam ali, pra gente que estava organizando, pras famílias que estavam ali. Então a gente... não tinha uma referência ainda, né. Embora estivesse no sul do país, até o Espírito Santo, que era ali próximo, mas não chegou, não chegava pra gente. O pessoal do Espírito Santo veio no dia da ocupação ajudar a gente e tal, mas pra nós que estávamos ali, era a primeira vez, a gente estava experimentando a organização, a definição, as pessoas se prepararem com tudo. Acreditar numa menina de 19 anos entrar num ônibus pra ir pra uma terra que não sabia onde era, porque a gente não podia saber onde era. E tinha o trajeto e tal, mas não sabia.
R- Então era questão de segurança. E aí o ônibus que vem pegar o pessoal cai dentro do rio, e meu colega, eu estava sentada esperando o ônibus chegar para direcionar onde o povo estava concentrado para entrar no ônibus, meu amigo passou e falou, Rubneuza, você está esperando o ônibus, e o ônibus caiu ali dentro do rio, tinha uma ponte antes de chegar nesse bairro. E aí, volta lá na empresa, aí eu consegui falar com o pessoal, o pessoal que estava na articulação, volta na empresa, consegui outro ônibus, vinha o pessoal entrar e a gente ia pra essa ocupação. E a gente foi. E você chega lá nessa ocupação com 700 famílias. Então, assim, era aquilo que era algo pequeno ali, só você. Mas quando você chega ali, aquela multidão de gente, sabe?! Então, e começar a trabalhar no processo organizativo. Eu trabalhava nessa escola, então eu tinha que deixar o pessoal lá e voltar.
R- Fiquei no final de semana, mas tinha que voltar para trabalhar na segunda-feira. Então, assim, essa trajetória foi nesse processo. Bom, a partir dali, então, só foi muito tenso também, porque nessa não tanto, essa não teve despejo. Mas, depois, era muita gente para pouca terra, então, desse grupo houve outras ocupações, que também as pessoas conquistaram a terra. Só que depois a gente não fez nenhuma outra, que aí foi violento. Violento. E nesse processo ali, dessa outra que foi muito violenta, imagino que eu estudava. Eu tinha um professor de matemática que era militar, sargento.
R- E ele me pegou… Rubneuza, você saia disso… Esses padre aí… está fazendo uma lavagem
cerebral contigo. Você sai desse... então, assim, era... E aí, essa outra que foi muito violenta, eu trabalhava nessa escolinha e aí, um dia eu estou lá e chegou os companheiros para me tirar de lá porque estavam querendo me pegar para prender. Já estava um monte de gente preso. E aí, a gente me tira dali, vou para o sindicato e foi bem tenso porque o pessoal que estava preso, a gente ficou no sindicato, o seminário também, muito perseguido, o sindicato.
R- Veio gente da capital, do governo, para acompanhar o conflito, e desligar a luz do sindicato. Então, foi muito tenso. Eu acho que, depois dessa vez, eu saí da escola e não voltei mais. Não consigo lembrar direito, mas... Não, não, eu permaneci, porque eu saí quando eu saí candidata. E aí é isso, a gente foi tendo essa inserção ali, o movimento fortaleceu inclusive o partido, e aí chegaram as eleições de 88; e aí a gente fez a ocupação em 87. Bom, aí, nesse caminhar, eu acabo namorando com o dirigente que tinha vindo de Santa Catarina, o Jaime Amorim, e aí a gente se casa um ano depois. Eu fico grávida e…
R- O partido decide que eu que vou ser a candidata à prefeita. Tarefa dada, assumir a candidatura, imagina, condições mais precárias que tu possa imaginar, mas a gente assumiu. E aí, 89, 88 ainda, eu me formo, porque ainda estava concluindo o magistério, estagiando, grávida e candidata. Então, foi tudo que aconteceu naquele ano. E aí, no final do ano, eu me formei no magistério, estava grávida. Meu filho nasceu em fevereiro de 89. E aí tem uma cena, né. Porque eu tinha saído candidata e a formatura era no espaço lá, porque eram três cursos, e a gente...
R- A formatura foi no cinema.
R- E...
R- Na hora que eu vou subir, aí quando chama meu nome, tava lá a mesa, né. Prefeito eleito, o prefeito atual, as primeiras damas, depois tinha os professores, aí tinha todo cerimonial. E eu falei assim, todo mundo passava e cumprimentava. Eu falei assim, eu não vou cumprimentar aqueles. Eu pego o... acho que era o anel, sei lá o que era ali, passo e pego o canudo e desço. Aí eu fiz isso, né. Eu não vou subir, eu não vou.
R- Fui, subi a escadinha, passei lá, estava grávida, barrigão. Acho que era a diretora falou alguma coisa ali comigo. Passei direto. Não complementei a primeira-dama, prefeito eleito. Passei direto e parei em frente ao meu professor que estava entregando o canudo. O prefeito levantou para me entregar o canudo. Quando eu parei, era ele que estava lá com o canudo, porque depois meu professor disse que ele falou assim, deixa que eu entrego para ela. E sabe o que ele teve a ousadia de dizer?
R- Volte, cumprimente a mesa, depois vem receber o canudo. Você já estava ali em protesto, eu ia voltar para comprometer a mesa. Falei, pois então, eu deixo você receber o canudo. E virei para sair. Aí ele estendeu o canudo e eu peguei. Inclusive o Fredilson depois fez uma poesia sobre esse ato, né. As mãos que não aceita. Ficou bem bonito, assim, a poesia.
R- E aí estragou a festa, né. Porque minha mãe ficou... triste lá. E eu fiquei com raiva, porque como eu fiquei com raiva, eu não cumprimentei os demais, que os demais eram meus professores. Então, isso eu fiquei chateada comigo mesma, porque eu falei, eu passo, recebo e cumprimento os de cá, que os de cá eram os professores. Mas eu fiquei com raiva, peguei o canudo e já saí dali. Então, essas rebeldias que a gente... E.
R- Aí quando o pessoal pediu pra você sair candidata, você já estava no partido.
R- Então... Aí eu fiz a filiação, porque eu não tinha uma inserção direta no partido, eu estava no movimento, mas quando decidem que vai ter candidatura e que era o meu nome, fiz aquele processo de filiação. Mas eu não tinha uma militância dentro do partido, era mais no movimento mesmo. Mas quando decidem que eu vou ser a candidata, eu me filio.
P/1- Você falou bastante sobre a chegada do movimento na cidade. Como foi a chegada do partido?
R- Eu não acompanhei. Eu comecei, como eu falei, quando eu decidi que eu vou ser candidata, eu não tinha nenhuma relação com o partido. A minha trajetória tinha sido na Pastoral da Juventude. Eu acho que o partido já existia, mas eu não tenho informação de como é que se deu o processo. Eu sabia que tinha umas pessoas que eu conhecia que fazia parte da diretoria de fundação e tal, mas eu nunca estudei, nunca busquei maiores informações em relação ao partido. Então, assim, não... Não foi algo que eu consegui…
R- Me filiei, porque era o partido que a gente estava construindo, mas não tinha uma relação direta. Eu nunca... tive essa relação mais próxima com o partido.
P/1- E a gente falou brevemente, como foi o casamento em meio a tudo isso? Você se lembra do dia, da festa, da cerimônia? Teve alguma coisa?
R- É bem no meio de tudo isso mesmo, essa confusão de ocupação, despejo, candidatura. Bom, eu engravidei antes de casar, então esse foi o fator determinante. E aí, como o meu marido vem do Sul para ajudar a organizar o movimento do Nordeste, ele não ficou só ali na Bahia. Ele tem a trajetória em todos os estados do Nordeste, ajudando a organizar o movimento em todo o Nordeste. E aí ele foi para um desses estados, não me recordo qual, não sei se foi Maranhão, e aí ele volta. Quando ele volta, eu dou informe para ele, que eu estou grávida. Ah, tá. Porque a gente, dessa ocupação bem violenta que teve, a gente montou um acampamento.
R- A polícia chegou lá e dissolveu todo o acampamento. E jogou as pessoas assim. De um município a outro, e a gente teve todo o trabalho de rearticular. E a gente monta um acampamento permanente no espaço do seminário. Os padres cederam o espaço do seminário para formar esse acampamento permanente. Então, dali a gente foi... Aquele acampamento era muito grande e a gente, dali, foi feito várias outras ocupações.
R- E meu marido, meu namorado viaja e quando volta eu dou a notícia pra ele que eu tô grávida e a gente decide casar. E o Fredilson, a gente tinha ido para uma ocupação, saiu um caminhão dali com o pessoal, e a gente foi para uma ocupação, dia de chuva, umas ladeiras. Bom, a gente voltou. Cheguei ali, por volta de meia-noite, o Fredilson estava lá com uma cachacinha e umas tripas lá fritas, comendo os petiscos. E a gente sentou ali e ele começou a... a projetar o nosso casamento. Aí Fredilson era bem interessante ele, padre bem legal. E aí ele disse, não, seu casamento vai ser assim, assim, não vai ser de noiva não, você vai entrar numa marcha militar e a gente vai ter uma fileira de pessoas e tal.
R- E aí, ele só não realizou tudo que, eu não ia matar minha mãe do coração, né. Eu botei um vestido de noiva, eu não fui com o traje militar que ele queria. E aí, ele... Preparou toda a festa. Ele mandou fazer o bolo e falou que o bolo era uma surpresa. Eu falei, meu Deus do céu, conhecendo o Fredinho, só Jesus dá causa para saber o que ele vai inventar. Mas não, ele mandou fazer a bandeira do movimento, o bolo era a bandeira do movimento. Ele sentou, escolheu as músicas, sentou com os músicos, inclusive uma era minha prima, que era da igreja, ensaiou as músicas.
R- Ele preparou tudo. E a gente teve o casamento ali e depois a gente foi para o seminário, para a festa, que ele tinha preparado todo esse... Teve o trabalho de preparar tudo para a gente. E aí, ainda fiquei ali na... Bom, casei, aí fui fazer estágio, meu marido saiu candidato na cidade dele, em Santa Catarina, foi embora e eu fiquei. Grávida, final de semana, eu ia fazer comício no interior, fazer campanha no interior, no Fusquinha. E a gente voltava, tinha que fazer o estágio. Então, foi muito turbulento.
R- 88, para mim, foi bastante turbulento. Foi toda essa loucura. E aí eu chego ali, no final, termino as eleições, término o estágio, tive meu filho em fevereiro, dia de carnaval. Minha cidade não tinha um carro para ir para o hospital. Foi loucura. E aí minha irmã conseguiu uma mulher lá que tinha um carro de leite. Ela vendia leite, então não podia... Esse carro foi o único que ela conseguiu encontrar na cidade, podia rodar a cidade toda.
R- E ela pediu, ela trabalhava numa loja que era do lado, e aí a mulher cedeu o carro. Vocês têm um motorista? E como minha prima também estava grávida, também ninguém saiu para o carnaval ali, foi dia de carnaval, começa o dia de carnaval. Então, o marido da minha prima foi com ela, ele dirigia, então a mulher cedeu o carro, veio, me pegou, levou para a maternidade. E meu marido estava, eu tinha confundido, só descobri que eu estava com o estado errado esses dias na Paraíba. Que não foi ir na Paraíba, eu achei que ele estava na Paraíba, tendo um despejo violento, mas tinha saído de Sergipe. Aí eu tive o bebê, ele estava lá em Sergipe, fazendo a ocupação, aí ele volta, me pega no hospital, me leva para casa e sai e vai fazer outra ocupação, que também foi violentíssima. Ele foi preso, foi torturado, foi bem tenso também.
R- E eu ficava acompanhando ali pelo rádio. Aí, depois disso, Teve uns carros circulando lá por volta de casa, eu tive que sair de casa, fui morar com minha mãe, depois da casa da minha mãe eu fui para o seminário, e do seminário a gente foi para Lagoas, fomos transferidos para Lagoas, porque estava constituindo uma estrutura no Nordeste, uma estrutura para dar apoio para o Nordeste, foi criado em Alagoas, uma secretaria, porque até então o Movimento Sem Terra só tinha uma estrutura nacional, que era em São Paulo, e precisava agora de uma secretaria que desse apoio jurídico e organizativo para os estados do Nordeste. Aí a gente vai para Alagoas, meu filho tinha quatro meses quando a gente mudou para Alagoas, e para acompanhar essa secretaria. Essa secretária da estrutura, eu fui para o setor de formação do movimento. Meu marido era esse articulador político e organizativo, mas também criou ali uma estrutura. Então, veio pessoas no campo da formação, que passavam nos estados fazendo formação, tinha o campo jurídico nos casos dos conflitos e tinha...
R- Eu fiquei no setor de formação até 92, quando eu fui para Pernambuco. Porque aí, em Pernambuco, primeiro Frente de Massa, que é o grupo que organiza as ocupações, depois eu fui para o setor de educação em 92. Aí, de 92 até hoje, estou no setor de educação do movimento.
P/1- E, voltando um pouquinho só, se você quiser falar sobre isso também, queria que você contasse um pouquinho sobre ser mãe em meio a toda essa turbulência e esse movimento e mudança logo em seguida. Como que foi isso para você?
R- É... A gente meio que, como essa trajetória que aconteceu ali, de sair aquele dia para a catequese e até chegar, também ser mãe foi um processo. Tinha uma insegurança, eu era jovem, eu tinha 21 anos, então, quando eu tive meu filho, e aí saio dali, já direto, tive o filho e fomos para Alagoas. Ele tinha quatro meses. Primeiro um novo Estado, para quem não saía daquela região ali, então você tem uma mudança... brusca, porque eu era muito insegura de viajar, não era uma pessoa que viajava muito. O movimento trabalha uma dimensão de coletividade que você tem esse amparo. Então, assim, eu chego em Alagoas, no primeiro momento foi mais difícil porque ainda não tinha estrutura.
R- A gente foi para construir as estruturas. Tinha uma menina de lá, a Heloísa, que foi meu porto seguro. Então, a Heloísa, ela... eu era insegura como mãe, então, tinha uma referência na Bahia que era uma senhora da Pastoral da Juventude, da Pastoral da Juventude não, da Pastoral da Infância, e que todas as dúvidas que eu tinha em relação ao filho, eu ligava pra ela. Então, ela me deu esse suporte aí. E a Heloísa me deu esse amparo lá, mais logístico mesmo, de espaço, de tudo. A gente ficou numa casa que era pra ser a Secretária, depois não rolou ali, encontrou outra. Quando consegue essa casa, aí chegam as equipes.
R- Aí veio o pessoal do jurídico, veio o pessoal dos projetos. E a gente foi morar tudo num apartamento. Então, meu colega até cantava assim, aqui é pequeno, mas dá para andar às dez. Então, era um apartamento que... e Raul acabou sendo o filho de todo mundo, né. Foi cuidado por todo mundo lá. Então, até hoje ele se lembra. Nesses dias estava o Edgar, que era da formação.
R- Eu compus o setor com ele, para acompanhar o Nordeste na formação. E fazia tudo isso com o Raul do lado, que ele amamentava. Então, assim, esses dias estavam os dois, ali na Florestan Fernandes, conversando, e eu falei assim, olha só, aí tirei uma foto, porque a gente morava um pouco distante da secretária, e perto da secretaria tinha uma creche, então a gente botou o Raul na creche, e aí vim com o Raul, era ele, botava na cangu, então... Teve esse suporte coletivo. Essa é uma coisa assim, de ser mãe nessa turbulência. Era difícil porque o movimento veio constituir as Cirandas Infantis, que era para esse apoio às mães nos espaços, tempos depois, depois que a Raul... Já estava grande.
R- Mas, então, eu fazia tudo isso com uma criança, as viagens, tudo. Eu circulava pelo Nordeste, porque a gente trabalhava no setor de formação, então circulava por todo o Nordeste. Quando a gente estava ali, ele ia para uma creche, mas na maioria do tempo a gente estava circulando. Com oito meses, a polícia esteve na nossa Secretária. A gente fez uma ocupação lá muito violenta, a gente estava vindo para cá agora lembrando disso. Porque a Rosileia estava falando, Raul foi a primeira criança presa. Então, se a polícia chega na nossa Secretária, depois de prender os companheiros que estavam fazendo a ocupação, torturaram e acabaram chegando na nossa Secretaria. E a gente não estava morando ainda num apartamento, eu estava ainda morando na Secretaria e eles chegaram lá e levaram todo mundo.
R- Aí foi eu, Raul… Raul com oito meses, e aí... prendeu ali por volta de quatro horas da tarde, até oito, nove da noite a gente ainda estava na delegacia, todo mundo preso e eu questionei, falei assim, eu vou ficar aqui com essa criança que tem que tomar banho, tem que comer, aí eles me liberaram, eu tinha recém-chegado em Alagoas, não tinha muita noção também, mas eu sabia que ali era uma avenida, a delegacia era uma avenida, que eu saindo ali poderia pegar um ônibus e descer, tinha mais ou menos a localização de onde era a secretária, não era bem situada ainda em Maceió. E aí, peço a chave, o pessoal ficou até depois, nós passamos a chave, ´´ será que é pra isso mesmo? ``. Aí me deram, eu chego na Secretária, aí ligo para a Secretaria Nacional, ligo os contatos nacionais, foi que começou uma pressão sobre o delegado, que ainda era o DOI-CODI, ainda era chamado, e o delegado era chamado Ricardo Lessa, que era irmão de Ronaldo, que um era de esquerda e o outro era de direita. E aí tinha essa pegada aí. E o Ricardo Lessa vinha, estava ali, resquício da ditadura. O título lá da delegacia ainda era DOI-CODI. E aí eu chego, eles me liberaram. Eu vou para a secretária, articulo a Secretária Nacional e eles começam a fazer toda uma mobilização que consegue, então fazer pressão, acho que por volta de meia-noite, uma da manhã, liberar o pessoal.
R- Aí o Edgar fala que eu beliscava Raul pra ele chorar, pra eles me liberarem lá da delegacia. Esses dias eu tive acesso. Depois perdi., tô tentando localizar quem foi que nos passou. O pessoal conseguiu a ficha daquele dia, todos os presos lá. Aí tá lá, Raul, oito meses. Então, assim, é... Então, assim, é…
R- A gente vivia tudo isso, né. Ser mãe era estar com... E aí eu fiquei ali com o Raul até o primeiro congresso do movimento. Antes do congresso, eu fui para Pernambuco, numa ocupação que a gente tinha lá, e fiquei uma semana. Só que antes de sair, o Raul se queimou. E aí lá, sem condição nenhuma, aquilo foi ficando feio, foi mal, tive que sair de lá e voltar. Quando eu volto, os companheiros falaram.. não… não tem mais condição de você viver desse jeito. Aí eu vou pro congresso do movimento, Raul tinha um ano e quatro meses, e aí quando eu volto do congresso, minha irmã vem da Bahia pra ficar comigo pra olhar Raul.
R- Eu desmamei Raul, aí Raul ficava com ela quando eu viajava. Aí só fui ter outro filho seis anos depois. Aí eu tive o Marcos, e tive a Rosa. E os dois foram muito próximos, um ano e meio de diferença. Enquanto eu amamentava, eu sempre amamentei eles por um ano, um ano e pouco, o Marcos foi menos, porque eu engravidei de canina, amamentou até oito meses. E a gente, onde a gente vai, a gente tem esse cuidado, só que com a Rosa, a gente já estava tendo as cirandas infantis. Então, o movimento consegue preparar espaços para que as mulheres possam participar, com condições de participação. Só que esse espaço acabou virando também assim, não é só tarefa da mulher.
R- Então, os pais também levam. Então, virou esse espaço de cuidado em que tanto o homem quanto a mulher, também pode levar, vai lá, leva. Sempre sobrava para as mulheres, mas a gente amadureceu esse debate interno no movimento desse cuidado coletivo e que é a obrigação dos dois. Mas assim, a minha questão maior questão é porque eu primava pelo amamentar até um ano, um ano e pouco. Então, onde eu ia, eu tinha que levar junto. Mas nunca foi problema. Embora fosse pesado.
R- Porque era o filho de um lado, bolsa do outro, bolsa minha, bolsa do filho, então era... E a gente circulava no Nordeste todo. Então, tem... Foi assim que a gente foi construindo essa organização. Hoje a gente pode dizer, nossa, a gente construiu uma estrutura que as mulheres não precisam passar por tudo isso.
P/1- Perguntar um pouquinho sobre esse trabalho com a formação. Como eram as atividades? Como vocês estruturaram esse núcleo de formação dentro da Secretaria? Quais eram as atividades? Quais foram os desafios que vocês encontraram? Quando vocês iam para as comunidades, como era o trabalho?
R- Aqui tem dois momentos, um é quando você está no trabalho de base para a ocupação, então a gente tem essa temática para debater com a comunidade, sempre com a metodologia da educação popular, da provocação, de ouvir. E é nesse ouvir de ir construindo as histórias de vida de cada um, que você vai se vendo como trabalhador. E aí você vê que a falta de reforma agrária não é porque... É por falta de uma política mesmo, de um Estado que não prima pela democratização da terra, de fazer a reforma agrária e que, se quiser ter terra, vai ter que se organizar para poder ocupar. Então... E a formação que a gente faz é exatamente de como preparar as pessoas para, primeiro, entender mesmo da temática, segundo, como é que eu trabalho com as comunidades. E aí a metodologia da educação popular é fundamental, de você se apropriar do conhecimento, mas você conseguir construir um processo de debate em que as pessoas possam e construindo o seu olhar sobre isso. Embora você tenha que trazer os elementos, amarrar isso, mas é fundamental que as pessoas não sintam que é algo que está sendo despejado, mas é algo que elas, a partir da problemática, da problematização, elas possam ir identificando essas questões que é da vida delas, mas que não é porque elas querem, mas é porque tem um sistema que as fizeram assim.
R- E isso vai dando um processo de tomada de consciência a ponto dessas pessoas se colocarem nessa condição. A história não é, a história está assim, então eu posso mudá-la. Então eu vou me organizar para alterar essa história. Por que as ocupações não dão certo? Porque as pessoas não estão ali por engano. Sabe por que estão? Primeiro pela necessidade. Ninguém se organiza, ninguém vai para uma ocupação porque acha bonito.
R- Primeiro ponto é necessidade. Ninguém vai por questões ideológicas, também não, porque descobri que tem um patrão. Não, eu vou porque é a necessidade e se eu quiser resolver esse problema eu vou. Então é econômico a mobilização. Agora... Quando você rompe essa cerca dessa terra, não é só essa cerca material que é posta abaixo, você tem ali um desvelar de uma realidade, porque agora você passa a entender como é que é esse sistema, porque aí você vai ter a repressão policial, você vai ter a repressão particular feita por jagunços, você vai ter que viver debaixo de um barraco de lona, você vai ter privações, então você precisa se organizar para que se começa a construir o poder popular ali, que a defesa agora e as condições é de quem está ali. Então, a gente vai estruturar aquelas pessoas numa comunidade, onde vai ter a equipe lá, o setor de saúde, de educação, porque, sim, tem crianças, sim, para se dar conta, Você tem que organizar um grupo de segurança, porque você vai ter enfrentamento, precisa criar estratégia de resistência, você vai ter que criar uma equipe de alimentação, porque você precisa resolver o problema ali, como é que vai ser, vai ser por doação, vai ser campanha, vai ser como.
R- Então, você estrutura uma vida, você faz uma ocupação com 100, 200, 300 mil famílias, Tem um mundo ali, você tem ocupações pequenas de 100 famílias, que dá ali em torno de 300 pessoas, mas você tem ocupação com 200. A primeira que a gente fez na Bahia foi 700 famílias, quase duas mil pessoas, e aí você tem que ter uma estrutura organizativa, né. Você organiza pelo município que vem, mas você precisa diminuir essa organização, você vai ter que formar os núcleos, mas aí, a partir dos núcleos, você vai ver quem se identifica mais com a saúde, e você vai formando as equipes que vai cuidar, alguém que trouxe os remédios vai fazer o barraco lá da saúde, quem é que tem a medicação, mas também vem doações, a solidariedade sempre, foi fundamental. As pessoas sempre foram solidárias com o MST. Quando a gente ocupa, a gente recebe essa solidariedade da população, do vizinho do acampamento, das entidades. Então, é uma vida que começa ali no romper da cerca. E você começa a construir esse novo referencial de ser humano ali.
R- Não é só essa cerca material, você precisa estruturar ali. Nessa reestruturação, você também vai forjando esse sujeito, esse sujeito coletivo, esse sujeito que a defesa da vida vai depender dessa coletividade. Então, o acampamento é uma escola de aprender esse novo jeito de ser. Então, ele é mobilizado pela necessidade. Mas é um salto aqui, quando você assume esse protagonismo da sua própria condução. Então, ali... e não vem um salvador, é você. Então, ali, você forma as coordenações por núcleo, por equipes, que vai sentar, vai debater, vai buscar a solução. A equipe de negociação, a gente fala...
R-A gente faz a ocupação aqui, mas a conquista vai se dar na cidade. Então, a gente tem que, tanto da relação pública, do apoio dessa sociedade, quanto dos poderes que estão lá. Então, você tem que estabelecer essa relação para poder garantir que você resista ao período de acampamento e chegue na conquista da terra, que é o assentamento.
P/1- E teve alguma experiência nessa atuação sua na formação aí, na estruturação da região, que foi extremamente marcante para você?
R- Eu acho que não tem algo assim que marca, porque tudo foi processo. Então, assim, o próprio constituir desse processo, que eu acho que marca. Como é que vai forjando uma organização? Quando você vai... O movimento tem uma base de surgimento no sul do país. Ele é expandido para as outras regiões do país. E você tem um movimento nacional, mas que tem suas particularidades por regiões, e por Estado. Então, a educação popular trouxe esse elemento, essa sensibilidade de que você tem que construir com as pessoas.
R- Então, acho que é o processo que é educativo, a forma que você vai... Porque eu estou falando aqui de algo que estava sendo construído, né. Você olha, vê esse movimento gigante hoje, né. Como é que ele começou, né? Como é que, desde a primeira ocupação, os enfrentamentos, uma luta vai nos dando elementos para qualificar a próxima luta, e esse resultado vai demandando questões que não estavam postas, e que você tem que dar conta.
P/1- Voltar um pouquinho. Você falou bastante em alguns momentos, você falou do Congresso, do primeiro Congresso do movimento. Queria que você contasse como foi para você participar desse Congresso, e como foi essa experiência para ti?
R- Eu participo do... o movimento realiza seus congressos, era para ser de 5 em 5 anos. Como instância do movimento, o congresso é um momento massivo do movimento, é onde o conjunto da base participa, seja na preparação, mas é um momento massivo de tirar linhas para 5 anos. Claro que no último período não tem se constituído, o penúltimo aconteceu depois de sete anos, nós vamos realizar agora o sétimo depois de dez anos. O primeiro, eu entro no movimento em 87, e participei do primeiro congresso em 90. Eu vou com o meu filho com um ano e quatro meses. E, assim, para mim, eu não consigo ter muita... muita memória, porque assim, pra mim foi muito difícil.
R- Eu tinha desmamado o meu filho e a viagem foi... Eu tive que voltá-lo a amamentar. Então, era algo muito grande e sem as condições pras mães, né. E... eu não tenho, quando eu olho pro congresso, o primeiro congresso, não ficou pra mim, eu não consigo descrever. O que eu consigo perceber, assim, é algo grande, mas que eu tinha que dar conta de uma criança de um ano e quatro meses, sem muitas condições, e pra mim foi desgastante, porque ter que amamenta-lo, por conta das condições que não estava colocada, e é um mundo, né. Eu não me lembro se aquele congresso foi com 5 mil pessoas, nem a quantidade que eu estou lembrando, mas era algo grande. Então, comparado com os outros congressos, que a gente vai conseguir não construir as condições, o movimento foi dando passos importantes na sua estrutura.
R- Hoje, a gente está preparando o sétimo congresso para 20 mil pessoas. E a gente está... estou ali no grupo da cultura, que é responsável por pensar a ornamentação, a animação e as místicas, e tudo que envolve o processo da cultura, as atrações artísticas e tudo. É um mundo sendo preparado. Não que lá não tivesse, mas era muito incipiente. Paralelo a esse encontro da cultura, está acontecendo o encontro da infância, que é para pensar a ciranda infantil. A ciranda infantil vai ter em torno de duas mil crianças. Então, vai precisar de em torno de 600 educadores.
R- Isso não estava posto lá. Cada um ficava responsável. Então, a imagem... Eu não tenho lembranças dos debates, só me lembro tentando sobreviver naquela loucura toda. Então, é... me lembro da organização para viagem, me lembro da viagem e lá as condições. Então, o que eu posso falar do primeiro para pensar agora é como nós crescemos, como nós nos organizamos Porque já não é o sétimo, é claro que a gente está se qualificando, porque o antepenúltimo, ou penúltimo já tinha condições. A gente foi melhorando de um congresso para outro, nós estamos no sétimo.
R- Eu participei do segundo, o movimento já tinha realizado o primeiro em 85, o de 90 foi o segundo eu participei, o terceiro, o quarto, a gente foi aprendendo como fazer essas atividades grandes e com as condições. Veja que, se eu não me engano, o terceiro, o segundo ainda, terceiro, a gente ainda tinha cozinhas que a gente contratava, e era muito desgastante porque usava muito produto químico, que adoecia as pessoas, e o movimento começou a organizar as suas próprias cozinhas. Então, cada estado traz a sua cozinha. Então, mudou a forma. É claro que você envolve um número muito maior de pessoas, mas eu acho que a beleza está aí também, de você poder garantir as condições. Então, nós estamos...estou falando muito mais desse, mas para trazer esse comparativo com aquele primeiro que eu fui, que era o segundo do movimento, que como eu me vi ali como mãe, como militante, dadas condições, para o que a gente conseguiu construir, chegar nesse nível que nós estamos chegando hoje.
R- Nós estamos ali em torno de 50 pessoas preparando a cultura, que vai para os seus estados e vai envolver mais tantos outros. E aí você pensa em todo o processo ali, só esse campo da cultura que tem uma subdivisão, que tem uma terceira subdivisão e que faz a coisa acontecer, 20 mil pessoas no mesmo espaço e que isso, assim como a ciranda, a infância está sendo pensada, tem lá os educadores que vão se preparar para voltar para os seus estados, para preparar, para chegar lá as mães não terem que passar por aquilo que eu passei no início. Assim como as cozinhas estão se preparando, assim como a gente vai além do congresso, a gente vai estar realizando uma feira nacional, a gente vai estar realizando um festival de arte. Então, a gente amadureceu. A gente consegue essa forma organizativa do movimento faz com que a gente seja capaz de organizar um encontro com 20 mil pessoas, que as coisas acontecem, saúde é outro mundo, né. É a saúde pautada no cuidado, né.
R- Você tem ali, claro, com a doença que pode aparecer, acometer as pessoas ali no processo, mudança de clima, comida, talvez não faça bem, viagem e tal, mas acima de tudo é o cuidado. Então, a gente tem uma equipe hoje de saúde que está posta para o cuidado né… da massagem, do escalda pé, do acolhimento. O movimento consegue fazer uma cidade em movimento, porque 20 mil nem muitos municípios chegam a quantidade de gente desse tamanho e você tá ali com todas as condições de poder realizar um encontro que vai ser belíssimo, um Congresso que vai ser belíssimo, todos com condições de participar e não passar pelas dificuldades que aquele, a imagem que eu tenho dele, embora de algo grandioso, mas que as condições não eram tão tranquilas de serem enfrentadas para uma militante mãe em uma atividade que leva em torno de dez dias, incluindo viagens e a realização. O movimento cresceu, acho que a gente hoje consegue garantir que todos se sintam bem na realização.
P/1-Pensando nesses desafios que você encontrou no Congresso, no segundo e nesse que vai ser feito, quais você acha que são os principais desafios que se colocam agora para esse Congresso de agora que está sendo formado?
R- Eu acho que... desafios ou superação dos desafios?
P/1-Pode ser as duas coisas. Você falou que olhando para trás você vê várias questões que evoluíram. O que você acha que daqui pra frente que talvez sejam possíveis desafios aí que o movimento esteja trabalhando para superar mesmo?
R- É, eu acho assim que... de questões assim, mas eu acho que a gente está avançando para aí. Eu acho que a gente está realizando... do ponto de vista interno, eu acho que a gente só qualificou. A gente hoje... porque esse movimento, ele prima pela dimensão do estudo e do profissionalismo. São dois princípios que se dialogam, são separados, mas dialogam, que é o estudo e o profissionalismo. O estudo tem a ver com essa dimensão mais política e ideológica e o profissionalismo é se capacitar, ter condições, se qualificar naquela área que tu atua.
R- Então, acho que nisso o movimento, a gente tem primado por isso, né. Eu sou da área da educação, eu entro no movimento, estava fazendo magistério, passei 10 anos sem um curso formal, não que eu não fizesse formações não-formal, mas formal eu levo 10 anos, vou fazer pedagogia 10 anos depois. Mas aí fiz especialização, fiz mestrado e agora estou no doutorado. Por quê? Porque é fundamental se qualificar para poder tocar esse trabalho. A gente está construindo um referencial de educação que seja instrumento de transformação, que seja para a emancipação, que construa as bases para uma sociedade emancipada, embora no capitalismo isso se torne difícil, mas você constrói as bases nessa contradição, nesse enfrentamento. Então, é preciso se qualificar para isso. Então, no campo da arte, da mesma forma, o movimento constrói, mas isso não impede também que a gente dialogue com algo já construído.
R- A gente aprende com isso, no campo da saúde, a gente está formando nossos médicos, mas tem as pessoas que têm esse saber popular, e os dois caminham com a dimensão do cuidado. Então, em cada área dessa, a gente foi se qualificando. Então, internamente, não entendo que a gente possa ter grandes questões colocadas para que um evento com 20 mil pessoas aconteça tranquilamente. Porque se tiver algum problema de saúde, nós temos a saúde para acolher, a gente tem onde as crianças ficam para as mães poderem participar em melhores condições das quais eu participei. A alimentação, as cozinhas vêm com toda a sua estrutura, as pessoas preparam aquele alimento que é feito ali na hora, que não vai ter produtos químicos, que vai vir, uma boa parte dessa alimentação vem da nossa própria produção, que temos feito um esforço para que seja agroecológico, livre do veneno. Então, todos os campos a gente tem se qualificado. E a gente faz isso coletivamente, a gente tem uma estrutura, imagina, você concebe, você tem um grupo ali concebendo, preparando, esse grupo vai voltar para os seus estados e vai ampliar isso para que todos que vão tenham condições de tocar esse trabalho, então você tem um trabalho ali.
R- Então, do ponto de vista interno, mas nós estamos numa luta de classe. E... a gente está saindo de uma conjuntura que foi acirrada na disputa eleitoral. Nós derrotamos o Bolsonaro, mas não derrotamos o fascismo. Numa cidade que nem Brasília, que tem um grupo bolsonarista ali que se associa ao fascismo, porque bolsonarismo é sinônimo de fascismo. e que é ódio ao social, ódio às organizações. Então, a gente tem que estar atento, portanto, nossa equipe, nosso grupo de... de...
R- do cuidado da segurança. Tem que... também a gente tem que ser qualificado nesse campo também, de poder... que a gente chama zeladoria, que é o grupo que é responsável para manter a segurança. Então, a gente também tem que ser qualificado nesse campo, mas, acima de tudo, que cada um cuide de cada um. Você tem isso, então, eu acho que tem... tem esse cuidado que eu acho que, diferente dos outros momentos, que a gente vinha e a gente está enfrentando um sistema, mas ele não está no nível do fascismo que não dialoga com a democracia.
R- E cada vez mais grupos radicais desses desse sistema aí, dessa forma de pensar tem vindo para o enfrentamento, mas também eu acho que o movimento teve enfrentamentos na sociedade, não com o fascismo, mas nos dá também condições de fazer. É claro que a gente tem medo de que possa acontecer algo com com... como fizeram, né, o drone, de jogar alguma coisa que possa prejudicar, mas aí também... mas eu acho que o cuidado hoje maior nosso é mais externo, porque internamente eu acho que... E mesmo essa estrutura interna, então, nos garante também tentar nos defender. Até agora a gente tem conseguido realizar as atividades sem maiores problemas, mas é um cuidado que, sim, precisamos ter. E de um governo de disputa, né. Um governo que a conjuntura também não tem colocado...
R- Não tem... tem colocado o governo refém de um congresso gangster, que fica ali chantageando o governo contra as pautas sociais e ameaçando. Aí está a característica do gangster, chantageando o outro, se não faz o que eu quero eu coloco as pautas bomba e a reforma agrária é um desses elementos, então tem esse tensionamento hoje que é do conflito mesmo de classe, acho que se acirra esse conflito, sobretudo com a bancada ruralista, que quando você fala hoje a bancada ruralista não é só os que estão com com o trato direto com a terra, mas há hoje uma articulação entre banco, latifúndio que se junta. É diferente quando a gente começou a enfrentar, a fazer as ocupações de terra, que a gente enfrentava lá de fundiário e aqueles mais atrasados ainda. Hoje o agronegócio traz essa dimensão de modernidade e que se articula com outros setores da economia. Então, traz esses elementos e que o Congresso, do ponto de vista de projeção para próximos cinco anos do movimento, se coloca nesse debate das ideias. Que tipo de campo nós queremos? Que tipo de produção nós queremos?
R- O que é que nós estamos vendo ali no sul? Estou falando do sul porque é hoje, agora, mas o que é que a gente está tendo? Então, houve uma alteração nas formas climáticas que passa pelo modelo de produção. E o Brasil tem contribuído muito para isso. Não que o latifúndio foi de preservar, mas a gente teve um aceleramento disso nos últimos seis anos que foi dramático para o meio ambiente, que implica e impacta em vários fatores. Porque mexe com o clima e com isso mexe também com a produção. Então, o debate que nós vamos estar enfrentando no Congresso do Movimento também diz respeito. Nós chegamos numa maturidade, nós chegamos aos 40 anos.
R- Então, chegamos nesse momento. A gente tem uma construção interna. que nos dá essa maturidade na qualificação dos seus quadros, na qualificação do projeto, de pensar várias coisas que nessa trajetória do movimento foi demandando, questões que não estavam postas para um movimento camponês e que a gente foi enfrentando e superando, desde a participação da mulher, das condições, mas também do LGBT, da questão da saúde, da produção. As temáticas, agora a gente está com a questão racial que também vem para a gente poder enfrentar isso e como é que a gente dá conta de trabalhar essas questões. Então, o movimento, ele vai agregando as pautas da atualidade e vai ressignificando e vai dando isso. Então, para o movimento camponês, a gente mudou, assim, nessa trajetória. Por quê? Porque a gente esteve aberto.
R- Nós temos como perspectiva projetar mesmo essa emancipação humana, mesmo por dentro do capitalismo, com suas contradições. Porque a gente quer forjar o que a gente almeja de uma nova sociedade. E se a gente não enfrentar essas questões, mesmo que tenha avanços e retrocessos, é porque a gente está dentro de um sistema contraditório, mas a gente não deixa de perseguir o que a gente entende que é essa sociedade. Então, a gente tem essa dimensão interna, que acho que amadurecemos, mas a gente está enfrentando o conflito da humanidade. Como é que a gente se coloca diante disso, que vamos ser impactados por isso, ao mesmo tempo que a gente tem que também projetar que outra sociedade é possível? Então, você sofre essa investida que o capital está fazendo sobre a natureza, sobre as relações de trabalho, e ela vem para cima. A gente é impactado por isso, ao mesmo tempo que você tem que também dizer, olha, é possível ser diferente. É uma luta de classe hoje.
R- E veja que a gente inicia o movimento saindo de um regime ditatorial. Tinha um resquício, mas tinha abertura de uma nova sociedade. A gente estava ali no reabrindo circuito da história. A gente sofreu as consequências de uma cultura da repressão, de uma cultura da violência, a violência do latifúndio. A gente sofreu a consequência de uma polícia extremamente violenta, mas a sociedade estava no entre aberto . A gente está saindo de um regime ditatorial, portanto, o espírito era de construir um processo democrático, a sociedade estava aberta para isso. Nós estamos numa tentativa agora de fechar esse circuito. Nós enfrentamos seis anos nessa tentativa de fechar esse circuito da história de uma volta de um regime ditatorial, sobre a base fascista, com base fascista.
R- Então, a gente resistiu, não superamos, hoje tá páreo a páreo na sociedade e a gente tá, mesmo que o nosso amadurecimento é diferente, a gente sofreu repressão, não foi pouca, a gente sofre repressão agora, são de natureza diferente. Então, por quê? Porque a conjuntura é diferente. A gente... tem um respaldo cultural do que construímos até agora, o que nos dá esse fortalecimento, mas a gente está sofrendo uma pressão do que está vindo aí e que entra na disputa das ideias, então disputando aí a cultura, a arte, a educação, tem um papel fundamental nessa disputa das ideias e que a gente tem que fortalecer, a gente tem que, esse Congresso tem isso, de colocar tem um olhar sobre isso também, como é que o movimento, como essa força política que está se constituindo, a gente saiu da pandemia, com um outro... com outro peso. Acho que a pandemia trouxe para o movimento, enquanto todos estavam se recolhendo, a gente está... não vou generalizar, porque teve muita gente também que se colocou para fora para poder dar esse amparo que muitos precisavam, mas o movimento, trazendo especificamente para o movimento, a gente teve um papel fundamental nesse período de pandemia e eu acho que a gente sai num outro lugar, parte dele.
R- Então, a gente também tem a ver com isso, né. Chegamos, minha geração que iniciou, a gente tá chegando no nosso, na maturidade, né. Então, como é que a nova geração vai dar condição pra isso. Então, esse congresso vai dizer muito do que vai ser a gente daqui pra frente.
P/1- Eu ia deixar essa pergunta para depois, mas eu vou aproveitar que você mencionou. Eu ia perguntar justamente sobre a pandemia. O que a pandemia trouxe de mudanças ou de questionamentos para o movimento e na sua prática mais cotidiana? Então, nas suas atividades, na ocupação, etc. Como que a pandemia veio? O que ela trouxe? O que ela mudou?
R- A pandemia, ela foi muito... Não sei se eu vou falar educativa para o movimento, mas ela trouxe uma dimensão. É um momento difícil que a gente estava vivendo ali. Era um momento difícil para todo mundo, um momento de recolhimento. E eu acho que o movimento teve três elementos na pandemia que eu acho que deu esse fortalecimento interno, e que acabou projetando para o conjunto da sociedade. O primeiro que nós chamamos de isolamento produtivo. Então, você não podia sair…então, esse recolhimento para dentro dos assentamentos também nos colocou para avançarmos no debate da agroecologia, no debate da produção.
R- Então, acho que isso a gente chamou de isolamento produtivo. A gente estava ali, estava experimentando, estava... Então, acho que isso foi muito... Deu um crescimento muito grande para o movimento. Então, foram dois anos ali de angústia porque você, como a gente costuma dizer, não foi só pandemia, foi um pandemônio, né. Então, que situação terrível, né. Você tá ali com o governo negacionista, com toda a sua política anti social, num momento em que mais a população precisava. Então, foi duro.
R- Então, acho que a primeira coisa foi essa. A gente volta internamente pra fortalecer a nossa base produtiva, que é pautado na agroecologia e plantar. Por outro lado, também a sensibilidade humana, de estar com o governo negacionista, negando as políticas, e que precisava também amparar. E aí eu acho que as mãos solidárias foram essa expressão do movimento para fora. E as mãos solidárias não só pela distribuição de alimento, mas também dos agentes populares de saúde, de ir para as periferias, trabalhar com as noções básicas de higiene, porque também a pandemia passava por isso. e estar ali junto com as comunidades discutindo isso, também com os advogados populares, de poder dar o amparo de como acessar a pouca política que saiu ali do governo. A gente via as pessoas se colocarem à disposição para produzir máscara, tudo articulado pela mão solidária, né. Então, assim, quem tinha uma maquininha estava ali fazendo as máscaras, doava por mão solidária que ia para as comunidades.
R- Então, eu acho que esse movimento solidário que foi construído desde o movimento para fora, ali com esse amparo das marmitas, da saúde, da orientação. Eu acho que isso foi forte a tanto que, após a pandemia, a gente continuou com esse processo. E o terceiro foi a formação, meu assentamento tem o Centro de Formação Paulo Freire. Sou assentada no assentamento Normandia, lá em Pernambuco, e a gente, nosso espaço lá, nós temos o centro que acolhe os cursos não só do movimento, como de outras organizações. E aí chega a pandemia, e aí a gente… bom, também é um momento que a gente tá na disputa, então, das ideias, então, vamos aproveitar esse momento, já que a gente não pode ter cursos presenciais, vamos fazer cursos online? E aí nós começamos com um curso sobre Paulo Freire, a gente estava rumo ao centenário do Paulo Freire, a gente já tinha tido um curso presencial em articulação com a Universidade Federal de Pernambuco, com o Centro Paulo Freire, E aí a gente decide fazer o curso online. É impressionante, assim, a quantidade de pessoas que se inscreviam, que participavam.
R- Também conseguimos, já que era online, baratear custo em função de que a gente tinha bons teóricos da educação popular que se colocaram à disposição, então a gente tinha ali as pessoas se colocando à disposição. Depois a gente viu que não ficou só no campo da educação, a gente fez diversas temáticas, outras temáticas, estudar os clássicos. Então acho que foi outra questão que foi importante. Então, nesse momento é importante a gente fortalecer as ideias, porque a gente sabia que estava enfrentando ali não só a pandemia, mas também um governo que precisava ser combatido e combatido através das ideias. Então, acho que essas três questões fortaleceu internamente e nos deu o elemento de conseguir atravessar aquele momento muito difícil, que foi difícil para todos. Eu acho que foi a forma que a gente também pôde encontrar para poder também fazer esse enfrentamento, e não ser tão dramático nesses dois anos. Eu acho que foi rico para o movimento nesse sentido de organização interna.
P/1- Como você mencionou várias vezes, mão solidária é uma iniciativa específica, é um braço... com o perdão da ignorância.
R- Mão Solidária foi o nome que ficou dado para essas iniciativas de apoio às populações de vulnerabilidade no período da pandemia. Foi algo puxado pelo movimento, mas, por exemplo, no estado de Pernambuco fomos nós, a Diocese de Recife, Olinda, e foi a Universidade Federal de Pernambuco e a Fiocruz. Então, a gente conseguiu formar uma grande frente dessas instituições que deu todo o amparo. E os voluntários, as pessoas se colocavam de forma voluntária, para poder estar ali para preparar a comida, para distribuir a comida, mesmo correndo o risco de pegar o vírus, as pessoas se construíram. Então, esse movimento, que não foi só em Pernambuco, tem diversos estados, foi chamado de mãos solidárias. E ele continuou pós-pandemia, a gente tem hoje toda uma articulação nos estados.
R- Nós, não vou saber te dizer agora, mas acho que na pandemia a gente tinha conseguiu organizar 10 cozinhas nos bairros, que antes era central, depois a gente conseguiu descentralizar, que ficou pós-pandemia, ou essas é depois da pandemia, que foi construído nos bairros, e que, tipo, nas chuvas, teve a chuva, essas cozinhas hoje continuam dando esse apoio para as pessoas que ainda estão em condições de vulnerabilidade e... Mas também no momento da enchente, que as pessoas perderam tudo, as mãos solidárias estavam lá também amparando. Então, esse movimento dessas cozinhas, desse apoio que são chamados hoje de mão solidária.
P/1- Perfeito. Vou voltar um pouquinho de novo para tratar mais alguns assuntos. E aí a gente... chegando mais pra cá de novo e encaminhando. Falou bastante dessa questão da repressão, e hoje das formas de como era e de como isso foi mudando. Queria que você falasse um pouquinho sobre esse movimento. A gente falou bastante de processo. Então, esse processo que você pegou desde ali, esse resquício da ditadura, essa repressão que estava localizada ainda em alguns agentes, e dessa mudança, de como você foi percebendo essa mudança em termos de sociedade e dessa repressão ao movimento nas ocupações, a partir da sua experiência mesmo?
R- As formas de repressão, ela tem... ela tem alterado a partir também da conjuntura nacional. Pegando, a gente tem ali o início do movimento 84, a gênese do movimento é 78, está ainda na ditadura, tanto que a encruzilhada Natalino, as lutas que foram feitas ali no Sul, o comandante Curió. A repressão que houve ali no sul do país, comandado pela polícia militar. E a gente tem um enfrentamento institucional dado pela polícia, e a gente tem um que é colocado pela uma repressão particular que é dos pistoleiros contratados pelos fazendeiros. Até nisso houve uma mudança do ponto de vista dessa repressão particular. No início do movimento a gente enfrentava os pistoleiros, aquele jagunço bem caricato, aquele chapéu, a arma.
R- A UDR teve um papel importante nisso, de fazer os leilões, para comprar armas. Havia um... teve o... Então, essa forma de repressão era muito assim, de pegar pessoas, quem se despontava, e houve muita morte no campo mais da igreja e sindical. Você tem o padre Josimo, você tem Chico Mendes, você tem uma repressão. Essas pistolagens pegam lideranças que se despontam. O movimento enfrenta isso na ocupação, a ação da pistolagem, mas como é uma ação coletiva, a gente teve poucas baixas. E de lideranças de pistolagem foi muito pouca comparada, porque o modus operandi deles era muito de pegar as lideranças.
R- E aí você tem essa pistolagem que vai lá aos jagunços, para fazer essas emboscadas, e você tem a repressão institucional, que é pelo despejo, não que ela não seja violenta, ela é violenta, olha o que foi o massacre de Eldorado dos Carajás, você tem uma violência militar, quando não há morte, mas há o despejo, e o despejo com perdas de coisas, então você tem essa violência. O que é que a gente tem de mudança nessa forma? O que antes a gente chamava, o que antes era pistoleiro, agora são empresas privadas de segurança. Tem um... embora o pistoleiro era algo mais clandestino, agora você tem uma empresa de segurança que é contratada com todo o aparato armamentista que vai fazer esses despejos. Você tem a repressão policial, Essa era bolsonarista constituiu uma polícia militar muito raivosa contra pobre, contra preto, contra... Então, assim, é um despejo mais violento, mas uma raiva. Porque uma coisa é, bom, eu estou aqui para cumprir a lei, o juiz deu a reintegração de posse, eu vou fazer.
R- Mas tem hoje um elemento de que foi constituída essa polícia de ódio ao social, ao negro, que aparece hoje nessas ações de violência. E você tem hoje a violência, eu não saberia classificar aqui, mas é dessa, a gente chama dos pitbulls do bolsonarismo. Tem essa violência dos pitbulls do bolsonarismo que, em uma ação mais coletiva, a gente ainda não teve esse enfrentamento, de estar nesse confronto com eles que agem muito mais via redes sociais, Então, esse confronto diretamente com esses pitbulls aí do bolsonarismo, mas é um grupo violento que... E aí, a gente sofreu ali no governo Bolsonaro, ações... não sei se chamaria de clandestina, o que aconteceu com o nosso centro de formação Paulo Freire duas vezes. Eles estavam no nosso centro, picharam com a suástica e botaram fogo no nosso centro. Então, você tem essas ações de lugares estratégicos. Logo que iniciou o governo Bolsonaro, a gente teve o pedido de reintegração de postos do nosso centro e o processo de resistência foi bem importante.
R- E a gente teve esse ataque ao centro, botaram fogo numa casa, quebraram as coisas lá e picharam várias partes do centro de formação. Então, é esse tipo de violência que a gente hoje tem tido com esse enfrentamento aí de projetos.
P/1-Caso você não se sinta confortável para responder, também não precisa. Mas teve algum despejo, alguma ação de despejo que foi mais marcante nessa trajetória toda, pessoalmente, que te marcou mais de alguma forma, por algum motivo?
R- Eu acho que teve... esse dia em Alagoas marcou pela quantidade e pouco espaço de tempo. Porque o despejo, ele é sempre... Os despejos têm dois sentimentos, né? Eu acho que é esse mesmo do... Quando a gente vai pra luta, pra ocupação, a gente vai preparado sabendo que a gente pode ser despejado, mas é nesse confronto também que se dá... essa fortaleza. Quando a gente está no processo de ocupação, a gente cria mecanismos de autodefesa.
R- Primeiro, tem que estar todo mundo junto. Nossa defesa é essa união. Então, vai ter o despejo, você constrói os processos e você também faz análise de correlação de força, até onde você pode ir, até onde você não pode ir, a partir do enfrentamento que você vai enfrentar. O que me marca é esse que a gente fez em Alagoas, porque nós sofremos três despejos. Diz meu colega que foi quatro, que um foi pelas formigas. A gente sofreu em pouco espaço de tempo, três despejos. A gente é acordado de madrugada, com um grupo de pistoleiros chegando no acampamento. E aí fui pra cima, e derrubou as coisas e a gente tinha acabado de sair de um processo, a gente tinha feito uma caminhada até Maceió, a gente fez uma caminhada de colônia de Leopoldina até Maceió, chega em Maceió, a gente fica uns três dias lá acampado, e no dia de voltar tem uma repressão policial na praça, que foi muitíssimo violenta, mas não foi violenta só pelo bater e perseguir, mas as táticas que eles usaram para dispersar depois que a gente se concentrou, de questões psicológicas, de ficar com um megafone, foi bem torturante. E aí a gente sai dali, uma semana depois a gente fez uma ocupação.
R- E aí quando a gente faz essa ocupação, a gente fica ali uns três dias na ocupação, e depois vem esse despejo por pistoleiro. Aí eles destroem tudo e dá um tempo pra gente sair dali. E aí.. a gente sai daquele lugar, desce, era um morro, a gente desce e vai para a beira da estrada, mas não era uma beira da estrada, era dentro da fazenda. E aí a gente vai para a cidade tentar transporte para poder sair dali. Então, a gente não consegue transporte, ninguém queria dar o transporte para sair. E aí o próprio fazendeiro dá dois caminhões, a gente entra nesses caminhões e sai escoltado por eles. E eles chegam, já era tarde para noite, a gente chega na beira da pista já à noite, a gente não tinha muita noção de onde a gente estava sendo jogado, a gente depois descobre pelo barulho dos carros, então a gente falou, a gente está perto da pista, aí a gente fica ali, aí vem uma chuva à noite, e assim sem ter nada para proteger… Então aí, esse já era de outro fazendeiro, porque passaram os pistoleiros e falaram´´ ah, vocês ainda vão ter transporte aqui, vocês vão sair na bala``.
R- Então, a noite toda sobre ameaça. Aí quando chega de madrugada, a gente tem noção de onde a gente tá, a gente vai pra beira da pista. E mesmo na pista, eles não nos deixaram ficar, ameaça direto ali na pista, aí a gente consegue, então, transporte e voltamos para um assentamento nosso. Então, assim, eu acho que aquela marcou por esse... por essa sequência. Mas todos os despejos, ele é bem dramático, mas, ao mesmo tempo, também nos dá essa... Porque a gente sofre despejo, mas não é algo que é desmoralizante ou que baixa...
R- Não! Depois do despejo, olha esse que eu... Lá na Bahia, inclusive, que era início, as pessoas foram todas... Eles pegaram e espalharam as pessoas e a gente consegue aglutinar essas pessoas. Então, mesmo na curva do S, que foi o massacre de Eldorado dos Carajás, era uma jornada nacional de luta. O Movimento Sem Terra teve um momento em que ele estabeleceu o que era chamado Jornada Nacional de Luta, que o Abril Vermelho vem disso, né. O Abril Vermelho é em função do Eldorado Carajás.
R-Mas era uma forma que o movimento tinha de unificar, no mesmo período, lutas em todo o país, que aí você dá essa dimensão de mobilidade, dá de força para ter força política, para pautar as desapropriações, as coisas que tem que resolver. Nesse 96, a gente... 96... A gente está com essa jornada e a gente em Pernambuco estava em greve de fome. A gente ficou lá 11 dias em greve de fome. Então, a gente estava em greve de fome em Pernambuco, o pessoal no Pará estava em marcha e assim em todos os estados. Quando aconteceu ali o massacre de Eldorado dos Carajás, eu não estava na ocupação em Recife, eu estava fazendo um trabalho numa escola, quando eu soube do massacre. E o nosso pessoal estava em greve de fome em Recife, eu estava numa escola.
R- Quando eu vi aquela notícia no jornal, aqueles sentimentos, puta merda, nos derrotaram. Imagina, matar 19 companheiros, estamos derrotados, porque quem é que mais vai querer saber de luta, né. Porque não é fácil, você tá num processo, de repente mata 19. Isso cria impacto nas pessoas de medo, de... E o que mais me impressionou ali, foi que na mesma reportagem que eu soube, depois a noite a gente assistiu o jornal, vendo aquelas pessoas com o carrinho de mão lá indo pra ocupação, pra... Falei, não, nós não estamos derrotados. E aí eu saio dali, e vou para Recife.
R- Quando eu chego no Recife, era um clima de desolamento, sabe. Deveria estar ali o quê? No nono dia de greve de fome. E ainda por cima uma garoazinha, mas um clima de desolamento, todo mundo lá sendo deitado lá no prédio do INCRA, os grevistas de fome, aquela situação toda.
R- É...
R-E bate aquela coisa, né? O clima bem... e aí, chega tarde, começa a vir um som. E vem andando, vem andando, e quando ia se aproximando, o som ficou mais nítido. E aí, as pessoas começam a se levantar e vão pra grade lá do prédio. E vem, debaixo de chuva, um grupo de estudantes com um carro de som gritando, MST, estamos com você. O nível de solidariedade, o nível de... Então, assim, nós não estamos derrotados.
R- Então, assim, o Massacre de Eldorado, é duro você perder 19 companheiros, mas o movimento recebe um nível de solidariedade e de fortalecimento interno e das pessoas quererem ir para a luta pela terra. Então, não era a violência que intimidava essas pessoas de lutar. Então, para mim, me marcou isso, porque a violência é deles. A gente, nosso projeto é de vida e as pessoas têm a convicção de que ou continua lutando ou a tendência é piorar. Então, acho que isso... Então, esse peso aqui entre a violência e... A violência nunca foi forma de nos intimidar, mas foi forma de nos fortalecer e buscar formas de resistência, formas de enfrentamento. Então, eu acho que essas coisas, nesses 40 anos, a gente...
R- Enfrenta, sempre enfrentou, enfrenta, ela muda de natureza, mas também a convicção dos trabalhadores em busca da sua liberdade também. Não é à toa que a gente, se a gente pega do processo de resistência, desde de Cepet e Araju, nas Missões dos Sete Povos, Alto Lais até a tem dono, luta, Zumbi dos Palmares só tem só escravo aquele que tem medo de morrer. Então, assim, e toda a luta de resistência do povo negro, né. Então, nossa história é marcada por isso, né, Canudos, as ligas camponesas. Então, nossa história é marcada pela repressão do latifúndio sobre os trabalhadores. E nem por isso nós deixamos de lutar.
P/1- Por quê?
R- Porque é a nossa condição. Se a gente quiser se libertar, vai ser obra nossa, não vai ser de ninguém. Então, isso nos dá força para continuar lutando e continuar ocupando esses latifúndios.
P/1-Você mencionou que hoje você está no assentamento Normandia. Há quanto tempo? Como você foi para lá?
R- Então, a gente que é militante e está à disposição da luta, a gente... não era prioridade sermos assentados, porque a gente estava no mundo, né. Então, eu venho da Bahia, meu marido vem de Santa Catarina, a gente faz a luta pela terra, mas não foi assentado. E aí, no assentamento de Normandia, a gente faz a ocupação em 92, conquista ele em 96 com a greve de fome. A greve de fome, uma das pautas era, porque a gente sabia que o laudo tinha sido comprado, lá que o técnico deu que não podia ser desapropriado, e a gente era uma... uma área completamente produtiva, como é que... E aí, com a greve de fome, a gente conseguiu uma nova vitória e declarou como... Mas nós não fomos assentados lá, foi minha irmã que foi assentada.
R- E a gente não parava, né. Então, a gente estava muito circulando. Aí, minha irmã, depois, decide voltar para a Bahia. E aí, quando ela decide voltar para a Bahia, eu assumo o... o lote dela, a gente tem uma cooperativa lá no assentamento e tal. E aí, naquele momento, a gente falou assim, não, está na hora, não que a gente parou a militância, mas a gente também queria ser assentado, queria produzir, e aí a gente assumiu, tem uns 10 anos, e a partir dali, então, a gente passa a a combinar as duas coisas. A gente tá lá, a gente planta pitaya, nós temos uma plantação de pitaya, mas também plantamos lavoura de subsistência, para a merenda escolar, de subsistência não para subsistemas; a gente planta essa produção temporária, que é a macaxeira, que é o milho, mas lavoura permanente, a gente tem a pitaya e galinha.
R- Então, a gente tem a galinha e esses produtos para operar. Nossa cooperativa tem um processo de beneficiamento, de empacotamento, e a gente fornece produtos para merenda escolar.
P/1- E ainda sobre o assentamento, quando vocês estão lá, como é o cotidiano, o dia a dia?
R- A gente tem um tempo de ir para a roça, acorda cedo, vai lá alimentar as galinhas e mandar o filho para a escola. Tive um filho já fora da faixa, ele está com 13 anos agora, então ainda precisa de... E a gente... Bom, depois de mandar o filho para a escola, a gente vai para a roça e fica ali por volta de dez, dez e meia, aí volta para as reuniões e faz as reuniões. Depois, no final da tarde, depois que passa o período de sol mais quente, a gente vai novamente para a roça. Inclusive, eu chego lá dia 6, as pitayas estão para ser colhidas. Esses dias eu fui em casa, porque eu estou ficando em São Paulo, porque eu estou fazendo o doutorado, e tentei vir para cá, e me esconder um pouco para ver se eu escrevo. Não consegui.
R- Aí, esses dias, eu fui em casa bem na hora da colheita da pitaya. Aí, fui colher as pitayas e agora está lá, nova safra para ser colhida agora dia 6, 7. Eu já voltei das pitayas lá para colher.
P/1- E sobre esse processo de volta ao ensino formal, como foi voltar? E essa opção é uma escolha, enfim, porque você foi para a pedagogia? Como foi para você voltar para o ensino formal?
R- Então, a necessidade, né. Assim, aí já foi escolha mesmo. A partir disso aí já foi a escolha. Por quê? Porque em 92 eu vou para o setor de educação do movimento. E eu tinha feito magistério, concluído em 88, e em 98 eu entro no setor de educação, 92, e eu fui sentindo necessidades. Eu preciso continuar estudando, né, pra poder... Não que a gente não estude, mas a relação, a gente passa a ter relação com as universidades, com os cursos, a gente tem a relação com o estado, a gente está pautando, e o título passa a ser também um elemento, porque embora a gente estudasse, tivesse clareza do que a gente queria, o título pesava na hora que você está te ver como apenas demandante, e a gente quer ser sujeito dessa educação, a gente quer dizer o que a gente quer com essa educação.
R- Então, a gente começa a sentir necessidade, não só também de aprofundar, porque a academia também te dá instrumentos para poder lidar com as questões do conhecimento e tal. Só que, como é que você combina a militância com estudos que é ter uma rotina, que é cotidiano, aí a gente consegue, então, construir uma proposta de cursos, já tomando como referência a pedagogia da alternância, a gente toma o regime de alternância, que é um período na escola e um período na comunidade. E a gente já tinha uma experiência no movimento de nível médio, nessa alternância, e aí a gente consegue, então, com a Universidade de Ijuí, no noroeste do estado de Ijuí, lá no extremo sul do Rio Grande do Sul, uma universidade que topou fazer esse curso. E aí a gente conquista, em 97, um programa nacional de educação na reforma agrária. O massacre de Eldorado também trouxe isso, porque ali chamou a atenção para o governo de Fernando Henrique o tratamento que estava sendo dado no campo. Então tem uma pressão internacional, tem cobranças ali e que ele acaba fazendo algumas movimentações de resposta a isso e entre elas foi quando a gente pautou um programa de educação para as áreas de reforma agrária a partir do nosso primeiro encontro nacional de educação da reforma agrária 97, o primeiro enera, a gente consegue pautar o governo um programa para formação, para educação, que vai da alfabetização de jovens e adultos ao nível superior. Então, a gente consegue esse programa. Em 98, a gente tem esse curso de pedagogia com a Unijuí. E lá foi um curso que veio de todo o Brasil.
R- Então, o coletivo de educação foi fazer esse curso. E a gente faz esse curso de pedagogia, quatro anos nessa alternância, saindo do Nordeste para o Sul estudar. E aí depois a gente consegue, o Pronera… começa, aí teve um outro ainda mais ou menos regional, no Mato Grosso, depois teve um Espírito Santo, também abrangendo uma região, depois a gente começou, região não, nacional. Nacional, mas assim, pegava ali Sudeste, mais próximo, né, às regiões. Depois a gente teve a regional do Nordeste, na Paraíba, e depois a gente começou a ter curso nos estados. Tô falando de nível médio e superior. E aí, conclui o...
R- o curso de Pedagogia, aí em seguida fiz uma especialização em Educação no Campo e Desenvolvimento com a Universidade de Brasília, depois fizemos um outro curso de especialização com a Fiocruz, que era Trabalho, Educação e Movimentos Sociais, aí eu fui para o mestrado, o mestrado eu já fui uma iniciativa individual, porque até então era coletivo, era um movimento. Aí, já da pós-graduação, a gente não tinha cursos, então, a não ser no nível de especialização. Aí eu fui para o mestrado na Federal de Pernambuco, e concluí o mestrado e em 2021, eu fui para o doutorado. Tentei o doutorado com a Unicamp. Então, estou fazendo o doutorado na Unicamp, vim, passei um ano, paguei todos os créditos. Achei que eu já tinha terminado o curso, voltei para casa, porque eu ando sem olhar para a tese. E aí, eu falei, se esconda e vai estudar. Eu vim para cá, porque eu também tinha que estagiar.
R- Mas não confirmei o estado, então eu tô aqui, fiquei três meses aqui tentando retomar a tese, volto pra casa agora porque a gente tá com curso, a gente conseguiu agora uma ação articulada da educação de jovens e adultos para todo o Nordeste. A gente juntou os nove estados do Nordeste e falou, Lula, se o Nordeste foi fundamental para a sua eleição, então faz o favor de garantir aqui. Então a gente articulou os nove estados do Nordeste sobre o comando da Universidade Federal de Pernambuco, que vão fazer uma ação articulada para quase 40 mil alfabetizando porque a gente quer declarar territórios livres do analfabetismo. E aí a formação vai sair, quiseram partir, sair agora em... em maio, mas aí os trâmites internos na universidade não foi a tempo, a gente está tentando achar a nova data, mas a gente está, então a gente vai fazer uma formação junto, os nove estados, que a gente chama de formação de formadores, onde vamos trabalhar o método, e aí esses formadores voltam para os estados, fazem a formação dos alfabetizadores, dos educadores alfabetizadores, que vai fazer o trabalho nas escolas, nas áreas. Então, eu estou voltando agora, para voltar no segundo semestre para estagiar, e ver se eu me reencontro com a minha tese.
P/1- E qual é o tema da sua tese?
R- Eu estou trabalhando na pedagogia do movimento, A especialização e o mestrado eu fiz no campo da política pública, analisando as políticas de educação do campo ali no governo Lula-Dilma e com foco no MST, e toda pesquisa que eu faço, o que entra em disputa, em questão ali é o pedagógico. Então, não é o direito, né… eaí, assim, pelo direito, mas tá em disputa ali porque a gente enfrentou de 2004, depois de 2004, com a CPI da Terra, a gente enfrentou ataques no Pronera, onde a gente constrói o Pronera num movimento ascendente, né. Em que participam movimentos sociais, Universidade e Estado na constituição dos cursos e a partir de 2004, então, eles fazem... tomam a determinação de retirar os movimentos sociais do processo de condução do Pronera. E aí, nas análises da política pública, bom, o problema não está no... na política, tá em quem dá a direção intelectual e moral na formação dos sujeitos. A disputa é ideológica, disputa que, então, entra o ativismo judicial, entra...
R- Então, assim... Porque a gente já tinha conquistado, tanto na Constituição Federal quanto na LDB, o direito a... Os movimentos como espaço educativo, você tem ali a Constituição dizendo que você educa na família, mas também nos movimentos sociais, e você tem a LDB dizendo que garantindo ali a gestão democrática, portanto, a participação dos sujeitos. Então não era uma questão de amparo legal, a gente tinha O que estava em disputa ali era o ideológico, quem é que está dando a formação intelectual, a direção intelectual e moral para a formação desses sujeitos. Aí eu estou indo para decidir tomar análise a partir da teoria educacional, então estou nessa aí com o Saviani, ver o que é que vai dar.
R- Incrível. Já indo para o último bloco, um pouco mais pá pum.. . Queria que você falasse para mim o que significa militância para você?
R- Militância é a dedicação da construção do mundo possível. E aí eu trago o meu veio lá da igreja, é você se colocar à disposição, doar-se a vida em construção de um mundo melhor para todos. Acho que a militância é isso, é você desprender de muitas coisas, sem abrir mão também, mas estar totalmente à disposição de defender uma causa.
P/1- E se você pudesse definir o movimento em uma palavra, o que você escolheria?
R- Amor. Porque o amor é a causa das pessoas. O amor às pessoas, o amor à causa, o amor é o que nos move. Então, acho que o amor é... Talvez eu definiria isso, porque é o amor à causa que é a razão de ser desse movimento, as pessoas. Eu acho.
P/1-Quais são os seus sonhos para o futuro?
R- Não pensei nisso. Eu acho que o que sempre me moveu é o que está no meu horizonte. É uma sociedade onde a gente possa viver dignamente. E mesmo que eu não veja na sua plenitude, é rumo a ela que eu caminho. É rumo a ela que eu dedico a minha vida. Então, acho que o futuro... que, frente à realidade, eu não consigo ver um futuro particular. É o quê…
R- Deitar na rede lá, né. Nordeste, rede, tomar água de coco. Mas é essa construção de que é possível. Eu vejo um futuro de luta. Não consigo vislumbrar outra coisa. O presente diz que ainda temos muito pela frente para lutar. Então, o que eu consigo ver é luta.
P/1- Tem algo que você gostaria de acrescentar? Algo que eu não abordei aqui que você gostaria de tratar de alguma forma?
R- Acho que não.
P/1-Alisson, quer perguntar algo?
P/1-Então, primeiramente, eu gostaria de agradecer muito pelo privilégio de escutar a sua história aqui hoje, pelo tempo dedicado aqui com a gente, e obrigado por tudo.
R- Acho que a gente agradece, porque eu acho que a gente está vivendo um momento dos 40 anos e a gente tem trabalhado muito a questão da memória. Inclusive, depois da Covid, isso fica mais difícil. A memória coletiva é mais que parte dessa memória individual. E você está aqui para poder rememorar, trazer esses elementos. É importante, porque a gente está nessa… nessa pegada. Eu falei assim, desde que eu fui na festa dos 30 anos do MST, na Bahia, que eu ando em crise. É porque, assim, a gente...
R- Isso já passou há mais seis anos, depois daqueles 30 anos lá, certo. E aí, a memória é importante, ela fica registrada. Eu acho que a gente só tem a agradecer, porque nesses 40 anos a gente está nessa pegada aí, de estar registrando, de estar recuperando essa história. São 40 anos, um movimento camponês ir tão longe, pegando a história do Brasil, a gente conseguir sobreviver aí 40 anos, nem todos chegaram há tanto tempo. e que eu acho que essa forma do movimento também se recriar sempre e manter essa memória para a nova geração que está vindo aí é importante. Estava falando de passar esse bastão, porque a gente fala as cabeças de cotonete, as cabeças brancas que estão chegando aí. A gente vê essa nova geração que já está indo para a terceira geração, os filhos que agora, os netos, eu já tenho um neto, então como é que é essa continuidade? Os meus filhos estão na militância e agora você tem ali um neto que está chegando, o que será daqui para frente?
R- Eu acho que a gente está nessa fase agora, né. Até então era a gente ali, né. Agora a gente já tá pensando, bom, quem é que vai subir o bastão pra ir?Embora a gente vá até onde? Mas a revolução é da juventude, a gente... não é mais aquele vigor da juventude. A gente já, mesmo que a cabeça está lá na frente, o corpo já não responde tanto. Então, acho que a gente agradece essa contribuição de vocês para a nossa luta de registrar essas memórias.
[ Fim da entrevista]
Recolher