RUA DAS CAMÉLIAS
Era ali que eu morava, são dali as primeiras lembranças da minha vida, as primeiras imagens registradas na minha memória. A subida íngreme e cansativa. A descida afoita e alegre. A casa na esquina, de calçada vermelha, de muro baixo. Os anos eram os 1970 e eu não tinha mais do que 7, os acinzentados anos militares, com televisão preto e branco, como branca e preta era a fumaça que subia do Joelma.
Lá embaixo havia um rio, hoje eu sei que é uma avenida. Algumas pessoas tinham que descer para pegar o ônibus, e eu as observava da janela tentando entender por que os braços também se movimentam se, na verdade, a gente caminha com as pernas. Eu e minha mãe tínhamos que subir para eu ir à escola, e meu pai, acho, voltava do trabalho descendo. O sobe e desce da rua das Camélias era calmo e podia ser pela rua ou pela calçada, sem problemas. Tinha feira ali por perto, eu sei disso porque havia senhoras carregando carrinhos, tinha padaria lá para cima, pois as pessoas desciam com sacolas de papel pardas com pão cheiroso.
Interessante, mas não havia carros, pelo menos eu não me lembro deles, mas sim das crianças riscando amarelinha no asfalto, sem medo e sem ninguém gritando “vem pra dentro”. Mas se não havia carros, as casas tinham garagens, eu sei disso porque todos os meninos jogavam bola nas suas garagens, gol a gol, mas não podia dar “bicuda”. Dentro da minha casa, na rua das Camélias, tinha um tamborzinho que segurava a janela aberta, no quarto, que era no segundo andar. Na verdade, não lembro do tambor, mas lembro do meu dedo achatado pela janela quando esta caiu em cima dele. Alguém me disse que não era para tirar ele dali, mas será que alguém disse que não era para deixar o brinquedo ali, que a criança iria querer pegar? Não importa, o dedo sarou e a lembrança ficou.
Não passavam carros, não passavam tantos aviões, como hoje. Aliás, os aviões eu só via aos domingos, quando ainda era possível ir ao...
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RUA DAS CAMÉLIAS
Era ali que eu morava, são dali as primeiras lembranças da minha vida, as primeiras imagens registradas na minha memória. A subida íngreme e cansativa. A descida afoita e alegre. A casa na esquina, de calçada vermelha, de muro baixo. Os anos eram os 1970 e eu não tinha mais do que 7, os acinzentados anos militares, com televisão preto e branco, como branca e preta era a fumaça que subia do Joelma.
Lá embaixo havia um rio, hoje eu sei que é uma avenida. Algumas pessoas tinham que descer para pegar o ônibus, e eu as observava da janela tentando entender por que os braços também se movimentam se, na verdade, a gente caminha com as pernas. Eu e minha mãe tínhamos que subir para eu ir à escola, e meu pai, acho, voltava do trabalho descendo. O sobe e desce da rua das Camélias era calmo e podia ser pela rua ou pela calçada, sem problemas. Tinha feira ali por perto, eu sei disso porque havia senhoras carregando carrinhos, tinha padaria lá para cima, pois as pessoas desciam com sacolas de papel pardas com pão cheiroso.
Interessante, mas não havia carros, pelo menos eu não me lembro deles, mas sim das crianças riscando amarelinha no asfalto, sem medo e sem ninguém gritando “vem pra dentro”. Mas se não havia carros, as casas tinham garagens, eu sei disso porque todos os meninos jogavam bola nas suas garagens, gol a gol, mas não podia dar “bicuda”. Dentro da minha casa, na rua das Camélias, tinha um tamborzinho que segurava a janela aberta, no quarto, que era no segundo andar. Na verdade, não lembro do tambor, mas lembro do meu dedo achatado pela janela quando esta caiu em cima dele. Alguém me disse que não era para tirar ele dali, mas será que alguém disse que não era para deixar o brinquedo ali, que a criança iria querer pegar? Não importa, o dedo sarou e a lembrança ficou.
Não passavam carros, não passavam tantos aviões, como hoje. Aliás, os aviões eu só via aos domingos, quando ainda era possível ir ao aeroporto e assistir a pousos e decolagens sem ter um vidro na frente. Congonhas tinha aquele tabuleiro de xadrez no piso, e uma sacada para assistir os Varig, Vasp e Cruzeiro. E Congonhas era perto da Rua das Camélias, não havia trânsito no meio, tinha aquele obelisco grande do Ibirapuera, que eu sempre perguntava mas nunca entendia o que queria dizer: Memorial aos Heróis da Guerra. Estariam todos ali enterrados, empilhados uns nos outros por toda aquela altura?
Eu fui um privilegiado na Rua das Camélias, à noite sempre escutava meu pai ler sobre "Os Bichos", uma coleção de revista que ele comprava e lia para mim. Assim, além de pegar no sono tranquilamente, eu aprendia sobre tubarões, leopardos e cangurus. Fui um privilegiado porque tive ali duas mães, uma de verdade e outra a madrinha. Uma fazia papel de mãe mesmo, me forçava a comer sopa de espinafre, fazia eu vestir o casaco certo para os dias de frio. A madrinha era um luxo, quase criança como eu e meu irmão, brincava com a gente. Ia no banco de trás do carro fazendo cócegas nos dois. Foram elas que me contaram em detalhes o que tinha acontecido com o Eduardo – “olha os olhos do Eduardo” foi a frase que ficou. O menino tinha posto fogo na cortina de casa e se assustou tanto que arregalou os olhos de tal maneira que ficou famosa a frase.
Talvez ele seja o primeiro amigo do qual eu tenha lembrança, mas eu também lembro de outros: a Edna e o irmão dela, e o Godofredo... Quem era o Godofredo? Sempre lembrei do nome dele, mas nunca dele. Um personagem de alguma história infantil que minha mãe leu para mim?
Na Rua das Camélias tinha o número 659. Ali morava um cara legal, eu não sabia por que ele vinha na minha casa com o seu fusca. Depois de um tempo eu entendi, era por causa da minha madrinha, aprendi o significado de namorados. Ele era namorado da minha madrinha, isso podia ser ruim, sinal de perda. Mas não foi. Eles podiam namorar no sofá da minha casa, mas eu e meu irmão tínhamos que ficar junto. Que farra O meu irmão vinha e se deitava no colo deles, com aquele seu travesseirinho fedido que ele colocava dentro do nariz. E eu ficava aos pés deles, cavalinho, acho que foi dali que aprendi aquela musiquinha “uai, uai, quem tropeça sempre cai, tropecei no pé da mãe fui parar no pé do pai”. Eu não me lembro muito de colos, mas me lembro dos pés dos adultos.
Mas um dia eu e meu irmão não ficamos com eles na sala, enquanto eles namoravam. Talvez eles devessem ter achado bom, mas acho que deveriam ter achado ruim, pois eu e ele fomos lá fora, encher o carro do namorado dela, o fusca, com pedaços de tijolo. Eu lembro bem disso, algo me dizia que era errado, mas os tijolos estavam ali, o carro estava ali também, aberto, e era engraçado. Fizemos.
O namoro deu em casamento alguns anos depois, um casamento em cuja festa eu podia pedir um refrigerante diretamente ao garçom, que luxo. O namoro do meu pai e da minha mãe deu em um segundo irmão, cuja notícia para mim chegou através de um bilhetinho escrito por ela em um guardanapo do hospital para onde ela foi. O tempo passou, nós saímos dali. Parece até que a vida ficou mais colorida depois da Rua das Camélias, mas acho que é por causa da televisão que deixou de ser em preto e branco.
As Camélias passaram a ser memória, muito mais tempo ainda se passou, eu nunca mais voltei. Minha mãe e minha madrinha se foram, o meu pai e o namorado dela não. Aliás, o namorado dela ficou careca, mas continua legal. Os militares se foram, a democracia veio e São Paulo para mim agora é só de passagem, reunião de negócios e muita confusão, muito trânsito. Engraçado, muitas pessoas vivem na cidade grande e lembram de sua infância sossegada no campo, eu vivo em uma cidade pequena e lembro da minha infância tranquila na cidade de São Paulo.
Dia desses voltei nas Camélias. Cheguei a pé, subi ela inteirinha e desci, subi e desci outra vez, fazendo e refazendo um dos caminhos da minha infância. Dali liguei para o meu pai, maravilha do celular, inimaginável, talvez, mais de trinta anos atrás. Liguei também para o meu tio, sim, pois minha madrinha era também minha tia, então eu podia chamá-lo de tio também. Aliás, a esta conclusão eu cheguei sozinho no dia do casamento deles.
Sentei no meio fio, fiquei olhando a casa 659, não apareceram crianças, não passou nenhum fusca. Mas nesta minha visita à Rua das Camélias cheguei tarde. A minha casa não existe mais, no lugar dela uma bela casa branca, de dois andares também, mas situada na mesma esquina: Rua das Camélias com Rua Godofredo Rangel. Godofredo? Então é dali que você veio? Vivendo e aprendendo, mesmo depois dos 40 se pode aprender. A placa da Rua Godofredo ficava bem na frente da janela do meu quarto, aquela do tamborzinho, será que foi na Rua das Camélias que aprendi a ler?
(História enviada em janeiro de 2010)
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