IDENTIFICAÇÃO
Meu nome é Ronaldo Cevidanes Machado, nasci em Cachoeiro de Itapemirim, Espírito Santo.
FAMÍLIA
Meus pais são Manoel Nunes Machado e Emirene Cevidanes Machado. Por parte da mãe, meus avós são Generoso Cevidanes e Conceição Mendes, os dois da Espanha. Por parte do meu pai, minha avó era Catharina, do Norte da Itália e meu avô da cidade de Braga, em Portugal.
Os meus avós estão muito perdidos no tempo. Os meus avôs eram comerciantes, tanto um quanto o outro, um deles fazendeiro, mais fazendeiro que comerciante. Meu pai foi fazendeiro e teve negócios imobiliários no Rio de Janeiro. Por parte de mãe, eram comerciantes; foram comerciantes a vida toda. Não tenho irmãos, sou filho único.
INFÂNCIA NO ESPÍRITO SANTO
Eu morei até os nove anos no Espírito Santo e, a partir disso, viemos morar no Rio de Janeiro. A infância no Espírito Santo foi uma infância num Brasil diferente, com a tranqüilidade muito diferente da de hoje, onde o que você admirava não era os modelos novos do carro, eram os cavalos que andavam melhor ou pior, na cidade do interior.
Era uma casa onde eu nasci, onde o meu pai nasceu, na beira do rio. Então, desde cedo, eu tive um contato, ainda que doce, mas ali foram as minhas primeiras brincadeiras, foram na margem do Itapemirim, onde depois nasceu também Rubem Braga, grande colunista, Roberto Carlos, esse cantor que está aí até hoje e muitos outros que se distinguiram no mundo artístico, aqui no Rio de Janeiro.
Era uma época que tinha muita procissão, uma cidade típica do interior, onde o rádio começava, onde os fazendeiros comumente ligavam o rádio para ver a cotação do café, porque era com bateria. Esse era o mundo, o centro da atenção, a arroba da carne, então era uma cidade, naquela época, ainda muito ligada ao campo. Depois não, a indústria chegou lá e o comércio também. Mas, preponderante, na ocasião, era a cidade ligada àquilo que o campo produzia.
As brincadeiras favoritas...
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Meu nome é Ronaldo Cevidanes Machado, nasci em Cachoeiro de Itapemirim, Espírito Santo.
FAMÍLIA
Meus pais são Manoel Nunes Machado e Emirene Cevidanes Machado. Por parte da mãe, meus avós são Generoso Cevidanes e Conceição Mendes, os dois da Espanha. Por parte do meu pai, minha avó era Catharina, do Norte da Itália e meu avô da cidade de Braga, em Portugal.
Os meus avós estão muito perdidos no tempo. Os meus avôs eram comerciantes, tanto um quanto o outro, um deles fazendeiro, mais fazendeiro que comerciante. Meu pai foi fazendeiro e teve negócios imobiliários no Rio de Janeiro. Por parte de mãe, eram comerciantes; foram comerciantes a vida toda. Não tenho irmãos, sou filho único.
INFÂNCIA NO ESPÍRITO SANTO
Eu morei até os nove anos no Espírito Santo e, a partir disso, viemos morar no Rio de Janeiro. A infância no Espírito Santo foi uma infância num Brasil diferente, com a tranqüilidade muito diferente da de hoje, onde o que você admirava não era os modelos novos do carro, eram os cavalos que andavam melhor ou pior, na cidade do interior.
Era uma casa onde eu nasci, onde o meu pai nasceu, na beira do rio. Então, desde cedo, eu tive um contato, ainda que doce, mas ali foram as minhas primeiras brincadeiras, foram na margem do Itapemirim, onde depois nasceu também Rubem Braga, grande colunista, Roberto Carlos, esse cantor que está aí até hoje e muitos outros que se distinguiram no mundo artístico, aqui no Rio de Janeiro.
Era uma época que tinha muita procissão, uma cidade típica do interior, onde o rádio começava, onde os fazendeiros comumente ligavam o rádio para ver a cotação do café, porque era com bateria. Esse era o mundo, o centro da atenção, a arroba da carne, então era uma cidade, naquela época, ainda muito ligada ao campo. Depois não, a indústria chegou lá e o comércio também. Mas, preponderante, na ocasião, era a cidade ligada àquilo que o campo produzia.
As brincadeiras favoritas eram à beira do rio, a bola como sempre, também a gente brincava muito disso, correr atrás de passarinho, colher fruta silvestre. Era uma infância que hoje poucos têm, porque você tinha um outro “timing”, outro tipo de vida. E é interessante ter vivido essas duas experiências, porque hoje é muito difícil de encontrar essa realidade e ter uma experiência que vem de tão longe. Morei lá até os nove anos.
INFÂNCIA NO RIO DE JANEIRO
Aos nove anos, o meu pai já era dono de um “curtume” em Vitória, depois nós viemos para o Rio, para Copacabana. Nós morávamos ali na época em que ainda predominavam as casa na Avenida Copacabana. Algumas já como pensão, mas muito longe dos edifícios. Nós morávamos num dos primeiros edifícios construídos na Avenida Copacabana, onde passava bonde. Era o edifício na esquina, em frente ao Roxy, na esquina de Bolívar com Avenida Copacabana.
A infância era a praia. Eu estudava no Mendes e Souza, era um colégio muito bom, de renome. Eu lembro como uma coisa muito marcante que eu, vindo do interior - havia feito o terceiro primário lá –, pela primeira vez adentrei a uma turma onde havia aula de inglês, coisa que eu desconhecia totalmente. E marcou muito, a professora perguntava: What is your name? E eu não sabia e o grupo todo entendeu que eu vivia no outro mundo. Com aquilo, eu sentia um profundo desgaste no primeiro contato com o grupo, porque todos, evidentemente, sabiam coisa elementar, menos eu.
RELIGIÃO
Tive educação religiosa sim, em princípio, porque a família era católica, entre aspas. Meus avós eram kardecistas, e eles apanhavam os pobres e mendigos da cidade e levavam para casa e abrigavam suas filhas e filhos, portanto, meu pai também ia cuidar desses mendigos. Era mesmo um sincretismo religioso, pois nunca deixaram de ir à igreja também. Eu fui criado na Igreja Católica e permaneço até hoje.
MAÇONARIA
Meus avós também foram fundadores da Maçonaria, a família era muito ligada à Maçonaria. O único que não foi nem batizado na Maçonaria fui eu, meus primos todos tiveram lá qualquer cerimonial e até hoje eu desconheço. Meu pai também era Maçom e isso conflitava naquela época – estamos falando no Brasil da década de 30, portanto de Vargas, portanto de 1935, a revolução, entre aspas, comunista –, os Maçons eram muito acusados de comunistas, simplesmente porque a bandeira era vermelha também, a bandeira da Maçonaria era vermelha. Isso era um ônus terrível, havia a caça às bruxas naquela época e, então, eu freqüentava a Igreja sem nenhum trauma. E nunca fui obrigado pelo meu pai a ir para Maçonaria, foi uma coisa naturalmente espontânea a minha formação religiosa. Apesar de eu ter bons sinais da Maçonaria, eu nunca vi nenhum dos meus parentes fazer nada que não fosse no sentido de ajudar o grupo ou pessoas, mas, ainda assim, talvez por falta de um incentivo direto, eu não procurei a Maçonaria. Posteriormente, eu já fui muitas vezes convidado. A minha vida é de marinheiro, passei 40 anos praticamente no mar, e inviabilizava ter qualquer tipo de outra vivência. O tempo para a família já era tão restrito que, se eu ainda fosse pouco tempo em terra, dividir com qualquer uma organização, certamente receberia reclamações. Mas, posteriormente, alguns amigos convidaram: “Vamos, vamos.” Mas aí, com toda uma obrigatoriedade, freqüência e acompanhamento, eu fiz a opção de não entrar, não dá nem mais para fazer a carreira até chegar ao grau 33 lá dentro.
EDUCAÇÃO / FACULDADE DE DIREITO
A minha vocação sempre foi o mar, mas meus pais, talvez por ser filho único, ser de origem rural, fazendeiro, era muito comum que direcionassem seus filhos, sobretudo quando era um só, numa carreira liberal. E assim foi feito. Eu fui estudar Direito na época em que nós só tínhamos a Nacional e a Distrito Federal tornou-se faculdade. Em Niterói, também tinha uma, mas não era bem reconhecida. Eu fiz vestibular, passei cheguei a fazer dois anos. Nessa ocasião, por amizade do meu pai, eu fui trabalhar nuns dos institutos, que era o IAPETEC. Mas a minha vocação, como era latente a vida de marinheiro, eu decidi largar uma posição, porque já era fiscal lá dentro e já era direcionado para a área jurídica. Conversei com ele, nós tínhamos um excelente diálogo, eu disse que não era aquilo que eu queria. Então, quando eu passei para o terceiro ano, eu cancelei a matrícula e fui fazer o vestibular para ir para o mar.
JUVENTUDE
A diversão, na época, se alguém tivesse algum vício, é que beberia mais que fumava. Não havia essa fase de droga, era uma coisa mais tranqüilizante. Mas, por falta de referência, isso também preocupava os pais, alguém que bebesse. E se a moça bebesse ou se fumasse em público, isso era terrível. Nós fomos criados dentro dessa estrutura, nós tínhamos um grupo, eu morava em Copacabana. Meus amigos eram da escola, agora já então na faculdade, alguns jornalistas também. O Tinhorão, que se especializou depois em música brasileira, era um deles, e o Rubem Braga, mais velho, também. Nós freqüentávamos os bailes de fim de ano, ainda que fosse uma formatura de ginásio, era um momento importante. Era um grande momento, era no Fluminense. O baile no Fluminense era uma coisa muito séria. Eu praticava, fui nadador do Fluminense, também fui nadador do Flamengo, praticava iatismo no Iate Clube. Não tinha o barco, mas saía com alguém que tivesse, participava das regatas. Praticava alpinismo, há tanto tempo ainda não era montanhismo, você praticava alpinismo aqui no Brasil.
LAZER / ALPINISMO
O alpinismo era extremamente rudimentar, porque não tinha todos os equipamentos de segurança, apenas a disposição e saúde para virar lagartixa e subir nas pedras sem a segurança com que hoje você pratica. Subíamos na Pedra da Gávea, mas nós íamos para o interior, na área de Teresópolis, no Espírito Santo também. Tivemos até acidentes fatais com pessoas que nós subimos numa pedra, eles subiram na outra e combinamos a noite cada um acender sua fogueira. Não tinha cabana, não tinha nada, se cobria como podia. Comumente, ainda que ninguém bebesse, levava uma garrafa de bebida para esquentar, porque, às vezes, o frio era grande, aí você bebia para suportar a noite lá em cima. Era muito rudimentar, era indispensável muita disposição para fazer isso. Eu fiz durante bastante tempo, talvez até os 20 anos ou um pouco mais até.
Muitas pessoas que gostavam de ir a festinhas não tinham disposição de subir. Eu cheguei a subir o Pão de Açúcar por um dos lados mais apavorantes, eu não estou bem lembrando qual era, uma chaminé daquelas. Outros gostavam de barco, eu gostava muito, participava de regata, o meu barco predileto era a classe Star, que era os veleiros oceânicos, ainda sem conforto nenhum, mas dá uma segurança muito grande, nós praticávamos o esporte nele. Então, os grupos eram diferentes.
Saía às vezes com um, com outros, e o pessoal da vela era diferente do pessoal da montanha ou dos Alpes, vamos lembrar da época. Como também a turminha; hoje se chama “agito”, nem sempre a turma tinha disposição para praticar qualquer tipo de esporte. Eu circulava por tudo isso, procurava uma interação de tudo isso.
JUVENTUDE / ROMANCES
As paqueras eram alguma coisa muito difícil, não existiam as facilidades de hoje, absolutamente não existia. Era uma coisa fantástica, como o meu pai pagava o apartamento em Copacabana para mim, como fazendeiro que ele era, eu era muito conceituado no grupo. E, às vezes, a minha briga é que eu tinha que lembrar que a última seção de cinema era às 10 horas da noite e que à meia-noite eu tinha que ocupar a minha casa. Então, por aí, vocês concluam o resto. Sobre outro aspecto também, é muito interessante ver que, quando a moral, ainda que entre aspas, era mais restrita, as doenças que poderiam surgir dessa época, nenhuma delas tinha as conseqüências do que veio surgir a partir da liberação da década de 60. Então, foi liberado por um lado, mas levantaram uma ameaça sobre outro. Mesma coisa: a poliomielite foi vencida e hoje você vê muito mais gente em cadeira de rodas, a civilização trouxe outro doente que é resultado de bala e acidentes. Então, uma coisa é essa visão que você tem ao lembrar de épocas, o que era, era muito difícil. Era tão difícil que, em certos aspectos, ou era cadeia, ou casamento.
O meu primeiro namoro, eu talvez tivesse sido prematuro, porque ainda estava no maternal – não usava esse nome –, já tinha uma namoradinha, então a história é muito longa.
Uma das histórias que a vida marinheira traz é um certo carimbo de que o marinheiro é muito namorador. Essas coisas não são verdadeiras, pelo contrário, o marinheiro, mesmo quando ele não percebe, ele tem uma certa carência de uma estabilidade, de um local com uma família constituída. Então, ele está sempre indo para manter essa família e voltando para essa família. Além do mais, com o passar do tempo, o exercício da função marinheira passou a requerer cada vez mais um desenvolvimento muito grande em certas ciências específicas, ou seja, passou a ser exigente em tudo que você faz. Então, é um pouco história aquilo de “um amor em cada porto”, primeiro, os navios hoje ficam muito pouco no porto, eles operam de uma maneira muito rápida. Muitos nem baixam em terra, você não tem nem tempo de se preocupar com isso, nunca é uma preocupação com esse aspecto da vida.
POLÍTICA
Os meus pais, como fiz referência, gostariam que eu tivesse sido um doutor, não sei, qualquer ramo da carreira liberal, e daí eu ter passado pela faculdade de Direito. Nessa época, eu nunca fui filiado a nenhum partido; salvo na década de 40, quando eu fazia faculdade e me filiei, como já era esperado, ao Partido Socialista Brasileiro, por livre e espontânea vontade, porque eu achava, continuo achando, sempre oportuno, qualquer coisa que procure uma igualdade na distribuição da riqueza. Havia uma proposta, na época o Partido Socialista era muito romantizado e o Presidente era o João Mangabeira, que posteriormente veio a ser Presidente da Petrobras, e casou com uma moça de Cachoeiro, que eu conhecia. Então, nesse momento, eu me lembro que até a marca era alguém segurando uma bandeira vermelha, em cima do mundo. Essa era a marca do Partido Socialista Brasileiro. Mas nunca, a não ser na vida acadêmica. Eu sempre me filiava ao grupo desse lado, mas dentro de uma faculdade de Direito era muito difícil que não existisse esse aspecto. Todos os alunos de Direito, Filosofia talvez, Letras, eram muito voltados para essa área mais centro-esquerda do que centro-direita.
MARINHA MERCANTE
Isso foi tão firme, que eu decidi e apenas comuniquei ao meu pai a decisão. Repara que eu sou de uma época paternalista, comuniquei ao meu pai, não foi a minha mãe, porque nessa época o pai era realmente a figura maior de uma família. Eu sempre quis ir para o mar, mas nessa época eu tinha dois desafios: ou ia para a chamada Marinha de Guerra – hoje não existe mais esse termo, é Marinha do Brasil – ou para a Marinha Mercante. Eu, talvez pela minha passagem pela universidade, achava que a Marinha de Guerra ia tolher alguma coisa que eu buscava no mar, que era a sensação de liberdade, de grandes horizontes. E, posteriormente, acabou a Marinha Mercante sendo também militarizada. Mas foi uma opção consciente que eu fiz para a Marinha Mercante e, desde o primeiro momento, para embarcar em navios da primeira geração da Fronape. A própria Marinha Mercante era formada pela Marinha de Guerra, como até hoje é. Só que, hoje, o Oficial da Marinha Mercante sai Oficial da Marinha de Guerra também. Tem o Fuzileiro Naval, tem o Intendente, tem o da Armada e tem o da Marinha Mercante. Sendo que o da Marinha Mercante recebe o posto de Tenente e mais um título: Bacharel em Ciências Náuticas.
FRONAPE
Saí com a Fronape, com os seus primeiro navios incorporados. Eu sou da turma de 1953 e eu já embarquei em 1954, em viagem e adestramento, porque aí você faz viagem e adestramento ligado só à Marinha. Então, eu era Marinha, como até hoje os meninos embarcam, quando concluem o curso, em viagem e instrução. Ao término, eu já fiquei na Fronape, que não era a melhor opção na ocasião.
Foi uma opção minha. Na época, havia uma carência muito grande de Oficiais por várias razões, pela dificuldade no exercício da função, que requer uma série de características muito especiais e, na ocasião, eu fui convidado para ir para o Lloyd. O Lloyd era o dono das linhas do norte da Europa, do Mediterrâneo, do Japão e dos dois oceanos americanos, incluindo Canadá. Então, todos queriam ir para lá e eu fui convidado para ir. Mas eu fiz a opção por uma empresa que ninguém sabia ainda o que era, era a Fronape. A Petrobras estava sendo constituída naquela época, porque a Fronape precedeu a própria Petrobras. O órgão mais antigo da Petrobras é a Fronape. Depois, quando foi criada a Petrobras, os ativos da Fronape foram incorporados a Petrobras.
CRIAÇÃO DA FRONAPE
Ela começou subordinada ao Presidente da República, porque foi uma decisão estratégica, ela foi criada em decorrência da Segunda Guerra Mundial. Eu já era rapaz, morava no Rio e, portanto, lembro de um país desabastecido, porque nós não tínhamos petroleiros e os petroleiros na guerra, todos estrangeiros, foram desviados para as suas pátrias de origem ou para o “front” de combate. Ainda bem que naquela época o consumo era mínimo, nós não tínhamos refinaria, não tínhamos duto, não tínhamos terminais, não tínhamos navio. Então, após a guerra, surgiu a grande possibilidade da Terceira Guerra Mundial no mesmo século, que seria contra a Rússia. E o Dutra, dentro do plano Salte - Saúde, Alimentação, Transporte e Educação, inseriu a necessidade urgentíssima de uma frota de petroleiros, que garantisse o abastecimento nacional. Por isso, nós compramos, encomendamos os navios petroleiros em quatro países e em vários estaleiros desses países, para que o recebimento fosse o mais urgente possível, para que nós, pelo menos, pudéssemos mandar esses navios para as fontes de produção para trazer o petróleo já indispensável ao Brasil. Nós não tínhamos produção. E daí, então, surgiu a Fronape.
FRONAPE / FROTA INICIAL
São todos navios petroleiros, todos petroleiros. Na Suécia, na Holanda, o meu era holandês, na Suécia, Holanda, Inglaterra e Japão. O Japão, por pressão americana, eles pressionam já há muitos anos, porque eles queriam reerguer a indústria japonesa, recentemente destruída, para servir como baluarte avançado contra o comunismo naquele país, no extremo oriente. Então, nós compramos 10 navios lá, pequenos, os menores, os mais rudimentares, eram o que eles faziam nessa época, e nós recebemos esses 10 navios com entregas assim, diferença de um dia.
Eu fui Superintendente-Geral da Fronape posteriormente. Eu digo que o maior desafio não foi meu e de ninguém, foi do primeiro administrador. Na época, o título de Superintendente-Geral, que hoje é Gerente-Geral, era de Administrador. O maior desafio foi do primeiro administrador por várias razões: primeiro, era um Coronel de Cavalaria que chegou a General. Mas foi muito bom. Segundo, ele criou uma Empresa de Navegação que não era a profissão dele, sem ninguém que conhecesse o mercado de transporte do petróleo, salvo algo que nós chamávamos almotolias, pequenos petroleiros do Lloyd. Pequeno, tão pequeno, hoje seria só para lubrificar alguma coisa. Um deles foi torpedeado e os outros eram navios muito velhos, no início da guerra, que já não tinham nem condições. O outro foi perdido, encalhou no Estreito de Magalhães. A dificuldade no Brasil foi tremenda, foi uma época em que criaram gasogênio, os carros andavam com carvão, com uma refinaria amarrada nas costas de cada um.
CRIAÇÃO DA PETROBRAS
Nesse momento antes da Petrobras, eu participei, ainda como estudante de Direito, do comício “O Petróleo é nosso”. A Petrobras ficou devedora muito grande das Forças Armadas, sobretudo do Exército. Foi uma bandeira do Exército com o pessoal de esquerda, mas o Exército dava aquele tom nacionalista que nós precisávamos à independência energética através do petróleo. Nós não tínhamos essa visão dentro do transporte marítimo, era um lado. E ninguém tinha, porque nós não tínhamos refinaria, não tínhamos nada.
MILITARES NA PETROBRAS
Participei do “Petróleo é nosso”. Um Deputado Estadual, Wilson Leite Passos, que sempre foi da extrema-direita – estudamos juntos –, participava também. E o Centro Acadêmico participou da criação da Petrobras. Talvez por isso, quando me deram oportunidade de embarcar, eu fiz uma escolha consciente pela Fronape e não pelo Lloyd Brasileiro, que era o melhor da época. Foi por aí.
Então, durante muitos anos, desse início militar, muito antes da revolução de 1964, nós tínhamos, preponderantemente, presidentes militares na Petrobras. E, na área da Fronape, havia também um cordão umbilical muito grande com a Marinha e os Superintendentes todos eram Almirantes ou Comandantes. Eu fui o primeiro que fez toda a carreira no mar, da Fronape, a assumir essa função de Superintendente-Geral, porque havia sempre os de fora, sem ser militar, sem estar ligado às Forças Armadas. Então, no nosso caso, por todas as razões, é indispensável um excelente relacionamento, porque é a Marinha que diz se o navio pode sair do porto ou não, é a Marinha que prepara toda a mão-de-obra de qualquer atividade marítima, é a Marinha que faz todos os inquéritos de poluição, de acidentes e fatos da navegação. Então, é fundamental o Tribunal Marítimo, as minhas falhas eu respondo num tribunal específico como homem do mar. O Tribunal Marítimo é presidido por um Almirante e tem como juízes Comandantes, como eu, e Comandantes da Marinha também. Lembro que um Presidente da Transpetro, quando assumiu, eu perguntei: “Já comunicou à Marinha?” Ele falou: “Ué, por que eu tenho que comunicar à Marinha?” Eu falei: “Por isso” É importantíssimo um bom relacionamento com a Marinha. E é “uma mão de duas vias”, ora a gente colabora, ora eles ajudam muito também.
PRIMEIRO TRABALHO
Como estudante de Direito, eu trabalhei no Instituto como fiscal. E eu abri mão dessa função, em que eu ganhava muito mais do que viria a ganhar quando terminasse o meu curso. Foi uma opção mesmo. Eu larguei um emprego, causou espanto em todo mundo. Porque, na época, ainda mais pela idade que eu tinha, 22 anos, o que eu ganhava era bom. Falei: “Não, prefiro seguir a carreira do mar”, onde ganhava menos. Meu pai falou: “Eu espero que essa seja sua opção.” Eu falei: “Não, a primeira não foi minha, essa é a minha opção.” E ele falou: “Eu espero que seja a última opção.” Eu falei: “Não, essa é a minha primeira opção, a outra foi do Senhor.”
O INÍCIO DA FRONAPE
O início na Fronape foi extremamente prazeroso, mas, ao mesmo tempo, desafiador. Não havia uma uniformidade a bordo, porque não existia uma empresa consolidada, foi uma empresa que cresceu muito naquela época. Para ter uma idéia: naquela ocasião, nós tínhamos 842 marítimos para tripular 22 navios, para transportar um total de 220 mil toneladas de petróleo. Posteriormente, eu recebi o primeiro desses navios, V.L.C.C., que é Very Large Cargo Carrier. Eram navios de 280 mil toneladas, com 24 tripulantes. Era preciso a racionalização do transporte, em termos de utilização de mão-de-obra. Eram navios maiores, com muito menos gente. Foi um fenômeno, não um fenômeno isolado, que ocorreu em toda a indústria, onde a tecnologia foi substituindo o homem. Então, nessa época, nós tínhamos um navio de 22 mil, que era o maior navio da América Latina, o Goiânia, e eram mais 52 homens para tripular um navio desses. Os equipamentos que nós manuseávamos eram equipamentos totalmente pesados, diferentes dos de hoje.
Hoje, um navio de 280 é tripulado por 19 homens. Então, essa que é a diferença, em todos os custos. E nós tivemos que caminhar para isso, inclusive por um problema de competitividade e embarque de tecnologia, sem a tecnologia embarcada isso não se daria. Isso foi perseguido através dos países mais desenvolvidos, especialmente na Alemanha, no Japão, sempre com a universidade junta estudando, a Empresa, os sindicatos. O Japão chegou a criar navios com nove homens, mas que não se mostraram, porque não havia condição de você vivenciar num isolamento tão grande. Quando o navio chegava no porto, embarcava mão-de-obra para amarrar o navio e isso então foi abandonado. Hoje um navio com 18, 19 tripulantes é a realidade.
COMANDOS E NAVIOS
Eu sempre fui um profissional de longo curso. Na realidade, em 40 anos, eu tive apenas cinco anos como Comandante na cabotagem. Você fazia curso, primeiro, para Capitão de Cabotagem, mas eu fui promovido para o quadro de Comandante com a carta de Primeiro Navegador. A Petrobras, na ocasião, deu essa condição e eu passei para o quadro. Também era um navio de gás, Petrobras Leste, conhecido na nossa gíria como “Jesus está chamando”, porque era navio de gás, tinha muitos vazamentos, teve algumas explosões antes. Eu comandei esse navio. Todos que começavam, começavam por ele, era um teste de ferro, “ou vai dar certo, ou não vai dar.” Ou vai, ou racha. Posteriormente, comandei um segundo navio na costa, dali eu fui tirado para pegar o segundo navio petroleiro construído no Brasil, que foi o Buracica, navio de 10 mil. Dali eu já passei para um navio de longo curso, como Capitão de Longo Curso, porque eu havia feito curso. Então, em 40 anos, eu tive cinco anos de costa e toda a minha vida foi no longo curso. E, no primeiro, eu saí direto para o Golfo Pérsico e voltei ao Brasil um ano e meio depois.
PRIMEIRA VIAGEM COMO OFICIAL
Eu embarquei, antes, como aluno da Escola, essa a gente não conta. Como Oficial, já como funcionário da Petrobras, foi em abril de 1955. Então, nós saímos para o Golfo Pérsico. Naquela época, nós já começávamos a ter a Refinaria de Mataripe, Cubatão estava iniciando a produção, e nós não tínhamos utilização no Brasil para os petroleiros. Então, nós ficávamos afretados lá fora, a Petrobras fretava os seus navios. Eu lembro que logo nós carregamos lá, fomos para o mar da Europa por Suez, depois voltávamos, nunca sabíamos aonde íamos, carregávamos para a Índia, descia até Sri Lanka, depois voltávamos, carregávamos para a Costa Oriental da África, voltávamos, Austrália, os navios ficavam assim, sem retorno. Nessa viagem, nós ficamos um ano e meio, até recebermos uma ordem de carregar na Venezuela. Aquilo foi uma alegria, a Venezuela é Brasil Recebemos ordem para ir descarregar na Argentina. Passamos bem em frente ao Rio. Chegamos lá, recebemos ordem “camp out order”; porque ainda não tinha o destino, mandavam despachar para poder sair do porto, tinha que ter um destino, então navegávamos para “camp out order”. E recebemos nova ordem para ir para o Golfo Pérsico. Nessa época, as férias eram de 20 dias e você desembarcava em algum lugar, você realmente só podia entrar de férias no terceiro dia, porque tinha os exames médicos, os cálculos eram todos feitos à mão. Então, quando você ficava liberado, você tinha uns 16, 17 dias de férias e já a ameaça de ter a data de apresentação, porque senão criava problema. Era tudo uma discriminação muito grande. Foram coisas fascinantes. Me realizei logo na primeira viagem, pelo ambiente de bordo, havia uma fraternidade muito grande entre o grupo, porque, a bordo do navio, você é um grupo isolado.
AUTORIDADE A BORDO
A bordo não existe autoridade que não seja a do próprio Comandante. Por isso, a bordo, o Comandante representa os interesses do Estado, ele é o juiz, ele é a polícia. Então, é ele que tem que fazer cumprir as ordens-leis do país, fazer cumprir as leis do país onde você esteja. No cerimonial, quando você adentra um porto e iça na verga de boreste, que é de honra, a bandeira do país onde você está, o Comandante está dizendo “reconheço e acato as leis do país”. Então, além das suas leis, você tem que saber também aquilo. Isso foi um grande handicap para o grupo do mar, quando o mundo começou a vivenciar o problema do meio ambiente.
MEIO AMBIENTE
Aqui no Brasil, você baldeava, jogava óleo na Baía de Guanabara e ninguém dizia rigorosamente nada. Em Angra dos Reis, a lancha da Marinha passava, dava adeus e você estava limpando o tanque para docar, fundeado lá dentro daquele santuário. A mesma coisa em São Sebastião. Nós começamos a ser cobrados lá fora. Então, nós nos adequamos a toda uma outra visão mundial, a respeito disso, quando a Petrobras ainda não tinha esse problema e ninguém tinha esse problema no Brasil. Se você não se adequasse, você era penalizado. E já por influência do americano, do inglês e francês, nessa época, no Golfo Pérsico – os árabes detestam que seja chamado assim. Todos os países do Golfo Pérsico, na realidade, são árabes e só a Pérsia que domina o lado de lá e que não é árabe, mulçumanos sim, mas não são árabes, e eles se sentem menosprezados. Então, lá você precisa ter Arabian Golf, você não pode falar Persian Golf quando você está nos países árabes. Eles passaram a cobrar muito isso na Arabian Oil, que explorava o óleo na Arábia Saudita. Enfim, você recebia esses impactos lá e, nos países da Europa, você recebia a visita da Coast Guard para avisar do perigo. Começamos a ter que desenvolver todos os mecanismos, sem nenhuma instrução do Brasil de não poluir, porque as regras eram muito drásticas, ainda são. Então, você se adequou muito. Isso fez com que, na minha época, em que eu era Superintendente, nós conseguíssemos certos reconhecimentos internacionais e dentro da Petrobras também, extraordinários. Nós nos antecipávamos às necessidades de cumprimento de ordem, porque nós já tínhamos todo o embasamento nessa linha, fruto dessa experiência internacional nossa.
HISTÓRIAS /CAUSOS / LEMBRANÇAS / FESTAS EM MOÇAMBIQUE
Então, só para contar essa primeira viagem, eu fiz logo uma viagem extraordinária, porque nós tivemos que arribar numa ilhazinha chamada Moçambique, para onde haviam sido desterrados os inconfidentes mineiros. E pouco problema. O navio entrou, foram fantásticos, já tínhamos 600 brancos portugueses e oito mil nativos nessa ilha. A ilha chamava-se Moçambique. Na época, nós entramos para deixar o Comandante, que teve um ataque cardíaco. Foram nove dias de festa. Os portugueses nos ofereciam festas e nós retribuímos a bordo, à noite. E lá nós descobrimos que, quando eles foram incumbidos de receber – o próprio Governador nos contou – uma comissão brasileira para trazer para o Brasil os inconfidentes mineiros, eles não sabiam onde estavam os inconfidentes. Porque, naquela época, ainda não existia cemitério. O desterrado tinha o mesmo tratamento de um nativo. Lisboa avisou que ia um grupo lá para fazer o cerimonial, um cruzador brasileiro, coisas desse tipo. Aí eles cataram uns ossos, montaram os ossos, que nós reverenciamos aqui. E isso, obviamente, não é discutido. Foram os inconfidentes que chegaram ao Brasil de volta.
A ilha era muito pequena, muito pequena. Eram festas constantes, de um lado e do outro, excursões pelo interior, visita ao Parque Nacional. Ficamos nove dias, o lugar é muito bonito. A ilha não tinha carro. Cada um de nós tinha um riquixá. Eu tinha um riquixá que me servia, conduzido por um nativo com plumagem. Para você ver como eu sou antigo, eles te davam o chicote, se achasse que ele estava devagar, você deveria dar uma chicotada. Nunca fiz isso, pelo contrário. Mesmo Portugal era muito diferente da África do Sul, o Apartheid em Portugal. Em Moçambique, não tinha essa denominação, mas mesmo assim eu e um outro Oficial almoçamos num restaurante onde todos os garçons eram nativos, de saia, e falando português com sotaque lisboeta. E eu lembro que nós começamos a conversar naturalmente com eles, porque o nosso Comandante era preto, nessa época. Então, parou o restaurante, parou. Todo mundo olhava aqueles dois brancos falando com os nativos. Eu falei: “Vamos arrasar com eles?” Aí, quando levantamos, nós botamos a mão no ombro e fomos com ele até a porta, convidamos para visitar o navio. O português no caixa parou e os portugueses diziam que tinham empregados tão bons que há seis meses não lhe davam uma bofetada. E eles eram muito bons perto do Apartheid.
HISTÓRIAS / CAUSOS / LEMBRANÇAS / ÁFRICA DO SUL
O nosso grande cuidado na África do Sul era impedir a entrada de nativos, porque eles ficavam impressionados que brancos tratassem eles como nós tratávamos. E eles viam que a bordo tinha mulato, tinha preto, tinha tudo.
Na África do Sul, em 1956, não havia televisão e nós recebemos um convite para ir jantar na casa do pessoal da rádio local. Eles selecionaram quem consideravam brancos. Foram seis: o imediato, eu, um do Paraná, éramos seis brancos. E lá as senhoras confessaram, depois de alguma bebida, que elas não entendiam como nós aceitávamos um Comandante preto, era uma reação física. Se um preto encostasse nela, ela tinha ânsias de vômito. Isso mostra como era a cabeça desse grupo. Então, tudo isso você vai enriquecendo, ora isso, ora em outro lugar, ora em pequenos lugares na Índia, onde você via colocar o homem na rua, para morrer na rua, a miséria era tão grande. Coisas assim da vida de marinheiro...
HISTÓRIAS / CAUSOS / LEMBRANÇAS / GOLFO PÉRSICO
Nós passávamos em Calcutá, Bombaim, Sri Lanka. O Sri Lanka é o antigo Ceilão. Então, aquilo tudo são marcos importantes da época da navegação. E é muito interessante você reencontrar o navegante português, no fundo do Golfo Pérsico, onde tem Ras Machado; Ras, em árabe, é ponta. Quer dizer, alguém batizou isso. Numa época em que você navegava, onde as cartas inglesas, dentro do Golfo Pérsico, tinham um aviso que estava visível: “Em caso de naufrágio, não sigam com as baleeiras para terra”, porque não havia auxílio, farol, o árabe destruía. Os árabes esperavam algum acidente de navegação para transformar o náufrago em escravo. Eles recomendavam que não fosse para a terra e ficasse na linha de navegação, para que os outros navios parassem e prestassem socorro. E isso não tem tanto tempo, foi na década de 50. As cartas de navegação tinham esse aviso. Então, quanta coisa mudou Tenho uma grande admiração pelos navegantes portugueses.
HISTÓRIAS / CAUSOS / LEMBRANÇAS / CHILE
Quando a Petrobras mandou abrir a linha para o Chile, na época do Salvador Allende e, aqui, era a época do João Goulart, ou antes, não lembro, eu sei que a Petrobras mandou que nós levássemos combustível para o Chile. Eu não sabia que, na passagem por Magalhães, era obrigatório o embarque do prático no último porto. Se você vem do Golfo Pérsico, você tem que apanhar o prático na África do Sul. Embarcam dois práticos que só vão interferir na travessia. E eu entrei sem prático, aí quando eu dei minha chegada em Quintero, eles gritaram: “Onde embarcou o prático?” Eu falei: “Não tem prático” O prático é o que vai conduzindo, são Comandantes da Marinha Mercante, Comandantes da Marinha de Guerra. Eles responderam: “Por favor, pare em Punta Arenas, que nós estamos mandando dois práticos para cumprir.” Em um acidente de navegação, numa situação dessa, o Comandante está totalmente desprotegido legalmente, porque há uma disponibilização de auxílio para garantir a segurança da navegação e esse Comandante não quis utilizar. Então, quando acontece, isso é um agravante e não um atenuante. Chegamos num Chile absolutamente diferente do Chile que passou a ser com o golpe, com todo terror, mas realmente o Chile cresceu muito nessa época da ditadura. E, posteriormente, eu visitei o Chile oficialmente, como aluno da Escola Superior de Guerra. Tive prazer? Não Mas fui cumprimentado duas vezes pelo próprio Pinochet, que nos esperava no hotel. Foi na época da guerra entre Beagle, não chegou a ter, parecia que ia ser uma guerra por causa do Canal de Beagle entre a Argentina e ele. Quando uma escola, na época conhecida como a Sorbonne brasileira – preparava as lideranças para Presidência da República –, visitava, ele fez questão de nos receber e depois também nos ofereceu um almoço numa casa. O Allende, coitado, se nós não chegássemos, estava tudo parado lá com o combustível. No outro país, você via um carro parado por falta de combustível na rua, não havia combustível, o americano apertou. E isso, economicamente, ajudou a derrubar o Allende. São todas essas vivências que eu considero enriquecedoras e a vida marinheira também.
BIBLIOTECAS EM NAVIOS
Eu fui um disseminador de livros em todos os navios que andei. E eu tinha o prazer, era aberto, ninguém precisava assinar nada para tirar livro, eu tinha o prazer. Tínhamos uma biblioteca a bordo. Eu criava a biblioteca, oficializava na Petrobras e requeria ao Instituto Nacional do Livro, então eles cediam livros para a biblioteca. Segundo, eu era um doador forte. Terceiro, todos os alunos da escola para embarcar, ou passageiros que eu levasse, tinham a obrigação de trazer dois livros para a biblioteca. Cd, vídeo, fita cassete de música, na época não tinha essas coisas, depois foi esmerando. Então, por onde passava, eu deixava uma biblioteca montada. Depois, a própria administração em terra, sabendo disso, passou a fornecer também, genericamente, as bibliotecas para todos os navios. Por quê? Porque o livro, numa época em que você tinha muita dificuldade para captar, o broadcast brasileiro era voltado para informar o interior, Brasil imenso, e não para quem sai. Então, no segundo dia, você não pegava mais o canal, era uma dificuldade ouvir uma rádio brasileira. Quando alguém captava um anúncio, aqueles maníacos que ficavam de madrugava, aquilo era uma novidade grande a bordo. O livro era uma fuga àquele, entre aspas, presídio em que você estava, aquele isolamento. Se você lia o Rubem Braga, que já era um crônico, se você adentrava os livros do Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, então você fugia da sua rotina e vivenciava aquela realidade que estava lendo. Predominava sempre a literatura brasileira, mas nós tínhamos outros livros também. A última biblioteca, sobretudo, é fácil entender como ela cresceu, pois eu comandei esse navio durante 20 anos.
NAVIO JOSÉ BONIFÁCIO
Foram 20 anos no mesmo navio, o José Bonifácio. Foi um momento importante porque ele havia sido encomendado pela Docenave, que era da Vale do Rio Doce, para ser entregue à bandeira estrangeira, tripulado por dinamarquês. Um dia, eu fui chamado pelo Superintendente da Fronape, que queria ter uma reunião comigo. Eu achava viável nós tripularmos um navio de mais de 200 mil. É um navio que, de comprimento, corresponde a um prédio de 113 andares. Embaixo d’água, tem mais que um prédio de sete andares. E a boca, a largura, tem mais que um prédio de 22 andares. Eu falei: “Sim, desde que me forneçam os cursos, porque eu não tenho.” Então, eles disseram que iam pleitear um dos dois navios de porte de 280 mil, que o casco estava sendo feito no Japão. Como, na ocasião, a Docenave transportava petróleo para nós, esses navios eram Ore-Oils, transportavam minério e transportavam petróleo. Então, a Docenave não concordou em conceder um deles para nós, a Vale do Rio Doce foi contra, foi levado para o Ministro de Minas e Energia, que era o Dias Leite. Ele votou contra também, porque ele havia sido Presidente da Vale. Nessa ocasião, participei de reunião com o próprio General Geisel, ele falou: “Eu vou, vai by-passar todo mundo.” Palavras dele, eu ouvi ele falar isso. Ele já estava indicado para Presidência da República, ele foi direto ao Médici e falou: “Olha, eu tenho tripulação, bandeira – militar entende muito isso – para a Petrobras.” E, no fundo, também eles ajudaram a criar. O Geisel era um Petrobras fanático, tanto que a filha dele foi madrinha do meu navio. Ele contava que, quando já era Presidente da República, ela falava: “Papai, o Senhor não é mais Presidente da Petrobras, esquece a Petrobras.”
Em 1976, o Presidente da República foi receber, no dia da Marinha, a Comenda sobre Mérito Naval. O Faria Lima veio e falou assim: “O Presidente quer falar com – na Marinha me chamam de Cevidanes – o Comandante. Ô, Cevidanes” Daí eu saí de onde eu estava na formatura e fui lá. Fiquei impressionado que ele tinha os números do navio, porque ele acompanhou, e os resultados foram infinitamente superiores ao outro navio, Sister Ship, com tripulação dinamarquesa. Ele me cumprimentou pelos resultados e certamente só estava recebendo aquela Comenda em conseqüência já desses dois anos e pouco comandando esse navio, com resultados.
TRAJETÓRIA PROFISSIONAL
Eu era o Terceiro Oficial de Náutica, depois fui promovido a Segundo Oficial de Náutica, aí eu tinha que desembarcar. Isso era uma promoção interna por tempo de atividade. Eu tive que desembarcar para fazer um curso de um ano na Marinha, para ser o Primeiro Oficial de Náutica, portanto, chefe da navegação. Como tal, eu já poderia também exercer a função de Imediato, com licença, porque Imediato já era Capitão também. Aí eu fui logo direto para Imediato e, ainda com essa carta de encarregado de navegação, internamente, a Petrobras me promoveu. Tinha sempre que justificar para a Marinha, a Marinha concordava e eu fui para o quadro de Comandantes. Eu entrei para o quadro de Comandantes em 1964, foi de maneira rápida que eu cheguei à função de comando. E, desde então, eu fiquei 20 anos como Comandante só num navio, num total de 30 anos como Comandante no mar. Eu até brincava, por várias vezes o Superintendente me convidava para funções em terra, em nível gerencial, e eu disse: “Ah, eu só venho para terra para mandar muito, para mandar pouco, não. Porque eu estou acostumado a mandar muito.” O inglês diz assim: “Master under God”
EDUCAÇÃO / ESPECIALIZAÇÃO
Nesse período em terra, eu saía para fazer cursos. Fiz um curso na Escola Superior de Guerra. Já era aposentado desde 1980, mas não aconteceu nada, permaneci direto, já com duas linhas n’água, recebia como aposentado também. Linhas n’água significa pescando Em 1993, fui fazer o curso maior da Marinha, que é para os Oficiais que vão chegar ao Almirantado, antigamente chamado Curso Superior da Escola de Guerra Naval. Mas depois mudaram para Curso de Política e Estratégia Marítima, porque lá dentro você estuda o poder marítimo. O poder marítimo, dentro dele, está a Marinha do Brasil, que é conseqüência do tamanho da Marinha Mercante, da Construção Naval e todas as áreas afins. Então, você estuda lá dentro até com exaustão. Eu havia feito outro curso de Assessoria da Presidência da República, fiz esse curso e, quando voltei, fui convidado para representar a nossa Empresa no Mercosul. Mas houve uma mudança, o Fernando Henrique assumiu e eu fui, então, convidado para a Superintendência Geral da Fronape e lá fiquei até que a política passou a ser uma presença forte na nossa organização. Então, eu deixei a Superintendência para chefiar o Gabinete do Presidente da Transpetro, porque a Fronape foi transferida para a Transpetro, que é uma subsidiária 100% Petrobras.
TRANSPETRO
Eu não acredito nessa história de privatização da frota da Petrobras. Quem acredita nisso são pessoas que não fazem uma análise conjuntural. Todo petróleo passa primeiro por navio. Todo petróleo, quer dizer, mais de 60% do que sai da refinaria, que passou por navio para chegar lá, volta para navio para distribuição. Então, na verticalidade da Petrobras, o comando de uma frota de petroleiros é fundamental, por várias razões: primeiro, pela segurança de que ela tenha um transporte próprio. Só isso faz com que aumente o nível de frete para o Cone Sul. No caso nosso, o petróleo regula esse frete. No dia em que você deixa de ter, o frete não é o que você pratica hoje, é o que eles desejarem. Então, precisa uma loucura muito grande para alguém cometer um erro que lese a Pátria desse tamanho.
Eu hoje sou contrário a muita coisa que ocorre. A Petrobras sempre foi uma “casa” técnica, eu comparo a Petrobras a um regime parlamentarista. E é fundamental que um país tenha um regime parlamentarista, porque ele tem uma estrutura funcional, um corpo de funcionários de tal nível técnico que, quando cai o Primeiro-Ministro, até que outro seja escolhido – quem vai compor o novo Gabinete, se esse gabinete vai ser aprovado ou não –, o país não pára. E, para isso, tem o corpo técnico sustentando e tocando as políticas de Governo. A Petrobras sempre funcionou: entrava um General, chegava um Almirante, chegava um banqueiro, chegava outro banqueiro e a casa não parava, enquanto não passasse o susto do tamanho da Petrobras. Todos Inclusive o Dutra disse que era muito maior do que ele imaginava. E ele foi Petrobras e é geólogo, quer dizer, ainda assim o tamanho da Petrobras espanta, suas implicações internacionais, em tudo. As mudanças eram de pessoas que traziam apenas a sua secretária e, às vezes, seus chefes de gabinete, em outra época. Hoje há uma presença muito grande de pessoas que não são do quadro, um grande número que não tem formação no quadro e isso assusta um pouco, não só o transporte marítimo, como a Empresa como um todo. Eu não concordo. São pessoas – a maioria que eu conheço – competentes, inclusive na alta administração. São tão competentes quanto os seus anteriores. Seus diretores, normalmente, vieram por indicação política, mas passaram pela Empresa e, portanto, são pessoas que conhecem a Empresa. Mas a governabilidade fez com que nós tivéssemos presença não só do pessoal do partido do governante, como daqueles que estão dando sustentabilidade. E nem sempre são as pessoas adequadas. Não vamos citar nomes, não seria pertinente. Mas isso aí é ponto de vista, eu fui quatro vezes Presidente do Centro dos Capitães.
CENTRO DE CAPITÃES DA MARINHA MERCANTE
Fui presidente do Centro dos Capitães da Marinha Mercante. Mas nunca deixei Como eu ficava quatro meses esperando o meu retorno, eu exercia por quatro meses, quando o navio chegava, eu voltava, o meu vice assumia. Então, todo mundo sindical eu vivenciei e a verdade é o seguinte: a política que hoje nós estamos assistindo, dos renascimentos das encomendas, é extremamente pertinente e extremamente necessária.
RENOVAÇÃO DA FROTA
Uma frota de navios ou a administração de um navio é uma luta contra o relógio, nós estamos falando de 25, 30 milhões de dólares. Se você investe isso numa fábrica, várias gerações vão viver daquela fábrica; eventualmente, será necessária uma adaptação de máquinas e equipamentos, mas vão viver, ela está cercada. Um petroleiro tem uma vida útil de 25 anos, sendo que, depois de alguns anos, o frete daquele navio já é de outro, que está sendo lançado. Então, economicamente, ele começa a sofrer uma deterioração no seu resultado muito antes do seu fim físico. Hoje, para resgatarmos o que a Fronape já foi, nós precisaríamos de 82 navios, num passe de mágica – o nosso Presidente da Transpetro sabe disso, o Presidente Dutra também sabe. Por quê? Nós estamos encomendando 42 agora, nós estamos transportando só 17% do maior cliente, que é a Petrobras, por falta de navio. E o resto é por afretamento. E é muito mais caro afretar. Muito mais, muito mais Então, o que acontece? Voltamos a 1996, eu era Superintendente da Fronape. Só que o aumento da produção aumentou muito e numa outra intensidade. Antes do “boom” da produção nacional, um navio nosso levava um milhão de barris em 60 dias para o Golfo Pérsico. Hoje, ninguém mais vai lá, raramente. Esse navio, em 60 dias, transporta 10 milhões de barris da Bacia de Campos. Então, repara como cresceu a demanda.
ESTALEIROS BRASILEIROS
Nós precisamos mesmo da construção – e isso não sou eu quem diz, todos os Presidentes da Transpetro, todos os Diretores antigos e atuais, sabem que isso é mandatório. Mas havia uma grande dificuldade que era o estado pré-falimentar ou até falimentar dos nossos estaleiros. Ficaram muitos anos sem encomenda, não havia encomenda. Por sua vez, eu recebi, como Superintendente, navios que haviam sido encomendados 10 anos antes, que até eram novos, mas não eram modernos, e pagando custos extraordinários. Havia um realinhamento de preços que nós pagávamos, porque já havíamos gastado tanto dinheiro, que era o terceiro estaleiro que entregava um navio para nós. Cheguei a receber navios de 98 milhões de dólares, que valeriam no máximo 28 milhões. Aquilo, para mim, como administrador, eram ônus. Quando eu recebi, era uma alegria, mas eu sabia que era um grande desafio, porque a depreciação dele ia jogar meus resultados muito para baixo. Havia política “navegar é preciso”, na época. As coisas começaram a se movimentar, primeiro, através de reparo. Foi fundamental o renascimento da indústria de reparação naval aqui, porque antigamente os navios só reparavam no estrangeiro e no estaleiro estrangeiro a lei, a licitação é fantástica como procedimento administrativo correto. Então, eles ganhavam, porque nós tínhamos carga de minério para lá, lá tínhamos carga de petróleo para retorno, aquilo tudo era computado, o prazo era muito menor. Aqui os estaleiros estavam desativados e o custo era muito alto. Isso inverteu, felizmente, hoje os estaleiros nacionais estão atendendo muito bem. E os estaleiros nacionais, quando fabricavam, eram navios tão bons quanto outros estrangeiros que eu comandei. Eu comandei navio nacional, foi meu terceiro comando.
Hoje, qual foi a equação arranjada? Os estaleiros não tinham dinheiro, tinha o BNDES, tinha que financiar os estaleiros. Para a Petrobras era fácil, tinha o financiamento Petrobras. Mas, ao invés da Petrobras ser responsável desde a encomenda do navio, o que é óbvio – quando você compra um carro, você compra já na revenda da fábrica –, o estaleiro passou a construir o navio e você ir lá e comprar a mercadoria pronta, ainda que eles construíssem sobre encomenda sua, com especificação sua, para fugir desse realinhamento de preço. Assim foi feito. Mas havia muito questionamento que os estaleiros não conseguiam comprovar a garantia do financiamento do BNDES.
O BNDES tinha uma visão nacionalista, mesmo com o último presidente, o Lessa, que tem uma visão nacionalista muito forte como pessoa ligada àquela nossa economista portuguesa, Maria da Conceição. Para a Petrobras, não tinha problema. Havia uma dificuldade muito grande, eu vi Presidente da Transpetro, seja o Almirante Arnaldo, que foi o primeiro, Doutor Mauro Ouro Fino, que foi o segundo, trabalhei com eles todos. Eu trabalhei na própria criação da Transpetro, fiz parte do grupo que ia constituir essa nova empresa, mas esbarrava nisso, ficava difícil o BNDES dar o dinheiro a um estaleiro que havia falido. Aí trouxeram associações com estaleiros estrangeiros, mas aquilo ainda não atendia a certos parâmetros que eles exigem. E hoje foi feita uma equação, eu faço consultoria para o Presidente, mas não estou mais no dia-a-dia da Empresa, vou lá todo dia, mas não estou lá com o dia-a-dia. Os estaleiros se associaram a grandes empreiteiros, como Odebrecht, Gutierrez e outros grandes empreiteiros nacionais. Como nunca fizeram a canoa, eles, por sua vez, foram apanhar lá fora o know-how e a participação de estaleiros estrangeiros: a Mitsubishi, outro “A”, outro “C” etc. Então, na realidade, para o navio ser construído aqui, tem o construtor, tem aquele que dá a garantia ao BNDES, que é o empreiteiro de estrada, de barragens, e o know-how de um estaleiro lá de fora. É uma rede.
CONSTRUÇÃO NO EXTERIOR
Seria mais barato construir no exterior, mas você teria que falar em dólar, emprego, no momento em que há uma política de renascimento da indústria nacional. Lembra que, na própria campanha do PT, o Presidente Lula ia fazer gravação com plataforma e navio na Verolme? O que eu entendo é o seguinte: não sei se eu tomaria essa decisão, mas não vejo como alguma coisa tão ruim ou que não atenda às necessidades, para ficar mais brando, porque o próprio estaleiro rapidamente vai chegar no estágio de auto-suficiência econômica. Passa a garantir, amanhã, o resultado dessa montagem que agora foi feita. Já se abriu licitação para os 22 primeiros, mas a idéia á fazer mais 20, para quebrar essa inércia da indústria naval, que é importantíssima E nós temos muito escrúpulo. O americano e os outros países dizem assim: “Se o subsídio ou o incentivo – palavra menos marcante – traz um resultado maior do que o subsídio dado, o investimento é válido.” O subsídio é fundo perdido, não. Mas se aquilo que ele faz, traz um resultado maior do que aquilo que está sendo dado, então é moral. O outro tem outros aspectos que devem ser observados, portanto não pode dizer que seja moral, mas de nível de emprego, enfim, essas outras coisas que fazem a economia gerir também, correr, essa é a política atual. Eu acho que vai viabilizar no amanhã, para a próxima geração, que os estaleiros nacionais não precisem ir tão longe para poder construir navio para o Brasil, aí o processo foi saneador, porque não obrigou a Petrobras a se sujeitar a realinhamentos sucessivos, e o “know how” vem lá de fora.
RENOVAÇÃO DA FROTA
Compramos 42 navios. A primeira licitação saiu para 22, mas rapidamente vão sair os outros. O prazo é até 2010, com essa construção. Certamente, em 2010, nós estaremos precisando mais ainda. Há muito tempo a Transpetro e a Fronape não compravam navios. Eu, como Superintendente Geral, nunca tive a responsabilidade de pensar em construir navios. Eu recebi seis navios novos, mas não modernos, que haviam sido encomendados possivelmente, eu não posso precisar, ainda na década de 80. Foram as últimas levas de navios encomendados e recebidos na década de 90. A duração de um tempo estimado da vida de um navio é de 25 anos.
Porque ele sofre dois tipos de agressões: uma agressão que vem de fora para dentro, que é o próprio mar, não só a sua violência, como a sua corrosão, seu salitre, seus componentes, como pelo produto que ele transporta, que vai desgastando as chapas. Periodicamente, a cada dois anos, ele é docado, vai substituindo, mas chega a um ponto que fica muito mais caro você procurar mantê-lo em classe, como nós chamamos. E, nessa fase, chega a um ponto que você tem que fazer uma análise econômica, o gasto que você vai fazer, o que você vai acrescentar de vida útil e o rendimento de um navio velho. Sobretudo, isso é importantíssimo, é a obrigatoriedade que nós já estamos vivendo e vamos vivenciar definitivamente, de casco duplo. Então, qualquer navio petroleiro que se construa hoje tem que ter casco duplo por causa desses acidentes no mar da Europa, com “Erika” e outros navios, que agrediram a costa de países de primeiro mundo. O próprio fato da agressão daquele navio americano no Alaska causou a criação de regulamentos extremamente rígidos americanos, em cima de operação de navios petroleiros lá.
NAVIOS DE CASCO DUPLO
Têm muito poucos navios de casco duplo. Nós temos a quantidade mínima. A partir de agora, todos os navios serão necessariamente de casco duplo. É uma garantia adicional. No Brasil, isso não é uma exigência. Esses assuntos são discutidos na IMO, que é uma agência da ONU, onde nós temos um assento e um Capitão de longo curso lá assessorando. Comumente, é o antigo Ministro da Marinha, hoje Comandante da Marinha. Quando ele perde a função, normalmente ele vai para Londres, fica lá nessa função. Tem sido com o Almirante Mauro, com o último Comandante Geral da Marinha também, nós temos sempre um Comandante assessorando. Há uma luta em não antecipar essa exigência, que já está definida, por uma razão: haveria um “boom” de construção naval, haveria falta de navios para transporte de petróleo, haveria um “boom” no frete marítimo de petróleo. Já houve uma redução, alguma exigência, mas não com a violência que a França e outros países europeus desejavam, e o próprio Estados Unidos também. Então, por uma visão, ainda temos um espaço para funcionar trazendo navios de casco duplo. Em muitos países, se você não tem casco duplo, não é aceito. E se você tem casco duplo, como dono do navio, você vai receber uma remuneração muito superior àquele que não tem casco duplo.
COTIDIANO NO MAR
Alguém já disse que a função de comando é a função mais isolada do mundo. Eu trabalhei sempre com equipe. Nesse navio, eu tinha tripulação há 15, 17 anos comigo. Então, você cria laços hierárquicos, mas você cria também os laços de amizade. Você passa a conhecer os problemas mais íntimos da família de um e de outro. E tudo isso também ajuda muito. Eu costumo dizer, continuo dizendo, que o ideal é você não ter uma tripulação, nem uma guarnição, e sim uma “equipage”; essa palavra significa trabalho de equipe. Primeiro, você vive isolado. Segundo, você mora no seu trabalho. É como se você passasse uma existência sem sair dessa casa, sem televisão, sem o jornal diário. Então, você vive ali, sujeito ao balanço, você não tem médico a bordo, hoje nem todos os navios tem enfermeiro. Nós até brincamos que, por isso, o navio também é chamado como embarcação e não “embarca doente”, porque não pode...
Há toda uma visão de custo, quanto iria ganhar um médico. Em navio de passageiro tem, mas nós não. Navio de passageiro tem estabilizador de balanço, nós não, somos profissionais do mar.
Não temos estabilizador de balanço. Nós temos que dormir ao contrário do balanço, senão você cai do beliche. Os navios de passageiros pagam caro para ter isso
É muito caro. Ele reduz o balanço a movimentos de 5% a 10%, é imperceptível. Há dias em que a cozinha não pode funcionar, apesar de as panelas serem presas. E você não pode trazer a comida, você tem que se servir, porque senão o prato corre. O dia que a cozinha não pode funcionar, a gente faz sanduíche Uma coisa rápida.
Então, você é sujeito a balanço, você é sujeito a mau tempo, que pode afundar o seu navio. Hoje não, mas no passado você entrava no Golfo Pérsico e o sonho era sair de lá, porque não havia ar condicionado, era impossível dormir nos camarotes, comer nos salões. Os conveses eram de madeira, na parte de sub-estrutura, de bombordo era dos Oficiais, o de boreste era do Comandante, que é o lado de honra. Então, o Comandante dormia sozinho naquele chão. A ré era da tripulação, Sub-Oficial, no outro bordo. Mas a condensação era porque tinha um toldo, aí começava a pingar aquilo. Você só conseguia dormir, porque você encharcava rapidamente a madeira, nós fazíamos piscinas que nós mesmos construíamos, caía n’água, refrigerava, ia deitar, a água ali. Você ficava salgado, porque a água era racionada.
A água da piscina era salgada também, porque a outra água era extremamente racionada. Abria tambores - se você deixasse aberto, podiam gastar muito -, aí você apanhava a caneca, jogava, rapidamente lavava e aquilo era o banho e pronto. Comida era aquela que você tinha. Hoje não, mas naquela época embarcava latão de leite, que rapidamente deteriorava, depois passou a ser leite em pó, já foi um avanço tremendo.
COZINHA DO NAVIO
A comida não é que não fosse boa, a Fronape foi sempre muito cuidadosa nisso, mas é que, às vezes, você ficava tanto tempo fora, um ano e tanto, que você começava a não encontrar aquilo que o brasileiro estava esperando, você começava a embarcar outros tipos de gênero e tinha limite de capacidade. Às vezes, acabava mesmo. Cardápio sempre teve. É difícil eu falar porque tenho que raciocinar comigo, mas eu levava tão a sério esse lado que eu mesmo preparava o cardápio. Eu sabia o que minha cozinha fazia, sabia o que eu tinha, marcava quando eram dados, eram sempre três pratos, além do feijão, arroz, sopa sempre no jantar, sobremesa, você fazia pão também, então tinha muita alternativa de alimentação. Eu digo o seguinte: tratavam muito bem. As geladeiras comumente tinham coisas que você não mantém simultaneamente na sua geladeira. Eu lembro que, em uma ocasião, alguém reclamou. Eu fazia inquéritos, não precisava assinar, sobre os pratos que preferiam, para atender de acordo como o pessoal gostava.
Tinha vários tipos de frios, um peito de peru defumado, salaminho, mortadela. Procurava ter um determinado tipo de queijo, um queijo prato, quando você embarca usa logo o queijo de minas. Tem que gerenciar a fruta também, você tem que misturar isso, legumes etc. Então, um deles, em uma ocasião, fez referência que não estava encontrando na geladeira o que ele gostava. Tinha sorvete sempre, iogurte, aqueles doces que você compra, flan, mas no início eu sempre dizia: “Não.” “Ah, está acabando.” “Vai” Eles cansam. Primeiro, você satura, quando ele tem certeza que sempre vai encontrar aquilo, ele não tende a comer com sofreguidão e dá para todo mundo. Mas, no início, é muito forte. Aí eu fiz uma reunião com a tripulação; eu sempre fazia a cada 10 dias, reunia a tripulação toda, trazia novidades para eles, distribuía algum brinde, sorteio, e recebia deles também o diálogo. Eu disse que ninguém precisava se identificar, mas os tripulantes estavam se queixando da qualidade. Como o navio estava vindo para o Brasil, eu pedia licença que eles liberassem as suas geladeiras em casa, que eu ia mandar o Oficial responsável fazer uma visita cordial, só para abrir e ver o que eles têm na geladeira para subsidiar o que eu passaria a colocar na geladeira. Ninguém tinha coragem. Aí matou o assunto E ninguém reclamava. Um bobão lá que reclamou, um bom tripulante, por sinal, mas falou bobagem.
Mas eu fazia questão. Primeiro, eu gosto de passar bem, é o ponto. Então, a minha referência era eu próprio, mas eu respeitava, por exemplo, certos pratos que não gosto, por exemplo, mocotó. Eu não gosto de mocotó. Mas eu sei que o pessoal votava bem no mocotó e tinha que dar o mocotó para a turma. Jiló eu até gosto, eu como bem Então, eu atendia, aí botava tudo de massa, peixe, carne, salada, sobremesa. Eu tinha realmente um conhecimento grande do que a turma gostava e sobre esse aspecto eu sei que o pessoal viajava satisfeito. E, outra coisa, de manhã podia pedir bife, podia pedir ovo. Mas havia um acordo: eu havia embarcado para uma viagem, para um consumo, se acabasse, ninguém podia reclamar. Ninguém reclamava. Às vezes, chegava ao Brasil depois de quatro meses de viagem e já não tinha ovo; são coisas que eu não levava do Brasil para viagem redonda, completa. Eu embarcava no último porto japonês, porque no Golfo Pérsico não tem e, quando tem, é caríssimo. Comumente, você manda o ovo daqui para lá, a custo de dólar. Então, a parte da alimentação é uma parte muito importante.
COMPRAS PARA NAVIO
No Golfo Pérsico, não comprávamos nada de rancho. Era muito difícil Só mesmo por necessidade. Mas você tem obrigação até de embarcar na passagem em Singapura. Você faz um rendez-vous position com o fornecedor. Reduzia a máquina do navio, naquela hora o pau de carga já preparado, descia, pegava, um deles embarcava, o imediato conferia no próprio portaló, assinava, levava o meu carimbo, dava o carimbo para ele poder receber. Aí então você renovava, vamos dizer, o rancho fresco. Daqui para o Japão eram 30 e tantos dias direto, aí você renovava lá, depois renovava em Singapura e esse de Singapura tinha que vir até o Brasil. Quando havia um atraso grande lá no Golfo, aí eu embarcava, porque no calor do Golfo você já vai receber uma verdura toda “baleada”, um tomate mole, é difícil.
ATRIBUIÇÕES DO COMANDANTE
O Comandante tem três responsabilidades básicas: ele representa o Estado, os interesses comerciais e o Armador. Então, ele veste três chapéus simultaneamente. Como representante do Estado, ele pode assinar atestado de óbito, fazer casamentos em “in extremis”, testamentos e outras atividades. Com um detalhe, ele não goza de extraterritorialidade. Só o navio do Estado, portanto, da Marinha do Brasil, goza desse direito. Por isso, quando ele adentra o porto estrangeiro e o estrangeiro atopeta a bandeira local, ele está reconhecendo e se sujeitando às leis do país. Então, ele tem essa representação. Ele representa os interesses do Armador e de todos os envolvidos na navegação, quanto à segurança, à manutenção da velocidade estabelecida, da saúde do grupo embarcado, os resultados da viagem, os interesses comerciais, que nem sempre são os interesses dos donos do navio. Ele está prestando serviço a um terceiro, que é o dono da carga. Você tem mais esse componente e tal. Então, o Comandante tem três responsabilidades: com Estado, com Armador e com aqueles que têm interesse comercial naquilo que é chamado “aventura marítima”. É basicamente isso. Ele é, junto à tripulação, o porta-voz da alta-administração da Empresa, ele tem que levar as decisões da grande Diretoria da Presidência para os seus homens. E, simultaneamente, fazer o trabalho ao contrário, levar os anseios do seu grupo, não ir para a sua casa, ir para a administração lutar para que aquilo seja atendido de um modo ou de outro. Eu digo que é muito solitário porque, normalmente, pela formação militarizada que é dada, pelo respeito que tem, passa ser um pai grande, do grupo, porque você é realmente um Comandante. Eu estou falando na figura correta do Comandante. Claro que, como toda coletividade, você tem Comandantes que não mereceriam ser Comandantes. Mas, por necessidade, chegou. Se eu entro na ponte de comando, além dos cumprimentos, o assunto sou sempre eu que tenho que abrir, conversar, comentar algumas coisas; ninguém vai comentar, no máximo diz: “Comandante, captaram a rádio do Brasil essa madrugada.” “Ah, sim, o que foi?” Aí ele comenta, mas, normalmente, se eu sentar lá calado – tem uma cadeira que só eu sento. Ninguém senta na ponte de comando a não ser o Comandante, há uma razão, não é bobagem, não é nada disso. É porque o Oficial, sentado, acaba dormindo. Então, ele não pode sentar. A ponte é toda apagada, aí quando eu desconfiava, eu descia à meia-noite, depois que levantava, passava um giz na cadeira. Ninguém via No dia seguinte, eu olhava, o sujeito estava sujo. Eu chamava, às vezes: “Não, não precisa eu ver, você está me dizendo que você sentou. Todos nós estávamos dormindo.” São mais de três mil abalroamentos no mundo, entre navios. Abalroamento é o navio com outro navio, colisão é um navio contra um objeto. Navio com navio, por que? Porque, na realidade, existem estradas invisíveis no mar. O Comandante tem obrigação de levar o seu navio por um caminho mais curto e que seja o mais seguro. Então, isso não é privilégio do inglês, não é do brasileiro, do indiano, todos nós conhecemos isso. No mar, existem estradas navegáveis. Eu tenho um livro sobre navegação. Por exemplo, de um porto como Tóquio, a cada 10 segundos entra ou sai um navio. É tanto navio que eu chegava lá de madrugada, porque navios grandes não podem entrar nem atracar para operar. Sai mais caro qualquer operação de madrugada, mas a segurança me justificava eu chegar de madrugada, porque eu estava chegando com navio de grande porte, turbina, que é de difícil manobra. Mas era tanto navio no radar Você sabia que aquilo não era terra, eram embarcações. Aí você trazia para o menor raio de alcance de um radar numa milha, porque naquele raio de alcance você funcionava como se fossem várias “inputs” que você recebia, onde dizia assim: “Navio boreste, navio dois boreste fechado, rumo de abalroamento.” Outro: “Navio de bombordo na distância “tal”, rumo de abalroamento.” “Rumo tal, rumo tal.” E você vai captando aquilo tudo, diz: “Reduz a máquina.” Dava ordem para o marinheiro: “Muda o rumo.” Então, eu ia resolvendo navio por navio. Quando você conseguia entrar no porto, você está exausto, você não pensa em ir a terra. O que eu queria era ler minha revista semanal, a minha Veja atrasada, mas extremamente atual, os jornais que eu recebia. Aquilo para mim era o prêmio da viagem, além das cartas, que são importantíssimas.
PERIGOS NO MAR
O maior perigo no mar é a serração, mau tempo com tufão. Acho que são esses os maiores perigos do mar. Eu acabei de fazer uma perícia para um acidente no mar do Japão, fui contratado por um grupo inglês para fazer essa perícia. É a natureza e você. E você tem que saber o que se tem que fazer numa circunstância dessas, porque dá para você prever o que a natureza vai fazer, qual o deslocamento que vai fazer, se vai fazer a parábola, enfim, são vários dados que você computa e dá a sua decisão, até no decorrer do mau tempo. A serração é um homem tomando decisão, confiando no seu equipamento eletrônico, e o outro homem confiando no seu equipamento eletrônico. Muitas vezes, o Comandante é relapso, o Oficial é vaidoso e não chama o Comandante para a ponte. Eu sempre dizia: “Olha, não que eu consiga fazer o que vocês não fazem, mas eu quero ver porque que aconteceu o abalroamento e eu tenho que estar aqui para assistir isso.” Então, ele sempre me chamava, não tinha hora. Já dormi até com uniforme para subir rápido, em determinadas áreas. A serração é um perigo, porque você não vê, você mal vê a sua proa e tem muitos navios ali, o que os outros estão fazendo? Aquilo não é avisado no radar de uma hora para outra. Para mim, que faço perícia para a Justiça, para grandes empresas nacionais ou não, é uma delícia ler tudo isso e derrubar argumentos, então eu tenho esse tipo de atividade também.
É muita prática, foi o que eu fiz a minha vida toda. O grande prêmio é a chegada ao porto. É muito característica uma coisa: às vezes, eu encontrava um marinheiro lá em Tóquio ou em qualquer lugar, eu tinha condução à minha disposição, eu dizia assim: “Para onde você vai?” “Comandante, eu estou indo para casa.” Para casa era o navio. É muito difícil um trabalhador fazer uma referência desse tipo, então são características que nós temos. Vivemos confinados, sujeitos a perigo, ao desconforto do balanço, são pessoas diferentes, de várias origens, de vários níveis, que você tem que gerenciar e conviver, que moram no trabalho. É um povo diferente, nós temos um povo diferente. E, infelizmente, em terra nem sempre isso é visto. Tudo que hoje o marítimo tem foi uma luta.
GREVE DE 1960
Eu participei de muitas lutas, fiz uma greve de 60 dias, fui demitido da Petrobras. Foi uma greve que só os Oficiais fizeram, durante 60 dias. A Marinha ocupou os navios, entrava com uma ressalva que nos apoiava, porque foi pré-revolução de 1964. Naquela época, o salário do Comandante era o quinto, sexto. O meu taifeiro ganhava mais do que eu, os meus bombeadores ganhavam mais do que eu. A explicação foi que eles conseguiram direitos trabalhistas. Era a época do Goulart. Eles conseguiram, o Sindicato dos Oficiais que existia era considerado lacerdista. E até era Para ser franco, até era. Mas não havia essa visão, o Presidente era lacerdista. Então, uma greve dessas de lacerdistas e com o pessoal do Jango, não havia meio. Depois de 60 dias, a Marinha, que nunca viaja como nós viajamos, não agüentava mais e nenhum navio andava como nós andávamos, demorava a sair do porto. Perdemos a greve, mas garantiram o retorno ao trabalho, nós não recebemos o dinheiro dos dois meses. Não tivemos o aumento, quando eu recebia lideranças sindicais, como Superintendente, eu disse: “Olha, eu já fiz greve, já fui demitido, já acabei com greve por ser contra a greve, então eu conheço tudo nessa área.” Passei por todos os lados. Eu acho que cada greve é uma razão, algumas plausíveis, outras não. Mas, em algumas épocas, por exemplo, eu viajava, ficava praticamente dois anos embarcado, quando eu ganhava, cessava o meu ganho de periculosidade. Mas a moça funcionária, colega, na época nós chamávamos “companheira”, que trabalhava na Petrobras em terra, essa ganhava periculosidade sempre. Nós, que vivíamos embarcados, só ganhávamos quando estávamos lá. Quando saíamos para fazer curso, férias, cessava, por mando da Empresa. E o absurdo da discriminação é que, quando saiu o 13o, a Empresa se recusou a nos pagar.
Eu vi uma pessoa importante, falou assim: “O dia que eu tiver que pagar 13o para marítimo, que já vive passeando pelo mundo, aí nesse dia eu peço demissão antes.” É difícil, é difícil Tudo isso que hoje é conseguido, foram muitas lideranças que conseguiram. Até a lei para o 13o não tinha o que questionar; essa foi rápida, foi uma ignorância só, foi rápida. Passamos por todas.
FAMILIA / ESPOSA
Em primeiro lugar, eu sou casado há 47 anos e namorei 10 anos a mesma mulher, então são 57 anos de convívio. Quem criou a minha família foi minha mulher. O meu filho, que era nosso oficial, morreu num acidente de carro, eu estava no mar do Japão. Então, foi ela que teve que decidir o seu sepultamento. Minha mãe morreu, foi ela que teve que decidir. Eu consegui vir porque estava chegando ao Japão, mas já estava sepultado. Eu voltei só para pegá-la, retirá-la da área e ela foi comigo. E ficamos lá cinco meses para regressar ao Brasil e minha filha, hoje filha única, ficou sozinha aqui. Mas tudo isso também é um outro aspecto da vida. Meu filho nasceu, eu tive que ir para o mar, minha mulher estava ainda anestesiada da cirurgia que ela havia feito. Voltei quatro meses depois. Fiquei dois e voltei para o mar novamente. A minha filha nasceu, com 20 dias eu fui apanhar um navio na Europa, voltei nove meses depois.
NETO
Pela primeira vez, agora, eu estou tendo a vivência de criar uma criança, que é meu neto. Minha filha e meu genro, nós moramos próximos, então eu estou vendo o primeiro sorriso, a primeira palavra, o engatinhar, o primeiro tombo, a primeira noite preocupante. Passei direto, de pai para avô. Eu não tinha essa vivência.
MULHERES FORTES
Ou você casa bem - como eu casei - ou o casamento não dura. Por uma razão ou outra, o casamento não dura, porque se não é uma mulher forte, ela se sente desamparada, porque ela tem que tomar conta de tudo. Eu lembro quando o Collor apanhou o dinheiro de todo mundo, eu estava indo para o Japão, por uma dificuldade, aí eu ouvi no rádio, alguém disse: “Não, perdeu, não foi tudo. Ele tirou 50 cruzeiros de cada um.” Era o contrário, ele deixou 50 cruzeiros. Eu tranqüilizei, até que eu recebi a informação de que não era isso, era realmente aquilo que ele fez. As notícias, você tem que gerenciar tudo isso, tem que gerenciar toda essa vivência.
ADMINISTRAR A DISTÂNCIA
Para administrar isso, depende muito da formação de cada um, do temperamento de cada um. Eu gerenciei muito. Eu tenho um livro que já estou escrevendo; acabei de fazer um livro para a Empresa. Você sai daqui, só vai ver terra 28 dias depois, você não vê nem outro navio. Eu até chamo “oceano dos pobres”. Então, você sai em arco de círculo mágico, porque, na superfície da terra, a curva é o caminho mais curto. Você sai, traça a sua rota fazendo isso, leva você muito ao Sul. Seus limites são os icebergs, você evita descer muito no inverno. Dali você larga outra, para ir lá para a Indonésia, para a Ilha de Bali. Eu chegava na Ilha de Bali, também não fazia por menos, tinha que ver a Ilha de Bali. Hoje não, porque hoje nós temos oficiais mulheres. Mas, na minha época, uma ocasião, atracando, depois de ter vindo de uma viagem longa, era Oficial, estava manobrando na popa, eu vi um tripulante falar assim para o outro: “Olha uma mulher” Eu tinha um cachorro que comprei, um pastor alemão, que eu tive que vender, ele foi criado só com homem. Então, ele não podia ver nem criança, nem mulher, que ele partia violentamente para pegar.
Ele foi criado dentro do navio. Hoje não, hoje tem mulher dentro do navio. Na minha época, ia sempre uma ou, no máximo, duas esposas. Sem contar a minha, quando eu levava. Não levava criança, porque a mãe e o pai ficam muito nervosos com a doença de um filho. Uma esposa ficava muito só, duas ficavam muito amigas, quando levava três, formava um partido, duas contra uma, e o partido não era eterno, porque senão incomodava, mas, de vez em quando, essas duas brigavam e uma se unia à outra, afetava os meus oficiais.
FESTA A BORDO
Não levei minha esposa muitas vezes, porque havia todo um problema curricular. Ela não podia deixar as crianças até uma determinada idade, para ficar quatro, cinco meses viajando comigo. Quando minha filha fez 15 anos, ela optou por fazer a viagem a bordo, levando uma amiga, e eu fui o único pai que ofereceu os 15 anos a Noroeste da Austrália, em alto mar. Eu disse: “Olha, ninguém festejou 15 anos aqui. É um prêmio especial” Sua retaguarda tem que ser tranqüila. Você tem que ter competência, você é o psicólogo, você é o padre, você tem que ser tudo. No livro que eu estou escrevendo, algumas histórias fantásticas eu não posso contar, como não posso contar aqui.
O TAIFEIRO
Eu tinha um taifeiro, que vários embaixadores usavam muito no navio para trazer outros embaixadores, do Japão, Cingapura, Coréia, Filipinas, quando a gente ia nesses lugares, porque sabiam que eram muito bem recebidos. O meu taifeiro era uma pessoa educadíssima, ele parecia o Harry Belafonte, ele não deixava ninguém acender um cigarro, ele acendia primeiro. Diziam: “Oh, quando não quiser, tem emprego, seu cozinheiro e seu taifeiro estão empregados.” Um dia, para minha surpresa, amanheci, teria havido um desentendimento entre o paioleiro e o meu taifeiro, porque um falava que o filho dele era isso, aí o paioleiro disse assim: “Ah, o pretinho não sei o que e tal.” E o taifeiro teria tirado uma parte do corpo dele, que não era para tirar, e batido na mesa. Aí o Oficial veio, me trouxe o problema, para resolver uma bobagem dessa, perguntou se eu ia arribar para desembarcar o taifeiro, eu falei: “Não, claro que não Não vou fazer isso.” Eles olharam, porque sabiam que eu era muito rigoroso, eu falei: “Não, porque para desembarcar eu tenho que fazer um inquérito e no inquérito vai ter uma perícia, uma análise, medir o objeto, se houve prejuízo para o bem da Empresa.” Quando chegasse esse inquérito em nível de Marinha e de Petrobras, ia ser ridículo. A decisão foi: “Vamos chamá-lo, eu vou descontar uns dias do salário dele e avisá-lo que, depois de oito anos, eu vou desembarcá-lo e ele não pode mais embarcar comigo.” Nessa altura, o outro taifeiro estava interferindo por ele, porque eles eram amigos, mas houve isso realmente, não é usual fazer uma coisa dessas. Eu falei: “Você vai ter que fazer uma análise primeiro no equipamento, se causou algum prejuízo, se não houve, de qualquer maneira tem que falar qual foi o instrumento para tomar essas medidas todas.” Aí acabou o papo. Normalmente, quando o taifeiro é bom, é importantíssimo, um bom cozinheiro, é fantástica a importância dele. É muito importante. Foi um garoto que trabalhou comigo 18 anos comigo, o anterior trabalhou uns 10 anos, ele aprendeu na minha casa. O cozinheiro tem que estar sempre alegre, nunca recusar. “Quer uma comida?” “Ah, queria um bife.” Faz o bife, dá o bife, reforma; reforma é pedir mais, dá o que tiver, vai dando sempre, porque alimentação é fundamental num grupo de homens isolados.
FAMILIARES A BORDO
No passado, levar as esposas não era possível, isso eu consegui na Empresa, porque o Comandante tinha que ir no cais para falar com a esposa, mulher não entrava. Isso veio num passado distante, quando os antigos acreditavam que mulher trazia azar. Talvez porque tivesse ocasionado alguma briga a bordo e se criou isso. Eu nunca tive problema com mulher a bordo, nunca, nunca. Elas andavam, desciam para a lavanderia, tinha um horário reservado para elas, nunca houve um desrespeito, nunca se queixaram, o maior respeito. Mas, então, depois nós começamos a levar. Havia uma ordem da Presidência para levar uma Senhora para um lugar, para um marido ou não, trazer com filho, e elas não pagavam nada. Aí depois liberaram para a esposa do Comandante, mas o Comandante pagava um percentual, como se fosse para cobrir as despesas. Aquilo era mesquinho. Quando eu fui convidado para comandar esse navio, que era um desafio, nunca havíamos tido navio desse porte, queriam que os resultados fossem competitivos, como que houvesse melhor no mundo, eu disse: “Isso passa por uma recíproca. Nós queremos também os direitos que o mundo dá ao seu marítimo.” “E quais são eles?” Eu falei para o Faria Lima, que era Presidente da Petrobras na época: “Por exemplo: o Comandante levar, deixar o Oficial levar, a esposa do Comandante não conta. Ou melhor, todo tripulante que tiver camarote individual, com banheiro individual, suíte.” Aí ele falou: “Está concedido” Foi concedendo uma série de vantagens, tiradas em momentos em que eles estavam querendo. E eu garanti o contrário, que no navio não teria problema nenhum, faria um reparo por bordo e assim foi. Eu lembro que, numa ocasião, a assistente veio me perguntar, eu estava aguardando a chegada do navio: “O Senhor poderia fazer uma palestra para umas esposas de marinheiro?” Eu falei: “Certamente, quando?” “Agora.” “Vamos lá” Aí eu perguntei o que elas gostariam de ouvir, na verdade, elas queriam questionar: “Por que a esposa do Oficial viaja e eu não posso viajar?” Falei: “Olha, eu vou dizer uma coisa e presta atenção, é uma consideração muito grande a cada uma das esposas dos marinheiros, é um respeito muito grande a ela. Não é a esposa do Oficial, é a esposa de alguém que tem um banheiro privativo para a esposa dele utilizar. Se a Senhora for viajar, seu marido está trabalhando, a Senhora vai entrar num banheiro coletivo, tanto em termos de vaso quanto de chuveiro. Então, a Senhora, durante uma viagem de quatro meses, com razão ou sem razão, a Senhora ora vai entrar e vai sair rápido, ora a Senhora vai estar lá dentro e vai ter um constrangimento. Então, para evitar isso, para respeitar a pessoa da Senhora, não podemos conceder isso. Agora, depende também do Comandante. Quando um Sub-Oficial concorda em trocar de camarote com o marinheiro, aí eu autorizo, comprovando que a razão é essa. Não é uma discriminação. E, por sinal, tem uma esposa aqui de um marinheiro que já viajou comigo.” “Sim Senhor, já viajei Fiz duas viagens em camarote individual.” “Camarote individual.” Hoje fica fácil porque tem camarote. Quando o navio chegava no Brasil, aí eu embandeirava, deixava entrar, porque ia até Tubarão e o navio operava rápido. Em Tubarão, às vezes, 20 horas eu já estava saindo para outra viagem de quatro meses, então eu deixava, dispensava para resolver problemas em casa, para pegar em Tubarão. Alguém da própria tripulação cobria o dele. E outros eu levava a família, levava até criança.
LAZER A BORDO
O navio tem piscina, tinha biblioteca, mantinha sistema de vídeo-cassete de cinco horas de programa, além de ir captando a televisão em alguns lugares. Quando a viagem é curta, a gente tinha isso. Em viagem longa, aí sim ficávamos quatro, cinco horas passando programas. E como nós passávamos esses programas? A Empresa cedia uma parte, mas não era a principal. Quando nós embarcávamos quatro meses, eu distribuía: “Imediato, você vai gravar programas tais, tais, tais na Globo. Chefe, você vai gravar os programas tais, tais, tais ali. Você vai gravar tal, tal, tal lá.” Então, nós trazíamos uma gama de programação imensa e passávamos isso. Domingo, normalmente, dava churrasco lá na beira da piscina ou, se estivesse chovendo, eu descia, comia com a tripulação toda, era assim que a gente vivia.
SENSIBILIDADE DE MARINHEIRO
Eu diria o seguinte: não havia um dia monótono, porque cada dia o mar é diferente. Às vezes, eu estava deitado, porque o navio turbina, você não ouve máquina nenhuma, no máximo a saída do ar condicionado. Eu estava deitado, aí eu ligava e dizia assim: “A máquina reduziu?” Aí o Oficial já estava ganhando tempo: “Senhor?” Ele ainda não tinha percebido que a rotação estava indo, porque o sentia pelo seguinte: reduziu, o mar faz outro movimento. Era só pelo balanço do mar, eu estava deitado, ele estava em pé. Você sente, desenvolve uma capacidade, uma sensibilidade muito grande. Uma ocasião, eu estava entrando com a esquadra brasileira, estava embarcado no Cruzador Tamandaré e do meu lado estava o Comandante Berimbá, depois chegou o Almirante, Ministro do Supremo Tribunal Militar. Eu estava sentado, de repente perguntei: “O que aconteceu?” Ele falou: “Nada” Aí o navio apagou, em seguida encalhou. Senti um tremorzinho na sola do pé. Eu não sabia se era encalhe, mas senti uma coisa. Depois, ele falou: “Comandante, por que o Senhor perguntou o que estava acontecendo, antes de acontecer?” Eu falei: “Não, não é premonição.” O Oficial da Marinha não pode ficar mais de dois anos embarcado, senão ele bloqueia o acesso de outros, aí é transferido para funções em terra. Aqueles que têm familiares na Marinha sabem disso, o sujeito pode adorar o mar, mas é muito difícil ele voltar. Uma das razões que fez com que eu não ficasse. Vivendo, você fica com uma sensibilidade incrível. É de você chegar em casa e nunca deixar um copo assim, você procura colocar o copo seguro, por causa do balanço.
PERIGOS DO MAR
Pegamos algumas vezes o rabo do tufão. Hoje nós somos mais navegantes do que no passado, mas menos marinheiros. A tecnologia fornece dados que permitem uma precisão ou a navegação por satélite; eu fiz esse curso nos Estados Unidos, o computador te dá, por segundo, a posição do navio, então seria impossível você ler, ele muda de minuto em minuto a posição. Mas tudo aquilo, a parafernália toda, não faz com que você abandone a navegação astronômica, porque tudo precisa de uma fonte de energia e aquilo pode falhar. Num tribunal que você vai ser julgado, você tem que comprovar que todos os procedimentos tradicionais e seculares da navegação são feitos: desvio de agulha magnética, o ponto de estrela de manhã, o ponto de estrela à tarde, o ponto da meridiana, que é um momento importante. Está cheio de informação, mas os Oficiais calculam e colocam, porque, se não calcular, amanhã você está sujeito a ser penalizado e sua Empresa perder uma causa de grande valor. Esse último navio que eu fiz a perícia, a causa já estava em quase cinco milhões de dólares. Eu analisei as ações do Comandante.
SUPERINTENDÊNCIA DA FRONAPE
Eu assumi a Fronape em 1995 e me aposentei em 1980. Me aposentei na Coréia. Eu tinha tempo. Eu vou fazer 76 anos, naquela época eu tinha já o tempo, porque a contagem era diferenciada. Vinte e cinco anos de embarque correspondiam a 35, era contado de maneira diferente. Mas, ainda assim, eu já estava com quase 38 anos, quando num desses ciclos, movimentos que perseguem a solução do INSS, falaram que ia aumentar tudo. Eu ia ficar como fiquei: no mar, continuar no mar. Mas eu não queria ficar, ter que trabalhar mais 15 anos para adquirir o direito que naquele momento eu já tinha. Aí eu entrei com os papéis da aposentadoria e a Empresa permaneceu comigo, no mesmo comando, então não senti nada. Na realidade, eu só me senti mais caminhando para uma aposentadoria agora – assim mesmo, não é uma aposentadoria –, quando eu deixei os quadros da Transpetro, para passar a ser consultor da Presidência. Eu não tenho obrigação de ir à Transpetro, eu recebo incumbências, desenvolvo e apresento essas incumbências ou consultas e, pessoalmente, faço perícias em acidentes de navegação.
OUTROS TRABALHOS
Atualmente, estou como Consultor do Presidente da Transpetro. Eu também sou muito convidado para palestras na área marítima e continuo muito presente, eu não saí, como dizemos, “da beira do cais”. Porque na minha vida toda, no fundo, eu fui empurrador de água. O que a gente faz pelo mundo é empurrar água com o navio Eles me conhecem, sabem que eu sempre fiz isso com grande prazer e só fiz porque tive o apoio da família, o meu filho e a minha filha sempre disseram que o José Bonifácio era o filho mais velho. E a minha mulher dizia assim: “Ele tem mais cuidado com o navio do que com a própria casa dele, vive pensando em coisas para o navio.” Ela me cobra até hoje: “Você fazia o cardápio lá, por que você não faz aqui?” Eu falei: “Ué, porque eu tinha um staff grande. Eu sabia tudo que tinha no meu paiol. Hoje eu não sei, hoje é com vocês aqui, para fazer esse suprimento.” Eu falei uma frase que foi muito verdadeira num programa de televisão, que eu andei aparecendo muito aí, não saía do ar: “Eu sou daqueles que fez do seu dever o seu prazer.” E, realmente, tudo que eu fiz no mar, eu fiz com uma realização de uma vocação romântica. Mas também porque eu tinha consciência e continuo tendo isso muito presente, da importância daquilo que o homem do mar faz para o país. Eu digo isso em cima de todos os cursos que eu fiz e tive o privilégio de fazer, que foi a Escola Superior de Guerra, onde se estuda todos os problemas nacionais e as dificuldades, numa época onde Brasília encomendava os projetos à Escola Superior de Guerra.
ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA
A ESG tinha e tem um princípio, uma coisa muito interessante. Não é uma análise de regime militar ou não, mas ela parte de um pressuposto, que não é verdadeiro, que ela consegue reunir todo ano os melhores cabeças de cada área. Então, ela nunca entrega a um especialista algum assunto que precisa ser estudado, porque ele não vai pesquisar. Ele vai partir daquele conhecimento já sólido, também já limitado, que ele tem e vai dar uma solução em cima daquilo que o levou até a Escola. Ele joga no potencial. Por exemplo, tinha dois Embaixadores na turma e um Primeiro Ministro – Relações do Brasil com os países Árabes, Irã e Israel –, e eles me deram para desenvolver uma visão a respeito disso. E eu fui feliz nisso, que hoje faz parte da biblioteca da própria Escola. Hoje é muito consultado. Às vezes, tem um: “Pô, eu consultei Eu tinha que fazer um trabalho, aí consultei seu trabalho lá.” Já a Escola de Guerra Naval é uma coisa dirigida ao Poder Marítimo. Eu fiz uma política de transporte marítimo a pedido deles, que eu também tenho a vaidade de ela permanecer como elemento da biblioteca e um livro de consulta de lá. Na minha área também, eu sempre recebi da Empresa o reconhecimento pelas coisas que fiz, sempre fui muito prestigiado.
APOIO DA EMPRESA
Numa ocasião, eu passava com minha mulher o reveillon a bordo pelo Golfo de Pescaia – para ver o que é o prestígio da Empresa, pelo menos no passado, hoje eu não posso afirmar – e meu filho me acordou. Ele era novo, minha filha pequena, ele falou: “Papai, mamãe está passando mal” Eu falei: “Vocês vão dormir no outro camarote, porque eu vou ser chamado às duas horas da manhã para ir para a ponte, o telefone vai bater, vai acordá-los.” Aí eu olhei, era meia-noite e meia, entrei o ano me vendo nesse problema. Cheguei lá, ela com a boca mole, mandei chamar o enfermeiro, pressão de quatro por seis, febre de 40 graus, e agora? Comunicação difícil, aí eu passei um rádio. Não tinha médico no navio. Mandei um rádio para Colombo, Sri Lanka, dizendo que eu ia arribar – arribar é uma decisão exclusiva do Comandante – onde deveria deixar a esposa do Comandante e uma outra senhora brasileira, que se ofereceu para acompanha-la. Eu não sabia o que era, ela era muito alérgica a remédios. Fomos olhar, nós estávamos há nove meses fora do país, os remédios estavam vencidos, a única maneira de baixar a febre é dar banho em banheira. Eu e minha filha dávamos o banho de banheira nela. Chegou a um ponto que a gente chegou a dormir no chão e as crianças não deitavam na cama dela porque nós não sabíamos o que ela tinha. Encurtando: ela melhorou quando já estava caminhando para Colombo: “não, vamos para Aden”, que era no Iêmen do Sul. Ela falou: “Por que você vai para lá? Eu hoje estou melhor e tal.” Encurtando razões: eu mandei um aviso dizendo que ia arribar. Há 30 anos não ia navio da Petrobras lá, então o agente mandou pedir 100 mil dólares aqui. Eu não avisei nada à Empresa, porque eu não tenho que avisar, a decisão é do Comandante Arribada não tem que consultar ninguém, você é que está lá, você é quem sabe. Aí veio uma resposta dizendo o seguinte: “Transferimos os 100 mil dólares solicitados. Atender o Comandante em tudo que ele precisar, inclusive dinheiro sem limite.” Só se você for um mau caráter para esquecer uma Empresa que faz isso por você, naquele momento Nunca mais esqueci. E eu tive várias demonstrações da importância de você viajar e ter uma infra-estrutura de retaguarda de apoio. Qualquer problema, a Fronape deslocava a área de Assistente Social, ela tinha tudo e foi sempre isso, foi muito forte. Hoje, com muita redução de custo, eu não sei como está, mas, no passado que eu estava no mar, era fantástico, fantástico
MEMÓRIA DA FRONAPE
O livro que eu fiz não era a meu respeito. Era um livro institucional, eu até gostaria que não fosse institucional, fosse um livro onde eu pudesse fazer jus de valor, mas eu não posso fazer. Foi sob encomenda, onde eu resgato a memória da Fronape. Porque, praticamente, vivo só tem eu e o Sabatier. E, como eu falei, eu mesmo fiz algumas perguntas a ele, ele ficava calado e dizia assim: “Ronaldo, foi isso?” Eu sabia que a resposta não era aquela. Eu já tinha um livro programado que seria: Histórias e Estórias, a história com “h” e estórias sem “h” da Fronape. Eu ia contar a história dela e as histórias que eu tenho da vida marinheira. Esse eu vou fazer por minha conta. E esse outro, como eu abri mão dos direitos autorais, eles agora pararam, não estão me dizendo se vão publicar ou não, esse é um fato notório. Pedro Calmon escreveu sobre o Brasil e eu também posso escrever sobre o Brasil. Eu posso contar tudo que abordei nesse livro, mas abordando todos os temas de maneira diferente. O nome do outro livro, por sugestão, é: “História do Transporte Marítimo na Petrobras.”
Já estruturei como eu vejo museu. Gostaria de inserir o museu, pela localização geográfica da Transpetro, naquilo que é chamado “Corredor Cultural”, ali do Centro. Mas, obviamente, vocês não sabem, mas eu sou colecionador de artes também, de artes plásticas. Eu gostaria de fazer um museu, que eu chamaria “light”, no sentido de fazer alguma coisa, como existe o Museu Espaço Cultural da Marinha, que também fica ali no “Corredor”, no porto, porque coisa de navio é ferro, é instrumento, é equipamento, fica enfadonho a quem não é da área. Eventualmente, alunos das escolas vão lá visitar, sobretudo as escolas de formação. Mas, fora disso, quem vai lá? Então, eu queria fazer um museu mais “light”, escrever por que cada peça está ali no museu. Intercalar as peças com paisagens marinhas de pintores atuais, eu conheço todos eles, que me fazem preço de marchand, então, é pela metade. Pintores que estão aí produzindo, o valor é pequeno, para não botar pôster. E abrir como museu, para pleitear à própria Petrobras o apoio cultural dela, porque ela financia compras de quadros para museus. Então, nós íamos comprar Castanheto, Valiesse Naval da Costa, Hipólito Caron, do pessoal do grupo Green. E dali fazer, efetivamente, um museu onde as pessoas entrariam cercadas de paisagens, com explicação das peças que estão lá. Já recebi até um sinal por esse trabalho; o livro eu já recebi todo, até poderia parar por aí, mas não faria isso. Primeiro, não me disseram se aceitam essa linha de ação. Segundo, ainda não definiram a licitação, qual a empresa que vai preparar um espaço, eu desconheço o espaço e a área. Então, fica difícil eu sair pelo Brasil visitando os dutos e terminais para saber o que posso trazer. Eu sei que não há pintura a óleo nesses lugares, mas a fotografia faz hoje o papel da mancha que os artistas faziam no passado. Eles iam para o campo, não tinham tempo de captar as nuances da luz, eles faziam rapidamente aquilo daquele momento. Aí levavam para o atelier e aquilo aumentava. Hoje, com a máquina fotográfica, eles pegam aquele instante, aí o pintor fazia baratíssimo para mim, faria o contato direto, o quadro dos terminais, ficaria uma coisa suave, com qualidade, que tenderia a se transformar num museu conhecido pela qualidade dos seus artistas, através do apoio cultural da própria Petrobras. Mas, no momento, está todo mundo pensando em navio novo.
PROJETO MEMÓRIA PETROBRAS
Eu acho que é uma obrigação. Eu encaro isso como uma obrigação, talvez ainda como uma redundância daquilo que eu fiz. A atividade marinheira é uma atividade muito pouco conhecida, ela vive longe de tudo e de todos, então pouca gente conhece. No dia que a Dolores Duran colocou na “Noite do meu bem” aquela frase: “alegria de um barco voltando”, eu falei: “Ó, ela devia estar vivendo um namorado marinheiro.” Porque só o marinheiro sabe o valor que dá. Tanto que, nesses 20 anos, o ponto extremo da África não é o Cabo da Boa Esperança, o Cabo das Tormentas, e sim o Cabo das Agulhas. Pouco antes, você chega a visualizar os dois, ele adentra mais para o Sul. Nesse momento, havia a última mudança de rumo e você colocava na proa do navio o Brasil. Nunca eu deixei de fazer essa manobra Eu ia para o timão e mudava e avisava pelo som “Brasil na proa.” Faltavam 10 dias, mas aquilo, psicologicamente, era como se fosse uma aterragem, uma chegada, o pessoal já ficava naquela satisfação de estar chegando, a rádio começava a entrar um pouco melhor. Já acalmava, começava a arrumar os presentes da família ou da namorada. Eu sempre tive esse prazer Nunca deixei que um Oficial ou um tripulante no timão mudasse o rumo, eu mesmo mudava esse rumo. Podia até dar o maior pau, mas eu mudava o rumo. Essa moça teve essa sensibilidade: “Alegria de um barco voltando.” Por mais marinheiro que você seja, o maior da separação não é quando você chega ao Japão. Porque a ida e a volta tem uma distância, mas quando você houve o barulho do seu último cabo, da última corda, significa que você perdeu o último contato físico com o Brasil. Lá em Tubarão, em Vitória, jogava as cordas e o navio: “Máquina adiante” Quando ele deu a primeira rotação, você está mais perto daquelas pessoas que estão ali no cais, porque você começou a cumprir a distância da separação. Não importa que vai voltar daqui a quatro meses, mas, em distância, você já está mais perto, porque você está fazendo tudo para voltar. Então, é por aí. Isso enganava meu pessoal, com essa tese.
Mas tem outras histórias de marinheiro. São histórias que vêm desde a Segunda Guerra Mundial. Eu convivi com a turma que fez a Segunda Guerra. O livro ainda não está pronto, mas tem muita coisa pronta, porque essa eu faço na metade e, além do mais, ainda sou inventariante em três inventários. Você imagina como eu sou ocupado
BATIZADO DO NAVIO
Todos, não precisa ser marinheiro, já viram no cinema ou a citação que a madrinha quebra uma garrafa de champagne na proa no navio e, a partir daquele momento, o navio corre para entrar no mar. Tudo que acontece com o navio, tudo, tem uma explicação muito remota, que é uma atividade, várias vezes, milenar. A história da navegação começou quando o homem que, isoladamente, abraçava um tronco para atravessar um braço d’água, um rio, ou alcançar uma ilha, entendeu que amarrando vários daqueles troncos podia ir com outros naquela aventura, com mais segurança e mais conforto. Naquele momento, começou a história da navegação, com o homem primitivo. Então, tudo tem uma história. E a história da champagne é que, no passado, as civilizações no Japão e no Norte da Europa eram ligadas a sangue. Então, o sangue purificava, o sacrifício do sangue, pela dor que causava, tinha o poder de curar, de limpar os caminhos, para aquele que passava por esse trauma. Eles amarravam escravos nessa carreira; escravo que nós estamos falando não é o escravo que veio para o Brasil, preto, era o próprio escravo, prisioneiro de guerra, brancos. Amarravam, em determinado momento, com a machadinha ou com um objeto parecido, eles cortavam esse cabo, essa corda, e o navio entrava no mar com excelentes algures dados pelo sangue, que era daqueles escravos amassados pelo próprio navio. Era um sacrifício religioso. Aquilo abria os mares para a navegação do navio, para a segurança dele, daqueles que iam para o mar dentro dele, aquilo era um momento muito importante. Realmente, imaginem a importância. E, por isso, até hoje essa machadinha é vermelha ou vermelha e branca. Muitos pensam que é porque é uma área de segurança, para quebrar um vidro, não é, e não é por nenhum adepto do Bangu que fez essa cor. O sangue daquela época chegou até hoje.
FINALIZAÇÃO DO LIVRO
A última informação que eu tive é que o livro está com um Ronda. Eu até me assustei. Me falaram: “Não, está com fulano.” Ele não tem formação, ele está sob um contrato, não sei, não conheço o mérito dele. Se fosse um gramático, um filósofo, sim. Porque, para todo mundo que escreve, é bom, é conveniente que alguém faça a correção, sabe que é muito difícil. Você não tem a vaidade de achar que eu escrevo, pronto, sai dali, sem correção. Não. Eu acho que isso é o esperado. Mas alguém que vai analisar o resgate da memória, sem conhecer nada a respeito? A formação dele deve ser totalmente diferente, deve ser brilhante naquilo que ele foi formado, mas não é da casa, está entrando agora. Aí alguém lá falou comigo assim: “Ah Entregaram ao Ronda.” Pô, o Ronda, na escala, é aquele que recebe a incumbência mais fácil de ser feita, porque ele não sabe nada
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