Roda de Histórias Vidas em Cordel - Cleone Santos
Museu da Língua Portuguesa
Mediadores: Cecília Coimbra (P/1), Luiza Gallo (P/2) e Ane Alves (P/3)
São Paulo, 2 de setembro de 2024
Código n.º: PCSH_RH003
Realização: Museu da Pessoa
Revisão: Nataniel Torres
P/1 – Gente, a primeira pergunta é uma memória marcante que vocês têm com a Cleone, algo assim, que vocês viveram com ela, que vocês viveram juntos. Quer começar, João? Está com cara de quem quer começar.
João – Está bom, meu nome é João, _______ talvez 24 anos e a memória que eu tenho dela é ela sentada no banco da Praça da Sé, com um livro e acho que depois ela me faz um relato quanto o livro foi importante para ela fazer mudança na vida dela.
Thamiris - Bom, meu nome é Thamiris, eu conheci a Cleone cerca de 21, 22 anos atrás, na militância, em Diadema e uma história marcante, que marcou muito a minha vida, que marca até hoje, é que quando a gente ia fazer as ocupações, ela era uma das mulheres que estava sempre de frente lá dentro da ocupação, enquanto as mães que estavam lá iam trabalhar, a gente ficava tomando conta dos locais, do espaço do seu barraquinho e uma vez a polícia entrou e a Cleone, junto com as pessoas lá, com a liderança daqueles movimentos, quando a polícia começou na pancadaria, ela se debruçava em cima da gente, dos mais jovens, eu era a mais magrinha que eu sou hoje e ela falava assim para mim: “Se você levar uma cacetada, vão te quebrar no meio”. Então ela era bem mais forte e ela se debruçava em cima da gente, das mais novas e das senhoras, e isso me marcou pro resto da minha vida. Na hora que a polícia levantou o cacetete, ela se colocou na frente, ela falou: “Não, nas crianças _______. Não dá para sair com machucado daqui, não”. Então, isso me marcou muito e eu comecei a minha militância.
Ana – Meu nome é Ana, eu conheço a Cleone há uns 28, 30 anos. Bastante tempo. O momento mais marcante com ela para...
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Museu da Língua Portuguesa
Mediadores: Cecília Coimbra (P/1), Luiza Gallo (P/2) e Ane Alves (P/3)
São Paulo, 2 de setembro de 2024
Código n.º: PCSH_RH003
Realização: Museu da Pessoa
Revisão: Nataniel Torres
P/1 – Gente, a primeira pergunta é uma memória marcante que vocês têm com a Cleone, algo assim, que vocês viveram com ela, que vocês viveram juntos. Quer começar, João? Está com cara de quem quer começar.
João – Está bom, meu nome é João, _______ talvez 24 anos e a memória que eu tenho dela é ela sentada no banco da Praça da Sé, com um livro e acho que depois ela me faz um relato quanto o livro foi importante para ela fazer mudança na vida dela.
Thamiris - Bom, meu nome é Thamiris, eu conheci a Cleone cerca de 21, 22 anos atrás, na militância, em Diadema e uma história marcante, que marcou muito a minha vida, que marca até hoje, é que quando a gente ia fazer as ocupações, ela era uma das mulheres que estava sempre de frente lá dentro da ocupação, enquanto as mães que estavam lá iam trabalhar, a gente ficava tomando conta dos locais, do espaço do seu barraquinho e uma vez a polícia entrou e a Cleone, junto com as pessoas lá, com a liderança daqueles movimentos, quando a polícia começou na pancadaria, ela se debruçava em cima da gente, dos mais jovens, eu era a mais magrinha que eu sou hoje e ela falava assim para mim: “Se você levar uma cacetada, vão te quebrar no meio”. Então ela era bem mais forte e ela se debruçava em cima da gente, das mais novas e das senhoras, e isso me marcou pro resto da minha vida. Na hora que a polícia levantou o cacetete, ela se colocou na frente, ela falou: “Não, nas crianças _______. Não dá para sair com machucado daqui, não”. Então, isso me marcou muito e eu comecei a minha militância.
Ana – Meu nome é Ana, eu conheço a Cleone há uns 28, 30 anos. Bastante tempo. O momento mais marcante com ela para mim foi quando eu cheguei pra ela e falei, toda feliz: “Eu estou grávida”. Ela olhou para mim e falou: “Parabéns! Você tem onde morar? Você tem onde viver? O que você vai fazer com o bebê?” Eu falei: “Não, eu tô grávida, eu estou feliz com o meu bebê”. Ela falou: “Ué, eu quero saber o que você vai fazer depois”. Foi um dos momentos mais marcantes. Depois que o bebê nasceu, ela me deu uma força. Ela se revoltou quando eu estava grávida, mas depois que nasceu, foi uma das pessoas que mais me ajudou.
Edna - Meu nome é Edna, eu conheci a Cleone mais ou menos uns 15 anos, foi antes de 2010, como eu faço parte da Marcha Mundial das Mulheres, ela acabou se aproximando, porque ela queria integrar as mulheres que ela acompanhava, ela já tinha um trabalho com as mulheres em situação de prostituição aqui na praça e ela veio aqui fazer essa integração com as mulheres daqui com essas mulheres, porque somos todas mulheres, todas iguais, cada uma indo num rumo, mas aqui também seria essas mulheres dentro desse movimento. Então foi aí que eu conheci a Cleone e me apaixonei pelo trabalho dela ______ por toda a história dela, que é longa. Todo mundo sabe.
P/1 - Quero ouvir essa história.
Edna - Todo mundo sabe.
Lúcia - Meu nome é Lúcia, eu conheci a Cleone no Parque Dom Pedro, no Bar do Haroldo, eu estava passando, a primeira coisa que ela veio é ir até a porta e me convidou para tomar alguma coisa. E já na mesa tinha umas três garrafas de cerveja e eu, como ‘não gostava nem um pouquinho’, aí eu sentei, nós ficamos um tempão ali, tomando aquela cerveja, eu subi, peguei o metrô para ir embora e ela marcou um encontro comigo aqui na Luz. No outro dia eu cheguei, ela estava sentadinha no banco, me esperando, aí foi que eu fiz amizade com ela e a amizade foi muito boa, é uma pessoa maravilhosa, sempre procurou ajudar todo mundo. Essa é a minha história com ela.
P/1 - Queria perguntar para vocês como era a convivência com ela no dia a dia, como era lidar com ela no cotidiano e histórias cotidianas, na ordem que vocês quiserem?
Ana - Ela era uma pessoa muito boa, porém muito brava, mas ela era muito boa e, assim, quando eu a conheci, eu tava trabalhando aqui na Luz e ela se dividia entre Luz, Parque Dom Pedro e a gente conversava bastante e ela, muitas vezes, até para pessoas que ela não conhecia direito, ela trazia marmita, tentava ajudar e tinha algumas mulheres, na época, que causavam briga com ela e a gente se unia muito, porque a gente não se misturava tanto por conta dessas confusões e, mesmo assim, ela sempre falava: “Gente, violência não leva a nada, vamos sair fora, vamos deixar de lado, porque a violência não leva a nada”. E ela sempre se preocupava, no fim do dia, se a gente tinha dinheiro para ir embora, se a gente tinha comido, se a gente tinha o que comer em casa. Era assim, a convivência com ela era muito bom e a gente trabalhava junto, a gente se ajudava mutuamente, mas ela era uma pessoa muito inteligente e ela sempre relatava: “Eu tenho o sonho que um dia eu vou conseguir montar um espaço para as mulheres que não têm onde ficar”. Na época eu não tinha, ela falava: “Eu vou montar um espaço para as mulheres que não têm onde ficar”. E chegou a ter algumas parcerias [intervenção] com uma ocupação em Osasco, que ela levou algumas mulheres, nessa época eu já estava morando, eu já estava fora daqui, estava morando num outro espaço e ela me aconselhando muito, porque meu filho foi crescendo, foi trazendo vários problemas e ela falava: “Eu amo essa ‘porquerinha’, mas eu acho que está na hora de você se afastar dele, ele está dando muito problema, ele vai ter que amadurecer, ele já é ‘de maior’”. E foi quando eu comecei a sofrer a violência do meu filho e fui escondendo dela. Todo mundo quase que sabia, menos ela, aí eu comecei a fugir dela. Aí, quando ela descobriu, ela pegou e falou: “Por que você não me contou?” “Porque você ia ficar brava”. Ela falou: “Vou, mas eu acho que está na hora de você sair, eu me preocupo muito com o que pode acontecer”. E aí eu fui saindo devagar de casa, até que eu consegui sair, depois que mataram uma amiga minha, aí ela me chamou e falou: “Você quer ‘dar uma força’ aqui na ONG? Para você ficar um pouco mais... sair dessa situação que está?” Eu trabalhei por um ano na ONG e é isso: a gente conversava muito, ela dava muito conselho, ela falava que eu era muito explosiva, tinha um jeito muito forte de lidar com a situação, que eu tinha que melhorar, que eu tinha que ser mais sociável e aí eu acabei saindo da ONG, mas a gente continuou conversando, até que eu descobri que ela estava doente e depois de um tempo que eu vim descobrir que ela estava muito ruim, que podia não sair daquela e realmente foi o que aconteceu.
Edna - A Ana Eulália fez um relato assim, bem emocionante, mas a Cleone era isso: ela ia para a Marcha, mas a preocupação dela era: “Onde essas mulheres iam morar? A gente tem que nos organizar e procurar um espaço”. Tinha mulher que vinha que não tinha onde ficar, ela ia e foi à casa com um, com outro, que era das ocupações. As mulheres estavam aqui no Centro: “Elas não podem ficar na rua”. Uma vez fui eu, ela e a Soninha, que é também da Marcha, atrás de um moço que era coordenador das ocupações. Então, a vida dela ela viveu em função do bem-estar do outro, tanto é que ela não pensou tanto nela, questão de saúde, uma coisa que a gente sente, porque eram 24 horas pensando no bem-estar dessas mulheres, na questão da saúde, na questão da orientação, como ela falou para a Ana Eulália, ela falava para todas. Ela não queria que as mulheres continuassem prostitutas, tanto é que eram mulheres em situação de prostituição. Então, a preocupação era que essas mulheres se alfabetizassem, ela organizou curso para as mulheres terem alfabetização aqui na casa de oração que tem até hoje, graças a ela. Ela pensava na questão da alimentação dessas mulheres, da cesta que elas tinham que ter. “Elas são arrimo de família, elas têm que levar para casa”. Ela fazia aquela parte do governo, a questão social dela era abrangente demais. Com as pernas que ela tinha, ela fazia tudo isso. É muito forte e emociona também.
João - Aqui veio um monte de coisas na minha cabeça porque, além de tudo, ela foi uma amiga. Antes, eu trabalhava no espaço e a conheci ela, como eu disse antes, sentada no banco da praça e ela como uma assistida, mas eu tenho uma memória que, quando a gente ia fazer trabalho, ela ia para o espaço, que era na Praça da Sé e um dia eu falei assim: “Cleone, você não dá para ficar aqui, você não consegue cortar uma cartolina em linha reta, eu acho que você tem que fazer outra coisa”. E foi quando ela foi para um espaço mais politizado, que era o que ela sabia fazer melhor. Era ir e discutir e articular pessoas. E eu lembro que ela sempre conta uma história que ela ia tanto no espaço, eu trabalhava na parte da tarde, aí um dia eu falei assim: “Não, eu vou te dar uma coisa, que é para você ficar um tempo quieta”, e dei um livro e ela sempre fala isso, que é o livro do Frei Leonardo Boff, “A Águia e a Galinha” e depois ela diz que isso muda a vida dela e eu falei assim: “Está vendo? Você leu o livro e te ajudou a ir adiante”. Agora, tem muita também história de bar, porque tudo dela, às vezes começava e depois ia terminar num bar: as reuniões, as ideias mais interessantes sempre era tomando cerveja e altas horas da noite no centro de São Paulo. Ela gostava tanto, que demorava ir embora.
Thamiris - E é um pouco também o que as meninas falaram dessa convivência. Ela fazia não só esse assistencialismo, mas também eu falava que a Cleone era tudo: era meio psicóloga, meio mãe, meio lider, meio tudo, meio professora, porque a gente aprendia muito com ela. Ela era aquele tipo de pessoa que, por mais que a gente não acreditasse na gente, ela cutucava, para demonstrar o nosso potencial. Eu costumo falar assim que a Cleone hoje ela é meu anjo de guarda, mas ela mudou a minha vida, porque quando eu não acreditava mais em mim, ela que conseguiu levantar a minha autoestima, ela que conseguiu pegar na minha mão e falar: “Não, vamos lá, não vai se contentar nessa vidinha, não, você tem que ter coisa melhor para você”. E foi com isso que eu saí da prostituição, fui para o coletivo como assistida e estou lá até hoje, com o pessoal do Coletivo Mulheres da Luz, mas a importância que a Cleone tem em estar na vida de cada uma das mulheres, na vida de cada pessoa que conviveu com ela... Eu acompanhei todo o processo dela dentro do hospital, os trinta dias que ela estava no hospital, eu estava junto com ela. Às vezes eu sentia a dor dela e eu queria, mas eu não podia deixar a ‘bandeira cair’, ela olhava para o médico e falava: “Não tem outra saída, pode aplicar”. Ela sempre dando risada, sempre tirando uma situação boa daquilo que estava acontecendo, enquanto a gente falava assim: “Nossa, que sofrimento para essa pessoa!”, ela sempre conseguia ver uma coisa boa em tudo, ela sempre conseguia tirar a melhor parte, a melhor parte da pessoa, a melhor parte da... como ela dizia: a melhor parte de uma desgraça, ela conseguia identificar a parte que fazia todo mundo sorrir e ela que falava assim: “Não, é só um vento, vai passar”. E eu acho que é isso.
Lúcia - Bom, a minha convivência com a Cleone no começo não foi boa, porque eu só passava perto da Cleone para procurar briga com ela e ela não queria briga, ela queria paz. Então, eu tentei tanto para arrumar essas brigas com ela, quando eu vi que não tinha jeito, eu virei amiga, pronto. Como eu perturbei a Cleone, gente, pelo amor de Deus!
P/1 – Como ela fazia pra não brigar?
Lúcia - Não, ela ficava olhando a cara da gente, catava o livrinho que ela ficava lendo, ela cruzava a perninha e fazia assim, ó. Ela não falava nada, só que, se precisasse, ela era brava. Aí, conforme a gente fazia tudo para provocar e ela só ficava olhando a cara da gente, perdia graça e ia embora.
P/1 - E ela contava história da família, vocês sabem, conhecem alguma coisa da infância dela? Vocês lembram de alguma coisa assim?
Edna - Eu lembro que ela falou da questão da infância, que as tias dela moravam, trabalhavam aqui em São Paulo, que ela era mineira. Então, ela falava que quando chegava no final de ano, próximo ao final de ano, as tias iam lá em Minas e pegavam elas porque elas vinham trabalhar nas cozinhas das pessoas ricas aqui. E olha, ela tinha 13 anos, ela falou, ela já vinha com as suas tias que moravam e trabalhavam aqui. Eu lembro disso, que ela se referia. Trabalhava para poder conseguir aquele dinheiro e voltar e comprar roupa do Natal, aquele negócio, fazer a festa, mas primeiro tinha que vir trabalhar aqui em São Paulo. Foi uma das coisas que ela falou, não sei se tinha mais gente, mas isso eu lembro bem, dessa lembrança da infância. Ela falou: “Olha só como era a infância, a gente tinha que trabalhar para ganhar um Papai Noel”, porque ela se preocupava do final de ano, fazia o almoço para as mulheres, dar um presente. Tinha anos que ela ia dar um presente para as crianças e foi nessa que ela contou: “Eu tinha que trabalhar para poder ganhar o meu presente”. É essa a lembrança que eu tenho dela, que ela falava da infância, que era entrando na adolescência, com 13 anos.
Thamiris - E no bairro onde que a gente mora, que ela também trabalhou na prefeitura de Diadema, ela sempre contava que a mãe dela, a Dona Bernadete... elas foram o primeiro barraco que foi montado lá, na nossa região e a mãe dela, vendo a situação, as pessoas não conseguiam ter acesso à escola, por ser muito longe, por ser um bairro novo que estava se fazendo, a mãe dela juntava as mulheres e levava para dentro da casa dela e elas faziam uma alfabetização naquele local. Então, a casa onde a Cleone morava lá era sempre um ponto de assistencialismo em questão de alfabetização. Se alguma mulher estava sofrendo violência, a mãe dela, ela e as irmãs iam lá, brigavam, tiravam a mulher de lá, levavam para casa delas, para essa mulher ficar lá enquanto. Então, esse exemplo, ela sempre falava que vinha já da mãe dela, essa questão comunitária, essa questão com o pessoal, que a mãe dela, a Dona Bernadete, já trazia tudo isso para elas.
P/1 - Se alguém quiser, se alguém lembrar bem assim.
João - Acho que a Cleone não gostava muito de falar sobre a vida anterior. Então, são pontuações que ela dizia da infância dela chegar em São Paulo, da família. Imagina uma adolescente em São Paulo há cinquenta anos atrás, na periferia, em Diadema! E ela tem uma coisa que ela sempre foi uma mulher muito avançada, você não conseguia entender como ela pensava as coisas. Então, desde cedo, ela já era militante por algumas causas, então era claro o atrito com a família, por ser uma mulher um pouco já à frente, questionar algumas situações que pareciam já estabelecidas e que não haveria mudança. Então, para ela, isso foi muito difícil. A gente sabe que teve muitos conflitos na família, então para ela nunca foi uma relação muito saudável, tanto que a gente viu isso no falecimento dela, a ausência total da família que a gente não via, seja por conta dessa relação lá atrás. E ela construiu uma outra família, ela se reinventou e a gente até brinca que depois que ela se reinventou, ela pôde inventar uma outra história, ela preencheu isso com as pessoas que estavam em torno dela.
P/1 – E como foi a aprovação desse espaço coletivo? Como foi o processo pra construir esse espaço?
João - Nossa, é longo, tem tempo? Eu vou falar assim: eu conheci Cleone em 2008, então todos nós fazemos parte de um espaço, mesmo espaço ligado a um movimento à igreja, que tinha um trabalho na região central. Era na Sé, Liberdade, Praça do Correio, Santa Ifigênia e chegando até a Luz. E nisso se formou um grupo maior, que era um grupo nacional de mulheres, que chamava Grupo Mulher Ética e Libertação e esse grupo pensava no empoderamento de mulheres em situação de prostituição, para que elas discutissem as demandas delas e não o que a gente chamava os agentes de pastoral da igreja. E como sempre isso vai dar conflito e aí, numa mudança, todo mundo que pensava diferente foi convidado para sair, então eu fui convidado para sair, Cleone foi convidada para sair e isso foi em 2010 e ela então ficou meio perdida, porque ela perdeu uma referência de atuação e ela se juntou com uma freira, que é a Irmã Regina Coradin e elas então começaram a fazer um trabalho na região central. Então elas começaram a fazer um bazar de roupas ali na Sé, aí elas pegaram uma bicicloteca e vieram para o Parque da Luz e elas vinham para cá, o ‘seu’ Robson trazia e elas ficavam com aquilo aberto lá e as pessoas poderiam pegar livro e levar e elas ficaram fazendo um trabalho, tendo contato com as mulheres e resolvendo as demandas das mulheres: “Ah, não tem cesta básica”, aí corre atrás de cesta básica. “Preciso de problema de saúde” “Vão na UBS do Bom Retiro” “Preciso de uma outra coisa”, elas saíam fazendo isso e foram ficando ali, no parque, então começaram a guardar a bicicleta dentro do que a gente chama porão, que é debaixo da sede administrativa e elas começaram a guardar ali e foram guardando e foram ocupando. Já que estão guardando, a gente pode ficar aqui? E ela sempre falava, ela não brigava, ela ia arrumando os jeitos dela. Aí foi ficando, foi ficando, até que em 2016: “Já que vocês estão aqui, pode abrir mais”. Aí foi onde o espaço, até que em 2016, a gente conseguiu que a Secretaria do Verde e Meio Ambiente cedesse a sala, aí são três salas e aí o espaço ficou dessa forma, elas foram ocupando aos poucos pelo trabalho que estavam fazendo aqui na região.
P/1 – Miudinho, ali.
João - Isso, a Cleone não era... a gente até brincava e falava assim: “Nossa, se ela não falou nada, cuidado que a vingança vai ser grande”, porque ela não falava, dificilmente ela brigava, para se alterar precisava de algo muito sério. Ela podia te mandar um áudio, ela poderia telefonar depois, mas na hora ela não falava nada, ela dava um sorrisinho e depois ela resolvia. Então foi assim, tanto que para conseguir espaço não foi fácil, porque nós passamos até por uma gestão muito progressista e não conseguimos, foi no final da saída do Haddad, que a gente conseguiu no último momento, naquele período que já sabia quem ganhou, que deram assim, meio assim: “Vamos dar, já que vocês estão aqui, ocupem o espaço”. Mas foi assim: elas foram ocupando, primeiro ocuparam os bancos, aí do banco elas foram até chegar às salas.
P/1 - E a relação de vocês com esse espaço? Quando começou a frequentar esse espaço, contou um pouquinho da história da formação, mas vocês conheceram a Cleone não necessariamente aqui na Luz, mas se vocês frequentavam aqui...
Edna - Eu conheci, como eu já falei, na Marcha Mundial que eu faço parte. Eu falava para ela: “Na hora que eu me aposentar, eu vou ser voluntária lá no porão, com você” “Ah, quero ver, bonitinha, se você vai vir mesmo”. Ela falava bonitinha, era sempre muito carinhosa: “Quero ver só se você vem”. Aí vim, me aposentei, porque a gente sempre se encontrava em reunião da Marcha, 8 de março, atividade, ela estava… sempre em todas as questões das mulheres, ela estava presente. Aí comecei vir, tudo, ela falou: “Então, vamos ver na questão da saúde das mulheres a preocupação, vamos ver a questão...”. Ela estava querendo que as mulheres... estava começando um negócio de cuidadoras, então várias das mulheres fizeram curso de cuidadoras, aí ela falou assim: “Hoje tem as mulheres que entregam preservativo, gel, tem um...”. Naquela época era ela. Ela falou: “Está a fim mesmo de fazer um trabalho, então, vamos lá”. Aí nós fomos nesse prédio 69. É 69 que fala, né, que tem aqui. Eu e ela, com aquela sacola aqui pesada de gel, chegamos lá, o elevador quebrado, subimos todas as escadas em caracol, cada andar ela parava, ia ver as mulheres, se elas queriam o preservativo e o lubrificante e conversar. Ficamos uma tarde inteira fazendo esse trabalho. “Falei que eu vinha com você e vim”. Hoje é tranquilo, tem lá a equipe, bonitinha, existe o projeto, mas no começo foi ela. E ela não fazia só aqui, ela fazia no Parque Dom Pedro, toda essa região aqui, Parque do Glicério, mais no Parque Dom Pedro também e depois foi que veio toda essa... conseguiu que outras pessoas fizessem, mas a princípio era ela. E eu tive essa oportunidade de um dia fazer esse trabalho com ela, era ‘barra pesada’, mas ela enfrentava, não tinha... de igual para igual ela conversava, né? É isso.
Ana - Eu frequentava o espaço, quer dizer, quando eu aparecia, né, que aí eu já não estava mais em situação de prostituição por aqui. Aí eu vinha de vez em quando, aí eu falava: “É, Cleone, preciso fazer alguma coisa”. Ela: “Legal, mas você some. Quando pensa que você está aqui, você não está mais”. Mas eu vinha de vez em quando. Eu dei acho que uma oficina, ou duas no espaço, uma foi de sabonete, que eu lembro bem, que até ela deu a maior força para eu dar: “Ai, Cleone, eu não vou conseguir, eu não vou conseguir”. Ela falou: “Não, você vai conseguir”. Aí eu dei, me senti toda importante. E uma foi que foi feito uma... digamos, um encontro ecumênico e o pessoal do grupo espírita que ia falar não veio. Aí eu falei, inclusive eu improvisei, também me senti o máximo. E eu, nessa época, já estava trabalhando, porque ela tinha me indicado para trabalhar de cuidadora com a Jaci, que era uma psicóloga que era voluntária daqui e na época ela nem estava voluntariando mais. E eu fui olhar o irmão e a mãe da Jaci. Aí eu estava trabalhando já, mas a Jaci falou: “Não, você pode ir no encontro sem problema nenhum, eu fico com a minha mãe, eu fico aqui”. E foi muito bom pra mim e aí eu vinha de vez em quando. Aí uma situação muito engraçada que aconteceu foi que um dia eu cheguei, eu estava sem gás em casa e tal, com uma cara, aí comi quase todas as bolachas que estavam na mesa, tomei um café, uma fome. Aí ela olhou pra mim: “Por que você está com essa cara?” “Não” “Ana, por que você está com essa cara?” “Não” “Vai falar ou não vai?” “Eu queria comer arroz e feijão”. Aí ela pegou: “Tá, então vamos no bar comer arroz e feijão”. Então foi muito gratificante, assim. O espaço foi muito gratificante.
Thamiris - Pra mim, assim, eu conheci a Cleone mais de militância, né? Quando eu a conheci lá em Diadema, que eu fazia parte do movimento estudantil e ela sempre na causa das mulheres, no movimento de moradia, dos desempregados, era uma grande liderança, então a gente sabia dessa militância dela e sabia que ela tinha um trabalho em São Paulo, mas não sabia qual. Quando eu passei necessidade, eu vim pra São Paulo, fiquei em situação de prostituição também, até um dia que eu encontrei com ela na porta de um bordel. Eu estava encostada assim, saí lá fora pra fumar e ela chegou com preservativo. Eu falei: “Pronto, a ‘casa caiu’. Agora o ‘bicho pegou’, minha vida acabou. Lá em Diadema vai todo mundo saber”. Tanto que quando voltou pra Diadema, que eu encontrava com ela nos movimentos, eu, ó, fugia. Até um dia que ela chegou pra mim e falou: “Bonitinha, vamos tomar uma cerveja?” Eu falei: “Pronto, agora não tem mais pra onde correr. Não tem mais jeito”. E ela me contou do trabalho que ela tinha com as mulheres, que não era pra me preocupar, que ia ficar entre a gente. Aí contou da história dela, o quanto era difícil. Ela era uma pessoa, mas aqui em São Paulo as pessoas a conheciam como outra, porque lá todo mundo sabia que ela era uma liderança, mas como militante mesmo, dos movimentos sociais. E aqui, além de militante dos movimentos sociais, ela tinha esse trabalho mais proveitoso com as mulheres. Então, aí eu comecei a participar do coletivo como assistida, comecei a vir. Aí eu vinha uma vez no mês e ela falou: “Ó, você está fugindo. Não é pra fugir de lá, não”. Aí eu comecei a vir com mais frequência com ela, mas às vezes, assim. Eu sempre falava: “Não, não vou hoje, não”. Eu sempre arrumava uma desculpa, porque eu não queria estar aparecendo aqui, né? E ela sempre daquele jeitinho, como ela fazia o ‘trabalho de formiguinha’ com todo mundo, foi me trazendo. Até mesmo quando chegou na pandemia, foi a parte que eu mais fiquei, tive... foi que eu fiquei mesmo dentro do coletivo e ficava eu, a Lúcia, ali na Casa do Povo, né? Porque o parque fechou na época da pandemia e as mais idosas ficavam em casa, então ela me colocou pra vir junto, a Lúcia era uma teimosa que não queria ficar em casa, então teimou e veio junto também, então foi a parte que eu mais fiquei conhecendo o coletivo a fundo, né? Porque eu vinha, dava uma passada com ela e já queria fugir. Então, pra mim, assim, hoje tudo que eu... foi o que eu falo: a Cleone e o coletivo mudaram a minha vida, porque eu acho que eu não queria sair da prostituição, porque era onde supria minhas necessidades, mas foi aqui que eu fui criando saída. Eu falava: “Não, não consigo”. Ela falava: “Você consegue”. Até mesmo a questão do sabonete, ela só virou pra mim: “Ó, vocês estão fazendo sabão em pedra lá na Casa do Povo, não estão?” Eu falei: “Estou”. Ela falou assim: “Ó, só que eu preciso de sabonete líquido”. Eu falava: “Está bom. E aí?” Ela falou: “Se vira, amanhã eu quero na minha mão”. Eu: “Oi?” E aí você vai. E isso tudo era dentro de casa e nós conversando pelo portão, porque eu passava, ficava aqui e depois passava na casa dela e ela queria o ‘relatório do dia’. E ela: “No outro dia você chega com a garrafa de sabonete”. Falei: “Não”. Lá vai pro Google e você faz todas as receitas, uma não dá certo, faz outra, não dá certo. E ela procurava isso mesmo não só de mim, mas das mulheres também, ela provocava pra ver até onde você ia, te colocava nas situações difíceis, até mesmo pra você provar que você tinha capacidade, sabe? Até mesmo pra se mostrar pra gente mesmo. Então, esse espaço Coletivo Mulheres da Luz foi muito bom pra minha vida e pra vida de muitas mulheres. Quando ela estava no hospital, que ela virou pra mim e falou assim: “Enquanto eu estiver fora fica do lado do João, ‘toca’ o coletivo lá, continua o meu trabalho enquanto eu tô lá”. Eu falei: “Não, escolhe outra mulher, eu não, não tô preparada pra isso, não”. Ela falou assim: “Bonitinha, você acha que eu sou boazinha? Você acha que o que eu fiz com você, eu peguei na sua mão, te levava pra cima e pra baixo à toa? Não, foi pra você aprender, você está pronta, sim. Então você e o João vão ‘tocar’”. E infelizmente ela não retornou, que eu ainda falava pra ela: “Você vai estar de bengalinha do meu lado, me instruindo e junto lá, com as mulheres”, mas estamos tentando fazer pelo menos um pouquinho do que ela fez.
Ana - Essa história de sabão, você foi o sabonete, eu fui o sabão mesmo. Ela me ligou um dia e falou assim: “Oi, Ana Eulália, tudo bom?” Eu: “Tudo”. Então, eu preciso de cem pedras de sabão pra daqui a uma semana”. Eu: “E o que eu tenho com isso?” “Você vai fazer elas” “Cleone, eu não sei fazer sabão” “Se vira, aprenda” “Ai, meu Deus, o que eu faço?” Aí, quando eu já estava com uma amiga minha: “Como que eu faço sabão e não sei o que, não sei o quê”, aí a Gabi, uma outra voluntária, falou assim: “Ana Eulália, vai ter uma aula de sabão na Casa do Povo. Você está a fim de ir?” “Eu vou, Gabi. Precisa levar alguma coisa?” “Não, só você”. Aí eu fui e consegui aprender a fazer sabão. A gente ficou lá por três anos, inicialmente fazendo sabão pra doar. O coletivo comprava uma parte do sabão e a gente dividia o dinheiro entre nós e depois a gente começou a fazer pra comercializar mesmo. Que acabou, infelizmente, o ano passado essa parceria. Agora é bem pontual. Às vezes tem alguma coisa, mas é bem pontual. Mas foi muito engraçado quando ela falou, aí eu fui tentar fazer o sabão. Ainda fiz um sem soda ainda, que é mais difícil. O sabão chegou todo molengo. É, mas o que ela ria da minha cara. Sabão todo molengo, todo estranho. Ela ria muito da minha cara.
P/1 – Você era mais teimosa, então? Você era mais teimosa.
Lúcia - Então, como a dona Thamiris disse antes que eu sou, era teimosa, esse é um assunto muito sério porque eu tô com ela até hoje, quarta quinta e sexta, eu dou ____, eu faço cafezinho pras meninas, eu faço o que eu posso, né? Na terça, como tem uma pessoa sozinha, eu tenho prazer de passar lá de manhã e dar uma ajudinha, fazendo o café, o chá, e deixar tudo pronto. Sou teimosa, né, Thamiris?
P/1 - Uma coisa que eu queria saber, como era a diversão dela? Ela gostava de tomar uma cervejinha?
João - Uma não, né? Umas.
P/1 - Mas não sei, às vezes música, alguma música, coisa, específica que ela gostava bastante, mas como era o momento? Pra além dos momentos de luta, dos ‘corres’, né, o que tinha de momentos de diversão? Que, pelo jeito, era divertido.
Thamiris - Quando ela estava em casa, que ela, assim, não estava militando, não estava aqui no parque e tudo. Às vezes as mulheres estavam em casa, cada uma na sua casa. Daqui a pouco Cleone ligava: “Olha, estou fazendo um almocinho aqui, vem aqui em casa”. Só que ela fazia aquela panelada de comida, aquela panelada mesmo. Aí daqui a pouco ia chegando uma, chegando outra e ela gostava daquelas músicas mais antigas, né? Aquelas mais de... como é que é o nome?
Ana - Raiz?
Thamiris - É, mais raiz. E um samba. Ela gostava muito de ir num samba lá perto de casa, que eles começavam no almoço, começava na cerveja, daquela cerveja você fazia um tour no bairro inteiro, porque ela ia passando de bar em bar com as mulheres que iam almoçar na casa dela, terminava no samba, a gente ia, voltava pra casa dela, ainda comprava mais cerveja e ali até a hora que chegava no limite. Então, assim, ela não curtia um momento, acho que assim, pra ela sair e falar assim: “Hoje eu vou me divertir”, era muito raro, mas quando ela tinha oportunidade de estar em casa, era sempre alguém almoçando na casa dela, era sempre ela chamando, ela convidando pras pessoas estarem junto ali, dela.
Ana - Teve uma vez que eu estava aqui no ‘coiso’ e eu nunca fui, eu tomava cerveja, mas muito menos que ela. O dia que eu tentei acompanhar, me atrevi, achei que eu conseguia acompanhar, dormi no metrô, mas tudo bem. Aí ela pegou e falou assim: “Ana Eulália, você vai embora?” Eu falei: “Vou” “Vamos até o Jabaquara comigo, que depois eu pago o seu metrô de volta”. Falei: “Vou”. Aí chegou lá, nós fomos num bar, ela olhou pra cara da garçonete: “Tem feijoada ainda?” Isso era dez horas da noite. A moça: “Tem” “Uma feijoada grande, por favor. Uma cerveja. Você vai me acompanhar na cerveja, ou você quer outra coisa?” “Não, eu tomo cerveja”. Nós saímos de lá ‘maior tardão’. Suficiente pra ela me pôr no metrô de volta. Foi muito legal. E uma vez que ela foi no meu aniversário, eu a convidei pro meu aniversário, aí ela estava com... ela tinha um companheiro dela que estava com Alzheimer e eu chamava ele de meninão. Falei: “Vai e leva o meninão” “Tá”. Aí a hora que ela chegou lá, eu falei: “Cadê o meninão?” “Ele? Arrumei bonitinho pra ele vir. Ele olhou pra minha cara e falou: ‘Cadê o Uber?’” Ficou lá. E a gente se divertiu muito no aniversário. Ela falou: “Nossa, eu nunca tive tão feliz”. Foi muito bom, assim, a gente se divertiu muito, foi quando ela conheceu mais minha irmã, que ela já conhecia, mas ela conheceu mais. Então, foi muito bom. Foram os momentos de diversão, assim, que eu participei com ela e uma feijoada que ela fez em Diadema, que quase me deixou louca, que depois eu não conseguia voltar de lá.
João - Eu acho que, assim, a diversão da Cleone, isso é uma coisa, assim, a cerveja. Ela tinha prazer de sentar num bar e às vezes, pra mandar ela embora... o Uber salvou a vida dela, porque antes ela era até onze e meia, assim: “Cleone, o metrô, está na hora de ir embora”. Ela: “Não, mas dá um tempinho, eu sei que dá tempo” “Não, não dá”. Quando não dava, ela pegava a cerveja e ia até o metrô. Mas eu acho que tem, assim, era uma mulher de muito bom gosto. Ela, assim, eu acho que a música que eu sempre ouvi Cleone gostando era Anunciação, do Alceu Valença, e do Tim Maia. Ela adorava muito Tim Maia, Black Music e isso ela traz na memória, ela diz que eram coisas do bairro, que se tocava nos bailes e samba-rock. Uma outra coisa que ela sempre tinha, tanto que na casa, quando a gente fazia festa, sempre era MPB, a gente nunca tocou música internacional e ela tinha que estar mesclado o passado e cantoras mais recentes e isso era muito legal. E ela era uma mulher, assim, de muito bom gosto, tanto na simplicidade dela pra se vestir. De repente ela falava assim: “Eu vou fazer um guisado lá em casa”. Ela tinha essas coisas de um bacalhau. Então ela tinha isso, sempre estava com um livro na mão, eu ainda brincava: “Você lê mesmo, ou isso é pra enfeitar?” E ‘antenada’ com as coisas, que era muito interessante, porque eu vejo o que ela fez com as mulheres aqui, a importância da parceria com o Museu da Língua Portuguesa, a parceria com a Pinacoteca, ela sempre obrigava meio que as mulheres: “Não, tem que visitar, tem que participar” e pareceria que era isso, ela entendia que era na cultura que a gente ia dar uma outra... como a cultura tem a responsabilidade de mudar as pessoas, então ela tem isso. Eu acho que gostava de gente, ela gostava, ela conseguia conviver com as pessoas da idade dela, mas ela também agregava muito jovem em torno dela, nas ideias dela, tanto que a gente falava assim: “Meu Deus do céu, onde que você vai trazer tanto adolescente pra cá?” Aí chegava aquela revoada de adolescente querendo ser voluntário, aí eu falava assim: “Mas só está atrapalhando”, aí ela falava assim: “Dá jeito, dá jeito”. E acho que tanto que a gente brinca que tinha duas pessoas: a Cleone, aquela pessoa responsável pela ONG e a Fátima. A Cleone chamava de lindinha, florzinha; a Fátima não. Quando a Fátima chamava assim: “Querida”, você já sabia que o negócio estava ‘pegando fogo’. E a gente sempre brincava quem era mais próximo, assim: “Mas cadê a Fátima, onde está a Cleone?” E eu acho que ela gostava da vida dela, era uma pessoa que tinha prazer de fazer as coisas, ela ia pra esses eventos pra poder dormir em acampamento, essas coisas todas, ela ia com o maior prazer, que ela sempre falava assim: “Não, eu tô encontrando minhas companheiras de luta”. Então tinha e ela fazia isso com o mesmo prazer que ela sentava no bar pra tomar cerveja, ou fazer um almoço e reunir as pessoas, então ela gostava da vida, ela gostava de celebrar, por isso que talvez a gente teve dificuldade de registrar a vida, uma parte da vida dela, que as coisas difíceis ela nunca quis dividir muito, foi muito mais a parte de celebrar as coisas que ela achava que interessava ao coletivo, a toda a sociedade e a parte boa, porque aquilo não era importante, aquilo não era... as coisas de mudanças sociais eram muito mais importantes do que as coisas individuais dela.
Ana - E a gente, recentemente, acho que tem uns dois anos isso, sentou lá na casa e conversou e aí ela falou assim: “O meu sonho é reunir algumas mulheres que foram vítimas de violência, principalmente de violência sexual, para alugar uma casa, a gente ir tudo para essa casa e aí a gente pode falar abertamente, sem crítica, sem nada e ficar lá o fim de semana, só falando”. E acabou não acontecendo, mas o sonho dela era esse.
Edna - Então, só um trechinho que falou do que ela gostava, eu não tive essa vivência que o João teve com ela, nem a Thamiris que foi até a casa dela, ofereceu almoço, mas a nossa convivência era mais no movimento de mulheres. Isso que o João falou, que ela dormia no acampamento, nós ficamos dez dias, fizemos uma caminhada de Campinas a São Paulo e ela ficou lá uns dez dias. A gente, cada cidade era um lugar que a gente dormia, mas tem uma parte, independente disso aí, que teve um... ela falou assim: “Gente, vocês veem que os homens saem, vão lá jogar snooker e tudo mais, vamos fazer isso nós”. Aí fui eu, Mariá, a Bernarda, foi uma turma, umas seis mulheres: “Vamos chegar lá, vamos encarar aqueles homens, nós vamos jogar bilhar” e foi muito interessante. Pegou mesmo lá no taco e jogou bilhar. Então foi um momento que eu lembro, assim, de se divertir e de música não lembro, mas disso aí, dela peitar e falar: “Por que nós não podemos ir num bar e tomar cerveja e jogar bilhar, seja o que for? Não é um esporte que é só dirigido para o homem, a mulher também tem que ter esse direito”. Foi muito legal, pleno Anhangabaú nós fomos lá jogar bilhar. Esse foi um fato que marcou, assim, com a Cleone.
P/1 – Essa Marcha foi quando?
Edna - Em 2010 nós marchamos de Campinas a São Paulo e ela esteve presente todos os dias lá, com chuva, com sol. A gente, cada cidade, cada noite acampava em uma cidade e foi muito interessante. Foi tudo registrado, tudo filmado.
P/1 – Tem alguma cidade que teve alguma coisa marcante?
Edna - Teve, teve, que deu uma chuva, uma chuva, que era todo mundo... a gente ficava em acampamento, em barraca e a água vinha assim, ó. Aí foi transtorno, muita gente pegou as malas, vinha embora, que não ia continuar, mas nós demos prosseguimento até o Pacaembu. Essa dificuldade aí do temporal foi pior.
João - A Cleone, quando ela começa a prostituição, ela começa aqui dentro do Parque da Luz, que ela veio, ela fazia trabalho no Bom Retiro, faxina, e ela conta isso. Isso é uma coisa que a gente fala assim: são as histórias da Cleone. Então, é a narrativa dela, dela, ela sentada no banco, na hora do almoço e sempre um cliente vinha e oferecia alguma coisa e ela, até um dia ela aceitou e viu que ela ganhava muito mais do que fazer a faxina. Então, foi onde ela entrou e depois ela fez isso. É uma coisa que aqui tem um trânsito muito grande, hoje não é desse jeito, mas era uma região que, assim, a Luz, aí depois você descia ali Paissandu, Praça do Correio, depois você subia a Sé e a Liberdade. Então, sempre foi um... e o Brás, então sempre foi um... as mulheres transitavam dentro dessas áreas durante a semana, algumas, porque sempre foram caminhos de prostituição na região.
P/1 - Mas ela militava em Diadema?
João - Ela sempre morou em Diadema, ela veio pra cá porque é isso: as mulheres sempre que vão fazer prostituição, não vão fazer na esquina de casa, até porque a maioria faz de uma forma oculta da família. Então, ela vindo pra São Paulo pra trabalhar, ela chegando aqui, aí que começa a entender a prostituição como uma forma dela conseguir remuneração.
P/1 - O que cada um de vocês diria que é tipo um grande aprendizado que a Cleone deixou nessa vida aí? Um legado, um aprendizado. O que marcou a vida dela? Pode pensar.
Ana - Que tudo o que a gente faz, a gente tem que ter responsabilidade, porque tudo a gente tira um proveito. Se estudar, se trabalhar, se prostituir, tudo o que a gente fizer a gente tem um aprendizado. Só assim a gente consegue crescer na vida e aprender o que a gente pode fazer pra se empoderar como mulher.
Edna - Eu acho que ela cortou esse paradigma do preconceito com as mulheres em situação de prostituição. Quando ela quer se inserir, inserir as mulheres na Marcha Mundial das Mulheres, que é um movimento, ela quis quebrar isso, então isso marcou. Sempre houve prostituição na cidade de São Paulo, em tudo que era lugar. Nunca nenhuma dessas mulheres que conviveram chegou até nós, chegou até a Marcha, até o movimento social, assim, pra se apresentar. Ela fazia isso que o João citou, ela já não se prostituía mais, ela só fazia um trabalho com as mulheres e ela quis inserir as mulheres. Então, eu acho isso marcante, isso muito inovador no caso dela, muito inovador. Ela falou: “Não, o que é isso? As mulheres são... mulher é mulher em qualquer lugar, então vamos respeitar e vamos ensinar também pra elas e ensinar pras outras”. Aprendi bastante com essa experiência com ela.
P/1 - Às vezes o aprendizado é uma ótima receita de bolo de fubá, mas não precisa.
João - Eu, assim, particularmente, Cleone de assistida a gente ficou muito amigo. Então, quando ela começou, veio com o projeto dela, vi como uma pessoa que ela ia tomar a frente, fazer o trabalho com as mulheres, eu fiquei sempre ajudando, ficamos nisso. Eu fico... quando eu olho hoje, eu vejo assim, a capacidade que ela teve, porque não tinha barreiras pra ela. Quando ela foi no movimento feminista, eu lembro que a gente fez um combinado, iam três mulheres e a gente ficava pensando assim: “Como vão chegar três mulheres, simples, negras, dentro de um contexto de um movimento feminista que é, vamos dizer assim, onde reunia a nata do feminismo de São Paulo e ela foi, na maior simplicidade dela, sabe? E aí a gente ia acompanhando. E ela foi. Depois: “Ah, tem um encontro pra ir em tal local, vou também”. E ela foi indo, sabe? Sem nenhum temor. Ela tinha certeza do que ela queria. Ela não tinha medo do não, sabe? Ela falava assim: “Ah, não aqui, mas sim lá na frente”. Aí ela dava uma volta e fazia de outro jeito. Então eu acho que eu, às vezes, sou muito pessimista, né? E ela ficava do lado: “Vamos fazer almoço?” “Quantas pessoas?” “Cento e cinquenta”. Aí eu falo assim: “Ãhn?” “Vai, não tem problema”. Aí daqui a pouco ela: “Você vai me ajudar a cozinhar?” Eu falei assim: “Não, mas você falou que ia fazer o almoço”. O importante que no outro dia chegava as cento e cinquenta mulheres, o almoço estava lá, pronto, tudo arrumadinho, tudo certinho e ela tranquila, fala assim: “Não viu que ia dar certo?” Então eu acho que era isso, ela. Ela não teve... e acho que ela chegou aonde nem ela pensava que ela fosse chegar. Quando ela foi convidada pra ser a coordenadora de políticas públicas pras mulheres de Diadema, aí eu lembro que quando ela me ligou, eu falei assim: “Mas aí não era pra isso que você lutava, pra ter uma voz que falasse pelas mulheres e principalmente escutar as mulheres mais excluídas? Você chegou lá. E muito rápido, até”. Então eu acho que é isso: ela não tinha, mas também ela não pensava, não era uma coisa construída na cabeça dela: “Estou aqui hoje e amanhã eu quero galgar esses poderes”. Ela foi indo. E de repente ela era reconhecida pelas pessoas como aquela liderança. Então eu acho que essa construção dela, assim, de sonhar e... eu não sei se ela conseguia organizar, porque eu acho que ela não era boa de organização, mas ela era capaz de ir fazendo e o que a gente sempre falava é que a gente ia do lado, a gente ia construindo e ajudando ela a colocar isso no papel, a muitas vezes pensar um pouco melhor, mas ela tinha uma ideia, ela perseguia. Ela procurava as pessoas que ela achava que pudesse ajudar e então era isso. Tem uma frase dela que ela diz que as mulheres em situação de prostituição têm o direito de sonhar. E acho que é isso. Primeiro porque ela sonhou, então ela sabe que ter esse direito de sonhar, aí depois de realizar esses sonhos, eu acho que ela fez isso. Então, essa possibilidade de a gente construir os nossos sonhos ela deixou muito marcada.
Thamiris - Foi o que eu disse: ela demonstrava a nossa capacidade, que nem a gente acreditava que tinha. Então ela provocava muito isso, ela esfregava na cara da gente, falava: “Não consigo” “Consegue sim”. Eu falava: “Mas não vou” “Você vai. Ah, você vai. Mas vai sim”. Então essa coisa assim de não só sonhar, mas tornar esse sonho realidade. Ela falava muito de sonhar, mas ela mostrava que você tinha o caminho para fazer esse sonho acontecer, para fazer... que eu jamais pensava que eu fosse me formar em duas faculdades. Tanto que quando eu comecei uma, que eu comecei primeiro o Serviço Social, que ela ficou no meu ouvido: “Não, você tem que estar lá, você tem que fazer Serviço Social”. E eu: “Não, não quero, não” “Vai, você vai, você tem que entender mais, alguém tem que ser estudado. Eu não consegui fazer Sociologia, você vai fazer Serviço Social”. Eu falei: “Está bom”. Quando eu estava no meu trabalho, fazia dois anos que eu já tinha começado Serviço Social, exigiram eu fazer Gestão Pública. Aí eu falei: “Eu vou trancar uma”. Ela falou: “Não, você vai fazer as duas”. Eu falei: “Mas eu não vou dar conta”. Ela: “Você vai”. Então, assim, uma das coisas que ficou mais marcante essa lição de vida é você acreditar no seu potencial. Ela nunca deixou a ‘peteca cair’, por mais difícil que tivesse, ela nunca demonstrava isso, e isso é o que vou levar para o resto da vida, além de outras coisas mais.
Lúcia - Bom, a Cleone era o tipo de uma pessoa que quando ela falava alguma coisa, parecia que ela já estava pensando aquilo ali há dias, mas não era, de uma hora para a outra ela saía e parece que já estava resolvido. Ela só ia buscar a resposta, mais nada. Ela era muito boa nisso, né?
P/1 - Você lembra de alguma resposta específica que marcou, que parecia, assim, algum exemplo desses de resposta?
Lúcia - No momento... uma coisa: quando chegou a epidemia, todas nós pensamos que ia parar tudo, que tinha que parar. De uma hora para a outra ela chegou, ela já tinha arrumado um local lá na Avenida Tiradentes, que foi eu e a Sol, a menina que trabalhava, negócio de entrega da cesta básica, tudo isso. Pois ela arrumou lá, uma pastora da igreja cedeu um bom pedaço pra ela, nós tivemos lá um bom tempo, aí depois de lá que a gente foi pra Casa do Povo. Ela não pensava, ela dizia: “Vai fazer isso”, aquilo ali parece que já estava pronto. Era desse jeito que ela agia. Enquanto um ‘se apertava’, ela já tinha resolvido.
P/1 - Mais alguma memória, lembrança que querem compartilhar? Qualquer coisa assim, se lembrar, pode falar depois. A maioria aqui tem meu contato também, para formalizar e para me mandar também.
P/2 - Eu entendo que é isso, né? A partir dessa roda a gente vai criar um cordel.
O jeitinho dela não poderia faltar, sabe assim? Um causo marcante, uma história, algum dia. Podemos pensar um pouco. Não tem certo, nem errado, só uma curiosidade mesmo que a gente está perguntando.
Ana - Ela sabe que todos os sonhos eram possíveis de serem realizados. Independente das dificuldades, das barreiras, todos os sonhos eram possíveis.
P/1 - Mas conviveram tanto, tem mais história aí. Às vezes alguma história muito do cotidiano também. A gente pensa tanto nas coisas grandes que as pessoas fazem, mas também são as coisas do cotidiano.
Ana - Tem uma coisa engraçada, ela falava assim, a Pretinha, por exemplo, ela falou: “Nossa, quando a Pretinha foi trabalhar com a gente eu não sabia o nome dela” “Mas como você não sabe o nome dela?” Ela: “Pois é. Eu faço tanta marmita para os filhos dela, ajudei tanto, mas não sei o nome dela”. Então, para ela era indiferente ela saber o nome ou não saber, ela ajudava e acabou, entendeu? Ela passava e: “Está precisando?”, ela não ia procurar saber quem era, quem não era, se era daqui, se não era, ela ia ajudar.
Thamiris - Ela tinha muito isso, né? Ela falava: “É uma mulher e está precisando da gente”.
Ana - É.
P/1 - Então, é isso. Gente, fiquem à vontade, se lembrarem de qualquer história podem me mandar, que a gente vai juntando o ‘quebra-cabeça’ e a vida da Cleone. A gente pode terminar, então, esse momento de troca e eu queria agradecer muito vocês por compartilhar essas memórias, que fazem parte da vida de vocês também, né? A gente está aqui com foco na vida da Cleone, mas faz parte da vida de vocês também. Muito, muito obrigada. A gente vai avisando conforme a gente tem uma exposição aqui, para que vocês verem também. Se quiserem... qualquer dúvida, qualquer coisa sobre até como o material que a gente vai usar falem com a gente, pode perguntar agora também. Acho que é isso.
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