NASCIMENTO E INFÂNCIA
No registro consta como 15 e não 12 de abril, em virtude do seguinte ocorrido: em solteiro meu pai mantinha amizade com um solteirão inveterado, que tudo faz crer foram grandes amigos de farra. O referido chamava-se João Pinto Pedroso e foi convidado por meu pai, para junto com minha avó paterna (viúva) serem meus padrinhos de batismo. Como meu pai estava adoentado e não podia ir até Ibiúna (ex-Una) pediu ao padrinho para fazer meu registro. O referido cidadão era freqüentador assíduo da zona de meretrício existente na cidade e por essa razão para lá se deslocava constantemente. Ocorre que o senhor João Pinto Pedroso, certamente em um de seus bacanais, esqueceu tudo e fez uma autêntica salada, trocando a data do nascimento de 12 para 15, dando como casados meu avô paterno com a avó materna e vice-versa: o avô materno com a avó paterna. A minha infância até os cinco anos, foi normal sem nada de muito especial. Vivia em companhia de meus pais e de uma irmã mais velha que eu um ano e meio. A nossa casa era de pau-a-pique, ou seja de madeira e barro, chão de terra batida. O fogão era a lenha e a água apanhada no riacho próximo, onde também era lavada as roupas. A nossa casa ficava a mais ou menos oitocentos metros de outra igualmente de pau-a-pique, onde morava minha avó paterna, uma tia chamada Leopoldina, casada com um indivíduo chamado Marciano, muito mais novo que ela e duas solteironas, cujos nomes eram Henriqueta e Antonia, ambas sobrinhas de meu pai e órfãs de mãe. As atividades de meus pais eram a agricultura, cultivando pequenas roças de milho, feijão, batatas e criação de galinhas e porcos. Os bens materiais de meus pais nessa época resumiam-se em uma parcela do terreno onde morávamos e outro distante alguns quilômetros, o paiol, como era chamado esse local onde eram feitas as plantações, um burro chamado "Estrela" algumas galinhas, porcos e um cachorro que atendia pelo nome de "Sereno". A...
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No registro consta como 15 e não 12 de abril, em virtude do seguinte ocorrido: em solteiro meu pai mantinha amizade com um solteirão inveterado, que tudo faz crer foram grandes amigos de farra. O referido chamava-se João Pinto Pedroso e foi convidado por meu pai, para junto com minha avó paterna (viúva) serem meus padrinhos de batismo. Como meu pai estava adoentado e não podia ir até Ibiúna (ex-Una) pediu ao padrinho para fazer meu registro. O referido cidadão era freqüentador assíduo da zona de meretrício existente na cidade e por essa razão para lá se deslocava constantemente. Ocorre que o senhor João Pinto Pedroso, certamente em um de seus bacanais, esqueceu tudo e fez uma autêntica salada, trocando a data do nascimento de 12 para 15, dando como casados meu avô paterno com a avó materna e vice-versa: o avô materno com a avó paterna. A minha infância até os cinco anos, foi normal sem nada de muito especial. Vivia em companhia de meus pais e de uma irmã mais velha que eu um ano e meio. A nossa casa era de pau-a-pique, ou seja de madeira e barro, chão de terra batida. O fogão era a lenha e a água apanhada no riacho próximo, onde também era lavada as roupas. A nossa casa ficava a mais ou menos oitocentos metros de outra igualmente de pau-a-pique, onde morava minha avó paterna, uma tia chamada Leopoldina, casada com um indivíduo chamado Marciano, muito mais novo que ela e duas solteironas, cujos nomes eram Henriqueta e Antonia, ambas sobrinhas de meu pai e órfãs de mãe. As atividades de meus pais eram a agricultura, cultivando pequenas roças de milho, feijão, batatas e criação de galinhas e porcos. Os bens materiais de meus pais nessa época resumiam-se em uma parcela do terreno onde morávamos e outro distante alguns quilômetros, o paiol, como era chamado esse local onde eram feitas as plantações, um burro chamado "Estrela" algumas galinhas, porcos e um cachorro que atendia pelo nome de "Sereno". A minha avó materna, também viúva, morava em outro local a cerca de uma légua mais ou menos no bairro denominado dos "Grilos". A casa de minha avó materna era bem melhor que a nossa, também de madeira e barro, porém rebocada e caiada. Lembro-me vagamente de certos acontecimentos que apesar da pouca idade me deixaram recordações. Uma certa noite os cachorros estavam ladrando e perseguindo algo em um matagal próximo a um rio que passava na propriedade. O meu tio Marciano, da casa em que morava, chamou meu pai e ambos foram ver de que se tratava e para espanto dos dois estava em um galho sobre o rio, uma enorme onça com os olhos brilhando no escuro da noite. Quando ambos se aproximaram com a intenção de disparar as espingardas o felino saltou do local e desapareceu. Em outra ocasião, mamãe estava adoentada e meu pai me mandou ir a casa de minha avó paterna, que como já descrevi ficava cerca de oitocentos metros em frente, a fim de apanhar sabão (o sabão era feito em casa e embrulhado em palha de milho), porém o que eu devia trazer era marmelada também feita em casa e igualmente embrulhada em palha de milho. A marmelada era para mamãe colocar na água quente e tomar como alimento. Ocorre que apesar de ser criança não me deixei enganar e no caminho resolvi experimentar o sabão que por certo gostei muito e comi todo o pedaço que minha avó havia dado. O meu pai que me observava da porta de casa , se quis mais sabão ou marmelada teve que ir pessoalmente buscar. Outra ocorrência da qual não consegui esquecer, foi quando eu e minha irmã fugimos de casa e fomos até a casa de minha avó materna, distante uma légua mais ou menos. Em nossas cabecinhas não imaginamos o quanto teríamos de andar e quando nossos pais deram pela nossa falta, saíram a nossa procura por todos os locais nas proximidades, porém nunca poderiam imaginar que tivéssemos ido a casa da avó, onde almoçamos uma boa sopa de feijão. Após o almoço o tio Joaquim, irmão de mamãe, nos levou de volta e como prêmio recebemos de papai uma bela surra com o cinto. Os produtos advindos do trabalho de meus pais e de mais parentes, em geral eram os seguintes: milho, feijão, batatas, ovos e frangos. Os referidos produtos eram transportados em lombo de muares (tropa),para serem vendidos nos mercados municipais de Pinheiros ou de Santo Amaro. Os tropeiros demoravam em média cinco dias para fazerem a viagem de ida e volta .Todas as coisas necessárias para a sobrevivência tais como: açúcar, sal, arroz, tecidos, ferramentas etc. eram comprados com o produto das mercadorias vendidas. Lembro-me que de tempo em tempo éramos visitados por um turco (mascate), que vendia tecidos, linhas, agulhas, tudo enfim que se denomina armarinhos. O seu Joaquim Turco, como era conhecido, viajava com dois burros, um carregava dois baús cheio de mercadoria e outro servia para montaria e transporte de artigos que recebia como pagamento "quando o comprador não tinha dinheiro", tais como ovos, frangos etc. A chegada do senhor Joaquim Turco era para nós, crianças, uma festa, uma vez que em seus baús existiam muitos brinquedos que nem sempre podíamos comprar e assim sendo, nos ficávamos felizes em olhar as bonequinhas, gaitas e tantos outros brinquedos.
"DO SERTÃO À CIVILIZAÇÃO"
O irmão mais velho de meu pai, chamado Emílio, (seu Milico na intimidade) quando ainda bem jovem deixou estas paragens e foi viver próximo a Santo Amaro, mais precisamente no bairro do Valo Velho, onde se casou com uma moça de nome Isabel. O seu Milico era pessoa dotada de grande visão comercial e logo entrou para o negócio de fazer carvão, o combustível da elite na época dos fogões a lenha. Como no Brasil poucas pessoas sabiam cozinhar a madeira para produzir o carvão, o meu tio começou a receber famílias de italianos, imigrantes, especializados nessa atividade. Como o negócio estava progredindo, meu tio convidou o irmão (meu pai), para fazer parte do trabalho. Aceito o convite, foi providenciada a mudança e assim deixamos com muita saudade o local onde nasci. Em uma manhã muito fria, deixamos para trás e com muita tristeza, os parentes e em especial as avós paterna e materna. Eu e minha irmã de nome igual a da mãe, ambas Benedita, fomos colocados montados no burro "Estrela" e em outro animal foi colocado o cesto (jacá) com as galinhas e as poucas panelas e roupas que possuíamos. Papai e mamãe seguiam a pé puxando por uma cordinha o cachorro "Sereno", o qual uma vez chegando ao destino, fugiu e após alguns dias retornou ao local de origem onde era muito estimado pela minha avó paterna. Contava meu pai que minha avó foi tomada de amores pelo cão, desde o dia em que o animal apareceu com um inhambu (pássaro parecido com uma galinha) e depositou junto da velhinha. Entre as história que papai contava, havia uma que gostaria de relatar. Contava ele que quando o meu avô e outras pessoas chegaram para desbravar o local onde morávamos tudo era muito difícil e quando falecia alguém o defunto era colocado em um lençol e as pontas do pano amarrado sobre um pau (rede) e transportado por dois homens de cada vez, que caminhavam por picadas abertas na mata, até chegarem no vilarejo mais perto que seria Ibiúna (Ex-Una) ou Cotia, onda era feito o enterro. Voltando à viagem, continuamos andando o dia todo, papai e mamãe a pé e eu e minha irmã no burro (autêntica representação da fuga para o Egito) passamos pelos locais denominados bairro das Laranjeiras e outros mais que me fogem da memória até atingirmos a pousada do João Lico, onde passamos a noite. (Neste local, atualmente passa a estrada de ferro Mairinque - Santos). Na manhã seguinte saímos bem cedo e continuamos seguindo por caminhos tropeiros como eram chamadas as estradas no mato naquela época. Andamos o dia todo passando por São Lourenço, Juquitiba e Itapecerica da Serra e ao cair da tarde chegamos ao bairro do Valo Velho, onde morava meu tio. A casa do tio era grande , porém sua família bastante numerosa ou seja quatro filhos homens e uma filha mulher, os quais por ordem de nascimento eram: Benedito, João, Maria, Pedro e Faustino. Não sendo possível nos agasalhar na casa, fomos alojados em um barracão ao lado, onde ficamos até meus pais construírem uma pequena casa em uma colina no terreno de meu tio a cerca de um quilômetro de sua casa. O meu pai passou a trabalhar com o irmão e em pouco tempo aprendeu a fazer carvão e então recebia algum mil-réis por cada saca que produzia ,ou seja o mesmo que era pago aos italianos. Como o local de trabalho ficava longe de casa e também para não abandonar as caieiras ou montes de lenha cobertas com palhas e terra onde estava cozinhando o carvão, tínhamos que viver em rancho de pau coberto de palha (sapé), tendo como cama estiva de madeira coberta com sacos cheios de palha de milho. A nossa comida resumia-se em feijão com arroz, torresmos e ovo frito. Lembro-me das grandes árvores que eram cortadas e derrubadas para ser feito o carvão. Recordo-me do gemido que produziam ao cair por terra após uma vida de centenas de anos. As árvores uma vez cortadas soltavam uma seiva e exalavam um aroma muito agradável. Era comum as árvores ao caírem se partirem e aparecer favos de mel silvestre produzidos por insetos diferentes das abelhas, cujos nomes eram: mandorim, jataí e tantos outros. Quando papai ia trabalhar sozinho, mamãe ficava cuidando das pequena as plantações de mandioca, milho etc. também cultivadas em terreno cedido por meu tio.
"O SUSTO"
Para não atrapalhar mamãe na roça muitas vezes eu e minha irmã ficávamos em casa sozinhos o dia todo. Lembro-me de certa ocasião em que ouvimos um forte ruído vindo do céu e então saímos fora para ver o que era e para nossa surpresa avistamos três objetos a longa distância e como não fazíamos idéia do que fosse pensamos tratar-se algo vindo do céu e que o mundo iria se acabar. Começamos então a chorar e a rezar e somente a noite quando papai chegou é que nos explicou tratar-se de aviões (aeroplanos) que foram usados na guerra de 1.914 a 1.918 na Europa e estavam fazendo demonstrações no Brasil. O mais interessante é que bem mais tarde, já crescido, juntei-me a uma caravana para ir ver a chegada do famoso hidroavião "Jaú", vindo da Europa, pilotado pelo engenheiro João Ribeiro de Barros, filho da cidade de Jaú e tendo como co-piloto o tenente Negrão e outro cujo nome não me recordo. A chegada foi na represa do Guarapiranga, em Santo Amaro e a nós foi possível assistir tudo de cima de uma colina nas proximidades. Esse mesmo menino medroso e curioso muitos anos mais tarde, viria a viajar de avião durante mais de dezoito anos pelo Brasil todo e para o exterior. Voltando á época do susto antes mencionado, papai me matriculou na escola do Colégio Adventista, organização canadense que havia se instalado alguns anos antes nas proximidades e existe até hoje. O colégio ficava a mais ou menos seis quilômetros de casa e todos os dias eu fazia este caminho muitas vezes com chuva e descalço, uma vez que não tinha sapatos para usar. Os meus primeiros professores foram o casal Geronimo e Ana Klain. Certa vez , o casal propôs aos meus pais se concordavam que me levasse com eles para uma missão adventista no Amazonas. Não sei se o interesse do casal estava em meu estado de pobreza ou por me julgarem dotado de algo especial. O meu pai ,católico radical ficou furioso e me tirou da escola e somente bem mais tarde fiquei sabendo o motivo pelo qual deixei o colégio.
"O COMÉRCIO DO CARVÃO"
O carvão era vendido aos distribuidores (depósitos) que por sua vez vendiam aos consumidores. Lembro-me que um dos depósitos era localizado na Av. Brigadeiro Luiz Antonio, mais ou menos onde atualmente se encontra a Rua Estados Unidos e outro depósito ficava no bairro do Bixiga, melhor dizendo no local denominado "Saracura". Para o transporte do carvão eram usados um carro de boi e dois carretões. Para quem não conheceu estes veículos, farei uma descrição de como eram. O carro de boi tinha duas rodas de madeira inteiriça, ligadas por um eixo fixo e sobre o eixo assentava a carroceria e no eixo havia em cada lado uma cavidade onde a referida se prendia por meio de lingotes de madeira ao eixo. Ao rolar as rodas, os lingotes e o eixo produziam um atrito que se transformava em som ou gemido. Para que o atrito não produzisse fogo, o carreiro passava constantemente óleo de peixe no local. Cada carreiro se orgulhava em fazer com que o seu carro gemesse mais alto que dos outros. O carro era em geral puxado por quatro bois e transportava em média dez sacas de carvão. Os carretões eram carroças de quatro rodas puxados por quatro burros e transportavam em média quinze sacas de carvão. Meu tio tinha um carro de boi e o carreiro era o primo Benedito e dois carretões cujos os carroceiros eram os primos João e Pedro. Nessa época eu estava com sete anos mais ou menos e era comum viajar com meus primos. A viagem demorava dois dias e assim sendo, éramos forçados a pernoitar fora de casa uma noite. Em geral saíamos de casa de manhã, viajávamos o dia todo, fazíamos a entrega da mercadoria (carvão) nos depósitos e a noitinha chegávamos no rancho do José Víctor, local onde hoje está instalada a F.M.U., na esquina da Rua Afonso Braz com a Avenida Santo Amaro. O rancho assim chamado era uma casinha branca e ali passávamos a noite e os bois ou burros eram soltos no pasto (campo), existente em toda a extensão desde do bairro de Vila Nova Conceição até a Avenida Ibirapuera, aliás, nessa ocasião toda a região que ia desde do bairro do Itaim-Bibi até onde está o Aeroporto de Congonhas, somente existia alguns chacareiros portugueses que produziam hortaliças. Onde está hoje a Avenida Ibirapuera passava a estrada de ferro do saudoso bonde amarelo que ligava a Praça da Sé ao Largo do Socorro em Santo Amaro, era comum durante a noite meus primos me levarem pelo campo para ver o bonde passar iluminado. Em razão da minha ignorância fui sempre uma criança muito tímida. Lembro-me que em uma viagem com meus primos paramos na casa de um amigo do meu tio, o senhor Candido (Candú), fornecedor de pinga "cachaça" aos pequenos comerciantes (vendas de beira de estrada). O senhor Candú ia buscar a cachaça em um engenho em Cotia e o transporte era feito no lombo de burro, ou sejam dois barris um de cada lado e o tropeiro chamava-se Pedro Ferreira. A referida bebida era muito boa podendo se afirmar que era o whisky da época e levava o nome do distribuidor. A casa do senhor Candú, ficava bem em frente onde está atualmente o Hospital do Campo Limpo. Voltando ao meu estado de menino caipira e muito atrasado, uma certa vez eu disse ao Pedro, meu primo, que estava com sede e ele pediu ao senhor Candú que me desse água . A água me foi servida em uma cuia de coco com cabo de madeira e a quantidade de água seria aproximadamente de um litro. Na triste ignorância achei que devolver o resto seria ofensa ao homem e forcei-me a engolir tudo. Lembro-me que o senhor Candú disse ao meu primo "coitado do menino estava mesmo morrendo de sede", sem sequer saber que eu estava era morrendo afogado. Em outra ocasião fui a uma festa e me ofereceram comida, e eu vacilei em aceitar, embora estivesse morrendo de fome. Esperei que voltassem a oferecer e isto não aconteceu e fiquei de estômago vazio até voltar para casa alta madrugada. Quando começaram a aparecer os primeiros caminhões, meu tio comprou um Chevrolet Ramona, vendido pela firma concessionária denominada "Mestre-Blage", atual Mesbla. O caminhão transportava 25 sacas de carvão e fazia a viagem em um dia. O motorista era o primo Pedro e foi ensinado por um canadense do colégio Adventista. O progresso chegou e já se podia ir em lotação de caminhão (pau de arara), a Pirapora do Bom Jesus e outras localidades. O sítio do meu tio era bastante grande, cerca de dez alqueires e assim sendo, plantava-se muita mandioca para o fabrico de farinha. O tio Milico era um homem muito organizado e mandou construir uma pequena represa ou melhor dizendo um lago que servia para acionar um engenho movido por roda dágua e uma casa para o fabrico de farinha de mandioca tão usada nessa época. O fabrico da farinha começava com a raspagem da mandioca em seguida ralada, encostando-a contra uma roda coberta com uma chapa de metal furada de dentro para fora, mais ou menos como um ralo de ralar queijo. Uma vez ralada, a massa era colocada em um cesto feito de taquara "tapeti", e colocado em uma prensa que era puxada por dois homens. Ao ser prensada, a massa soltava um caldo amarelo chamado "mandiqüera", o qual caia em um cocho ou gamela e quando era escorrido o líquido, ficava no fundo do cocho uma massa branca denominada polvilho, muito usada para fazer biscoito. Quanto à massa da mandioca propriamente dita, uma vez prensada ia para o forno para ser torrada. A massa ao ser torrada era movida por um rodo e este trabalho era em geral feito por mulheres. As torradeiras para nos agradar faziam para nós crianças um gostoso beiju, ou seja a massa prensada com a mão contra o forno quente e enrolada com um pouco de açúcar.
"OS MUTIRÕES"
Em geral por ocasião da farinhada eram organizados mutirões ou reuniões de pessoas conhecidas e amigas que se ajudavam mutuamente. Os mutirões também eram feitos por ocasião de plantio de roças ou construções de casas de pau-a-pique. Nas construções os mutirões eram realizados para barrear a casa ou seja cobrir as paredes com barro feito de terra molhada e misturada com palha (sapé), cortada e amassada com os pés. As paredes eram feitas de caibros (madeira) e revestidas com ripas de taquara. O ato de barrear era feito por dois homens um por dentro e outro por fora e ambos batiam a bolota de barro ao mesmo tempo, acompanhado de um grito "Olá", que servia para não atirar o barro um na cara do outro. À noite após um farto jantar, ou seja, a repetição do almoço regado por muita cachaça, o chão era limpo e ali mesmo, com a chegada do sanfoneiro e do violeiro, o arrasta-pé era realizado.
"OS ITALIANOS"
Os italianos carvoeiros também realizavam muitas festas em seus ranchos. Em geral entre eles sempre havia bons sanfoneiros e porque não dizer, muitas italianinhas bonitas e era bastante comum o casamento de filhos de italianos com brasileiros e como prova disso, a prima Maria casou-se com o Baptista, filho do Angelo Bardusco, carvoeiro de meu tio.
"NOVA ATIVIDADE"
Lá pelos idos de 1925/1926, meu pai se afastou das atividades de produzir carvão e comprou um pequeno empório (vendinha), de propriedade de Salvador Correa situado no bairro do Capão Redondo e ali permanecemos por mais de um ano, quando então o senhor Salvador Correa pediu de volta a casa. Nesta nova atividade, como sempre minha mãe trabalhou muito para ajudar e seu trabalho entre tantos outros era fazer doces para vender no empório. Os doces em geral eram feitos de marmelo, coco, abóbora, leite, etc. Com a exigência do dono da casa em recebê-la de volta, papai saiu em busca de outro local e felizmente conseguiu alugar uma casa situada na margem da estrada de Itapecerica, bem enfrente onde está hoje localizada a fábrica dos produtos "Superbom", do colégio adventista. Nesta época este local era coberto por espessa mata, onde eu caçava pássaros com arapucas. A casa foi alugada do senhor João Diniz e fazia parte um rancho de tropeiros com um campo (pasto), onde eram soltos os animais dos tropeiros que vinham vender seus produtos no mercado municipal de Santo Amaro. O mercado mencionado ainda existe e é usado como depósito pela Regional da Prefeitura de Santo Amaro e está localizado na Praça Ferreira Lopes ao lado da Avenida João Dias em Santo Amaro. Os tropeiros que pernoitavam no rancho pagavam cem réis (um tostão), por cabeça de animal solto no pasto por uma noite, e nada pagavam pelo uso do rancho onde dormiam e guardavam a mercadoria transportada. A casa alugada tinha uma porta só, porém meu pai adaptou um pequeno balcão e prateleiras de madeira e ali funcionou a vendinha por dois anos mais ou menos.
"O JOGO"
Lembro-me que quase todas as noites reuniam-se diversas pessoas para jogarem "Vinte e Um" e papai cobrava "O Barato", pequena percentagem por cada sessão do jogo. Certa vez um trabalhador foi à venda para fazer compra do necessário para a semana e não resistindo a tentação entrou no jogo e perdeu todo o dinheiro nada levando para o sustento dos filhos. O meu pai que também era viciado no jogo ficou muito deprimido com o que aconteceu e no dia seguinte fez um buraco no quintal, enterrou todos os baralhos e nunca mais jogou em toda a sua vida e acabou com o jogo na vendinha.
"O ACIDENTE"
Como já citei anteriormente, estávamos vivendo a era do progresso e era normal fazer-se excursões em caminhões e assim sendo, minha avó materna em uma viagem para Pirapora do Bom Jesus sofreu um acidente e por milagre não morreu. O caminhão em que viajava capotou e caiu nas margens do rio Tietê próximo a Santana do Parnaíba. Fomos informados através de um mensageiro que a velha já estava em casa, porém passando muito mal. Meus pais ficaram muito preocupados e no dia seguinte, fechamos a vendinha e como não tínhamos nenhuma condução, seguimos a pé. A viagem durou o dia todo e sempre seguindo por atalhos para encurtar o caminho. Lembro-me que passamos por Embu e Cotia e chegamos a noite em Caucaia do Alto, onde pernoitamos na casa do senhor João Bento, ex-cunhado de meu pai e pai das duas solteironas Antonia e Henriqueta, as quais me referi no início deste relato. O senhor João era casado pela segunda vez e tinha um filho com o mesmo nome. A viagem foi terrivelmente cansativa, principalmente para duas crianças com a idade de oito e nove anos, como eu e minha irmã. Durante a viagem, na estrada hoje denominada Raposo Tavares próximo de Cotia encontramos diversos postes caídos no chão e que haviam sido derrubados pela Coluna Prestes quando da fuga dos revoltosos da Rebelião de 1924 e comandados por Luiz Carlos Prestes. Lembro-me que papai para me agradar e satisfazer minha curiosidade, retirou uma peça de vidro que era rosqueada no bracelete do poste e servia como isolante para os fios e se parecia muito com um copo de vidro. Em casa do senhor João Bento, tomamos leite de cabra tirado na hora, jantamos e após lavarmos os pés fomos todos dormir em esteira de junco estendida no chão. No dia seguinte, seguimos viagem até o bairro dos Grilos onde morava minha avó e ali permanecemos com a velha por alguns dias. Para voltarmos o tio Joaquim arranjou dois cavalos e nos trouxe até além de Caucaia do Alto ou melhor dizendo, a estrada de Cotia a atual Raposo Tavares. A partir deste local seguimos novamente a pé e a noite chegamos em nossa querida casinha.
"O TERRENO"
Após permanecermos como já disse anteriormente, por dois anos mais ou menos na casa do senhor João Diniz, meu pai comprou um terreno com a área de um e meio alqueire localizado na esquina da Estrada de Pirajuçara e Estrada de Itapecerica da Serra, bem próximo de onde estávamos morando. O referido terreno foi comprado do senhor Bento de Freitas, por dois contos de réis com a condição de ser pago e escriturado após o recebimento de outro terreno situado no bairro do Valo Velho, vizinho da propriedade de meu tio. O referido terreno estava sendo vendido ao Dr. Clementino de Souza e Castro, engenheiro estabelecido com escritório à Rua da Glória, em São Paulo. Para se ter uma idéia do caráter e hombridade das pessoas daquela época, vou citar o que aconteceu com o senhor Bento de Freitas. O referido senhor foi procurado por outra pessoa interessada na compra do terreno e propondo efetuar o pagamento imediatamente em vez de esperar dois anos previsto para receber de meu pai. A resposta do senhor Bento de Freitas, foi de que tinha somente um terreno à venda e este já havia sido vendido ao meu pai. Felizmente o outro negócio foi realizado logo e desta maneira, o senhor Bento de Freitas não precisou esperar os dois anos. Uma vez escriturado e de posse da nova propriedade, começamos a construção de nossa nova casa. Papai contratou um pedreiro e com a ajuda de todos nós, em pouco tempo a casinha com duas portas na frente ficou pronta e ali fomos morar e instalamos um pequeno empório (vendinha de beira de estrada), que foi mantido enquanto preparávamos a terra para o plantio de batatas e outros produtos hortigranjeiros . Nessa ocasião eu estava com a idade de doze para treze anos porém, com a força e vigor de um adulto, bastante forte e como prova disso, comecei a ajudar papai no preparo da terra em assim sendo, trabalhava controlando um arado puxado por dois bois ou cavalos. Este tipo de arado também denominado "charrua", e tinha uma lâmina de aço que cortava a terra e pesava mais ou menos quinze quilos e cada vez que se chegava ao fim do sulco aberto, era necessário virar a lâmina e para essa operação tinha de ser o arado levantado e balanceado para que a lâmina mudasse de posição. A cada vez que esse trabalho era feito, representava levantar nos braços perto de vinte quilos. Eu era muito orgulhoso e não permitia que ninguém me ajudasse em todo o dia de trabalho. O exercício era equivalente ao que se faz nas academias de halterofilismo. Imaginem-se, um garoto de treze anos fazer isto todos os dias durante semanas e meses. Lembro-me que todos os dias lá pelas dez horas mamãe me levava um copo com pinga e limão, sem gelo, uma vez que não tínhamos geladeira e nem energia elétrica para fazer funcionar. Apesar de quente a cachaça, eu tomava o copázio todo de um só gole e nada sentia devido ao grande esforço feito com o arado.
"MERCADO CENTRAL"
Os produtos colhidos na chácara, tais como: pimentões, abóbora italiana, vagem, mangarito, ervilha, etc.; eram vendidos no mercado central existente na Rua Vinte e Cinco de Março, em São Paulo. O referido mercado era situado na esquina da rua General Carneiro com a Rua Vinte e Cinco de Março e totalmente feito de ferro, possivelmente importado como era comum no passado. A nós, os chacareiros, não era permitido comerciar nossos produtos dentro do mercado e assim sendo, somente podíamos vender na calçada. O velho mercado foi desativado e demolido após a inauguração do atual mercado central. No local existe atualmente uma praça onde estão concentrados os camelôs. O .transporte era feito em carroça de duas rodas, puxada por um ou dois animais e a viagem era feita em geral duas vezes por semana. A saída de casa era sempre às três horas da madrugada e ia-se até Santo Amaro, local de onde saia o bonde bagageiro que transportava os produtos a serem vendidos no mercado anteriormente referido. O local de onde saia o bonde era um terreno de propriedade da Light e lá se deixava a carroça e o animal até o regresso com o mesmo bonde lá pelas onze horas da manhã. Com a idade de treze anos e com a anuência e responsabilidade de meu pai, tirei a carta de cocheiro para dirigir carroça puxada por dois animais e desta forma, passei a fazer este trabalho, viajando só, de madrugada e as vezes com tempestades e por estradas totalmente desertas e lamacentas e muitas vezes sujeito a ficar encalhado quando a carroça caia em valas abertas pela chuva. Lembro-me que certa vez, quando a velha ponte sobre o rio Pinheiros, hoje denominada Ponte João Dias, estava sendo reconstruída e havia sido feito um desvio e a travessia era feita por uma ponte flutuante sobre barcaças e durante a noite as águas subiram e cobriram toda a ponte, como estava muito escuro eu não percebi nada e desci a rampa pelo desvio, somente ao entrar na ponte flutuante e que verifiquei a gravidade da situação, uma vez que a água estava uns trinta centímetros acima da ponte. Para voltar não era possível em virtude de não haver espaço para manobrar a carroça e a única solução encontrada foi arregaçar as calças e entrar na água e verificar se não havia algumas pranchas de madeira fora do local e, uma vez feita a verificação, deparei com outro problema ou seja fazer o cavalo que puxava a carroça entrar na água. O animal bufava ou melhor dizendo assoprava pelas narinas demonstrando pavor e somente a muito custo, consegui convencê-lo a me seguir e finalmente atravessamos a ponte. O cavalo que acabo de mencionar conviveu e trabalhou comigo por muito tempo. Animal de grande porte, pelos amarelados e atendia pela nome de Baio, obediente e muito carinhoso. Para ter-se uma idéia de nosso relacionamento recordo-me que em minhas viagens para o mercado, pela madrugada, eu passava por uma padaria no Largo Treze de Maio, em Santo Amaro e pela janela da padaria, a essa hora ainda fechada o padeiro que estava trabalhando na fabricação dos pães (maracutaia), vendia-me pães ainda quentes que eu dividia com o Baio que adorava comer os pães que o padeiro adorava vender e embolsar o dinheiro. Era comum levar de casa bananas bem maduras (pintadinhas), e assim eu o Baio fazíamos nossa refeição matinal, com pães e bananas que ele também gostava muito. Quando o Baio ficou velho, foi afastado do trabalho ou seja deixou de puxar a carroça e assim sendo, permaneceu no pasto até morrer porém, recebendo todos os dias sua ração de alfafa. Como recordação do velho amigo, guardo até hoje uma das ferraduras usada por ele. Voltando ao assunto da ponte anteriormente mencionado tenho a dizer, que o único ousado a chegar até o mercado naquele dia fui eu e confesso que posteriormente ao analisar a loucura que fiz me deixou muito apavorado, uma vez que se o cavalo resolvesse não obedecer-me e afastar-se fora da ponte, certamente eu, carroça e cavalo seriamos arrastados pelas águas e sem a possibilidade de sermos socorridos.
"O DILÚVIO"
Lembro-me de mais uma ocorrência ainda ligada ao rio Pinheiros e que me deixou boa recordação. Certa ocasião choveu durante mais de dois meses e toda a planície desde do bairro do Socorro até o Osasco ficou inundada. É interessante recordar que nessa época não existia nenhuma construção desde onde está atualmente a ponte João Dias até a Praça Ferreira Lopes, em Santo Amaro e toda a área ficou coberta pela água. A ligação da região sul com o centro de Santo Amaro era feita por barcaças cedidas pela prefeitura, e o ponto de embarque era mais ou menos na colina onde foi construído o atual Centro Empresarial. Para mim foi uma experiência inesquecível fazer a travessia por diversas vezes, sobre toda aquela extensão onde existe hoje grandes indústrias, muitos arranha-céus e comércio intenso. Aliás ainda a propósito deste local, lembro-me que meu pai sempre contava de que quando rapaz, possuía uma mula muito bonita e muito bem arreada (carro de luxo na época), e certa feita recebeu uma proposta para vendê-la e como pagamento receberia toda a várzea ou terreno localizado desde da atual Avenida João Dias até a Capela do Socorro. Não aceitou o negócio por achar desinteressante. Parece uma piada mas realmente isto aconteceu.
"VOLTA À ESCOLA OU TRABALHO"
Voltando novamente a falar sobre a vida na chácara, tenho a dizer que com a vantagem e possibilidades de lucros com a plantação de batatas papai fechou a vendinha e eu voltei novamente a estudar e tencionava completar o curso primário que já estava no quarto ano e por essa ocasião comecei a me interessar pela teologia adventista, cuja matéria fazia parte do curriculum escolar. Papai como bom católico e preocupado com uma possível conversão de minha parte começou a me estimular para que deixasse a escola, dizendo-me que para ganhar dinheiro o melhor que se podia fazer era plantar batatas e não estudar. Como eu sempre gostei de trabalhar e ganhar dinheiro com meu próprio esforço aceitei o conselho do velho e novamente deixei a escola. Por essa ocasião eu dei início aos meus próprios negócios e como começo, mamãe me deu uma galinha que uma raposa cortou uma das asas e eu consegui curá-la. Fiz chocar na referida galinha uma ninhada de ovos e nasceram os pintainhos que para minha sorte a maioria eram frangas que em pouco tempo se transformaram também em galinhas das quais passei a vender ovos e frangos. Todo o dinheiro que eu ganhava colocava em uma caixa de sapatos, amarrada e com um buraco encima, fazendo as vezes de um cofre. Para completar os meu ganhos, caçava com arapucas, pássaros tais como: inhambu, sabiás, canários da terra, etc.; e colhia na mata frutos silvestres, como sejam: maracujás, frutos do caraguatá muito bom para a tosse e todos esses produtos eu vendia no mercado e transformava em dinheiro que ia para dentro da caixa de sapato. Por essa época a nossa situação financeira era considerada muito boa e podíamos até nos dar o luxo de alugar um carro de praça (táxi), para irmos como de costume a Pirapora do Bom Jesus, não mais necessitando irmos de caminhão (pau de arara) e lembro-me que mamãe preparava o farnel para a viagem que era composto de galinha assada, pernil, leitão, etc. A viagem era feita ida e volta em um dia e para todos nós era uma festa.
"ADENDO A DEGRAUS DE MINHA VIDA"
Vou aqui interromper (Degraus de Minha Vida), para apresentar um relato sobre Santo Amaro, que achei condizente com a minha historia. Trata-se de um artigo publicado por um santo-amarense no Diário Popular e me foi gentilmente cedido por um amigo a quem agradeço. O título da reportagem é (À BÊNÇÃO, SANTO AMARO). Como já relatei anteriormente, eu fui criado na região de Santo Amaro, mais precisamente no bairro do Capão Redondo, próximo ao Colégio Adventista, onde fiz meu curso primário. Ao completar vinte e um anos, mudei-me para Santo Amaro e ali eu me estabeleci com um pequeno empório (secos e molhados) na esquina da Rua Belchior de Pontes e Suzana Rodrigues, onde permaneci de 1.937 a 1.941 e durante esse período aproveitei para estudar contabilidade no extinto Externato Brasil. (Quero ainda lembrá-los que os nomes anteriormente citados, Belchior de Pontes e Suzana Rodrigues, bem como Paulo Eiró e Borba Gato, foram filhos desta cidade e cada um por si tem uma história que deveria ser melhor pesquisada). Voltando ao artigo já mencionado, o ilustre cidadão que o publicou, a quem eu peço permissão com todo respeito, para juntar algo mais, do meu modesto conhecimento, refere-se aos agricultores que vinham vender seus produtos na praça das Bandeiras. Este local naquela época chamava-se Largo do Piques. Os colonos vinham de Santo Amaro pela estrada do mesmo nome (hoje Av. Adolfo Pinheiro), Brigadeiro Luiz Antônio e finalmente Rua Santo Amaro até o mencionado Largo do Piques. No referido Largo do Piques existia uma escada de cimento bem onde começa a atual Av. Nove de Julho. A mencionada Avenida era um vale cheio de matos com uma estrada carroçável que ia até a elevação da Av. Paulista, onde existe o atual túnel Nove de Julho. Na parte de cima da Av. Paulista, onde está o MASP, existia o saudoso Bulevar do Trianon, onde eram realizadas grandes festas. O local era freqüentado pela elite paulistana devido o visual da cidade.
"O " PAI " DO BORBA GATO"
No mencionado artigo foi apresentado o nome do professor, pintor e escultor Júlio Guerra, como pai do Borba Gato, em razão da estatua do bandeirante santo-amarense, maravilha de obra do mencionado professor. Gostaria de informar que o professor Júlio Guerra e eu estamos com a mesma idade e o conheci quando estudante na escola de belas artes e naquela época ainda muito jovem, o professor nas horas vagas tomava conta de um salão de bilhar que existia em um sobrado velho situado no Largo 13 de Maio e demolido posteriormente. Lembro-me quando o professor já famoso pintou uma tela representando o Cristo crucificado e ofertou a igreja matriz de Santo Amaro e foi colocada na parede interna do lado esquerdo de quem entra na igreja. Possivelmente ainda esteja lá até agora. Lembro também do casamento do professor com uma moça da alta sociedade santo-amarense. Vou parar por aqui muito embora tenha ainda muitas coisas para falar sobe Santo Amaro.
Quero agradecer a atenção de quem ler estes relatos e dizer que se alguém tiver interesse em saber mais sobre o assunto o meu nome é João Dias de Oliveira, telefone (11) 887-4662 e-mail: diasoliveira@uol.com.br
A SEGUIR O ARTIGO ACIMA REFERIDO
A bênção, Santo Amaro. Vez por outra, ecoam, lá pelos lados da Zona Sul, clamores pelo desmembramento de Santo Amaro da Capital paulista. Embora entusiasmando poucos santo-amarenses da gema - que trazem nas veias sangue dos índios guaianases, que viviam na região, de imigrantes alemães, japoneses e nordestinos -, essa causa separatista tem alguma razão de ser. Afinal, o bairro - que no dia 15 de janeiro de 1998 completou 446 anos, dois a mais que São Paulo - teve autonomia administrativa de 1832 a 1935, quando foi incorporado ao mapa paulistano. Por tabela, bairros como Capela do Socorro, Parelheiros, Brooklin, Chácara Santo Antonio, Campo Limpo e Interlagos saíram de sua jurisdição para responder administrativamente à Capital. Um plebiscito realizado em setembro de 1985 tentou reverter o "rebaixamento", mas sem sucesso: dos 513 mil eleitores convocados a dar o sim à transformação de Santo Amaro em município novamente, 72% não se manifestaram. De todo modo, o "não" ganhou entre as 140 mil pessoas que compareceram às urnas. Alguns pesquisadores atribuem a perda da autonomia de Santo Amaro a uma vingança das hostes getulistas pelo fato de o então município ter mandado 300 botinas-amarelas - como eram conhecidos os moradores do bairro, em razão de seus calçados rurais sempre empoeirados - para defender as cores paulistas na Revolução Constitucionalista de 1932, contra a ditadura Vargas. Outros falam que Santo Amaro teria sido punido em razão de uma dívida de 500 contos de réis com a Capital. Controvérsias à parte, mesmo como bairro, Santo Amaro ostenta números de dar inveja a muitas capitais brasileiras. A região tem perto de 3,5 milhões de pessoas e 700 indústrias, o que lhe oferece a quarta arrecadação de impostos do Estado, atrás apenas de São Paulo, Campinas e São Bernardo do Campo, na região do ABC. O próprio traçado das ruas santo-amarenses lembra o status vivido durante mais de um século pela localidade: a numeração, em vez de começar levando em conta a praça de Sé, marco zero da Paulicéia, tem como referência o largo Treze de Maio, coração do antigo município. O Largo é um dos sinônimos do bairro-cidade, ao lado da polêmica estátua do bandeirante Manuel da Borba Gato, de autoria de Júlio Guerra. Filho mais ilustre de Santo Amaro, Borba Gato morreu com mais de 90 anos em Sabará, cidade histórica que ajudou a fundar em Minas Gerais. Foi, em sua época, um Indiana Jones dos Trópicos. E, segundo as más línguas, suas aventuras não se restringiram a expedições sertão adentro. Além de dois filhos assumidos, consta que o bandeirante teria engravidado mulheres de todas as raças, a seguir abandonadas com o coração partido e um filho nos braços. Desde aqueles tempos, uma das peculiaridades do bairro é o caldeirão étnico no qual foi temperado o perfil de seus atuais moradores. Faz parte desse processo a colônia alemã, formada a partir de 1827, quando o imperador D. Pedro I resolveu lançar inúmeras campanhas no Exterior, a fim de atrair mão-de-obra estrangeira, para dar novo pique à Nação, tornada independente de Portugal cinco anos antes. O primeiro acordo nesse sentido foi celebrado em 30 de agosto de 1827 na cidade de Bremen, no norte da Alemanha. Trava-língua - Os nomes dos novos vizinhos soavam como verdadeiro trava-língua para os santo-amarenses. Entre os primeiros colonos - que desembarcaram em Santos da galera holandesa Maria, em dezembro de 1827 - estavam os Guilger, Schunk, Goldefried, Shune, Klein, Fischer, Miller, Rosenbach, Reimberg, Walter, Helffsteins, Theissen, Forster, Croos, Hessel, Christe, Heildrich, Konrad, Kasper, Schimidt, Roschel. Não demorou para que, por conta do jeitinho brasileiro e da falta da familiaridade com o léxico germânico, os Haessel virassem Hessel, os Kasper passassem a ser conhecidos com Gaspar, e assim por diante. Como incentivo, a cada família eram garantidas 400 braças quadradas de terra, o equivalente a pouco mais de 1.220 metros quadrados. Esse privilégio era estendido também aos imigrantes solteiros na medida em que fossem se casando e perpetuando a espécie. No ano seguinte, para impedir uma debandada que começava a se acentuar, principalmente rumo ao Interior paulista, foi oferecido também um salário de 160 réis diários para quem permanecesse na colônia e outros 80 réis para custeio de cada menor de idade, auxílio suprimido dois anos depois. Ainda assim, ficaram poucas famílias, que, isoladas, acabaram se misturando aos índios, absorvendo os costumes locais e cada vez mais esquecendo do idioma e das tradições germânicas. Carlos Klein veio da Prússia nessa primeira leva de imigrantes junto com dois irmãos. "Um desses meus tios acabou indo para o Sul e outro para o Interior de São Paulo", conta Euclides Klein, de 76 anos, que mora até hoje em sua casa construída por seu avô na estrada do MBoi Mirim. Euclides lembra também que a primeira casa de alvenaria do Brooklin Paulista, outro bairro de forte concentração alemã da Capital, foi erguida por seu bisavô. "A fazenda de minha família, chamada Casa Grande, tinha 174 alqueires." A pele clara de Eloy Hessel Christe, de 80 anos, também não nega suas origens germânicas. Seu avô, André Christe, veio de Bremen, fixou-se em Parelheiros e aumentou a família e a proximidade com a gente nativa casando-se com a índia guarani Quitéria Joana Maria. Nascido no Jardim dos Álamos, Eloy mora até hoje na Colônia Alemã, um dos "bairros" de Santo Amaro, e lamenta a perda dos laços com a terra de seus antepassados. "Só em 1946 fomos ter escola pública por aqui, mas sem que ninguém se preocupasse em nos ensinar alemão", recorda. "Para alfabetizar meus filhos, tive de contratar um professor particular, que me custava 80 cruzeiros por mês". Mário Reimberg Christe, filho de Eloy, aponta a perseguição política ocorrida após os dois conflitos mundiais deste século - principalmente depois da Segunda Guerra - como outros dos fatores que contribuíram para que os imigrantes perdessem ainda mais o contato com suas raízes. "Com existia a ameaça de matarem os alemães que moravam aqui, eles preferiam não correr riscos, evitando até falar em sua língua natal. E mesmo antes disso nossos parentes já usavam no dia-a-dia, uma mistura do alemão com o caipira." A Segunda Guerra, segundo Mário, também foi responsável pela supressão da palavra "Alemã" do bairro de Colônia. A família da mulher de Eloy, Margarida Reimberg Christe, de 77 anos, também veio de Bremen. Ao mesmo tempo em que assimilavam os costumes e a língua locais, os alemães cuidavam de passar para seus vizinhos brasileiros hábitos e tradições. Vem daí, por exemplo, o nome de Parelheiros, localidade que se chamava simplesmente Santa Cruz até que os descendentes de Henrique Hessel Roschel, junto com aficionados nativos, montaram a Raia de Parelhas de Cavalo, no quilômetro 35 da estrada de Parelheiros, hoje Jardim Aladim. "As corridas atraíam pessoas de toda a Capital", conta Henrique." A raia foi fechada na década de 50, mas o nome acabou incorporado ao lugar, que virou Santa Cruz de Parelheiros e, mais recentemente, Parelheiros." Vizinho de Henrique, o motorista aposentado Angelino Shunk Klein, o seu Gilão, de 75 anos, e também tetraneto de Carlos Klein, lembra-se do tempo em que o único meio de transporte no bairro era o cavalo. "Aqui, tudo era sertão. Meus avós tinham casa em Santo Amaro e eu e meus primos íamos sempre para lá, conta. "Meu pai carregava palmitos e ovos em carro de boi para vender na praça das Bandeiras, em um trajeto que chegava a demorar até um dia inteiro para ser cumprido." Henrique, que em 54 fazia o ginásio em Santo Amaro, tinha de sair de casa às 6h para assistir à primeira aula, ao meio-dia, e cabular os derradeiros 15 minutos de aula, no final do período, para tomar o último ônibus com destino a Parelheiros, onde mora até hoje. "Quando chovia, tinha que pegar carona em veículos. O mesmo papel atribuído aos alemães no século 19 foi desempenhado mais recentemente pelos nordestinos, que começaram a chegar a Santo Amaro a partir da década de 40. A diferença é que para eles faltou um patrocinador do tipo encarnado por D. Pedro I. Prova disso é que muitos nordestinos - e paulistanos também, claro - vivem em subabitações. Segundo uma pesquisa por amostragem realizada há cinco anos pela Prefeitura de São Paulo, em conjunto com a Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe), Santo Amaro concentrava 227 favelas, com cerca de 22 mil domicílios, em que viviam mais de 110 mil pessoas, quando o bairro já tinha em torno de 700 mil habitantes. Por conta dessa pobreza, os "baianos", como os nordestinos são pejorativamente chamados em São Paulo, tornaram-se vítimas preferenciais do preconceito local." Isso é um absurdo, pois os nordestinos trouxeram o progresso para Santo Amaro", dispara o escultor Júlio Guerra, "pai" do Borba Gato e filho de uma família quatrocentona do bairro. Estima-se que pelo menos 70% da população de Santo Amaro - de 711 mil habitantes, segundo a Administração Regional - seja formada por nordestinos e seus descendentes. Vindos da Bahia, Ceará, Pernambuco, Paraíba e de outros Estados daquela região, eles, ao contrário dos alemães, conseguiram conservar o gosto por músicas e comidas típicas de sua terra. "Embora eu more atualmente em Itapecerica da Serra, na Grande São Paulo, faço questão de voltar sempre a Santo Amaro, onde vivi pelo menos sete anos", garante o poeta, cordelista e mestre de mamulengos pernambucano Waldeck de Garanhuns. "Além de rever os amigos, encontro ali, no comércio do largo Treze, feijão de corda, farinha, rapadura, carne-seca e outros ingredientes para preparar em casa minhas receitas nordestinas." O apetite pelos sons e pratos do Nordeste por parte de uma parcela considerável da população santo-amarenses é saciado aos finais de semana no Patativa - Centro de Cultura e Lazer do Nordeste, junto à Ponte do Socorro. "Em determinados shows, como os do grupo de forró Mastruz com Leite, chegamos a receber mais de 10 mil pessoas em um único dia", entusiasma-se o proprietário da casa, o radialista José de Barros Lima, ou Zé Lagoa, como é conhecido no meio artístico. Morador há 35 anos em Santo Amaro há dois anos e meio ele resolveu abrir o espaço, com 15 mil metros quadrados, por onde de distribuem a pista de dança e 29 barraquinhas de comidas e bebidas típicas. Além de shows de forró garantidos por grupos convidados e bandas próprias, o Patativa costuma franquear seu palco também para outros artistas populares, como Roberto Carlos, Zezé Di Camargo e Luciano e Chitãozinho e Xororó. A casa é administrada por Flávio Lima, de 30 anos, o mais velho dos cinco filhos de Zé Lagoa, todo os autênticos botinas-amarelas. O grande centro de lazer do bairro, contudo, é a represa de Guarapiranga, a praia dos santo-amarenses. Suas areias , nos finais de semana, são tomadas por banhistas de baixa renda, enquanto suas águas servem sob medida para as manobras de veleiros das mais variadas envergaduras. Considerada o segundo maior centro náutico de vela esportiva do País - atrás apenas de Niterói, lar da família Grael -,a Guarapiranga é o reino de um dos maiores esportistas brasileiros da atualidade, o descendente de alemães Robert Scheidt, medalha de ouro nas Olimpíadas de Atlanta e tricampeão mundial de iatismo na classe laser." A Guarapiranga é o quintal de minha casa há 15 anos", resume o atleta, de 24 anos, que começou a velejar aos 9 no Iate Clube de Santo Amaro e mora na região, mantendo uma tradição familiar inaugurada pelo seu avô paterno, o alemão Frederico Guilherme, no início deste século. Outra figurinha carimbada de represa é a instrutora de esqui aquático Lisa Debbaudt, bicampeã sul-americana e atual campeã brasileira na categoria open. Toda semana, ela desliza pelas águas da Guarapiranga. "Com o treino obtido na Guarapiranga é possível ficar em condições de disputar títulos em qualquer lugar do mundo", garante ela, dona de uma carteira de 200 alunos. Entre eles, a estudante de Artes Plásticas Martha Whitaker, de 36 anos, que em média quatro vezes por semana sai de seu apartamento, nas imediações da Avenida Paulista, para ter aulas com Lisa. "Só acho uma pena a represa ser tão mal-cuidada. Trata-se de um patrimônio ao qual administração pública ainda não deu o devido valor, como acontece em outras cidades", critica ela. Alguns moradores mais antigos do bairro se apegam a este e outros descasos das autoridades com Santo Amaro para, novamente, fazer tremular a bandeira da emancipação. É o caso do jornalista e dono da Gazeta de Santo Amaro , Armando da Silva Prado, de 66 anos e há pelo menos 56 morador no bairro. "São Paulo, do tamanho que é, tornou-se inadmissível", argumenta ele sobre a matriz municipal. Filho do ex-procurador do Estado Sebastião da Silva Prado, ele se orgulha de estar na segunda geração de autonomistas. "Se não tivessem usurpado a condição de cidade de Santo Amaro, erro também duramente criticado por meu pai, até o Palácio dos Bandeirantes , atual sede do governo estadual, no Morumbi, estaria dentro dos limites de nosso município." A volta da autonomia exigiria uma emenda à Constituição Estadual. Será muito difícil, até porque não existe mobilização dos moradores do bairro nesse sentido. "Amo Santo Amaro, namorei no coreto da praça Floriano Peixoto e vivi aqui 47 dos meus 59 anos, mas a defesa da autonomia é puro saudosismo, sem nenhum sentido prático. Só traria dores de cabeça", afirma Gonçalo Guimarães, administrador regional de Santo Amaro. Pragmáticos como seu "prefeito", os santo-amarenses preferem cultivar o orgulho de serem "filhos" do "vovô" da Grande São Paulo. À benção, Santo Amaro.
O "PAI" DO BORBA GATO
Muitos a adoram, mas também são poucos os que gostariam de vê-la reduzida a um monte de entulho. Qualquer que seja a opinião, todos concordam num ponto: a estátua do bandeirante Manuel da Borba Gato, na altura do n.º 5400 da avenida Santo Amaro, é a cara do tradicional bairro da Capital. Seu autor é um ilustre filho da terra, o escultor e pintor Júlio Guerra, de 84 anos. Nascido em uma tradicional família quatrocentona, os Sales Guerra, ele executou a obra sem cobrar um centavo dos cofres públicos e tira de letra as críticas à enorme figura humana, com 10 metros de altura. "Cheguei até, durante algum tempo, a colecionar recortes de jornais e revistas com críticas à minha estátua. Sempre as encarei com bom humor, pois desconfio do elogio fácil. Se falam de mim, é por amor. Pior seria a indiferença. Por isso, torço para que continuem xingando a obra", afirma ele. Júlio levou dois anos para concluir a estátua, inaugurada em janeiro de 1963. Esculpida no fundo do quintal de sua casa, sob bananeiras, a obra é caracterizada por pastilhas multicoloridas de pedra e mármore, marcas registradas do artista." O colorido não é novidade em trabalhos desse tipo, pois os assírios já faziam isso. Nunca gostei de bronze e mármore, materiais mais apropriados para cemitérios. E quem gosta de cemitério é coveiro", dispara ele. E por que o "conterrâneo" Borba Gato? "O Brasil inteiro o conhece". Aos 14 anos, Júlio ingressou na Faculdade de Belas Artes onde permaneceu por oito anos como aluno e mais 20 como professor. Mas, antes mesmo de freqüentar os bancos acadêmicos, ele já retratava os locais históricos de Santo Amaro. Estudioso da história do bairro, conta que, devido a boa qualidade do ar, o lugar era o preferido do padre José de Anchieta, que sofria de problemas pulmonares.
(João Dias de Oliveira deu o seu depoimento para o Museu da Pessoa em 22 de setembro de 1999 através do nosso sitena Internet)
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