Projeto Vidas, Vozes e Saberes em um mundo em chamas
Entrevista de João Arlindo de Araújo Ribeiro
Entrevistado por Rosana Miziara
Belém, 19 de julho de 2025
Entrevista código: PCSH_HV1491
Revisado por Nataniel Torres
P/1 - Por favor, você poderia contar seu nome, local e data de nascimento?
R - Eu sou João Arlindo de Araújo Ribeiro. Filho de uma família de 10 filhos. Eu nasci na localidade de Enseada do Malato, no município de Ponta de Pedras, na ilha do Marajó. Hoje, por necessidade de sobrevivência, eu tô sediado na capital, mas continuo vivenciando e vivendo o Marajó, que eu trabalho basicamente dentro da Ilha do Marajó, nos 17 municípios.
P/1 - Em que data você nasceu?
R - 16 de maio de 58.
P/1 - Seus pais são da região onde você nasceu?
R - São filhos da região da onde eu nasci.
P/1- E qual é o nome do seu pai e o nome da sua mãe?
R - João Pereira Ribeiro era o nome do meu pai e da minha mãe era Antônia de Araújo Ribeiro.
P/1 - E você sabe o nome e o que os seus parentes, seus avós por parte de pai faziam e de parte de mãe?
R - O meu avô, por parte de mãe - vou começar por aí -, ele era construtor naval e tinha embarcações. Com isso, ele construiu embarcações de frete. Era uma pessoa que tinha um expoente na região, no local onde a gente morava, bastante expressivo, porque ele, além de construir embarcação, tinha uma frota de três embarcações da onde a família sobrevivia, uma área de terra bastante expressiva também. Já o meu avô, por parte de pai, são os herdeiros de sangue português. Vieram nos final dos anos 1800, se localizaram, foram verdadeiros posseiros, depois viraram os proprietários, que era na época da lei das Três Marias, daí saiu a nossa família. A gente mexia com agricultura, com pecuária de pequeno porte e extrativismo. Essa era a vida. E também tinha alguns deles, no meio da família, que trabalhava também na carpintaria naval, em construção naval de...
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Entrevista de João Arlindo de Araújo Ribeiro
Entrevistado por Rosana Miziara
Belém, 19 de julho de 2025
Entrevista código: PCSH_HV1491
Revisado por Nataniel Torres
P/1 - Por favor, você poderia contar seu nome, local e data de nascimento?
R - Eu sou João Arlindo de Araújo Ribeiro. Filho de uma família de 10 filhos. Eu nasci na localidade de Enseada do Malato, no município de Ponta de Pedras, na ilha do Marajó. Hoje, por necessidade de sobrevivência, eu tô sediado na capital, mas continuo vivenciando e vivendo o Marajó, que eu trabalho basicamente dentro da Ilha do Marajó, nos 17 municípios.
P/1 - Em que data você nasceu?
R - 16 de maio de 58.
P/1 - Seus pais são da região onde você nasceu?
R - São filhos da região da onde eu nasci.
P/1- E qual é o nome do seu pai e o nome da sua mãe?
R - João Pereira Ribeiro era o nome do meu pai e da minha mãe era Antônia de Araújo Ribeiro.
P/1 - E você sabe o nome e o que os seus parentes, seus avós por parte de pai faziam e de parte de mãe?
R - O meu avô, por parte de mãe - vou começar por aí -, ele era construtor naval e tinha embarcações. Com isso, ele construiu embarcações de frete. Era uma pessoa que tinha um expoente na região, no local onde a gente morava, bastante expressivo, porque ele, além de construir embarcação, tinha uma frota de três embarcações da onde a família sobrevivia, uma área de terra bastante expressiva também. Já o meu avô, por parte de pai, são os herdeiros de sangue português. Vieram nos final dos anos 1800, se localizaram, foram verdadeiros posseiros, depois viraram os proprietários, que era na época da lei das Três Marias, daí saiu a nossa família. A gente mexia com agricultura, com pecuária de pequeno porte e extrativismo. Essa era a vida. E também tinha alguns deles, no meio da família, que trabalhava também na carpintaria naval, em construção naval de embarcação.
P/1 - E você conviveu com ele?
R - Convivi bastante.
P/1 - Como é que ele era?
R - O meu avô, em face da idade dele, eu tenho uma lembrança que não me deixa muito feliz, porque quando eu consegui entender que o meu avô existia, os carinhos dele, mas era muito doente. Meu avô, inclusive, morreu de uma doença que eu tenho medo dela, me trato muito nisso. Eu agora de manhã já tomei meus dois comprimidos de cálcio puro. Porque meu avô morreu quebrando os ossos dele. Quebrava assim, qualquer coisa quebrava. Ele morreu praticamente prostrado numa rede, porque não conseguia mais… Perdeu toda a fertilidade dos ossos e morreu desse jeito. Então, parte de pai. Por parte de mãe, o meu avô, o nome dele era Antônio Cristo e do meu pai, do meu avô, esse que morreu com os ossos quebrando era o avô Tito. E o Antônio Cristo, nas horas vagas que os filhos estavam navegando nas embarcações para fora que ele tava só, ele virava pescador também. E no interior é assim, se o neto já tá em condições de acompanhar o avô, acompanha. Como nessa época nós éramos tudo pequeno, as filhas acompanhavam. Minha mãe tem uma história desse meu avô que ele foi pescar um peixe que nós temos aqui que é muito nobre na região chamado filhote. E o filhote é filhote até 80 kg. A partir de 80 kg para cima, ele vira Piraíba. É o mesmo peixe, só troca de nome, e ele pesa uma faixa de 100 kg, 120 até 200 kg. E numa dessas pescarias, minha mãe estava com meu avô, ele foi tirar o espinel da água. E na hora que ele tá tirando, o peixe era muito grande, partiu ali, o anzol engatou na mão dele e o peixe levou ele pro fundo no mar. Não foi muito longe, porque eles seguraram. Pra sorte dele que a minha mãe estava com ele e tinha outros pescadores próximos, e a minha mãe gritou, os pescadores conseguiram tirar ele com vida ainda. Então é a parte da história da minha vida, dos meus avós.
P/1 - E você conviveu com ele?
R - Convivi.
P/1 - E foi pescar com ele? O que você fazia com ele?
R - Pescar. Como a gente era pequeno, ficava lá. Mas o meu avô, ele tinha um negócio muito importante. Ele era muito amoroso com os netos. Toda Semana Santa, por exemplo, ele reunia na casa toda a família, a partir de quarta-feira santa, a gente reunia no casarão dele lá. Era tipo uma ordem aquilo, uma determinação. Todo mundo ia para lá, as filhas, os filhos e seus filhos. E ele, meu avô, tinha, eu recordo como se fosse hoje, um equipamento de som que chamava vitrola. Você vê o tempo que levou isso aí, vitrola! E aquela vitrola dele não existia agulha mais para vender. Então, como ele era carpinteiro naval também, ele fazia do prego aquela agulha, afinava bem a ponta e colocava aquelas músicas. Eu lembro muito bem de uma música que ele gostava muito, ‘Maringá: “Maringá, Maringá”’, ele colocava, sabe? Então eu lembro muito disso aí do meu avô. Depois, ele faleceu, ficou a minha avó com os filhos, tomando conta, mantiveram construção naval, as embarcações mantiveram, graças a Deus.
P/1 - O que eram essas embarcações?
R - Embarcações grandes na época. Hoje tem embarcação monstruosa perto daquela, mas embarcações assim para 30, 40 toneladas e que era movida a velas, não existia motor. Eu viajei muito nessas embarcações, não existia camarote, existia camarinha. Camarinha era o único local onde o comandante, o dono da embarcação ficava, ele dormia. O restante dava um jeito, dormia no chão, em cima de esteira ou dava para amarrar uma rede, amarrava uma rede. Mas o comandante, o dono da embarcação, dormia naquela camarinha que era tipo um beliche, mais ou menos feito no chão também, coberto com uma esteira, no máximo, e ali se dormia. Era mais ou menos isso. Então, às vezes, eu vinha de Ponta de Pedras para cá, era uma viagem que hoje você faz em 3 horas, 4 horas, você gastava às vezes até 5 dias porque você dependia de vento para poder chegar em Belém numa embarcação dessa de vela. Era muito sacrificada a coisa. Muito penoso, na verdade. Penava muito, né?
P/1 - E qual é essa carga que era carregada nas embarcações?
R - Madeira, gado, porco e borracho. Daqui, eles levavam muita farinha. O povo paraense come muita farinha. Então, geralmente, levavam os ranchos. Tinha aquelas comunidades onde havia pequenos armazéns, tabernas, que se chamava assim na época, e levavam daqui mercadoria para abastecer esse pessoal. Então, a vida mais ou menos era isso.
P/1 - Quando seu avô morreu, sua avó continuou? Quem continuou com a atividade?
R - A minha avó e dois tios, principalmente dois tios que eram os homens. Também já falecido, tio Ofir e tio Pedro. O tio Pedrinho era um dos maiores pilotos de embarcação dessa região aí. O cara era bom demais, pilotava demais. Faz aí uns 4 anos que ele faleceu, deixou muita saudade. Aprendi muito com ele aí, mas deixou a família hoje. A família só deixou dois filhos que hoje ainda fazem, ainda tem uma profissão naval que é calafetar a embarcação de madeira. Calafeta para não dar goteira, para não entrar água. Mas o restante abandonaram. O terreno ainda existe, a propriedade ainda existe.
P/1 - O que você aprendeu com o tio Pedrinho?
R - Ah, uma coisa que eu aprendi com o meu tio e com a minha mãe. Eu acho que isso era herança dos meus avós maternos: a simplicidade, o respeito, a responsabilidade e o zelo com o mais próximo. Eles eram muito bons nisso. Esse zelo é tão importante que eu posso até esticar uma história aqui que eu guardo ela no coração e como exemplificação. Sempre falo pros meus netos, peço para eles que não mintam, que me falem sempre a verdade para poder confiar. Quando chegar alguém e vier dizer para mim que eles estão fazendo alguma coisa, eles disseram que não, eu preciso confiar neles, saber realmente que eles estão falando a verdade. Eu peço que eles façam, porque minha mãe me ensinou muito isso. Eu lembro uma vez que meu pai tinha homens trabalhando, tinha no campo trabalhando, tirando madeira, no forte da madeira, e chegava uma época que ele contratava muita madeira para vender. E ele chamava o pessoal para fazer o trabalho de tiragem de madeira, que era tirado no machado nessa época. E quando um dia o meu pai chamou e chegou um cidadão também, eu lembro o nome dele, Estevão. E meu pai, minha mãe, eles tinham lá naquela região mais de 200 afilhados. E o Estevão chegou numa montaria pequena, um casco de remo chegou lá, aí tirou o chapéu dele, uma latinha _____, aquela manteiga real, um terçado e um machado na mão. Colocou em cima. E eu fiquei prestando atenção. Eu tinha 10 anos, prestando atenção naquilo. Aí não demorou muito, o pessoal reunia e falava com o papai, saiu da casa grande lá e saiu embora pro mato para cortar madeira e tirar madeira. E o Estevão saiu nesse dia e eu fiquei prestando atenção nele quando ele saiu, que ele foi embora pro campo, quando ele voltou e perguntei para ele, garoto, 10 anos, perguntei: 'Estevão diz uma coisa, tu comeu hoje? Eu não vi tu passar com comida.' 'Não, mano. Quando eu receber a primeira quinzena, eu vou comprar um ranchozinho para fazer uma comida para poder levar pro campo.' E eu peguei com aquela informação dele. Eu fui, procurei minha mãe, falei para ela: 'Mãe, já sabe que o Estevão foi pro campo hoje pro mato e não levou comida?' 'Tá falando.' 'Tá, foi verdade, mas ele não levou comida. Ele levou uma latinha, o chapéu, terçado e foi isso que ele foi fazer, que ele levou pro mato.' E ele voltou, disse que só vai poder comprar comida para poder tá caminhando quando ele receber a primeira quinzena que o pai pagar para ele. Aí a mãe ficou calada, não falou nada. No dia seguinte, tinha uma criação grande de galinha caipira, mais de 200 galinhas. No dia seguinte o Estevão chegou lá, começaram lá e a minha mãe dava aquele café e ela dava por felicidade. Foi lá no Marajó fazer aqueles mingaus de farinha, nossa farinha d'água que é feita na cuia, quando não era posto leite de gado, que a gente tinha acesso ao leite de gado com muita facilidade, era feito com açaí, como a gente faz aqui, ou com sumo de buriti, alguma coisa. Isso fazia aquilo e as pessoas se alimentavam antes de ir pro trabalho. Quando estava trabalhando perto, dava esse lanche mais tarde, tipo 9 horas. Mas nesse dia ela deu mingau para ele. Aí, 'já vamos embora. Vamos embora, pessoal. Vamos embora.' Ela gritou lá na janela: 'Estevão, não vai não, quero falar contigo.' Aí ele ficou lá sentado. Eles eram muito obedientes, ficava sentado naquela época. Era um tipo de criação diferente. Aí ficou sentado lá com todo mundo, saiu, ela chamou ele. 'Vem cá, deixa eu lhe falar uma coisa. O João me falou que tu saiu daqui sem comida. Tá indo trabalhar sem levar comida pro campo?' 'É mesmo. Eu não tenho, tá muito difícil ainda.' Ela pegou e disse bem assim: 'Sente aí um pouco, não sai.' Ela foi lá dentro. Aí voltou com um paneirinho, que a gente usa muito paneiro, sempre não usava sacola, lá da paneirinha, e voltou com 10 ovos cozidos e uma porção de farinha e deu para ele. 'Toma, Estevão. Nunca mais você faça isso. Você não passa aqui para ir trabalhar com fome pro meu marido, que o teu trabalho faz o meu marido sustentar eu e meus filhos. Nós não passamos fome aqui. E não é justo você vir trabalhar para nós passando fome para nos sustentar.' E eu guardo essa lição até hoje comigo. Outra lição que eu guardo importante que eu aprendi lá com eles, com a minha família toda, até incluo, é que o meu pai tinha uma mesa que ela dava mais ou menos mais de 10 m de comprimento e, quando ele sentava na mesa, na cabeceira, todos os empregados que estavam ali próximos sentavam na mesa com ele para comer. Os filhos, a mulher e as demais pessoas sentavam depois, mas os empregados deles tinham prioridade para sentar na mesa. E hoje, quando eu tenho trabalhador na minha casa trabalhando, eles fazem parte da minha mesa, porque aquela exemplificação ficou guardada em mim. Eu acho importante você valorizar aquela pessoa que trabalha contigo, que é teu amigo, que tá te dando suporte ali. Ele não pode ser excluído, não pode comer no canto da casa, não pode comer no banquinho separado, ele tem que estar lá na mesa com você, e comer da tua comida, a mesma que você pode comer. Você tem condições de comer, faz para ele. Então isso foi regra que eu aprendi na minha família, o tipo de educação que eu recebi e eu gosto de exercer. A grande verdade é essa. Eu gosto, adoro exercer.
P/1 - João, tinham festas na época, o que se comemorava na sua casa?
R - Importante isso aí. Lá na Enseada do Malato tem uma igrejinha que ela foi criada, foi construída pelos meus bisavós e os membros demais da família. Ela foi também no início dos anos 800. Por quê? A minha família, quando veio de Portugal, da região de Malato, eles trouxeram duas imagens de santos. Santo Inácio de Loyola, que está numa igreja de pedra, lá no município da Vigia, e São Francisco de Borja, que tá com a minha família hoje no município de Ponta de Pedras. Essa imagem tem altura de um homem, é feita de madeira de lei portuguesa e tem uma coroa de prata maciça, grossa na cabeça, muito valiosa. E essa imagem faz parte da história do município de Ponta de Pedra no Marajó, como faz parte de nossa família, a família Malato Ribeiro. Vê que eu não tenho mais Malato, mas eu sou Ribeiro. Então, a família é Malato e Ribeiro. O principal nome é Ribeiro. E eu sou Ribeiro. E meu pai fazia a festividade de São Francisco de Borja, 15 dias de festa. A importância desse santo que toda a localidade próxima e até um pouco distante vinha para essa festividade. Eram muitas embarcações, muitas e muitas embarcações encostadas na beira. E a festa era um feito, mandava fazer barracão para pessoas ficarem, se conduzir, amarrar rede e dormir. Era toda a noite. A festa era só à noite, mas tinha um dia. É como a localidade tem uma praia, o pessoal tava na praia tomando banho ali, saiu para fazer outras coisas e voltava. E esse santo acabou virando um santo tipo um santo milagroso da região, porque bem na Baía do Marajó, onde as embarcações passavam, caía muita tempestade. E quando o pessoal tava assim com dificuldade, se pegava o São Francisco de Borja no Malato. E o pessoal vinha e ia embora para cima, subia os rios, rio Pará, depois entrava no rio Amazonas, no rio Tocantins. E quando voltava com suas cargas, eles faziam aquele velejamento que fazem muito dessas pranchas surf, faz aquele velejamento que vai para um lado e para o outro. Vinham bem próximo à beirada da fazenda lá e jogava geralmente até animal vivo, jogava um porco, sabe? Aí gritava lá de fora, quando não soltava fogos ou jogava velas, promessa escrita dentro de vidro para gente pegar, e colocava. Era assim um negócio muito importante. Depois que essa propriedade passou por uma outra família, acabou isso aí. Acabou isso aí. Eu participei muito disso, vivi muito na minha adolescência isso aí. Eles jogavam um animal vivo, um porco, e o papai determinava que eu fizesse, junto com meus irmãos, o chiqueiro para criar aquele porco. No dia da festa do santo era morto aqueles tanto para dar alimento ao pessoal que tava lá, para alimentar o pessoal. Era assim que era feito, a gente vivia naquela região. Então, São Francisco de Borja fez parte da história. Hoje tem um livro no Agenor Sarraf, um professor da universidade aqui em Belém, que escreveu, tem alguma coisa dessa história que eu tô contando para você nesse livro. Deve tá o nome do meu pai lá, com toda a certeza, e quem sabe esteja até o meu, que ele conversou comigo. Eu ainda não tive oportunidade de ler o livro, mas isso eu vivi muito e cada um de nós tínhamos. Eu aprendi a pescar porque a origem da minha família pescava e meu pai botava a gente para pescar, capturar camarão com uma tapia, uma armadilha de pegar camarão. Tem o próprio espinelzinho para pegar filhotinho de peixe miúdo. E nessa época as redes só chegaram na região, nossa região, rede de pesca, começaram a chegar no final dos anos 60 lá. E até então a gente não usava a rede, era só uma pesca extremamente seletiva, não fazia mal nenhum. As redes vieram trazer muito mal pra gente, muito mal pra fauna. E nesse tempo a gente pescava assim, chegava ao ponto e nós saíamos à noite com facho, um monte de palha segura, amarrada aqui, com facho, com terçado na mão, na beira da praia. Os peixes estavam encostados lá no meio da pedra. Você aí escolheu o maior e “tam”. Trazia, tava feito o almoço no dia seguinte. Muita fartura. Hoje não tem mais isso.
P/1 - O que você comia na sua casa? Sua mãe cozinhava? Como é que era? comida.
R - Olha, a gente comia… O caboclo no interior, se tiver farinha, sal e café, ele consegue sobreviver. Na minha casa era um pouco diferente, a gente usava isso, mas a maioria dos caboclos no interior, o ribeirinho, o povo tradicional, ele, se tiver essa oportunidade e tiver isso, ele vive, vive muito bem. Porque ele come, ele captura, ele caça, ele pesca, ele faz extrativismo. Então ele vive disso. E nós vive muito isso aí. Por exemplo, às vezes tinha dias na mesa era como a minha mãe sempre tinha duas, três ajudantes com ela, o nosso alimento era camarão com açaí e farinha. Você vê que lá tinha uma tortinha de camarão para fazer, que era o camarão descascado, preparado aquela coisa, mas a maioria aquele camarão que nós chamamos na região de frito, você descasca quando vai comer com azeite e pronto. Normal aquilo e faz muito no Marajó. Lá nós comia uma vez ou outra uma carne de gado, comia carneiro, de 15 em 15 dias, depois de um intervalo comia um porco, coisa parecida que sempre tinha, criava muito, né? Aí caças também, comi muito caça. Eu sou, sou um cara que come muita caça. E hoje eu não tenho aquela fatura toda porque virou comércio. A caça é permitida pro caboclo, porque ele vai faz a sua caça lá, tira pra sobrevivência. Hoje o pessoal faz comércio, faz mercado das caças e tem eliminado bastante o quantitativo de indivíduos na mata. Mas essa era a comida. Todo dia de manhã nós tínhamos uma cuia de mingau feita de farinha. Ou era com leite de búfala, ou feito com buriti, ou com coco ralado, ou com açaí. E tinha esse alimento. Então, uma pessoa talvez não tivesse tanto nutriente, que eu não sei dizer se nutriente era o suficiente, mas nós dava, como a gente chama no interior, dava para encher o bucho, comia, não ficava com necessidade de comida no estômago. Então é mais ou menos essa a nossa vida lá.’
P/1 - Como que era a sua casa? Você é quantos irmãos você tem?
R - Dez irmãos. Hoje somos só nove. Um já foi embora. Todos na mesma casa. Nós tínhamos uma casa bastante expressiva de tamanho. Ainda o mundo dessa construção, oriundo dos nossos antepassados. Uma casa grande. Hoje ela não existe mais. Ela era, o que a gente chama de enchimento. Aí pro Nordeste chamam de taipa, que era metido o barro preparado, mas era larga a casa. Um casarão muito grande, mas muito bem feita. O barro todo polido, bonitinho, não fica aquelas casas grosseiras como a gente vê no Nordeste, uma casa bem feita. Ela devia ter mais ou menos quatro quartos, uma porta grande central, aquelas casas que têm escada, que ela fica alta, e chão de madeira, aquela tábua que era as pessoas que tinham uma casa mais conceituada na nossa região, as casas, o assoalho era acapu e pau amarelo. Eram as duas cores. Era notório se ter isso aí. Então tinha essas casas, tinha uns quartos demais grandes, demais grandes os quartos. E a gente dormia todo mundo lá, dormia um pouco no quarto, outros dormiam na sala e assim a gente se dividia. A sala era grande. Cheio no Marajó, no interior, em todo lugar tem armador de rede, coloca escápula, lugar para amarrar corda. Então a gente dormia. Eu lembro também nessa época que a gente era criança, meu pai era muito rígido e ele exigia que todo mundo estivesse acordado às 6 horas da manhã. Ninguém podia estar deitado quando ele levantasse. E o que é que ele fez? Por a casa ser de assoalho, para não estar indo, para não estar se aborrecendo, falando com ninguém, nem estar mandando ninguém acordar, ele mandou fazer um tamanquinho de madeira com a alça, só alça em cima, que quando ele andava na assoalho fazia “toc toc”. Quando a gente escutava o barulho do tamanco dele, pulava todo mundo da rede. Não ficava um. Quando chegava lá, todo mundo já estava desmanchando a rede. Então era o despertador, era o tamanco do meu pai. Isso era, é a nossa história no Marajó Caboclo, o povo tradicional. É assim.
P/1 - Você se lembra das suas brincadeiras de infância? Do que vocês brincavam?
R - Pouco, pouquíssimo, bola. Eu sou muito ruim de bola hoje porque a gente não tinha tempo para isso. Mas lá no Marajó, por exemplo, você não tem muita opção. Mas nós tínhamos algo e nós fazíamos que o pessoal aqui não faz, nós construímos uma, é tipo uma prancha, tem uma madeira chamada miriti, que é muito parecido com aquela cortiça da rolha de garrafa. Ela é flutuante, ela é leve, a gente tira o pedaço dela, talhava ali uma prancha, tipo uma embarcação, colocava mastro, colocava vela, colocava um leme nele e ficava brincando na praia com ele. Soltava, quando o ventava forte, ia para lá, era uma brincadeira tradicional, era essa aí. Quando não bola, nas horas vagas, os meninos do Marajó, quando eles não estão fazendo nada, estão lutando. Aquela luta marajoara aprende por consequência disso. Não tem com brincar e acaba vai lutar, vai fazer a luta marajoara. A luta marajoara é levantar o outro, meter a cabeça do outro, levantar e jogar no chão e virar. Jogou de costa no chão, ganhou a luta. Tem que jogar, sujar a costa da pessoa na areia para poder ganhar a luta. Eu fiz muito. Hoje eu não presto para isso mais, mas eu fiz muito assunto.
P/1 - E você brincava com seus irmãos, outras crianças, vizinhos?
R - O local onde eu morava era um local muito frequentado por pessoas externas. Então vinha muitas pessoas, famílias com pessoas, aquilo para nós era uma satisfação quando chegava público novo, a gente não ficava naquela mesmice, mas a gente brincava muito com os irmãos, com os primos, brincava muito. Mas todo dia tinha pessoas lá. Eu tenho uma história dessa história de pessoa, tenho irmão, ele ainda tá vivo aí. Hoje, ele é defeituoso por conta do acidente que aconteceu com ele, mas a gente costuma dizer que ele tem vida de gato aquele rapaz. Lá ele caiu uma vez. Sala no Marajó, a gente coloca aqueles bancos grandes, mas ele caiu daquele banco, o banco caiu em cima dele, quebrou o braço dele no Marajó. E no Marajó, por falta de socorro na época, tudo se dá um jeito, se remenda. Meu pai colocou, fez uma pareio de talo, e colocou o braço dele. Colou, mas a gente nota que ficou uma certa deficiência o braço dele. Só quem prestar atenção, nota. Foi feito lá no Marajó isso aí. Colou de novo os ossos dele? Colou. Com o tempo ele, mais ou menos aí com 8 anos, chegou o rapaz numa embarcaçãozinha pequenina da _____, pegava uma pessoa só. A minha mãe tá, lá no interior a chama de jirau, o que a gente chama de pia aqui, chama no jirau, é um tabuado, fica por fora da casa ali, lavo louça, corta carne, corta peixe, tudinho, e lava ali, aquela água já vai caindo para fora da casa. Não, então ela tava no jirau lá cuidando das coisas, ele tava, ele entrou no casco que a pessoa largou lá. De repente ela viu quando o casco virou, virou que ela olhou, não encontrou mais ele e o casco saiu, foi embora. Como é a ponta da beira da Baía do Marajó, o barco foi embora e nada. De repente chegou um rapaz lá e, como ela, como eu falei, era madrinha de quase todo mundo, ele gritou de lá: "Bença, minha madrinha". Ela disse bem assim para ele: "Jaquirana, vai pegar aquele casco do fulano ali que eu já perdi o meu filho. Perdi o meu filho que virou nesse casco aí". E o rapaz, não pode ter prejuízo, chegou no casco chorando. Aí o Jaquirana foi para lá, chegou lá, o casco tava virado. O Jaquirana virou o casco e segurou pelo bracinho dele e gritou: "Minha madrinha, ele tá vivo, tá aqui. Olha ele". Na hora que o casco virou, ele entrou para dentro, entrou o meio banco do casco e aquele ar que ficou dentro no fundo do casco manteve ele vivo lá. E a sorte foi o rapaz ter chegado que foi e virou. Depois disso ele teve um acidente que caiu no fio de alta tensão, perdeu, perdeu o pé, perdeu, foi quase que ele morre. Foi muito triste aquilo. Aí quando ele tá bem recuperado disso aí, o carro bateu, acidente, quebrou de novo ele, que te diz que ele tem vida de gato e sobrevive e tá vivo. É um grande marceneiro. Ele trabalha com marcenaria, ele de móveis, essas coisas, ele constrói móveis, só a história que a gente tem. A gente começou lá a história dele de quebrou o braço, a embarcação virou com ele e aqui, já na cidade, no grande centro, já teve esses dois acidentes, e espero que daqui para frente não aconteça mais nada com ele, graças a Deus.
P/1 - Você falou, você perdeu um irmão?
R - Perdi um irmão. Esse aí foi triste. Ele é Jorge, Almira, eu, o Zeca e ele. Ele era o quinto filho. Ele entrou em depressão. Ninguém conseguiu entender por que aquele rapaz entrou em depressão. Um dos melhores marceneiros de dentro de Belém. Os grandes arquitetos de Belém trabalhavam tudo com ele. Eu trabalhava com ele. Os arquitetos preparavam a planta dos móveis, trazem para ele e ele decifrar. Nunca vi uma pessoa tão capaz para decifrar uma planta assim, de móvel, e era muito requisitado, muitas pessoas da elite aqui de Belém faziam móvel com ele e, de repente, deu uma depressão e ele próprio tirou a vida dele. Muito triste para nós isso aí.
P/1 - Quantos anos ele tinha?
R- 55 anos.
P/1 - Sua mãe era viva?
R - Não, não, graças a Deus. Senão, ela ia sofrer muito. Foi muito ruim aquilo. Muito ruim. Só de nós lembrarmos o sofrimento que ela passou quando esse menino caiu no Filhota, que ele passou seis meses dentro do hospital, o quanto essa mulher sofreu. Minha mãe era uma mulher que era um exemplo, exemplo de vida, exemplo de ser humano. Tanto que ela pedia tanto para Deus que ela não queria que nenhum filho dela morresse antes dela. Ela não queria enterrar nenhum filho. E ela pedia também que ela não queria sofrer. Minha mãe passou mal, teve uma dor de cabeça, levaram ela pro hospital. Eu tava pra estrada, cheguei no dia seguinte, fui lá com ela, tomei benção. Ela disse: ‘Meu filho, o médico disse que eu saio amanhã, tá?’ 6 horas da manhã, ela ligou pro meu irmão: ‘Jorge, vem me buscar que eu tô de alta’. Meu irmão pegou o carro, ela lá no centro nem saiu, chegou lá, o corpo dela tava já no necrotério. Quando ela foi tomar o banho, deu o ataque fulminante nela do jeito que ela queria morrer. Ela não queria sofrer, não queria enterrar nenhum filho. E quando eles ligaram para mim dizendo isso, eu saí daqui parece um louco. Cheguei lá, aí meu cunhado não deixou dirigir, foi dirigindo, chegou lá, fui no necrotério, ‘eu não consigo acreditar’. Puxei o pano no rosto dela, aquele pano que cobre no necrotério, quase que me dá um troço lá. Eu dei um grito para meu cunhado. ‘É minha mãe, é minha mãe’. Ele começou a me segurar e eu fiquei descontrolado. Ela era magnífica. Minha mãe era um ser humano… Se ela pegasse um pão daquele francês, aquele pequeno, os 10 filhos tivessem na mesa, não tivesse outro pão, ela dividia em 10 pedaços. Ninguém podia sair sem provar pelo menos o pedaço do pão. Todos tinham que comer aquele pedaço de pão. Ela era assim, uma mulher desse jeito. O exemplo que ela fez com Estevão era essa mulher. Eu, se tem uma coisa que tenho saudade é da minha mãe. Muita saudade. Exemplo de mãe. Minha mãe, muito trabalhadora, muito simples, muito honesta, muito boa no coração. Não é à toa que ela tinha mais de 200 afilhados.
P/1 - Duzentos afilhados. Como que era isso?
R - É porque a igreja era na fazenda lá. Quando tinha as missas, a matriarca lá era logo escolhida, pessoal escolhia, faziam questão que ela fosse. Então quando a casa tava lotada de gente, a quantidade de pessoas de vozes chamando “minha madrinha”, era um negócio anormal. É muito afilhado.
P/1 - E vocês tinham uma educação religiosa?
R - Nós éramos todos católicos na época. Hoje, já temos alguns irmãos evangélicos. Por ironia do destino, ela foi grávida, ela passou… O que são as coisas, a estrutura, né? Tecnologia, a ausência de tecnologia. A minha, minha mãe grávida do oitavo filho, acho que é oitavo, do sétimo ou oitavo, o nome da minha irmã é Nazaré Cristina, minha mãe teve um problema sério. Ela pegou uma hemorragia muito séria. Hemorragia lá dentro do mato é morte. E lá, os nossos antepassados deixaram uma torre que ela ainda existe, a torre é de alumínio, grande. E ali tem um campo de pouso que foi feito lá, um campo para aviões pequenos, de pequeno porte. E quando a minha mãe tava morre, não morre, tanto faz que ela me chamou lá no quarto, no dia que ela tava já se despedindo. E eu, sendo o terceiro filho, ela me chamou no quarto e disse assim: ‘Meu filho, eu tenho a impressão que não amanheço mais viva e queria te pedir que tu tome conta dos teus irmãos. Certamente o teu pai vai arrumar uma outra mulher, mas eu quero que tu não abandone teus irmãos.’ Ela tinha uma confiança muito grande em mim. Era muito evoluído, eu era um cara muito ativo. E ela me passou essa responsabilidade. E, naquele desespero, ela amanheceu viva. Meu pai colocou um lençol branco na torre, mandou subir o rapaz colocar na torre, e passou um avião teco-teco lá e o comandante era o comandante Leopoldo, muito conhecido, costumava descer lá. Ele passou por cima, enxergou o pano. Ele sabia que aquele pano era uma mensagem para avião. Ele pegou, fez a volta, desceu, tava vindo de Altamira, alguma coisa assim, um lugar de longe, com passageiros. Disse: ‘Olha, eu não vou poder levar, Antônio, porque o voo contratado aqui. Mas eu vou chegar em Belém e vou providenciar, que o Antônio Mendes, que já era o novo dono, o papai ainda tava lá tomando conta, foi para entregar, o Antônio Mendes providencie ou eu volto ou alguma coisa volta.’ Aí eles tinham um barco muito grande, esse pessoal que tinha comprado, era fazendeiro no Marajó, chamado Luiz Otávio, o barco. Aí amanheceu o dia, deu 10 horas, deu 11 horas e nada, avião, nada. Quando nós olhamos pra baía, enxergamos, o barco era grande, ele vinha correndo assim, corria muito. Vieram buscar a minha mãe. Trouxeram médico e tudo lá. Salvaram a minha mãe e a minha mãe colocou o nome dela Nazaré Cristina porque ela se pegou com Nossa Senhora de Nazaré. Religiosa, se pegou muito com Nossa Senhora de Nazaré e com São Francisco de Borja. E hoje, por ironia do destino, minha irmã é pastora evangélica. Não tem nada a ver com o compromisso religioso que a minha mãe. Ela diz: ‘Foi minha mãe, não fui eu que assumi.’ A filha dela também é pastora, o esposo dela é pastor. E assim vai. Eu tenho os irmãos aqui que são evangélicos. Eu não, eu sou religioso. Eu faço toda terça-feira novena, mais de 40 anos, a novena do Perpétuo Socorro. E tenho uma promessa antes de eu ir embora, que Deus vai me dar condições, eu quero participar daquele movimento de Nossa Senhora de Aparecida. Eu quero ir a segunda vez no Cristo Redentor. Eu quero ir em São Borjas, no Rio Grande do Sul, ver a Catedral de São Francisco de Borja. Eu quero ir no Pai Eterno aqui em Goiás. Quero ir no Padre Cícero e quero cumprir, participar de um círio lá no meu município, em Ponta de Pedras, Nossa Senhora da Conceição. Faz muitos anos que eu não participo desse círio. Participava quando era criança. Eu quero voltar lá.
P/1 - Aí você tava falando da sua mãe, que você lembra que ela guardava comida para você?
R - A minha mãe era um ser… Uma verdadeira mãe. Aquela mãe que nos ensinou que o amor de família tem muito valor, e ela morreu expressando isso. Como eu sou o filho que mais viajo, que sempre viajei, ela muitas das vezes… E a gente oriundo no interior, a gente acostumado a comer caça, assim como eu te falei. E, às vezes, tinha umas pessoas que chegavam, por exemplo, quando era permitido, com carne de jacaré aqui em Icoaraci, pessoal do Marajó. Aí me procurava para me vender a carne de jacaré, e geralmente eu mandava deixar na casa dela. ‘Deixa na casa da minha mãe que ela prepara. Ela é especialista nisso aí pra fazer.’ E a minha mãe… Eu viajei para Brasília, chegou um cidadão e disse bem assim, chamado Raul, já faleceu ele: ‘Antônio, eu vim deixar um jacaré pro João.’ ‘Como que o senhor vai deixar jacaré pro João, que ele tá viajando?’ Ele não tinha falado nada, mas ele falou que era pra mim deixar porque ele sabia que eu pagava. ‘Ele mandou deixar aqui assim que chegasse, eu vim deixar.’ Ela preparou o jacaré, comeram. Eu não estava, estava viajando. Quando eu cheguei, tinha uma vasilha assim, daquelas de margarina de 500 g. Tava cheio de pedacinho de jacaré guisado congelado. A minha parte tava lá guardada. Pra você ter ideia como é que é. Ela é impressionante. A minha mãe, fora de série. Minha mãe ainda fazia o açaí no modo caboclo, aquele amassado na mão, que quando nós crescemos o açaí era amassado na mão, é o açaí mais gostoso que tem. Se a mão tiver bem esterilizada, tiver uma luva, não tem açaí melhor. Aquele que você compra na máquina não tem um sabor tão bom como tem esse amassado na mão. Por quê? Porque a máquina que bate o açaí, ela amassa um pouco o caroço. Sai um pouco daquele ____ do caroço. E ele amassado na mão não ocorre isso, dá um trabalhão. A minha mãe fazia muito. E, quando nasceu o meu filho, já tinha os filhos do meu outro irmão, mas nasceu o Juan, meu filho mais velho. Só tenho um casal de filhos. E ela gostava tanto dele. Quando ela fazia uma açaí, a primeira tirada do açaí era desse meu filho. Os outros netos ficavam... Mas era o negócio que ela tinha. Ela deixava para todos, mas aquele primeiro tava reservado. Daí ela tirava logo e guardava, porque quando ele era pequenino, quando ele comia, se lambuzava todo, ficava todo melado de açaí. Ela gostava de ver aquilo, ele todo melado de açaí. Então ela era fora de série, minha mãe.
P/1 - João, com quantos anos você entrou na escola?
R - Eu já fui… Essa história é muito boa contar. Lá, nessa casa, nós morávamos na fazenda, o papai contratava uma professora do interior. Quem é a professora do interior? Aquela pessoa que foi alfabetizada. O compromisso dela era nos alfabetizar, fazer ler e escrever um pouco. Não tinha interpretação, gramática, de nada. Era só aprender e, quando completava uma certa idade, se procurava alguém, um amigo, alguma coisa pro pai nos colocar na casa dessa pessoa, pra cidade, para estudar. Eu saí da minha casa com 10 anos para completar 11 anos. Meu pai mandou me deixar numa embarcação, numa canoa dele, que era chamada Jotinha, a vela também. Mas o difícil de toda essa história, além de eu ter que sair, quando a gente sai de casa assim, a gente chora muito. Eu lembro daquela música do Zezé ‘quando eu saí de casa’, eu tinha uma história meio parecida com a minha mãe. Ela, na hora que eu saí, chorando, me abraçou e disse bem assim, e disse umas palavras para eu ter cuidado, mais ou menos aquilo que fala na música do Zezé. E quando nós dobramos assim, saímos, que dobramos para uma parte da baía, a casa, velejando, ela tava lá, tinha o parapeito grande assim, ela tava no parapeito fazendo adeus para mim, fui embora. Cheguei em Ponta de Pedras com 3 horas e pouca de viagem, 4 horas chorando o tempo todo, me deixaram lá eu chorando. Primeira vez que eu abandonava meus pais e a minha mãe para ir pra casa de estranho. Meu pai pagando a casa do estranho lá com o necessário para eu poder estudar. Eu não reclamo disso. Eu passei dois anos lá, estudei. E depois ele veio e conversou com a minha tia que morava aqui, por isso da origem de eu morar aqui em Icoaraci. A minha tia soube da história: ‘Não traz ele aqui para casa. Ele estuda aqui, tá no meio da família. Ele fica sozinho no meio dos… E lá é muito difícil, na casa dos outros é muito difícil.’ E talvez esse período da minha vida me fez aprender uma grande lição também, além da escola, que eu passei com a minha mãe, a respeitar o meu próximo, respeitar principalmente aqueles que não têm oportunidade na vida, viu? Porque quando a gente não tem oportunidade na vida, a gente pena muito. A gente é humilhado, a gente passa muita dificuldade. E eu vim embora, me formei técnico. Aqui me formei técnico em 80, 78, foi 80, eletrotécnica, e chegou a empresa da Tecnosub aqui, que é do Rio de Janeiro inclusive, contratada pela Portobras, pra fazer o porto de Vila do Conde, hoje é o porto da Albrás aqui, onde os grandes navios encostam. E precisava fazer a carta náutica aqui. Essa empresa veio fazer a carta náutica. Eu entrei nessa empresa como técnico e, quando saí, eu saí como chefe de campo, menino novo. Menos de 20 anos, era chefe de campo já trabalhando. Eu sempre gostei de ser capaz de fazer as coisas que eu faço bem feito. Tanto faz que, quando eu abandonei essa empresa, eu abandonei ela lá no Rio Grande do Norte, fazendo aquele gasoduto que vai do Rio Grande do Norte até a Bahia. Fui eu que fiz aquela sísmica da praia lá. E lá eu abandonei a empresa, vim embora para Belém. E, quando eu estava aqui em Belém, eu me lembro, benzinho, acho que era uma segunda-feira de carnaval, terça-feira, o telefone tocou, os dois donos da empresa, aquela é aquela família Santarelli, dona da Cobra Sub, e mais o _____, que eram os outros donos da empresa, vieram aqui em Belém para tentar me levar de volta. Eles queriam que eu fosse pro Iraque, no tempo daquela guerra do Irã e Iraque, para fazer aquela ferrovia que tava lá, para fazer a sondagem da ferrovia. Eu não aceitei. Eles queriam me levar. ‘Não, tu tem condições de ir para lá. Tu é solteiro, rapaz.’ ‘Não, eu não vou. Não vou.’ Ainda por cima, quando eles estavam tentando, me deixaram aqui pensando, jogaram uma bomba lá, matou um funcionário da Mendes Júnior que tava fazendo aí. Aí que eu não fui mesmo. Então, encerrei por aí a minha atividade. E o que que eu fiz? Com o dinheirinho que eu ganhei, eu comprei os barquinhos de pesca, fiquei trabalhando com os barcos de pesca aqui, pescando, entrei na atividade. Lá, antes de fazer isso, em 75, foi fundada a colônia de pescadores Z 24 de Ponta de Pedra, em 1975. Lá na nossa casa, o primeiro presidente dela foi o meu pai, era uma organização de representação de categoria, e eu fui o primeiro secretário. E eu aprendi a trabalhar com isso. Aí vim para cá, montei, acabei virando presidente da colônia aqui, depois virei diretor, vice-presidente da Federação do Estado, e fui assim, e milito no setor pesqueiro até hoje. Eu, por conhecer a atividade, sou um militante do setor pesqueiro que conheço, conheço o setor pesqueiro, tudo que você possa imaginar da pesca. Eu sei operar, eu sei capturar, eu sei consertar, fazer rede, material, tudo. Então, eu trabalho tudo isso. Mas já depois, com uma certa idade, aquelas oportunidades que o Lula deu para fazer universidade, eu fiz a minha formação em Gestão Pública, porque eu achava que era muito ligado ao que eu faço, cuidar das coisas, organizar, e fiz Gestão Pública. Eu tava fazendo, um tempo desse, uma pós em meio ambiente e recurso renovável, mas tive que trancar porque tô viajando muito, não tá dando pra… Dei uma trancada.
P/1 - Deixa eu voltar um pouquinho para trás, João. Que história, que trajetória! Nesse período da escola, você lembra de alguma professora que tenha te marcado?
R - Lá em Ponta de Pedras, eu lembro da diretora Terezinha. Hoje, ela não é mais viva. Eu lembro dela porque ela tinha uns óculos, ela era nova, mas tinha um óculos fruto de garrafa de mais grosso assim. Então, eu conseguia lembrar dela por conta de que ela era diferente de todo mundo, então não tinha como esquecer. Mas eu lembro também que eu estudei… (intervenção). Eu estudei com um primo meu que depois ele virou prefeito em Ponta de Pedras, Milton Malato. Nós estudamos juntos, nós dois. Então, ele morava com o pai dele, que foi prefeito também na cidade, tive um apoio melhor na cidade, evoluiu mais que evoluiu mais que eu, com toda a certeza lá. Mas hoje ele tá bem. Então, eu lembro dessa primeira professora no interior, uma senhora bastante idosa. Eu até estive na localidade de onde era ela, agora com o pessoal da Albrás e da Sudam. E uma das pessoas que eu perguntei foi por ela. ‘Vem cá, quem é o pessoal aqui oriundo da professora Aureliana?’ E aí, pessoal diz: ‘Olha o fulano, fulano.’ Eu falei: ‘Ela que me fez aprender a conhecer as letras.’ Então, eu tive lá numa localidade, que eu contei a história que eu tive que sair de lá para poder estudar, né? E eu consegui chegar num dos rios lá da minha localidade, encontrei ensino médio lá. A lágrima caiu do meu olho. Caiu por quê? Nosso povo sai dali e busca, manda os filhos pra cidade para estudar, e filhas, por conta dessa estrutura de família, muitos viram imaginais, muitas viram prostituta, tem uma perda de família enorme. E, graças a Deus, eu não me submeti a isso, mas é um negócio que mexe muito comigo ver isso acontecer. Às vezes a família sai, saem todos de lá, não tem uma profissão, não tem uma atividade de vencimento, tem aí para cá também, é outra destruição de família. Então, quando eu consegui ver lá que tem ensino médio, eu fiquei, eu conversei com a professora, eu disse: ‘Professora, faça ensino médio desse pessoal. Vamos trabalhar. Eu vou tentar conseguir para cá, eu vou lutar para conseguir, se eu tenho como conseguir, com muita luta, eu vou conseguir. Vamos colocar uma internet de qualidade que hoje tem cursos superiores, cursos técnicos pra internet que dá para fazer aqui, dentro das atividades que se exerce aqui, agricultura, extrativismo, aquicultura, pesca, criação de peixes, essas coisas. Vamos tentar formar.’ E nisso apareceu uma mocinha lá, mais ou menos com 16 anos, ela tem uma antena colocada numa madeira lá e que essa antena ela faz internet no celular. Pasme, ela aprendeu a fazer aqueles processos. Ela fez um curso pela internet lá dentro do mato, aquele de fazer sobrancelha, tratamento de pele de mulher. Ela fez e ela fazia isso pro pessoal lá. Você imaginou aquela mocinha, que inteligência que tem, se tivesse um apoio, ela voava. Então, aí me impulsionou a tentar trabalhar isso lá para ver se esse povo não sai de lá, porque eu tive sorte de sair, meus irmãos que saíram também tiveram sorte, não foram submetidos a isso. Mas, hoje em dia, quem tá saindo é um risco total. Isso me preocupa muito.
P/1 - Deixa eu voltar um pouquinho. E na escola como é que você era? Era do tipo comportado, bagunceiro?00:
R - Eu era muito dedicado a estudar. Eu sempre fui muito bom naquela matemática corriqueira, não a de hoje, aquela de raiz quadrada... Então, a gente era permissível na sala de aula, os debates de matemática e de outras atividades. Mas na matemática, tinha a chamada palmatória, na nossa região usava muito. Colocavam três alunos, por exemplo, para fazer a sabatina. E ali, geralmente, eu era campeão na sabatina, era o cara que dava mais bolo nos outros, que eu me dedicava mesmo. Até os meus 20 e poucos anos, eu ia no supermercado, ia pegando as compras, jogando no carrinho, e quando eu saía, eu não sabia a fração, mas eu sabia que aquilo dava R$900, por exemplo. Eu sabia só de ir jogando e guardando na cabeça. Hoje eu não faço mais isso, mas fazia muito isso, tudo consequência da dedicação da matemática que eu tinha quando era garoto, pra poder não pegar bolo também. E assim foi. Então, eu tenho essas recordações.
P/1 - Você tirava boas notas?
R - Tirava. Sempre tirei boa nota. Eu sempre falo pros meus netos: "Olha, quando eu tirava oito, eu ficava triste" Meu boletim geralmente era carregado no 10, na escola do interior. Eu era muito dedicado à escola, mas era brincalhão. Gostava de brincar, de tomar banho na biqueira da igreja, aquela água que caía quando chovia, corria pra lá, tomava banho, mas não era menino de rua, não. Era muito controlado. Ia pra lá só pra aquilo e voltava pra casa. Muito obediente. Acostumado a ir para as missas à noite na catedral lá do município, não era distante de casa, e a família lá ia todas, eu ia também junto. E isso me faz ser muito crente a Deus. Muito receptivo a Deus. Vocês chegaram aqui, eu não abri logo a porta porque tava fazendo minhas orações lá em casa. Só saio, só abro a porta na minha casa depois que faço minhas orações, converso com Deus. Aí eu tô preparado, porque Ele toma conta de mim.
P/1 - João, você falou que morava na fazenda, na casa. Qual era a sua relação com o mato?
R - Muito próximo. Inclusive, como eu falei pra você, que nós éramos acostumados a comer caça e fazer extrativismo, tirar frutas, que nós nos alimentava, e ser tirado da mata o açaí. Até meus 18 anos, eu já apanhava açaí. Hoje eu não apanho mais. Subia e tirava do açaizeiro pra gente comer. E meu pai nunca privou, inclusive ele fazia questão que nós fizéssemos isso para aprender. Isso que nós tínhamos que aprender como sobreviver, e fazia. Eu pescava e fazia de tudo, caçava também.
P/1- Como que era a caça?
R - Caça a gente saía pro… Por exemplo, quando pegava tatu na região do Marajó, nos campos, na minha região, a gente comia muito tatu na época. O pessoal tem medo de tatu, mas o nosso tatu era muito limpo, não dava em cemitério, essas coisas. E a gente comia, sempre acostumado a comer tatu. E, quando dá aquela chuva fina no campo, a gente sai, porque ele sai de dentro do buraco, ele tem medo de morrer afogado, ele sai, vem pro campo. A gente saía muitas das vezes, não precisa nem atirar no tatu, pega ali na carreira mesmo, e joga no saco, trás e vai se alimentar. Já paca, veado, essas coisas, e porco do mato tem que ser na base do tiro. E quando eu era garoto também, eu era muito bom de tiro por conta disso. Era muito, pegava uma arma pra atirar, eu era bom de tiro. Hoje não, acho que até treme minha mão se eu pegar uma arma.
P/1 - Você lembra de uma caçada assim que tenha te marcado ou algumas?
R - Eu lembro de uma caçada que ela não chegou a ser concluída. Por quê? Nós entramos no mato, esse cidadão já é morto, e a filha dele até casada com um primo meu, primo legítimo, a Irene, que é esposa do Luluca, Luiz o nome dele, chamo de Luluca porque é meu primo, mora lá em Ponta de Pedras, e o pai dela morava como daqui da onde tá aqueles equipamentos ali do governo do estado, tá fazendo aquela ponte lá, bastante distante. E ele, quando dava as gargalhadas dele lá, escutava aqui em casa, que ele tinha expressão sonora muito forte. E ele ia nessa caçada conosco. Na verdade, nós íamos pra roça e aproveitava o caminho pra dar uma caçada. Quando nós chegamos próximo assim, a minha mãe ia nessa viagem, ela avistou, o veado em pé, bem perto de uma árvore. Aí nós fomos nos aproximando, já com a arma engatilhada, próximo pra pegar a posição que ele tava por trás de uma árvore, tinha que atirar. Geralmente se atira na pata do veado, na perna da frente, na pata, que ele não anda mais, a gente segura ele pra não errar o tiro também, porque fica no vulto maior. E aí, o Paulo veio junto com a gente, sabe o que o veado tava fazendo? Ele tava dormindo, ele fazia assim, ó, com a cabeça. E ele viu aquele veado fazendo isso, ele deu uma gargalhada. O veado deu uma carreira, nós não pegamos, não matamos o veado porque ele espantou, com a gargalhada dele. São coisas que é fácil de lembrar. As outras coisas eram pegar, por exemplo, o pessoal chama aí pra fora de gambá. Nós temos a mucura, tem dois, três tipos de mucura. Uma dessas mucura o pessoal come. Nós come muito a mucura branca, ela é grande. Então o caboclo do Marajó, ele sabe tirar as glândulas que dá aquela… Fica igual uma galinha caipira. Um negócio muito bom. E aí, como é que ela era pega? Chamado mundé, se armava no tempo do jabá. Era tão barato aquela comida. A carne seca, que chamam de charque. A gente pegava o mundé. O que é o mundé? Mete debaixo de uma raiz como essa que tá ali, cava o buraco, enfia aquele pau pra lá, ele é flexível, levanta ele aqui, faz uma armadilha pequena, coloca aquela carne de charque, gorda, assada, chega aquele cheiro. A mucura vem, tenta morder pra puxar aquilo, mata. É forma extremamente artesanal de matar um animal, de pegar caça sem usar arma. E a gente fazia muito isso.
P/1 - Como é que você aprendeu a entrar na mata e conhecer a mata?
R - A gente aprende com os pais da gente, com os funcionários que eles têm, os empregados de confiança que vão, a gente vai. Por exemplo, tinha uma família lá que, mudando um pouco da mata, que a gente fazia isso na mata, na hora que vai tirar açaí, essas coisas, a gente vai. Aí sempre a gente participa. Mas eu aprendi, por exemplo, a exercer bem a pescaria, que o meu pai contratava as pessoas que faziam aquelas tapações grandes para pegar peixe, aí dividia no meio como quem veio fazer, e o restante que sobrava, era para alimentar os funcionários que trabalhavam ali. Era uma forma de alimentar, e a gente participava daquela pescaria. Então, quando colocava aquela tapagem de palha, tinha que mergulhar alguém para ir amarrar lá no fundo, para não abrir, pro peixe não fugir. E eu, garoto de 9 anos, 10 anos, adorava fazer aquilo. Eu ia com eles só pra isso. Tinha uma cordinha feita no cipó, chamado mucunã. E a gente mergulhava com aquilo, varava na tala. Olha o tempo que a gente levava no fundo, ia lá, amarrava aquilo, boiava, vinha, pegava pra ir pra outro. Então, o garoto no interior, com 3 anos, ele nada tão bem como qualquer adulto, nada tão bem, mergulha e faz muito bem isso aí. E eu fazia muito isso, é uma recordação. Eu até conversei sobre esse assunto lá quando eu estive agora recentemente, fazia um bocado de ano que eu não ia lá, fui lá só pra conversar essas coisas. Conversei à beça.
P/1 - Quando vocês, só voltando um pouquinho, iam pra mata, a sua mãe ia junto?
R - Muito difícil. A minha mãe ia mais, às vezes, quando fazia a tapação de igarapé nas nossas propriedades. Que a parte do ____ tinha um rio onde dava muito peixe lá, que faziam tapação. E a tapação, naquela época, de forma cabocla. Eu aprendi, e na escola aprendi uma outra coisa que eu condenei depois, mas aprendi uma coisa que é muito importante, que as pessoas não conseguem aprender: o quanto é importante o oxigênio na água pros peixes na fauna. E a tapação, o que é? A gente tapa o igarapé, mete também aquela tapação, aquela tala, aquele material de tala que a gente chama de pari aqui, tapava a água. Quando seca, fica aquela água média, você faz a mocóca. O que é mocóca? Atravessa um pau, enche de barro, veda, dá aquela água. Aí o que a gente vai fazer? A gente pega o remo e vai mexer na água até virar aquela água bem lamacenta. O peixe, o camarão que tá lá dentro, fica sem oxigênio, ele boia vai tirando com o pari. As mulheres que iam para fazer isso e a minha mãe ia junto. Porque os homens trabalhavam, os homens eram mais grosseiros. Aquele ali, como era mais só para pegar um peixe, organizar, faziam muito isso. E a minha mãe sempre ia para fazer isso. Então, pegava muito peixe, camarão, fazia de tempo em tempo, não fazia todo tempo isso aí, para não tá sacrificando o habitat natural do peixe, do camarão. Se fazia, e ela ia muita das vezes, como ela cuidava mais do pessoal da cozinha lá em casa, era ela. Mas quando tinha essas coisas, ela ia, tirava assim, ia fazer, era muito importante. Mas ela sabia, ela conhecia muito dessa atividade de pesca, porque o pai dela fazia muito, e elas faziam junto com ele quando ele ainda tava bem.
P/1 - E essa entrada, quando vocês iam colher o fruto do açaí, você conhecia outras árvores, plantas e para que que serviam?
R - Sim, sim. Quando você for me deixar, você vai olhar pra frente de casa, você vai ver um jardim que tem aproveitamento da rua lá. Tem vários tipos de plantas medicinais, trazendo tudo da minha origem. Isso aí que eu trago, a gente guarda lá. As pessoas hoje que tá dando uma crise de gripe com muita tosse, eu tenho uma folha lá de algodão branco, o pessoal vem buscar comigo, prepara um melado aqui, ele toma, que faz arrear o catarro. Há três meses atrás tinha um rapaz lá próximo de casa que toda noite ele ia pra UPA tomar injeção com dor no rim. Aí um dia a mulher dele parou lá: ‘João, tu não tem remédio para problema de rim do meu marido? Eu tô cansada de toda noite na UPA ir com ele, toma injeção e volta.’ Eu disse assim: ‘Se eu fizer um remédio, ele toma?’ Ela disse: ‘Toma.’ ‘Não, eu não vou fazer, quem vai fazer é tu.’ Eu fui lá nas minhas plantas, tirei três tipos de plantas. Tirei a cana-de-macaco, tirei meracilina... Foi dois anti-inflamatórios naturais que eu tirei. E a cana-de-macaco, por que a cana-de-macaco? A cana-de-macaco, que você faz o chá, ela faz você urinar muito. E os médicos, quando eles davam, eles aplicavam antibiótico no rapaz lá, porque ele tava com inflamação no canal uretral. Mas o que é que eu ensinei pra ela? Coisa de experiência. ‘Você vai levar isso aqui. Essa porção que eu tô te dando aqui dá pra fazer uma garrafa de 2 litros. Ferve, esfria, coloca na geladeira pra ele tomar isso aqui, pra ele se preparar, que ele vai urinar muito. Aí você vai comprar um abacaxi pequeno, verde. Não verde, maduro, mas ele não pode estar amarelo, tem que ser verde. Você vai cortar e picar na faca todinho assim. Aí bota ele dentro de uma jarra com 2 litros de água. Ele não vai tomar mais água comum, nada. Esse chá vai tomar isso aqui’. ‘E vai fazer efeito?’ ‘Vai. Pode aguardar que vai.’ Ela levou, com duas semanas ela voltou lá em casa. Faltava folha, ela veio buscar. Ela voltou lá em casa, veio me agradecer: ‘João, obrigado. A pedra saiu.’ Ela pegou, olhou pra mim: ‘Tu é bruxo?’ Eu disse: ‘Não, vou te explicar o que aconteceu. É que teu marido tava com o canal uretral inflamado. Como tava inflamado, a pedra não conseguia sair. O médico dava remédio, não saía. Eu te dei um excedente de líquidos, que fazia teu marido urinar muito. E lá tinha um anti-inflamatório natural. O anti-inflamatório natural ajudou a desinflamar o canal uretral dele. Com o fluxo de mijo, a tendência da pedra vir, e ela veio.’ O que aconteceu com ele? Saiu. E foi dentro do sanitário de uma empresa que foi visitar: a pedra. Pronto! Acabou o problema dele. E ele tá… Isso a gente te traz de lá, de berço. A gente aprende lá no mato isso aí.
P/1 - Como é que você aprendeu aí conhecendo as plantas?
R - Vó, mãe, tudo fazendo isso aí. Então, a gente aprende muito. Você pode ter ideia que, quando você tá assim com a cabeça muito cansada, o que é que a minha avó fazia? Ela pegava aquele coco ouro, deve ter aqui. Corta o coco ouro, colocava folha de arruda dentro, favacão amassado, deixa aquilo ali virar mais ou menos. Ela pega um odor gostoso tudinho. Aí você começa a pegar aquele monte de folha e coloca no centro da cabeça até que aquilo vai, vai, até que a dor de cabeça sai. É bom à beça. O coco ouro tem muito mineral. Muito bom para resolver isso. Simples demais.
P/1 - O que mais que você aprendeu?
R - Ah, eu aprendi… Ontem, eu dei uma receita na internet para um cara que tava, eu não sei nem de onde ele é, tava lá na internet, o cachorro dele, com muita sarna, já tá naquele processo de pira, ele fazendo remédio, pedindo ao pessoal instruir, ensinar pra ele uma série de remédio. Alguém dava, dizia: ‘Leva no veterinário.’ Ele disse: ‘Já levei em veterinário, tô quase pra ficar sem dinheiro pra comer aqui, de tanto gastar dinheiro com o veterinário, não deu jeito.’ Eu peguei, entrei na página dele: ‘Eu vou te ensinar o remédio aqui pra tu curar o teu cachorro. Esse remédio que eu vou te ensinar, eu curo o cachorro, eu curo o carneiro e curo o cavalo. Todas as sarnas desses animais. Nenhum animal meu tem esse tipo de sarna que eu curo. O remédio aqui é andiroba. O remédio básico é andiroba. Você vai comprar 1 litro de andiroba, vai comprar 300 g de enxofre natural, totalmente natural, moído. Você vai pegar esse enxofre, vai pegar uma garrafa de refrigerante de 1 litro e meio, coloca essa andiroba tudo dentro, joga os 300 g de enxofre, sacode bem até misturar tudo, ficar bem homogêneo. Aí você vai guardar por três dias isso aí. Enquanto isso, você vai me comprar 300 g de bicarbonato. Vai me comprar um sabonete ou então um shampoo anti-sarna. E você vai pegar o seguinte: quando tiver pronto, você vai lavar esse cachorro, lavar com aquele shampoo anti-sarna, lavar bem. Quando tiver bem lavado, tirado todo esse material, você vai pegar 100 g desse bicarbonato, botar em meio litro de água, amassa, mexe bem até dissolver todinho. Você vai passar no cachorro todinho, priorizar a área afetada. Prepara aquilo ali, deixa ele secar com aquilo no corpo. Quando ele secar, você pega, bota tua mão na luva e pega esse andiroba que tá aí, passar aí.’ Eu disse: ‘Você faz esse remédio, com 15 dias você volta aqui na página pra me dizer o resultado.’ Eu falei assim pra ele, tá? Aí deu. Aí falei pra ele, quando eu vi o cachorro dele amarrado no chão assim, no pé de uma árvore, aquele barro: ‘Me faz um favor: tira teu cachorro daí, dessa terra, que tu não vai curar ele nunca aí nesse lugar.’ E deixei na página pra ele lá. A gente faz muito isso aí.
P/1 - João, quando você começou a entrar na mata, você conhece assim “essa árvore, tem essa planta que é bom para isso, essa é bom para isso”?
R - A gente te conhece muito delas, aprende, a gente vai aprendendo. Isso é um negócio, uma “sabiência” que a gente traz de família, dos nossos antepassados, a gente vai aprendendo com eles. E a gente que viveu isso aí… Por exemplo, quando eu fui tratado no interior, o meu pai comprava litro de elixir Paregórico, que era fácil de conseguir para levar, para tratar fígado na pessoa que tem, no interior come muita fruta e acaba afetando o fígado por isso. Mas o remédio básico nosso no interior para fígado era uma planta chamada sucuriju, e eu tenho ela plantada aí. Chá de sucuriju é excelente. Eu tenho uma planta lá, eu chamo ela de "foz fígado", outros chamam de "sulfato ferroso", outros chamam "cura tudo". A minha mulher tem problema de anemia. Tem vezes que a anemia dela tá profunda. Eu vou, tiro 10 folhas daquela, pego meio litro de água, fervo, fica o chá vermelho. Ela toma, recupera assim, questão de horas. Eu tenho lá essa planta. Eu não deixo morrer, não. Tenho lá na frente da minha casa.
P/1 - E onde que você pega as plantas? Ou você planta como é?
R - Eu planto, às vezes as pessoas sabem que eu gosto, trazem para mim. Às vezes eu chego, tem planta na frente de casa, colocada lá, já deixaram lá, eu sei que já deixaram pra mim. Eu vou e planto, e mudo. E eles são assim. A gente vai num lugar e encontra que eu não tenho, eu trago, eu peço, compro, eu faço como tiver.
P/1 - Você entra ainda hoje na floresta?
R - Só quando eu vou pro interior. Hoje é muito difícil. Mas eu fui, por exemplo, com a Flávia lá em Serra Pelada. Eu trouxe dentro da minha mala um pé de mangueira. Como é que eu cheguei com essa mangueira viva aqui? Só quem tem experiência faz, consegue chegar com uma mangueira viva dessa aqui. E trouxe uma planta com os cachos enormes. Ela não tem poder medicinal, mas ela tem poder de beleza. Eu trouxe essa semente de plantar, desse tamanho aqui. Já tá lá plantada. Eu trouxe, eu adoro. Você andava na casa da minha mãe, de um lado, outro, era planta. Você saía encostando, ela tinha tudo, era pátio, corredor, tudo cheio de planta. Minha mãe era assim, gostava muito de planta. Essa eu trouxe, a herança dela, de gostar de planta também.
P/1 - Alguém da sua família chegou a ser mateiro?
R - Não, não. Lá na nossa região não existe essa pessoa mateira. Existem pessoas que entram no mato, mas nós temos uma técnica lá no mato. Quando entra, os matos são grandes. Por não ter especificamente essa pessoa mateiro, aquele cara que conhece o mato como a palma da mão, que não precisa de GPS, ele vai, entra e sai. Muitas das vezes as pessoas se perdem no mato. Como é que essa pessoa indica pra gente que ele tá perdido no mato pra gente saber, para poder dar socorro para essa pessoa? Tem uma árvore chamada Samaumeira que é muito famosa aqui no estado do Pará. Ela é preservada aqui. Inclusive dentro da cidade elas dão umas raízes altas e grandes assim, fina, estreita, mas grandes. O que é que a gente faz quando a gente tá perdido no mato? Se nós tiver com machado na mão, pega a costa no machado e bate mão. Tiver com terçado, corta um pé lá de pau grande e dá-lhe uns ‘bam’. Então a pessoa que tá 1 km, 2 km escuta aquele barulho. Aí ele diz assim: ‘Olha, tem gente perdida no mato.’ A gente sai do rumo daquele barulho e vai socorrer a pessoa que tá no mato perdida. Então, hoje em dia, eu não me perco nem tem o mínimo que me perder, porque a gente na cidade assistindo filmes, a gente aprende algumas técnicas que lá a gente não tem ou não dá valor para ela. Por exemplo, entrar numa mata. Eu passei aqui nessa planta bem aqui, ó. Eu pego, quebro o galho dela aqui, não quebra em total, deixa ele quebrado, arriada a ponta dele. Aí chegou ali na frente, mais uns 20 m, quebra o outro e vou embora. A minha volta tá segura, não tem como eu me perder. Então até que a gente aprende essa experiência, não é que assim no filme, televisão e nada, que tiver alguma coisa parecida, a gente cria a ideia para fazer eles. Eu não me perco mais.
P/1 - E você conhece outros mateiros, conhecia?
R - Conheci muito e ainda conheço.
P/1 - Sabe alguma história deles? Lembra de alguma?
R - Eu sei do compadre meu, que ele já faleceu. Agora inclusive apresentei ele pras meninas da Vale. A Flávia conheceu o filho dele, que foi o cara que nos levou na embarcação, pilotou, que a gente trabalhou lá. O pai dele entrou no mato com cachorro, um terçado e uma cartucheira para espigar. E não retornou o primeiro dia, não retornou o segundo, no terceiro se desesperaram, saíram atrás, foram encontrar, encontraram ele no mato deitado no chão, no lado de uma árvore grande e o cachorro dele deitado também dormindo, todos os dois, que eles acordaram, o cachorro acordou logo, mas ele foi o sacrifício. Quando acordaram ele, ele ficou com problema. Passou um tempo meio desnorteado, a cabeça não muito certa, não falando coisa com coisa. E ele contou para nós que à noite quando ele já tava retornando, pegaram ele, não sabe quem pegaram lá. Era muito tapa que ele pegava, muito tapa. Não falavam nada, era só tapa. Ele caía, levantava e pegava tapa. Deram uma surra nele no mato. E lá no interior a gente diz que é o guardião do mato que fez isso com ele. A gente tem muito respeito. Dia de finado a gente não entra no mato. 24 de agosto a gente não entra no mato, que é o dia do Beto, o dia do diabo. A gente só começa a apanhar açaí no Marajó aqui no interior nosso, a partir do dia 24. No dia 24 entra que a gente tem como ilusão de que dia 24 o diabo mija no açaí e a partir daí ele presta como… É rápido que ele começa a prestar, ele fica nas condições de ser extraído.
P/1 - Quem é a figura do guardião do mato?
R - Guardião do mato para eles aí não tem esse nome, essa denominação do folclore que eles guardam, tipo o saci, por exemplo. Não, ele não tem isso aí. Só chamam que é o guardião do mato como a mãe d'água também. A gente não tem como dizer que a jarina, não sei quem é aqui na mitologia. Aqui nas grandes cidades dão nome, para lá não dá, que tem a mãe d'água, por exemplo. Se respeita também. Tem o guardião do mato que se respeita muito. E olha, no mato acontece cada coisa na vida da gente. Comigo já aconteceu.
P/1 - O que aconteceu?
R - Eu entrei no mato uma vez e, com o rifle na mão, de repetição do meu pai, entrei e fui embora. A gente é muito corajoso quando a gente mora no interior, a gente não tem se vai aparecer uma onça e vai embora no mato. E eu cheguei num certo local assim meio descampado, eu olhei, vi aquele grito, um grito feio. Aí olhei para cima, era uma coruja no galho do pau. Eu peguei e andei e fiquei bem próximo dela assim, do local onde ela estava, ela deu um grito tão estridente, tão estridente, que eu nunca tinha visto o negócio daquele, que o meu cabelo arrepiou todinho, arrepiou tudo assim. Tudo, a perna tudinho, me deu um negócio, um calafrio. Eu com a arma na mão, terçado na mão, eu corri, você acredita? Eu corri. Então a gente tem a natureza, ela é muito importante, ela te prega cada peça. Eu tinha uns 10, 11 anos quando eu dei essa carreira. Coisa impressionante. Eles botam a gente para correr mesmo do mato, não tem negócio, não tem boa para isso não. Eles dizem, pra você ter ideia, a pessoa que se perde, ela consegue, ela se perde, eles dizem que a gente fica ‘mundeado’. A gente diz no interior, por exemplo, tem esse monumento aqui, a pessoa fica mundeado andando, dá mais de infinitas rodadas aqui ao redor aí, não consegue sair daquele círculo. Fica perdido, não consegue sair, e ele te denomina aqui de mundeado. Mundeado é a pessoa que tá possuída ou tiraram a tua força de espírito, alguma coisa dessa natureza. E acontece isso lá no mato muito, precisar ter muito cuidado. Muita gente não gosta de ir só pro mato, não, com medo dessas coisas, com medo de acontecer alguma coisa. Eu conto essa história e eu creio muito nessa expectativa. Tem uma história, se você for ler, no livro de esquadra de Frederico Villar, eles entraram na Amazônia em 1919 aqui, uma esquadra no navio José Bonifácio, ainda movida a vela, com um pequeno propulsor. Eles tinha uma ____ no mar que, quando eles viam no mar al alcat… o pássaro que tem negro no mar, só no oceano ele, quando eles senta na embarcação, eles consideram como azar, e eles vinham entrando na borda do rio Pará, e um pássaro desse sentou na embarcação, no mastro, e eles com medo expulsaram ele. Com prazo de uma hora e pouco, o barco começou a pegar fogo. Eles apagaram o fogo, socorreram. E nesse nível tem um trecho que um marinheiro entrou, ele imaginou que o rio Pará já era o rio Amazonas. Na verdade, você entra no rio Pará para depois entrar no Amazonas. E ele pegou, se ajoelhou e fez uma expressão, dizendo as seguintes palavras, o seguinte texto: ‘Rei dos Reis, Reis dos Reis, Reis dos rios. Nós viemos aqui em missão de paz. Nos permita entrar, porque nós viemos em missão de paz, nós viemos trazer remédio, devemos trazer, viemos trazer médico, viemos fazer e viemos proporcionar melhores dias para a população desse lugar. Nos permita, não nos castigue, nós não somos invasores.’ Tem lá nesse livro, muito bonito. E eu, quando li esse trecho lá, eu recordei o que te faz no interior.
P/1 - O que te faz no interior, o que te passa. O que que te remeteu? Você lembrou de alguma história específica quando você leu?
R- Eu lembrei dessa história, principalmente tava recente assim o meu compadre que pegou os tapa lá no meio do mato, você não sabia de quem pegou, no escuro, não tinha voz, não tinha nada, era só tapa que ele pegava e caia revirava. Isso ele soube contar, “apanhei muito”, não tinha marca nem lesão nenhuma, mas que pegava tapa. Mas o impressionante foi que a espingarda tava no chão, o terçado assim e o cachorro tava também e no sono profundo igual a ele. Tem uma anormalidade ali. O que era? Ninguém sabe.
P/1 - E por que você acha que ele aparece, ele acha que apareceu o guardião da mata para ele?
R - É porque ele saiu para caçar. Às vezes você tem que ter limite das coisas. Nós temos um problema sério nos pescadores e nos caçadores. O caçador, dá 4 horas da tarde lá no interior, o nativo, a mulher dele diz: ‘Olha, não tem janta hoje.’ Ele diz assim: ‘Eu vou matar uma caça, já vou atrás de uma caça para a gente jantar.’ Ele pega, joga a cartucheira nas costas e pega o terçado, desce. Geralmente as casas são altas nos caboclos, que chama jirau, e ele, para despertar o cachorro, ele bate com o terçado no jirau da casa. ‘Pá’, que ele bate, o cachorro já sabe o que é. Cachorro pula lá de cima e acompanha ele e sai com ele pro mato para caçar. O cachorro vai para localizar a caça. Mas qual é o problema desse caçador? Falta de compreensão, falta de informação ecológica. Ele sai, anda 3 km. É lá ele encontra um tatu, uma paca, ele mata aquela paca e foi buscar a janta. Já matou a janta, vem embora. Quando ele retorna, que ele tá a menos de 1 km de casa, ele encontra uma anta de 300 kg e atira na anta e não dá conta de trazer a anta, mas ele mata. Se ele não tem geladeira, não tem nada lá para botar, para que ele matou aquele animal? Então é o vício de predador, o instinto de predador é grande. O pescador faz a mesma coisa. Ele encontra um cardume de peixe mais ou menos graúdo aqui para malheiro 40. Ele sai, pega a rede dele 40 na casa dele e sai em cima desse peixe. 40, 45. Sai pescando, pescando. Quando ele chega lá na frente, vê que diminuiu o volume daquele cardume de peixe, e ele já interpretou o que aconteceu. O que que aconteceu? Ele pegou os maiores, soltou os menores. Aí ele volta, deixa aquela rede de 40 e pega uma 35, o malheiro menor, e corre de novo sendo _____ começa a pegar uma menor. Então ele é extremamente predador por natureza. Então nós temos essa deficiência no interior.
P/1 - O que mudou essa forma de pegar o peixe da sua época de menino para de agora?
R - As redes, a captura através de rede, ela é muito predadora em qualquer sentido. Ela é muito predadora porque nós pescamos só de caniço, ia de mão ou então fazer uma tapagem. Nessa tapagem você tinha a possibilidade de escolher os graúdos e soltar os miúdos. Então, naquela época, sem nenhuma instrução, sem nenhum órgão de meio ambiente, a gente fazia mais seletividade do que se faz hoje. Hoje é um absurdo. Hoje, a predação nós temos grande, nós estamos com dificuldade de manutenção de algumas espécies já por conta disso.
P/1 - Como que você acha que deu essa mudança desse tipo de antes pro de agora?
R - A grande verdade é o seguinte: a pesca comercial foi o grande ‘verano’ nessa história, que em tempos atrás, até os anos 40, por exemplo, nós não tínhamos pesca comercial, algumas salgas de peixe que pegava, salgava esse peixe no centro do Marajó, por exemplo, fazia aquilo para poder vender em outras comunidades. Trocar com farinha, trocar com madeira, alguma coisa levava. Mas era por épocas que se faziam isso. E quando a pesca iniciou-se, a pesca comercial aqui, principalmente no estado do Pará, nos anos 40, e o governo da República trouxe pescadores de fora, de outros países. Principalmente os portugueses e os espanhóis, para virem comprar o nosso peixe aqui. Inclusive aqui, o município de Soure, na área de Caju-Una, um lugar específico aonde essas geleiras que vinham de fora, essas embarcações que vinham de fora, recebia mais, o governo deu incentivo para eles fazerem isso, dava 10% de tudo que eles comprassem como incentivo para eles. Comprasse, digamos, a cada R$ 1.000, comprava, R$ 100 era deles o peixe. Só que o governo dava esse incentivo, mas quem pagava era o pescador. O pescador sempre foi explorado desde quando começou a pesca, o verdadeiro pescador aqui em captura. E cada 100 kg de peixe que ele vendia pra geleira era descontado. Só 90 ele recebia. E o governo dando incentivo, mas através do cara que tava fazendo o esforço lá. E a partir daí, a partir dessas técnicas, foi que apareceu a técnica da bomba, as técnicas das pescas predatórias de mergulho, essas coisas, apareceu que esses caras trouxeram de fora. Agora, eu falei para você que na escola eu aprendi que não era verdadeiro aquilo que pregava, que nos ensinaram inclusive na escola, mas eu fui aprender por eu ser do interior, e conhecer, que eles alegavam que o envenenamento do peixe foi uma técnica indígena e eu discordo. O indígena descobriu o veneno porque eles usavam o veneno para botar nas suas flechas, para flechar os inimigos que eles disputavam. Aquelas flechas matavam, mas o veneno foi o índio. Por quê? As grandes concentração de índio era nas cabeceiras do igarapé, aonde a água naquela época era totalmente cristalina, você escolheria o peixe que ia matar. Qual a necessidade que o índio tinha de fazer um timbó, jogar o veneno para matar um cardume de peixe todinho? Quando ele tinha, ele escolhia, olhava e ‘aquele que eu vou flechar e vou pegar’. Só essa tese, para mim, resolve tudo que eu tô falando. Acuso que tá nas histórias das histórias, tá nos anais aí de que o índio não tem nada disso. O índio realmente conheceu o veneno da natureza para, para guerrear, muitas vezes até para, para matar um animal grande, de grande porte. Tudo bem. Agora, para envenenar os rios, é menos verdade isso aí. Só pode afirmar isso quem conhece como eu conheço. Isso aí é fantasia. Você tem na história a fantasia. Então, não existe isso aí. E eu aprendi na minha história e conhecendo e, hoje, assistindo, participando de movimentos, essa coisa todinha, a gente vê que tem muita coisa furada nessa história aí. Não é verdade isso aí, não.
P/1 - Como você acha que essas atividades tanto do extrativismo, da pesca, afeta o clima? (intervenção)
R - O extrativismo tem várias situações. Por exemplo, o extrativismo da madeira é muito predador, é devastador, na verdade. O extrativismo natural, aquele que você trabalha o açaí, o açaí natural, ele praticamente não tem impacto negativo. Já tem no manejo do açaí hoje, as pessoas que estão na cultura do plantio do açaí, do manejo do açaí. Por quê? Eu contei a história para você que a gente faz o lamaçal na água para tirar oxigênio para o peixe boiar. Hoje, inconscientemente, o nosso caboclo está plantando açaí. Ele vai nas cabeceiras dos rios, nas matas ciliares, derruba aquela mata que protege aquele solo, para plantar açaí. O que ele deixa? Deixa a área descampada. O que acontece? Como estamos numa região que chove muito, quando a chuva cai, transforma aquilo num lamaçal que desce para dentro dos rios, eliminando o local de desova, local de crescimento e de engorda dos peixes menores. Isso está além da pesca predatória excessiva que existe, o excesso de captura. Temos também esse fator deficitário, o desmatamento das matas ciliares para fazer plantio de açaí, que hoje é a menina dos olhos para todo mundo lá na nossa região, tá causando um impacto muito grande. Nas cabeceiras do igarapé, os grandes motores e resíduos de óleo. Hoje temos grandes navios que aportam no porto de Vila do Conde, em Santana, em Macapá, ficam ali na foz do rio Amazonas. Esses navios são um grande problema para nós na pesca e no consumo da água do rio que nossa população consome. Hoje estamos consumindo água totalmente contaminada nos interiores. O pessoal da Baía do Marajó, do Tocantins, está sendo contaminado 24 horas pelas caldeiras da Albras no Norte, jogando detritos de metal pelas caldeiras dentro do rio. Para completar esse desastre ambiental enorme, temos uma atividade dos grandes navios graneleiros que, quando saem da região deles, são obrigados a colocar uma quantitativa expressiva de água no porão para dar equilíbrio e manter o nível dentro da água, jogando fora para o navio se desenvolver. Esses caras, desses navios de fora, aprenderam que nossa água doce, mesmo contaminada, dá mais dinheiro que levar petróleo. O que fazem? Trazem toneladas de água, aportam aqui na nossa frente e jogam toda aquela água que traz as mais diversas bactérias, os mais diversos elementos vivos, entrando na nossa área. Hoje temos um número bastante expressivo do mexilhão-dourado, que é destruidor, dentro do lago em Tucuruí. Ele chegou porque os navios ficam aqui, a água sobe do Tocantins, vai lá e hoje está lá. Temos dificuldade na produção do nosso camarão regional, que é o meio de sobrevivência nata do pequeno pescador no interior. Ano passado, pela primeira vez na história da nossa vida, sumiu o camarão. Como consequência disso, pegamos um peixe parecido com o cangatá, encontrado no município de São Sebastião da Boa Vista. É um peixe feio, com dois ferrões nas costas, é predador, porque estava caçando. Quantos desses peixes podem estar predando e comendo os camarões regionais? Por cima disso, trouxeram também, prova do que estou falando, que hoje temos uma população expressiva no Pará, no Amapá e no Maranhão dos camarões gigante negro e tigre asiático, que veio da Ásia, veio através desses navios, infestaram e estão extremamente predadores.
P/1 - Esses navios, você pode voltar um pouco atrás, que eles despejam a água aqui?
R - Eles vêm de lá, trazem as cargas deles e partem para cá para pegar minério, para levar minério pros países deles. E quando eles vão pegar o minério, eles caem numa água doce. Nós temos um banco, o maior banco de água doce está aqui na nossa região, aqui no Amazonas. Eles pegam, jogam a água fora e abastecem. Abastece de novo, bota o mesmo quantitativo de água que jogaram fora, pega a nossa água doce para levar. E joga deixa com todas essas essas.
P/1 - Mas essas águas eles pegam pra extração do minério? Não entendi.
R - Não, é para fazer o lastro do barco. Chama-se água de lastro de porão. Era o limite X de água que fica ali dentro pro barco descer mais e dar equilíbrio na navegação. Só que eles trazem a água deles de lá e essa água tinha que ter uma metodologia aí, talvez, que antes deles entrarem na nossa água doce, eles pudessem jogar no meio do oceano, lá em 200 milhas, essas águas lá fora, para poder entrar para cá e captar nosso. Mas estão jogando aqui no meio da gente. Eu acho que ainda tenho um vídeo disso aí, um navio jogando lá, aberta a boca, jogando água aqui em frente à Albras. É um negócio triste demais. Eu tenho denunciado muito isso. Então isso tá dando problema muito sério. Nós temos pessoas no interior com câncer já. Nós bebemos. O pior de tudo é o seguinte: nós conseguimos o peixe da água contaminada e consumimos a água do rio contaminado lá no interior. Eu fui agora com o pessoal que nós fomos fazer esse trabalho lá e levamos água mineral. Tem que levar água mineral. Não dá para beber água. Não é confiável mais beber água no interior. Uma outra planta que eu esqueci. Ela é asiática também e eu fiz até o comentário na página social. (intervenção)
P/1 - Me fala quais as plantas que você tem aí.
R - Eu tenho anador, eu tenho meracilina, eu tenho sulfato ferroso, eu tenho cana-de-macaco, eu tenho capim-santo, eu tenho erva cidreira, eu tenho canela.
P/1 - Canela é bom para quê?
R - Chá de canela. A canela altera um pouco a pressão, então ela é bem evolutiva, ela puxa um pouco a pressão. Eu tenho dois tipos de boldo. Eu tenho boldo chileno e o boldo nosso regional.
P/1 - Qual é a diferença?
R - A diferença é só nas folhas, mas elas fazem o mesmo efeito. Tudo é para fígado.
P/1 - Qual é uma desinflamatória?
R - A meracilina. A meracilina é muito boa. Inclusive eu curei recentemente, fez uma pessoa botar a pedra do canal uretral dele tomando meracilina com cana-de-macaco e abacaxi maduro para fazer ele urinar bastante. E com isso nós conseguimos desinflamar o canal uretral indiquei a meracilina, o abacaxi e a cana-de-macaco assumiram a responsabilidade de botar a pedra para fora.
P/1 - Vem muita gente te procurar?
R - Vem. Todo dia tem pessoas me pedindo lá folha. Hoje eu tô recebendo muitas pessoas quase todo dia, para mim pegar folha de algodão branco. Algodão branco você faz um melado, vira expectorante, faz o catarro descer, a secreção nasal descer. É muito bom.
P/1 - E para quem tem problema de pulmão?
R - Olha, o problema de pulmão, nós ensinamos um remédio que é muito bom. Dificilmente a gente tem ele aqui para dar, porque são árvores grandes. A gente chama de cajá. A gente tira a sobrepele, pega e faz o chá dele e toma. Mas para pulmão, para você dar, você tá com problema respiratório você pega ______ aqui, pega o boldo, o boldo seco, não é esse verde, o seco, ele exala mais o seco. Aí você ferve ele numa porção de água, e começa a ferver, você tira no recipiente e faz um funil de papelão que tape aqui, fique só aquele… E você começa a respirar ele aqui, ele solta o teu pulmão todinho. Muito bom.
P/1 - E para enfisema pulmonar?
R - Enfisema pulmonar você só pode tomar os anti-inflamatórios, só o que a gente tem naturais, a gente cria anti-inflamatório. Agora nós temos um remédio aqui que ele tem muita vez que o enfisema pulmonar que eu vi meu pai e meus avós curarem muito tuberculoso com esse remédio. Nós temos uma iguaria que é tirada no mar aqui nosso. É um germe. Um germe que a gente chama de turu. Vocês já ouviam falar no turu? Turu é tipo uma verminose. É branca assim, ela dá na madeira do fundo do mar. Ela é oriunda de um tapuruzinho que é tipo o quê, meu Deus? Tem um bichinho que ele vai e fura aquilo ali e transforma no turu. Nós comemos muito turu. A gente come muito aqui. Ele tem um percentual de cálcio enorme, mas enorme, enorme, enorme. O que é que meu pai fazia na época, no final dos anos 70, a pessoa tava tuberculoso, não tinha médico suficiente, não tinha como ter locomoção. Ele pegava aquele turu, botava folha de arruda no pilão, botava mastruz e uma porção, uma tigela de turu, e socava no pilão aquilo tudinho. Aí pegava pedaços de pano, principalmente aquele que vinha de saco de açúcar antigamente, pegava aquilo, fazia, misturava aquela papa todinha, botava leite de seringa, de seringueira, que é o colante nas bordas dele, enchia aquilo daquele material e colocava nas costas da pessoa. Aí você vai tirando aquilo vai secando, vai botando outro assim. Com o negócio de 15 dias, você já vê a melhora da pessoa. Geralmente, com 60 dias, ficavam curados. Eu sei que isso a pessoa não fica curada porque hoje eu li já muito isso aí, de que a pessoa que teve esse tipo de doença e teve inclusive pneumonia, fica sempre a mancha no pulmão. Então não cura, mas da doença, do risco de morte, ele saiu curado através desse remédio. Feito assim, o enfisema pulmonar pode ser curado por isso.
P/1 - Deixa eu te perguntar, daí quando você tava no colegial você tinha alguma coisa assim “quero fazer faculdade”, você pensava como é que vai ser seu futuro?
R - É importante você falar isso. A maioria das pessoas tem esse sonho. Inclusive, eu sonhava, era uma expectativa que eu tinha de querer ser médico, mas a dificuldade da vida… E tem um negócio que é muito prejudicial na vida do estudante adolescente, quando ele passa, começa a entrar na maturidade, que é muito dificultoso para aquele estudante que é pobre, é quando ele tá estudando e começa a trabalhar, e sente o gosto do dinheiro, da responsabilidade de assumir com dinheiro, ajudar a família e ter seus próprios pertences. E acaba que esse sonho começa a ir ficando para segundo plano, porque a tua necessidade fala mais alto. Esse foi o problema que eu tive muito grande na minha vida, que eu cheguei a chegar até o técnico e não podia, não conseguia ir pra frente porque eu tinha que viajar, tinha que… Então era muito difícil. Isso eu tenho certeza que acontece com a maioria da juventude de hoje. O emprego, e eu até muitas das horas acho que aquela política que tem da criança e do adolescente, ela tá correta. Tem que forçar tá na escola. Se botar para trabalhar… é muito bom trabalhar. Antigamente, pai colocava a gente para trabalhar para não virar vadio, para não virar outra coisa. Essa era a expectativa. Mas hoje, se o pai pode manter numa escola, ele tem uma atividade mesmo escolar para preencher o espaço dele, eu acho que avança muito a pessoa. Digo isso com experiência própria, de saber viver isso aí. Então tem como eu falar.
P/1 - Como você entrou pra atividade, pra militância?
R - É impressionante isso aí. Quando essa empresa chegou, para fazer isso que eu tava fazendo técnico, eu tava umas férias antes disso. E lá na fazenda tem o… Como é que chama? Tem um marco, que é o marco da Marinha lá na fazenda, que eles, quando vão fazer medição, eles usam aquela dimensão que tem lá para fazer geografia. E lá chegou a corveta da Marinha e parou no porto, em pleno período militar no Brasil. 68, por aí assim. E eu conversando com os militar lá, adolescente, fui me infiltrando, não conseguia interpretar se eu tava importunando eles ou não, só que eu me metia lá no meio deles e comecei a conversar, eles começaram a conversar comigo, e uma das conversas que eu tive com eles lá, eles estavam falando de movimento social, essas coisas tudo, e eles tavam falando da força sindical no Brasil, aquele momento que teve em São Paulo e em Santo André, tavam falando daquilo. Aí eu comecei a entrar na conversa, peguei assim: "Impressionante. Eu vejo isso aqui no rádio, agora tem sindicato, pessoa que cuida de todo mundo e não tem quem cuide do trabalhador pobre. Nós aqui, por exemplo, não tem nada que represente a gente". Ele prestou atenção, ele começou a esticar conversa comigo, conversou, conversou, depois ele pediu para mim chamar meu pai. Aí o papai veio, eu lembro até hoje a palavra dele, ele pegou para meu pai: "Cuide desse menino, que esse menino tem um olhar de águia muito grande. Esse menino pode ser muito rentável para a categoria dos menos necessitados, aqueles que precisam de apoio. Ele aqui dentro do mato, pensa desse jeito, imagina se esse menino…" E eu pensei que ele ia brigar com o meu pai e eu não tinha nem noção que ele poderia realmente brigar, porque tava no auge do militarismo, aquele negócio, o cara: "Olha, você, esse moleque, não sei, não". Ele pegou, pediu pro meu pai que o meu pai cuidasse de mim, e aquilo ficou gravado. Aí, quando eu vim para cá, comprei barco de pesca, vi aquele movimento de tudo, eu já trabalhava com meu pai lá, mas sem o sentido organizativo de que tinha aqui defender, era aquele papel só de cuidar e de fazer um documento, preparar, não cuidava. Quando fui aqui, eu fui sentir, eu cheguei aqui, eu senti o gosto da luta, senti algo empolgante que aí eu comecei a me envolver e virei uma das maiores lideranças do setor pesqueiro aqui por conta disso. Defendo, você tem ideia, a pesca predatória daqui na costa do Pará, do camarão rosa, onde se estraga, onde a cada quilo de camarão se joga 7, 8 kg de peixe fora de forma _____. A primeira pessoa a denunciar isso no Congresso Nacional foi eu, em 1985. Eu peguei as fotos tudinho daqui, convenci o pessoal a baterem foto para mim tudinho. Eu levei, denunciei. Fui a primeira pessoa a denunciar, denunciei para o Indesp aqui e daí começou esse movimento de aproveitamento da forma como a gente… Mas o prejuízo ainda é muito grande. Hoje, o setor pesqueiro industrial do estado do Pará tá praticamente falido por conta desse estrago que eles fizeram o tempo todo. Eles mesmos cavaram a sepultura deles. Falta de consciência. Então virei essa liderança. Participo, faço palestra e conheço muito.
P/1 - Como é que você foi crescendo assim em organizações? Quais que você fez parte? Quais hoje?
R - Eu militei muito na pesca, primeiramente na pesca. Depois comecei fazer algumas militâncias políticas também, mas nunca quis me envolver com cargos públicos, esse negócio de candidatura, nunca quis. Porque eu acho que no momento em que a gente se submete a um cargo público, a gente perde identidade. Perde identidade por conta de vários e vários aspectos, entre alguns compromissos que te obrigam a formar ou cumprir que fogem daquilo que você empregava, que você defendia. Mas eu estive uma época, hoje sou muito próximo do pessoal do PT, inclusive faço assessoria pro ex-senador do PT, o Paulo Rocha, aqui em Belém, faço lá na Sudam assessoria para ele. Converso muito, não converso com todos do PDT, que não combina com aquilo que eu imagino. Converso com o pessoal, eu converso mais com o pessoal da esquerda. Eu tenho a seguinte compreensão: se não existisse a esquerda, nós estávamos lascados no Brasil. A direita é boa, mas ela pensa só nela. Ela não pensa no coletivo, ela não pensa no social. E se a esquerda não fizesse esse barulho que faz, as coisas eram bem pior. Você quer saber, vou te dar o exemplo do que é a direita, o que é a esquerda. "Nós somos a esquerda. O pobre do Marajó é como se fosse a esquerda. Os grandes latifundiários do Marajó pegam os rios que nós fazemos trânsito, chega à noite, eles trancam. Tem portão de ferro dentro no rio do Marajó que proíbe o cara atravessar um filho na barriga de uma mulher lá. Se tiver que socorrer, não passa porque tem pistoleiro lá segurando, porque ele tem dinheiro." O poder econômico é cruel, e é a famosa direita. É por isso que eu não combino muito com a direita, que eu acho que eles não são legal para nós, com pessoal mais pobre. Então eu tenho esse idealismo, esse direcionamento pro vento da esquerda, pro lado da esquerda, por conta disso. Mas, como eu te falei, não me envolvo com o negócio de mandato. Essas coisas não é comigo, não. Eu faço um trabalho, tem que fazer defesa, vou pra luta, partido. Agora mesmo eu tô coordenando o plano de desenvolvimento sustentável no Brasil, que vai ser discutido agora dia 14. Nós temos uma reunião de formação da coordenação para discutir, e dia 8 de setembro nós temos a conferência estadual, que vai tirar os delegados para ir para Brasília. Eu quero fazer um esforço para mim ir.
P/1 - Como que começou e qual foi a sua relação com a Vale?
R - A Vale foi o seguinte: a gente já vive a Vale, através das informações, através das divulgações, daquilo que é posto na internet, vê e acompanha. Mas, por conta desse meu conhecimento aqui da minha região do Marajó, descobrimos que a Vale executa uma ação social no município de Breves, através do Instituto Mondó.
P/1 – Através do Instituto?
R – "Mondó. E eu questionei esse fator lá na Sudam, região da Sudam. Por eu ter questionado, ser do Marajó, a Vale me convidou, mandou passagem, pagou a minha estadia para mim passar dois dias na Vale, vendo a ação social deles lá. E a Flávia inclusive tava junto. Muito importante a ação da Vale, mas a Vale tem limitações para fazer. E como hoje nós estamos trabalhando algumas ações, inclusive de creditício no Marajó, especificamente que nós conseguimos aprovar nesse esforço que nós fazemos coletivo da organização social, e no CONDEL da Sudam, que o Marajó recebesse as mesmas qualificações de benefícios que é dado ao semiárido do Nordeste. Foi aprovado no CONDEL da Sudam. Marajó hoje recebe o mesmo benefício. E eu fiz parte, fui inclusive o cabeça desse movimento, e nós puxamos. E aí, mediante a isso, hoje, por exemplo, a linha de crédito do CONAF B e o crédito que tá começando, vai começar agora em agosto, chamado 'Acredito no governo federal', ele vai trazer, ele vem com uma finalidade de possibilitar que nós tiremos aquelas pessoas que ficam totalmente dependente só de bolsa família, que eles possam evoluir e crescer. E nós então convidamos a Vale para vir pro Marajó, para vir apreciar, conhecer as coletividades, que, dentro daquilo que a Vale possa fazer, com mais o nosso incentivo do creditício, através da gente, possa realmente transformar algumas pessoas no Marajó em autossuficientes para sair dessa vida precária, miserável. Então, essa é a oportunidade. Por isso eu me envolvi com a Vale e ainda quero continuar conversando com a Vale, porque eu acho essa conversa muito promissora. Então é muito importante a gente ter isso na Vale.
P/1 - Voltando um pouco atrás, como é que era Marajó antes e como é que é hoje? Quais foram as principais transformações?
R - Várias coisas foram oportunizadas para fazer a diferenciação no Marajó. Primeiro a tecnologia, chegada da tecnologia, apesar de nós termos uma internet de má qualidade no Marajó, quase todo Marajó, mas a tecnologia, tipo televisão, essas coisas. Antigamente a gente só tinha notícia pelo rádio, que era rádio a pilha, que ligava, ligava uns minutos lá, depois desligava para não gastar a pilha. Era esse tipo de forma, a gente não sabia de quase nada que tava acontecendo. Depois foi o avanço da navegação. Navegação antigamente era a vela, como eu falei para vocês. Chegaram os propulsores, motores, começaram a ter disponibilização de transporte de passageiros. Começou com esse transporte de passageiros, houve várias migrações, pessoas que vieram de fora. Outros, muitos do Marajó conseguiram sair, estudaram. Nós temos médicos, temos professor na universidade, tudo no Marajó, que vieram tentar sorte, vieram na balsa para cá e conseguiram, graças a Deus, por força de vontade evoluir. Mas nós temos algo que preocupa muito a nós no Marajó: o índice de prostituição, o tráfico de entorpecente, até de pessoas, ele tá enorme. E hoje, por conta de tudo isso, nós temos uma criminalidade no Marajó que nós denominamos aqui de pirataria. Pirataria por quê? Porque os ladrões, assaltantes, chegam de embarcação para assaltar outras embarcações, assaltam casa, a gente descobre que alguém tá com dinheiro, 'vamos lá assaltar'. E é tudo consequência dessa evolução no Marajó. É muito diferente do Marajó de antes. O Marajó de antes, nós dormíamos com janelas e porta aberta, ninguém incomodava, bastava ter um cachorro no quintal só pra pronunciar. E hoje a gente não faz mais isso. Então a gente não deixa uma embarcação só no porto com motor, que eles vêm, e então a coisa tá muito triste. Há de se falar que a prostituição que é publicada na imprensa, ela tem um pouco de desvio da realidade. Por que tem desvio? Aquela criminalidade que existe de prostituição da juventude, da jovem mídia, ela existe realmente. Elas vão para as balsas em troco de pegar comida, pegar combustível nas embarcações, e acontece muitas das vezes. Mas o tráfico de mulheres não é de mulheres do Marajó, porque o Marajó é um corredor de embarcações que viaja para Manaus, para Santarém, Macapá e aí por diante. E nessas embarcações vem prostituta do Maranhão, vem do Piauí, vem do Centro-Oeste, de todo lugar, e pega embarcação para descer. Então, daqui elas embarcam por agenciadores, vão pro Suriname, vão pro Macapá. E Macapá atravessa pro Suriname. Porque passa dos rios do Marajó, eles conotam de que a prostituição é no Marajó. Não é isso, não. Isso é menos verdade. O que menos vai encontrar é prostituta do Marajó desse transporte aí. Pode ter uma ou duas no meio aí, não tem problema. Mas as mulheres que estão, estão sendo transportadas, elas são de fora, porque tem agenciadores aqui em Belém, em outros lugares, que agenciam essas mulheres e levam para lá. Então é isso, mais ou menos. Essas pessoas que estão virando marginais, que estão assaltando, são garotos e adolescentes que ficam no rio pegando combustível e comida nas balsas. Crescem, não conseguem mais ter essa atividade, começa todo aquele percurso, começa a assaltar as embarcações para conseguir dinheiro. Ficaram viciados na vida fácil. Mas tem um negócio que é muito bom a se falar aqui no Marajó: você anda no Marajó, de 500 em 500 m você encontra uma igreja, principalmente as evangélicas, são cheias de evangélicas. E eu não consigo ver o trabalho social dessas igrejas. Eu tô falando isso aí, consigo ver esse trabalho social dessas igrejas para que a gente possa diminuir esse índice, e é calamitoso que existe no Marajó. Não existe um trabalho religioso que tem essa finalidade, porque antigamente a igreja se prestava para isso. Hoje não faz mais isso. Então é muito difícil. Reclamo muito disso.
P/1 - Qual a economia? Como era a economia antes de Marajó e qual que é hoje?
R - Sempre foi o extrativismo. A base alimentar e econômica nossa no município sempre foi.
P/1 - Baseado em quê, o extrativismo?
R - O açaí, o peixe, o camarão. Era mais ou menos isso. Algumas regiões onde a terra é alta, o plantio de mandioca para farinha e assim ia. Sempre foi isso. As pessoas criavam pato, essas coisas para vender na época no Círio, aqui na capital. Isso tudo foi se eliminando, que a coisa mais difícil é chegar numa casa e encontrar o pato, por exemplo. Porque o pessoal que passa na beira do rio rouba o pato, leva e come. Então, você fica mais ou menos... Hoje já não existe mais. Entraram grandes madeireiras no Marajó, fizeram uma devastação enorme na região das ilhas, região principalmente Portel-Breves, aquela região ali foi muito devastada com as madeireiras e hoje tá uma estrutura toda falida, hoje que não tem mais madeira. Mas nós temos aí um comércio... Alguns municípios cresceram. Hoje a população vive, em alguns municípios, ou é através da prefeitura, de pequenos empregos no governo, através do seguro-defeso da pesca, que é uma coisa gritante também, que o seguro-defeso é pro pescador, para preservar, mas hoje você vai no município, a produção de peixe que tem, que cada município, que pescadores do município produzem, não dá para suprir a necessidade urbana do município mais. Mas você vai ver, tem 3.000, 10.000 pescadores recebendo seguro-defeso. Então, todo mundo virou pescador no município. Mas é questão de sobrevivência também. Então isso vai dar uma rotatividade de dinheiro no município, e os comércios são os que mais sobrevivem e acaba virando o útil ao agradável ali naquela história. E os transportes de passageiros, que melhoraram muito hoje. As embarcações são de melhor qualidade. Tem melhor qualidade, tem mais velocidade. Então, é mais ou menos isso que a gente vive no interior. E a vida marginal, envolvimento com tóxico, essas coisas, tá muito predominante no Marajó. Muito mesmo. É uma tristeza ver isso lá. Muito difícil.
P/1 - O Museu da Pessoa tem uma programação hoje e eu queria ver como é que você, pensando em tudo que você falou no dia de hoje, que chama “Vida, Vozes e Saberes em um mundo em chamas”.
R - A vida e os saberes eu acabei de colocar para você aqui. Eu queria me ater no “mundo em chamas”. Eu acho que o mundo em chamas é um troço que me preocupa e me perdoem os capitalistas, mas eu vou falar, porque capitalista é muito responsável por esse mundo em chamas que se apresenta hoje. Eu participo de muitos congressos, e muitas vezes tem a representação desse pessoal. Então, eles contestam toda vez que a gente apresenta uma defasagem, por exemplo, em área tal, por conta do desmatamento; eles vêm para cima, vêm com unhas e dentes para cima da gente dizendo que aquilo não acontece, que não tem nenhum impacto ambiental, que é conversa. A gente vai falar da pesca predatória das grandes empresas e diz que isso não existe, que se recupera. Então, a compreensão que nós temos pelo conhecer que da onde se tira e nada se põe, um dia acaba. Essa é a operação. Então, o desmatamento tem ocasionado várias dificuldades. Hoje os canais navegáveis de antigamente, todos mudaram de rota, estão todos assoreados por conta desse grande desmatamento. O solo se destrói por não ter proteção e vem e cai para dentro dos leitos dos rios, tá? Nós temos o canal, agora eu tive com o pessoal da Vale no município de Ponta de Pedras, e nós tivemos que ficar parado no rio lá chamado Furo Laranja que a gente passava do Marajó-Açu que é o rio de Ponta de Pedras pro rio Arari, que é para a Cachoeira do Arari. Nós tivemos que esperar a maré chegar porque o assoreamento tomou conta e não deixou passar por conta de um projeto que tem de arrocho pro [Cartieiro] e Cachoeira do Arari, ele botou várias bombas potentes puxando água do rio, joga para lá e de lá desce aquele assoreamento e tá assoreando todo o rio Arari, entendeu? Impacto dum cara que ele não consegue enxergar isso aí por conta da ganância, por conta do capitalismo, e é um negócio difícil demais. E eles têm força demais porque eles elegem vários e vários políticos. A gente consegue mudar o exemplo. No que fizeram agora com a aprovação da lei de meio ambiente agora essa semana lá em Brasília. É um absurdo isso aí. Então só cabe a nós aqui gritar, pelo menos a gente ainda tem essa oportunidade e quem grita muito paga com a vida. Aqui no estado do Pará ainda tem isso. É muito difícil. Então esse é o mundo em chamas. E posso lhe dizer uma coisa. Tá muito difícil aquilo que você já vê acontecendo nos Estados Unidos, de incêndio na Europa. O Brasil vai se submeter a isso, não vai demorar muito. E nos momentos de calor a gente começar a incendiar, tem muitos prejuízos aqui. Pode ter certeza disso. A gente já encontra 40º de temperatura aqui em Belém. Belém sempre foi quente, mas passou dos limites. Então vai chegar um momento que a gente vai ter que ter muito cuidado, muito cuidado com as nossas vidas e é muito difícil. Se é água, a água tá poluída. Se é os campos, as matas estão devastadas. Aí vai sobrar o quê pra gente sobreviver? É muito difícil. Eu tenho muita preocupação com o meio ambiente. Se eu pudesse fazer alguma coisa, eu faria. Eu vou fugir um pouco do que você tá falando. Eu tenho um negócio, eu fico muito triste com os governantes desse país, mas muito. Nós temos um problema sério de saúde no Marajó. Os municípios não conseguem ter dois médicos no Marajó. Duas… Como é que se diz? Duas categorias de médico. Como é que se diz na medicina? É duas daquelas atividades dos médicos. Eles não conseguem ter, só consegue ter o médico, é clínico geral. Esse médico leva uma faixa de R$ 40.000 por mês lá no mínimo, forma mais barata. Mas aí quando você olha pro governo federal e dá uma avaliada no FIES, e vê os municípios do Marajó desse tamanhinho onde você tem controle máximo de quem estuda, sabe quem é o melhor aluno quem não é. O porquê esses caras não aprovaram um projeto, algo parecido com o FIES pudesse ser revestido nos interiores, principalmente no Marajó. Aonde aquele aluno que ele fez, como eu fui em Ponta de Pedras, que tem as melhores notas, por exemplo, na época, o governo do estado cria uma bolsa para esse aluno vir de Ponta de Pedras depois do ensino médio, vir fazer o curso preparatório aqui, mas vim definido. Ele escolhe a área que o município tem mais carência, das maiores carências na medicina, para preparar, levar aquela pessoa para ir fazer medicina das áreas, pra gente poder preencher essa lacuna muito grande no interior do Marajó. Essa pessoa por receber esse crédito tipo do FIES para poder fazer sua faculdade tem o compromisso de trabalhar os primeiros 5 anos no município recebendo o salário dele, mas trabalhando lá. Depois ele pega a asa, sai e oportuniza para outro. É fácil demais de resolver o problema da saúde. Fácil demais de resolver. Os caras não aprendem a fazer nunca, não tem inteligência, não tem sabedoria. Isso me deixa muito magoado. Me desculpa por fugir um pouco do assunto, mas é coisa que me dói, porque eu assisto, eu vivo isso.
P/1 - Vou caminhar agora para a última pergunta. O que você achou de dar essa entrevista agora?
R - Olha, tudo que eu faço na minha vida, eu aprendi a fazer isso. Isso é desde a minha infância, da minha adolescência, eu aprendi a ser contributivo. Eu gosto de me dar muito para ajudar. Gosto de ajudar, gosto de sempre tá contribuindo. E eu espero que a minha fala, a minha entrevista aqui, possa contribuir no futuro para algum pesquisador que queira conhecer o que é a realidade do Marajó, e até alguém que não saiba com quem chegar um dia. “Pô, tem um cara lá no Pará, um marajoara, esse cara aí conhece muita coisa, eu posso procurar”, igual como o pessoal da Vale fizeram, vieram atrás de mim procurar e eu espero contribuir. Eu me empolgo quando consigo fazer alguma coisa de bem. Não, não me empolgo por querer ser melhor que ninguém, para me vestir bem, para meter uma roupa de marca, nada disso. Eu me empolgo por fazer o bem. É só por isso. Eu agradeço muito essa oportunidade.
P/1 - E ter essa história registrada no Museu da Pessoa?
R - Muito importante, muito importante. Eu quando pedi que vocês procurassem o Zé Varela, porque o Zé Varela tem um instrumento muito grande para oferecer, mas muito grande. Ele é um militante nato, um militante de experiência, de leitura, de acompanhar, de pesquisar. Então, ele sabe muita coisa. Ele vai falar para vocês dentro das tribos do Índio que foram dizimadas no Marajó. Ele vai contar a história, as primeiras concentrações de jesuítas no Marajó. Ele vai falar tudo isso para vocês, é muito importante.
P/1 - Se ele conseguir dar amanhã à tarde, eu vou fazer, você fala com ele?
R - Eu vou.
P/1 - Muito obrigada.
R - E me perdoe por não ter tido mais tempo para vocês que a gente podia conversar mais.
P/1 - Tá maravilhoso. Vai ter oportunidade.
R - E sempre que vocês precisarem de alguma coisa, é só me acionar, tá?
P/1 - Muito obrigada.
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