P/1 – José, você pode começar falando o seu nome, local e data de nascimento?
R – Meu nome é José de Almeida Amaral Júnior. Local de nascimento, cidade de São Paulo, bairro do Brás, 17 de março de 1962
P/1 – José, como é o nome dos seus pais?
R – O meu pai é José de Almeida Amaral, por isso que eu sou Júnior, e minha mãe é Odette Amaral, Odette com dois t
P/1 – O seu pai e sua mãe são de São Paulo também?
R – Meu pai é português da região da Beiralta, da Serra da Estrela, em Portugal, uma região de camponeses, produtora de... Hoje em dia é super falado na Europa, ele falava sobre isso também, sobre queijos. Ele então era dessa região de Portugal, veio pra cá jovem, 15, 16 anos. E minha mãe é prima direta dele e nasceu na região ali do Catumbi, em São Paulo, Belenzinho e viveu
P/1 – Mas ela é paulista?
R – Catumbi, São Paulo e viveu toda a juventude dela na Bela Vista. Conhece o Vai-Vai desde que ele foi formado. Ela é de 38, meu pai é de 31
P/1 – E seus avós paternos são de Portugal
R – Então, a minha família toda é dessa região
P/1 – Paterno e materno
R – Exatamente. Eles são da região da Guarda, da Beiralta em Ribamondego, que é a aldeia deles lá, são de lá
P/1 – E você sabe um pouco o que seu avô fazia, paterno?
R – Eles eram camponeses. O meu avô paterno foi marinheiro mercante, veio pra cá antes de todo mundo e dos demais da família, e minha avó e meu pai ficaram lá na aldeia, tal. Depois vieram os dois pra cá. E junto dela também vieram os irmãos, eles têm uma família com vários irmãos, sete, oito irmãos, e eles vieram então aos poucos pra cá
P/1 – E esses irmãos, um deles que era pai da sua mãe?
R – Exatamente. A minha avó paterna, Joaquina, um dos irmãos, Merciano dos Santos Amaral, pai da minha mãe Odette. Os filhos acabam se encontrando aqui. Se bem que minha mãe já nasce em São Paulo, como eu falei. Mas meu pai a encontra aqui e eles acabam casando em 61
P/1 – Se conheceram aqui?
R – Se conheceram aqui
P/1 – E seu avô quando veio pra cá, o que ele fazia? O paterno
R – O meu avô ao vir pra cá, ele foi marinheiro mercante, o meu avô conheceu uma parte do mundo, um negócio interessante no período pré-Segunda Guerra Mundial. Conheceu a África, conheceu Egito, Palestina, China porque Portugal tinha muitas colônias ainda, ou vínculo com antigas colônias. Então, ele conheceu a África, a China, a Índia, a Palestina. E depois ele veio pra cá e foi comerciante, carregava frutas. Eu me lembro que uma das histórias que eles contavam é que ele carregava e vendia frutas na rua e tal, um negócio impressionante. Os carrinhos que eles falam tinham metros, as pessoas andavam com aquilo na rua. Uma São Paulo completamente diferente dessa que a gente tem hoje, que era uma São Paulo que tava saindo de uma cidade relativamente pequena para se transformar em metrópole, quer dizer, eles vivenciaram isso
P/1 – E seu avô materno?
R – Então, meu avô materno veio pra cá e o que eu me recordo de contarem dele, imediatamente ele também se torna comerciante. Porque é assim, não são pessoas que tiveram grande instrução, então, não deu pra virar advogado, engenheiro, arquiteto, médico, essas coisas assim. Eles se viravam mesmo na raça, com o contato com a colônia, tal, e se tornaram comerciantes. Isso foi ambos, só que um carregava frutas pela cidade e o outro se estabeleceu na Bela Vista, no Bexiga, onde criou minha mãe com uma mercearia. Teve um determinado período da vida nos anos 70 em que ele era o comerciante mais antigo da Bela Vista, o seu Merciano. É isso
P/1 – E aí seu pai e sua mãe conheceram porque eram da mesma família
R – É, família aquela coisa. As pessoas sempre vinculadas à colônia, aquele negócio todo. Eles se conheceram e o que me conste, jovens, namoraram vários anos. Eles têm sete anos de diferença, um pro outro, 31 pra 38
P/1 – E seu pai, o que ele fazia? Você sabe um pouco da história dele de infância, com quanto tempo ele começou a trabalhar?
R – É, o meu pai começou a trabalhar, me parece, com 15, 16 anos na cidade do Porto. Ele saiu da aldeia dele e foi pra cidade do Porto e de lá ele veio com a mãe
P/1 – Ele veio grande pra cá
R – Adolescente. Ele veio com a mãe pra cá. Tinha arriscado a vida lá no Porto, quando ele saiu, deixou a aldeia dele foi pra lá. E me parece que ele foi trabalhar na administração de alguma empresa
P/1 – Lá no Porto?
R – No Porto, na cidade do Porto, que é uma cidade grande em Portugal, junto de Lisboa e tal. E aí eles vieram pra cá nesse grupo de pessoas da região, especialmente esses irmãos todos, pai da minha mãe, a mãe do meu pai, essa família, que são os Amaral. Eu sou Almeida Amaral, então esse grupo é o grupo dos Amaral. E é isso, meu pai veio pra cá, eu me lembro dele falar muito de trabalhar na Loja Casoi, que era uma loja aqui no Brás, acho que de utilidades domésticas, uma coisa assim. Ele ficou um tempo lá e depois passou a trabalhar na administração de Fábrica de Etiquetas Helvétia que foi a mais antiga fábrica de etiquetas aqui do Pari, ela existe até hoje, mas não está mais no Pari. A fábrica saiu de São Paulo e foi pra Grande São Paulo. Com toda essa coisa da tecnologia, da inovação, da competição internacional eles não aguentaram manter a coisa aqui, então saíram de São Paulo, deram uma reorganizada, mas existe até hoje. Meu pai hoje tá aposentado, mas ele trabalhou na administração e o meu pai é contabilista, acabou avançando a vida dele como contabilista
P/1 – E a sua mãe?
R – Dona de casa, sempre. Prendas do lar
P/1 – Aí eles casaram e foram morar no Brás?
R – É. Eles casaram, a primeira casa que eu morei foi na Rua Marcos Arruda, 626. Nossa, pensei que não fosse chorar, que coisa (emocionado). Então, na Rua Marcos Arruda, 626 no Belenzinho foi a primeira casa onde eu vivi os primeiros dias de vida que é onde estavam meus avós paternos
P/1 – Porque os maternos estavam no Bexiga
R – Isso, no Bexiga. Na verdade, a minha mãe viveu com meu avô no Bexiga toda a infância e juventude, toda a vida dela, sem a mãe. Isso é um caso que até hoje eu não sei exatamente muito claro isso, o que foi que aconteceu com eles, mas o meu avô Merciano e a minha avó se separaram e ele cuidou da menina, ele ficou com a guarda da filha, que é um negócio extraordinário. E eles foram viver no Bexiga. E aí é uma coisa curiosa essa ideia de comunidade na cidade. Porque as pessoas, como ele era um comerciante, tal, na Rua Major Dutra, as pessoas acabavam “olhando” pela menina também, quer dizer, ele era o pai de uma menina que não tinha mãe, de uma mulher que foi embora, ou coisa parecida. Então, as pessoas ali tinham muito carinho por ela. Minha mãe era muito conhecida ali, era a menina do seu Merciano, a menina da mercearia, e ajudava o meu avô e tal. Eles viveram nessa base. As famílias ali, muitos italianos porque o Bexiga tem muito italiano, mas tinha muitos portugueses também, é uma coisa que não se comenta muito, uma coisa de estereotipar o Bexiga, o bairro dos italianos. Mas eu me lembro de muitos portugueses ali no Bexiga e muitos negros. A comunidade negra do Bexiga é imensa, mas dá-se muita vazão da colônia italiana, que tem, realmente, é muito italiano, é inquestionável. As casas, eles moravam na parte de baixo do casarão, a parte de cima estava toda cheia de italianos, eram famílias diferentes ali, tal. Mas do lado era uma família portuguesa. E as pessoas eram muito próximas. E uma coisa engraçada, a casa tinha passagem que você dava pra casa das outras famílias, portas internas que davam pras outras famílias. Então, você subia no fundo, você subir por uma escada, você podia ir pra casa da família de cima, portanto você descia, você vinha pra casa deles que era uma espécie de um porão, estruturalmente falando aquela casa era um porão, onde eles viviam, onde tem a merceria. Existe esse prédio até hoje na Rua Major Dutra. Aí a lateral, pra quem entra na casa na lateral esquerda, você tinha acesso à família de portugueses. Então ela era pequena e circulava pra cima, pra baixo e tal e as pessoas, vira e mexe: “E aí Dette, tudo bem?” Dettinha pra lá, Dettinha pra cá. Meu avô, ele saía durante a madrugada para fazer compras no mercado municipal e a vida deles foi assim. Ela estudou lá no João Passalacqua, que é uma escola que tá lá até hoje na Bela Vista, uma escola de freiras e tal. E a minha primeira casa foi já no Catumbi que era a casa dos meus avós paternos
P/1 – Como era essa casa? Até quando você morou lá?
R – Eu morei lá poucos meses, na verdade eu era um bebê. A Rua Marcos Arruda, ali no Catumbi, Belenzinho, ela é uma rua que liga a região do Canindé, do Pari ao Brás, a Celso Garcia, essa rua faz essa ponte. Quando você desce da Celso Garcia em direção ao Canindé, a Rua Marcos Arruda tem uma praça e ela se transforma em Paulo Andrighetti. Então, nessa Rua Paulo Andrighetti eu vivi a minha infância (choro). E assim, era uma rua que não tinha tanto movimento e depois passou. O meu irmão nasceu lá, o Mauro. Nasceu lá assim, nasceu na Vila Maria, no Hospital da Vila Maria
P/1 – Vocês são em quantos filhos?
R – Dois, eu e o Mauro. Nós temos sete anos de diferença
P/1 – Quem é mais velho?
R – Eu nasci em 62, o Mauro nasceu em 69. O Mauro foi batizado no dia que o homem desceu da lua, 21 de julho de 69, na Igreja de Santa Rita, que é ali perto. Eu vivia muito próximo de meus avós paternos (emocionado). São meus padrinhos. E eles iam me ver todo dia, o primeiro neto, aquela coisa toda, filho único. Meu pai é filho único. Eles ficaram separados muito tempo por causa dessa história do meu avô vir pra cá e minha vó ficar lá, então eles não tiveram mais filhos. Então, eu sou filho de dois filhos únicos, primos. Uma família que tinha sete filhos, os Amaral, e no final das contas o meu redor ficou muito estreito porque, impressionante, eu não tive primos diretos porque meus primos diretos são meus pais, ó que louco! E os meus tios acabaram tendo um filho, eles também morreram, esses tios-avós, na verdade, morreram e tal. Então a minha família, subitamente, que é uma família relativamente grande lá, tem eu e meu irmão e um outro, o Toninho que é filho do meu tio Carlos, que faleceu não faz muito tempo, só nós de filhos aqui. E ainda mais meu pai e minha mãe se casaram entre si, você reduziu a possibilidade da família. E é isso. Então a minha casa, a casa que eu tenho memória de infância é na nessa Rua Paulo Andrighetti. É uma casa que próximo tinha fábrica, ali naquela região do Catumbi, do Belenzinho, tinham fábricas de bolacha, a Orion, fábrica de colchões, do outro lado. Tinha uma fábrica de bolachas, a fábrica de óleos Pacaembu também tava no final da rua, indo em direção à igreja da Santa Rita. Então era uma rua onde você tinha casas, moradia mesmo, tal, e tinha fábricas. Então essa coisa, a mistura da cidade, uma mistura de indústria, fábrica com residência. Fora a garagem de ônibus. O Alto do Pari tinha a garagem ali do lado. Então, era uma coisa muito engraçada, eu via muito passar...
P/1 – Era a garagem da CMTC.
R – A da CMTC é onde tem a Igreja da Santa Rita, ela era na curva lá pra baixo. Então eu via essa movimentação de operários, para mim era uma coisa muito comum essa coisa de operários passando. Então, você tinha os trabalhadores com os moradores do local, e isso me marcou muito esse negócio de ver os trabalhadores, a fuligem. A minha mãe lavava roupa e tinha a fuligem, ela ficava louca da vida. É um trabalho que se perdia porque pendurava a roupa e aí passava um certo tempo e tinha a foligem das chaminés. Mas eu passei a minha vida ali, toda a minha infância, o meu irmão nasceu ali, o Mauro. E enfim, eu me diverti muito. O primário eu fiz ali, o primário, primeiro ano eu fiz no Sesi, na Rua Catumbi, que era muito próximo, o Sesi existe até hoje lá
P/1 – Deixa eu voltar um pouquinho. Como é que eram suas brincadeiras de infância? Era na rua, na casa, nos amigos?
R – Apesar da rua ter um certo movimento de automóvel, até por essa posição geográfica dela em relação a Celso Garcia lá em cima e o caminho que poderia levar, digamos, ali pra região do Pari que é uma região que tem muito comércio. A ponta da Vila Guilherme, tal, era uma rua que eu conseguia brincar na rua, não na rua propriamente dita, no asfalto, mas na calçada. A calçada tinha uma boa distância, não sei se eu era muito pequeno, então eu era pequenininho e a calçada era grande. Mas assim, eu conseguia brincar na calçada ali com as pessoas. As pessoas ficavam sentadas ali na rua. Eu me lembro dos velhos, dos vizinhos, espanhóis, italianos, portugueses (emocionado). Então eu brincava. As minhas brincadeiras eram brincadeiras assim, eu tinha alguns carrinhos e tal, Forte Apache, brincadeira de bangue-bangue, de mocinho e bandido, essas coisas. Carrinho, mocinho e bandido. Não jogava muita bola assim, até pela condição da casa, não tinha um quintalzão o quintal era meio pequeno e tal, mas eu gostava muito assim, de carrinhos. Bonequinho, soldadinho, tal. E isso, essa coisa de imaginação de ser mocinho e bandido com os meninos do pedaço. É isso, eu não jogava bola lá não assim porque não dava. Mesmo porque eu era pequeno, tinha sete, oito anos, pra jogar bola na rua não tinha condições por causa desse trânsito, tal
P/1 – E na sua casa, como é que era? Quem que exercia a autoridade, seu pai ou sua mãe? Como era o temperamento deles?
R – Sobre mim os dois, mas o meu pai não ficava em casa porque ele trabalhava, ele saía às sete horas da manhã para trabalhar no Pari, na Helvétia. A minha existência toda é vinculada à Helvétia, assim como meu pai. Todo o tempo dele de trabalho foi ali, então o tempo inteiro pra mim a Helvétia, mas ele tinha trabalhado em outros lugares como eu falei. Meu pai levantava, tomava café e se mandava, ia trabalhar. Eu ficava com a minha mãe até ir pra escola, minha mãe ia e buscava, às vezes o meu avô ou minha avó ia me buscar, tal, eu estudava no Sesi, mas minha mãe geralmente fazia esse percurso até a Catumbi, que era uma coisa relativamente próxima, dez minutos, 15 minutos e ia. Meu pai voltava no almoço porque era relativamente próximo ali onde a gente tava, pro Pari, Muitas vezes ele vinha almoçar, ia embora de novo e voltava à noite. Eu via o meu pai brevemente no almoço e à noite quando ele chegava minha mãe já tinha feito a janta, essa era minha rotina. Então eu ficava com a minha mãe basicamente. No fim de semana o meu pai ficava mais em casa, aí ele ficava lá fazendo as coisas dele. Meu pai gostava muito de montar rádios, meu pai montou rádios. Criava lá, ele pegava estruturas metálicas que já eram pré-fabricadas e aí montava o rádio, colocava as, depois foi sendo transistorizado, mas eu me lembro do meu pai trabalhar muito com válvula, era uma coisa muito comum assim. Ah, ele tinha livros, ele gostava de ler também, gosta de ler, e acho que isso é uma coisa que me influenciou muito, desde pequeno ele sempre me incentivou a ler. Lia gibi, eu lia muito gibi, especialmente as histórias da Disney. Então Mickey, Pato Donald, Zé Carioca, essas coisas assim. Quando era possível, esse gibi também não era muito baratinho, mas de vez em quando pintava uns e eu adorava aquilo, foi uma coisa que me estimulou muito a leitura, gibi pra mim foi um negócio importante. E o meu pai lia gibi, lia jornal, ele gostava de comprar jornal, lia muito Diário Popular. Diário Popular pra mim foi um jornal de infância assim, eu me lembro do Dipo Móvel, o Diário Popular é uma referência de infância pra mim. Então meu pai tinha essa coisa do camarada que trabalhava o tempo todo fora de casa, minha mãe era a dona de casa, então, cheiros de comida o tempo inteiro, e minha mãe limpava a casa
P/1 – Que comidas que você lembra? Esses cheiros que te vêm?
R – O meu pai gosta muito de comer feijão com arroz, que é uma coisa muito trivial, mas de domingo... Meu pai não gostava muito de macarrão, mas minha mãe gostava de fazer macarronada, ela viveu na Bela Vista. Então , essa coisa do macarrão. Mas a minha mãe sempre cozinhou muito bem, fazia tortas, saladas, doces, putz, uma coisa muito variada. Mas uma vida de dona de casa, uma vida muito doméstica, acho que ela poderia ter aproveitado melhor, eu acho, viveu muito em casa, é isso
P/1 – E vocês iam a pé na escola. E como é que era, tem alguns professores que você lembra até hoje?
R – A pé. No pré-primário a minha professora chamava Maria Helena, ela era bem jovem. Depois, no primeiro ano eu tive aula com a professora Wanda, com W, inclusive para aprender a letra foi letal, pra diferenciar o V do W. Ela era Wanda, com W, uma professora negra, que era uma coisa rara. No Sesi. Uma coisa muito interessante isso. Então nós mudamos, e aí foi que eu fui morar na Vila Guilherme. Eu me lembro que nós morávamos ainda em 69 lá porque o meu irmão foi batizado, como eu disse, no dia que o homem desceu à lua a primeira vez, Neil Armstrong, Aldrin, Collins, tal. E eu lembro das pessoas falando: “Vamos pra casa ver o negócio” porque ia ter uma transmissão via satélite, um evento. Eu me lembro disso, do batizado, a família reunida lá e era na Rua Paulo Andrighetti ainda. E nessa passagem de 69 pra 70 provavelmente deve ter sido no início do ano pra não prejudicar a coisa da escola e tal, aí eu fui morar na Vila Guilherme. Meu irmão era pequenininho, tinha um ano, ia fazer um ano. Eu me lembro que a Copa do Mundo de 1970 eu já assisti na Rua Joaquina Ramalho, na Vila Guilherme
P/1 – Aí você mudou de casa. Quantos anos você tinha?
R – Sete pra oito
P/1 – Por que vocês mudaram?
R – Porque meu pai queria morar numa casa que tivesse uma condição melhor porque aquela casa, como eu falei, tinha aquela coisa toda e uma pressão de fábrica, tinha muita poluição ali no local. Aí meu pai conseguiu comprar, essa casa que eu morei, essa primeira casa, era uma casa dos meus avós. Isso é uma coisa muito importante você ter a sua casa. E graças a Deus a gente teve isso. Meu pai comprou a outra casa na Paulo Andreghetti e ele conseguiu comprar essa casa na Joaquina Ramalho na Vila Guilherme, então eu fui proprietário (emocionado), tive o privilégio de ser filho de dono de uma casa (emocionado). Eu tenho consciência disso porque eu tenho muitos alunos, hoje ainda, eu vejo que muitos não são donos de casa, pagam aluguel e tal, com todo sistema de crédito existente hoje. Naquela época meu pai conseguiu ser dono da casa dele
P/1 – E por que foi lá na Vila Guilherme? Porque foi lá que ele encontrou a casa
R – Ele encontrou uma casa com uma condição melhor, a casa era pequena também, na Joaquina Ramalho, mas era uma coisa, pra ele linda. Porque a Joaquina Ramalho é uma avenida hoje que é onde sai a ponte da Vila Guilherme. E a ponte da Vila Guilherme ela vai dar numa igreja, que é a Igreja de São Sebastião que divide, a prefeitura pensou em tirar dali, mas depois não conseguiram, a igreja divide a avenida no meio, a avenida faz um contorno e a avenida segue. Hoje é avenida, na época era rua, a Joaquina Ramalho. A Joaquina Ramalho sobe o morro e meu pai comprou uma casa no alto do morro. Então isso era uma coisa muito legal porque nós não tínhamos luz na rua na época que nós fomos pra lá, e ver a cidade de cima era um sonho assim, São Paulo, a metrópole, à noite, meu pai ficava lá. A gente não ia ver avião no aeroporto, a gente via a cidade dali. Prazeres, pequenos e belos, poéticos, sei lá, mas era uma coisa que meu pai valorizava muito. Então ver a cidade lá de cima. E eu vi a Copa do Mundo de 70 ali, naquele lugar. O Brasil foi tricampeão do mundo em 1970, foi a Copa do México. E acho que isso foi um negócio gozado porque a partir daí eu comecei a me interessar por futebol, que é uma coisa de criança, porque eu não jogava bola antes, mas eu passei a me interessar por futebol exatamente por causa da Copa do Mundo tal, então em 70 eu tinha oito anos. E morava numa casa própria já, eu e meu irmão. E minha mãe e meu pai, claro
P/1 – E na escola, como era? Você tinha amigos, como era a relação, o que você mais gostava na escola?
R – A primeira escola que eu frequentei foi no Sesi, o pré-primário e o primeiro ano eu tinha, é aquela coisa, você sempre arruma um grande amigo tal. Tinha alguns meninos com que meu andava, mas ali o Sesi, como a escola ficava a uns 15, 20 minutos da minha casa, e o Sesi abrigava ali moradores de muitos lugares que moravam, é Serviço Social da Indústria. Quando eu fui pra, o menino com quem eu andava mais era o Eduardo. Aliás, o Eduardo voltando um pouco pra casa da Paulo Andrighetti, a tia do Eduardo tinha um centro de umbanda, isso era uma coisa fascinante porque era uma coisa muito diferente. Eu era católico, católico, fui batizado na igreja católica e tal, enfim, meus avós católicos, tudo mais, então eu sabia o ritual da igreja. E tinha uma coisa muito interessante desse menino, o Eduardo, um garoto que a família da tia dele tinha um centro de umbanda e aí você fala: “Bom, é uma família de negros”. Nada! Ele era loiro de olho azul. Muito curioso isso. E eles eram umbandistas. E teve uma história engraçada assim, eu já tava morando na Vila Guilherme e por um problema de saúde, que meu pai tinha um problema de tiróide, eu me lembro que minha mãe ficava desesperada, tal, naquela época, 1970 e nada, esse problema de tiroide era grave, não sei o quê, o tratamento era meio complicado e aí apelava-se para Deus e tudo o mais. E eu me lembro um dia de ter ido ao centro de umbanda e eu fui apresentado para um anjo. Isso é um negócio muito engraçado porque eu via um anjo quando eu era pequeno, segundo o que me disseram o anjo conversou comigo, não adianta você me perguntar o que o anjo me perguntou porque eu não me lembro, já me perguntaram isso, mas aquilo lá foi uma entidade, você viu uma entidade. Engraçado isso, eu vi uma entidade . Segundo o que me disseram era uma entidade. Isso é uma particularidade de infância, de ter ido a um centro de umbanda e ter ido numa sala, eu me lembro assim. Eu e o Edu, esse menino. Nós fomos conversar com um anjo, segundo o que me disseram , só um parênteses, é engraçado. Isso eu devia ter uns nove, dez anos de idade, mais ou menos isso, imagina, olha só, conversar com anjo. Depois, já da outra escola, quando eu fui pra Vila Guilherme, eu fui estudar numa Escola Municipal de Vila Isolina, hoje chama Rui Barbosa. Po, lá assim foi que eu conheci um monte de gente, foi o lugar onde eu, eu tava um pouco mais crescido, com nove, dez anos de idade, fui fazer o segundo, terceiro e quarto ano. Professoras Arlinda, Terezinha e Florise, me lembro delas. E até hoje eu tenho amigos dessa época, Miguel. Pô Miguel, até você, o que é isso? Impressionante esse negócio de memória (emocionado). A gente se vê até hoje. Ele é casado e tem uma filha com 18 anos e continua me enchendo a paciência até hoje. E tem outras pessoas que eu ainda vejo de vez em quando; a Marta que é professora na Uninove foi minha colega na mesma sala que ele, quarto ano primário, ela é professora na Uninove. Dessa escola, quando a gente chegou no quarto ano primário a escola não tinha ginásio, depois se tornou ensino fundamental e tal, tudo. Aí nós tivemos que descer a Rua Coronel Jordão que era a rua em frente à escola, e eu fui estudar no Colégio Estadual Casimiro de Abreu, o CECA, que na época a gente chamava de Geca, que era Ginásio Estadual Casimiro de Abreu. E essa tropa toda desceu lá pro ginásio. Então assim, a gente manteve vínculos e lá no Casimiro de Abreu eu conheci um monte de outras pessoas, pessoas com quem eu acabei mantendo amizade até hoje. O caso da dona Benedita que eu escrevi um livro sobre a história da Vila Guilherme com ela, ela foi minha colega de classe no colégio. Ela já com bem mais idade do que a gente, ela era mãe de um amigo, o Pedro, e nós fomos colegas de classe no colegial. Assim, quer dizer, esse pessoal do Vila Isolina desceu pro Casimiro de Abreu, depois a Vila Isolina passou a ter também o ginásio, mas era só uma escola primária. Nessa época, com os colegas da escola eu passei a jogar futebol e na época a gente tinha condições de jogar futebol em campinho. Pô, isso era maravilhoso, jogar bola em campinho, isso era uma coisa sensacional um privilégio. Hoje em dia os caras não sabem o que é isso porque tudo tá tomado, tudo virou prédio, casa e tal. Na Joaquina Ramalho, lá em cima, a gente tinha um campinho, a gente jogava bola lá. E ainda mais influenciado por toda essa coisa da Copa do Mundo de 1970, essa patriotada toda do Regime Militar porque a Copa do Mundo foi utilizada pelo regime, o Medici na época como presidente da república era torcedor do Grêmio e utilizou. A gente tinha um timaço naquela época, e ele utilizou isso como propaganda nacionalista e tudo o mais, então futebol, futebol e futebol e a molecada jogava futebol. E eu fui nessa, eu gostava muito de futebol. Eu tinha essa oportunidade, a cidade tinha ali campinhos na rua, então nossa, vivia jogando e não tinha o problema do carro, automóvel te enchendo a paciência. A rua ainda, a Joaquina Ramalho tinha naquele pedaço, não tinha luz elétrica durante um tempo, só depois passou a ter, então a gente jogava bola até o sol, a gente vinha da escola, o que ia fazer? Ia ver televisão? Também, mas o bom era ficar com a molecada, então a gente jogava muita bola na rua. Brincadeira de peão, jogar peão. Bolinha de gude era um negócio, empinar quadrado então, pelo amor! Lá no morro, porque a gente como eu falei morava em cima, era uma coisa muito comum. Mas eu preferia mesmo jogar bola, adorava jogar bola. E futebol de botão. Adorava jogar futebol de botão, tinha que comprar time de botão. Eu não tinha muitos times na época, tinha poucos, mas eu gostava muito de jogar futebol de botão. E a molecada fazia tudo isso. Essas eram as brincadeiras da gente nos anos 70, a gente jogava muita bola, que tinha esse privilégio de ter esse campinho próximo, que não era muito difícil, tinha chance de fazer isso. Jogava-se bola, bolinha de gude, peão, essas coisas. Empinar quadrado, empinar pipa, a gente falava empinar quadrado, empinar pipa, tal. Essas coisas. Nossa, maravilhoso
P/1 – E na sua casa se discutia política?
R – Não
P/1 – Não se falava em política?
R – Não, não falava em política. Meu pai votava na Arena, era um conservador. Eu me lembro da campanha do Carvalho Pinto na época do Quércia. Os meus amigos votavam no Quércia e minha mãe no Carvalho Pinto. Como o meu pai é português ele não votava, então minha mãe, como era brasileira, ela votava no candidato do meu pai. Na Arena, que dureza! . E aí eu não entendia patavinas sobre isso, nem os meus amigos. Eu sei que meus amigos votavam no Quércia porque eles ficavam: “O candidato da sua mãe vai perder”, do seu pai na verdade. Relação machista total, quer dizer, porque era o candidato do meu pai e minha mãe votava. “Ah, o candidato vai perder”. Mas a gente não associava, não tinha essa coisa militar e tal, essa questão da política que é meu objeto de trabalho, Economia e Política, isso só veio depois pra mim. Mas na época do início do ginásio e tal eu não tinha esse tipo de preocupação, minha preocupação era namorar, tentar ganhar determinada menina. A Marta, essa que dá aula na Uninove hoje, é possível? Olha só a vida. Não tinha essa preocupação com política, meu negócio era jogar botão, correr atrás de bola
P/1 – E formação religiosa?
R – Então, a minha mãe é católica, os meus avós eram católicos. O meu pai não ligava muito pra religião, não. Meu pai lidava com a contabilidade . O problema dele era botar comida em casa, deixar as coisas ajustadas. Meu avô tinha alguns problemas de saúde, ele se preocupava muito com isso, com os pais. Mas ele não dava muita trela pra religião não. Minha mãe sim, rezava, tinha a imagem de Nossa Senhora, e eu fui nesse embalo, sempre fui muito próximo a minha mãe
P/1 – E aí na escola, o ginásio você estava nessa escola
R – Isso
P/1 – Essa que você já tinha mudado
R – É, o Casimiro de Abreu
P/1 – O Casimiro de Abreu. E bailinho, festinha na adolescência como é que era? Como é que foi essa passagem pra adolescência?
R – Então, o Casimiro de Abreu, a história toda que eu tenho de adolescência é a história do Casimiro de Abreu . E era assim, eu era muito tímido, então pra chegar nas garotas era uma dificuldade. E esses caras com quem eu andava, Miguel que eu lembrei dele agora há pouco, ele também era super tímido. Po, então eu só me dava com cara tímido . Era uma dificuldade. E as meninas ali não eram muito atiradas, digamos assim, porque afinal de contas se vivia ainda um padrão... Pô, a Vila Guilherme é um bairro do outro lado do rio, do Tietê. Então naquele período ainda é uma coisa mais provinciana do que o resto da cidade, quer dizer, você tava do outro lado do rio, tava mais afastado, tudo demorava mais pra chegar até lá e tal. Então você tinha uma coisa mais conservadora e as meninas não eram atiradas como as meninas que a gente depois ficou sabendo, mais avançadas em termos de ideia, as meninas da Vila Madalena, de Pinheiros, do Butantan que tem aí o acesso da USP ou da PUC, entendeu? As meninas eram mais recatadas, aquela coisa mais de princesa e tal. A dificuldade de se chegar também era maior. E os garotos também tinham esse negócio, não tinham esse atrevimento que posteriormente a gente foi verificar que havia em outros lugares, pelo menos contava-se contam histórias. Mas assim, a gente, baile, começou a acontecer mais quando a gente chegou no colegial. No ginásio não rolava tanto isso, não que não tivesse, tinha, mas era mais difícil. Eu particularmente não frequentava os bailes que de vez em quando rolavam por causa da escola, então o acesso que eu tinha às meninas era tentar chegar na própria escola, ne? E aí não rolava. De vez em quando acontecia assim de uma aproximação maior com alguns eventos que a própria escola propiciava, então o Casimiro de Abreu tinha um negócio muito legal, ela era uma escola que promoveu festivais de música. E os festivais de música foram umas das primeiras ocasiões que eu pude sair à noite porque eu ia pra escola e tinha festival de música. Era uma sensação diferente e as meninas vinham diferentes porque elas tinham uniforme e elas iam à noite pra escola com uma outra roupa, então você via aquele negócio maravilhoso que as meninas tinham roupa de sair. Calça boca de sino os garotos usavam, sapato, salto alto, cabelo mais comprido e tal. E as meninas andavam mais de vestido, elas eram super bonitas, aquele negócio mais recatado e tal, e elas iam arrumadas para os festivais da escola, isso foi um negócio muito legal também. Mas também não dava em nada, você ficava vendo as meninas nessa distância que eu to pra você e pra ele e ficava nisso, era uma coisa muito platônica de você ficar olhando. Putz, aí a menina olhava pra você e você falava: “Pelo amor de Deus ela olhou pra mim”, isso já rendia uma coisa a semana inteira, tal. E de vez em quando a gente arriscava, mandava um verso pra ela, uma coisa assim, que você fazia ou que você ouvia numa canção. E isso rendia assunto pra um monte de tempo e tirações de sarro. E o pior era isso, como você tinha esses bloqueios psicológicos e tal, de vez em quando uns pilantras da turma armava o negócio e te jogava na situação, armava alguma situação, você ia pro meio das garotas e aí ficava um mico porque todo mundo olhando pra sua cara: “E aí, você vai falar?”. Ela ficava assim esperando que você fizesse alguma declaração. Nossa! Isso em vez de ajudar prejudicava mais ainda. Eu nunca consegui namorar a Marta, é uma frustração até hoje. Teve um baile , foi um negócio assim absurdo. Ela não dançou e eu também não. Todo mundo dançou e eu não dancei com ela, olha que covardia. Mas eu vejo assim, foi muito, por conta desses micos que se armava eu acabei não conseguindo chegar até nela. Até hoje eu não sei se ela queria dançar comigo ou não porque ela ficou lá plantada, e o baile rolando. Rock n’ Roll Lullaby, B. J. Thomas por exemplo, eu me lembro que tocou nesse baile. Selva de Pedra, resquícios ainda da escola lá do Vila Isolina que virou Rui Barbosa. Mas então assim, tinha essas coisas. Mas muito legal , apesar dos micos assim, uma coisa muito engraçada
P/1 – E você circulava na cidade, você saía da região e ia pro centro, como é que você circulava?
R – Então, eu fui pro centro da cidade as primeiras vezes eu já devia estar com uns 13, 14 anos. Eu fui com uns garotos mais velhos. Primeira memória de estar andando sozinho, quando eu fui ver o filme Tubarão do Steven Spielberg. Eu fui assistir ao filme na República, no Cine Repúbica se não me falha a memória. Na Avenida Ipiranga tinha o Cine Ipiranga, tinha o Windsor e aí eu fui assistir Tubarão e eu me lembro que era um filme que acho que era pra 14 anos, e eu ia fazer 14 anos. Eu tive problema inclusive com o cara na portaria, que ele não queria me deixar entrar. Aí me deram o toque que o outro porteiro que iria vir na sequência era um cara mais legal, aí eu e o Miguel entramos nesse filme. O Miguel é 20 dias mais novo do que eu, sou sempre mais velho que ele, 20 dias. Nós assistimos o filme Tubarão. Nós fomos com esse outro rapaz, o Marcos, ele era mais velho do que a gente. Foi a primeira vez que eu fui, que eu comecei a criar um pouco mais de confiança nos meus pais, tomar ônibus e tal, e aí a gente começou a frequentar mais a cidade por isso. Cinema era um negócio que eu achava legal, que eu gostava de ver séries na televisão, séries na televisão era uma coisa que a gente via muito em casa. Televisão era uma coisa que a gente via muito em casa. E o cinema veio a reboque por causa disso, eu sempre gostei muito de cinema desde que eu vi. De vez em quando com meus pais, quando eu era pequeno eu assisti Branca de Neve na Avenida Celso Garcia e tal. Era raro, a gente não ia muito no cinema não, mas quando ia eu gostava muito. E aí nas primeiras oportunidades de ir pra cidade eu fui com meus amigos por causa do cinema. E era assim, a questão era confiança, depois que você faz a primeira vez você começava a repetir. E foi isso que aconteceu, eu comecei a ir na cidade por causa do cinema, depois eu comecei a andar atrás de livros. Eu sempre gostei de ler e livraria era uma coisa que eu gostava de ir ali no sebo da Barão de Itapetininga, tinha a Brasiliense e é isso, quer dizer, frequentar lojas, lojas de departamento. O Mappin, por exemplo, era uma coisa que, sensacional. O Mappin tinha uma porção de andares, o cara ia fazendo uma narração. Você entrava no elevador que era chiquésimo você andar de elevador, não era toda hora que você andava, tinha escada rolante, elevador e o cara ia narrando pra você: “Primeiro andar, acessórios, bababa; segundo andar”, ele ia falando e era muito legal isso. Então o Mappin era uma coisa que era diversão, você ia ver coisas, ver artigos, rádios modernos, televisões mais modernas, você ia passear pra ver vitrine as pessoas andavam pra ver vitrine. E quando eu comecei a ter um pouco mais de independência, que meu pai me arrumava um dinheiro pra tomar ônibus, eles confiavam mais em mim, a cidade é perigosa, aquele negócio todo, você morava na Vila Guilherme, tal. E aí foi essa coisa de começar a frequentar a cidade nos anos 70, em meados dos anos 70, quando ainda não tinha trombadinha. Trombadinha foi um termo que começou a aparecer depois. Eu consegui andar, eu vi bonde! Eu cheguei a andar de bonde quando eu era pequenininho. Eu andei de bonde, mas os bondes acabaram nos anos 60 ainda, porque depois, mas eu cheguei a andar de bonde, olha só, nossa, andei de ônibus. Depois andei de ônibus e andei no metrô, quando o metrô foi inaugurado, uma coisa que paulitano fez foi passear na linha norte-sul de Santana até o Jabaquara, era um coisa maravilhosa ver o metrô funcionar e eu fiz essa viagem. Mas eu fiz uma vez só porque depois a gente ia só nas estações que tinha que ir. Depois que você faz um vez. Essa sensação do tempo é muito engraçada. Porque o metrô teve um impacto na vida das pessoas porque assim, a gente, morando na Vila Guilherme, mesmo quem morava no Brás e ali mesmo na região do Catumbi, do Pari, ali daquele pedaço, Pari, Canindé. Pari, Canindé, Belenzinho, então elas estão muito próximas. E pra você ir pro centro da cidade você ia não de metrô, você ia de ônibus, então os seus compromissos, a estrutura de tempo era mediante o ônibus, que você tinha que tomar duas, três conduções. Com o metrô você começa a perceber que o tempo começa a ficar mais rápido na cidade, você andar de metrô é mais rápido. E isso é uma coisa, eu me lembro da aceleração, agora no metrô você chega mais rápido, eu me lembro desse impacto, era uma coisa mais rápida, quer dizer, a cidade de São Paulo não podia parar, vamo embora vamo embora, olha a hora vamo embora, vamo embora como dizia a vinheta do jornal da Jovem Pan que foi retirada de uma música do Billy Blanc, da Sinfonia da Cidade, traduz bem isso. E o metrô deu essa aceleração também pras pessoas. E aí a gente começava a andar de metrô, metrô de Santana. Você tomava o ônibus e ia pra Santana, Carandiru, a estação Tietê. Ali a Vila Guilherme acabou ficando bem servida, tanto que a Vila Guilherme que era uma coisa meio suburbana virou centro da cidade. A Vila Guilher hoje, você atravessou a ponte, em dez minutos você tá no centro, pela, sei lá Avenida Tiradentes, mesmo pela Ponte da Vila Guilherme você cai na Marginal, tudo se acelera muito.
P/1 – E músicas? O que você escutava na adolescência? Você gostava de escutar música?
R – Música é o amor da minha vida assim. O que eu ouvia na adolescência? Eu ouvia música desde garoto, você tem que me perguntar o que eu ouvia na infância! Eu ouvia Jovem Guarda, eu vinha na casa do meu avô, meu avô morava no Bexiga, quer dizer, a Bela Vista e o Teatro da Record, o Teatro dos Festivais da Record muito próximo da casa do meu avô. A Rua Major Dutra, a próxima é cruzamento da Rui Barbosa que é cruzamento da Brigadeiro. E essas coisas todas aconteciam na Brigadeiro. Roberto Carlos que era uma fenômeno assim, ainda é, é o maior fenômeno de música em termos populares existentes. Quando ele morrer é que você vai ver o impacto. Ainda hoje há muito preconceito em relação ao Roberto Carlos, essa coisa da divisão que ocorreu nesse período dos festivais, que tem a Bossa Nova, tem o pessoal que deriva da Bossa Nova pro samba mais clássico, caso do Chico Buarque e tal, então sempre visto muito como alienado
P/1 – Mas você gostava de escutar o quê?
R – Tudo
P/1 – Tinha alguma música predileta que você...
R – Quero que vá tudo pro inferno. Eu era pequenininho, tinha quatro anos, aí na Bela Vista, nossa, o pessoal me botava pra cantar, subia na mesa: “Canta, Zezinho!”
P/1 – O que você cantava?
R – Quero que vá tudo pro inferno (choro). A Praia, de Agnaldo Rayol, vê se pode
P/1 – Você consegue cantar pra gente um trechinho?
R – Putz, eu tento (emocionado). De que vale o céu azul e o sol sempre a brilhar, se você (emocionado). Enfim, quero que você me aqueça nesse inverno e que tudo mais vá pro inferno. Roberto Carlos e Erasmos. A Praia. Eu não lembro a letra direito. A quero que vá tudo pro inferno que é demais, eu to chorando demais, pelo amor de Deus, mas eu lembro a letra toda de que quero que vá tudo pro inferno. A Praia eu não me lembro muito da letra, mas foi uma canção que fez um sucesso extraordinário com o Agnaldo Rayol que é um camarada que cantava com uma certa empostação lírica assim. (canta) Em plena praia o céu azul no mar e o sol, tananani. É uma canção. Eu não me lembro da letra dela, sinceramente, mas na época eu cantava. Você imagina o moleque com quatro, cinco anos, aquela mulherada toda que tinha ali achava muito engraçado: “Que bonitinho o Zezinho cantando”. Então eu cantava assim, A Praia, Quero que vá tudo pro inferno. A Banda! Que é Chico, Nara. (cantando) Estava à toa na vida, o meu amor meu chamou pra ver a banda passar, cantando coisas de amor. Então me lembro de toda letra da Banda. São as coisas especialmente da TV Record. A TV Record teve uma importância muito grande pra mim em termos de música. Eu me lembro assim, claramente, que os festivais da TV Record, as pessoas iam pra casa pra ver o festival, era uma coisa, e de ficar torcendo quem que vai ganhar e não sei o que lá. Domingo no Parque, do Gilberto Gil, maravilhoso aquilo. Alegria, Alegria com Caetano Veloso, eu me lembro disso, esssas coisas foram presentes. E até o Roberto Carlos concorreu com Maria, Carnaval e Cinzas do Luís Carlos Paraná. Foi a vaiadíssimo, mas era alto nível de composições, então isso é um festival de música popular. Teve na Excelsior que foi extinta pelo Regime Militar, que foi uma televisão que peitou uma briga com o Regime Militar e foi extinta. E o Festival da Record. Eu me lembro disso. Então, eu ia ver o meu avô materno na Bela Vista e a gente, às vezes, passava lá pela Brigadeiro Luís Antônio fazemos um caminho mais torto pra voltar pra cá e passava lá. Eu me lembro de ver o final dos programas do Roberto Carlos as pessoas saindo, aquele monte de gente na rua gritando. Enfim, essas coisas. A música popular que se tocava de Roberto, de Erasmo, o pessoal da Jovem Guarda e esse outro povo todo do Fino da Bossa, Elis, que tinha uma coisa vinculada à Bossa Nova e os outros caras que tinham uma outra proposta não tão vinculada à Bossa Nova, mas mais ao samba tradicional que é a turma do Chico, Edu, tal, eu me lembro perfeitamente desses caras. Ponteio, Edu Lobo, Maria Medalha, nossa, perfeitamente assim, é uma coisa. E se cantava tudo, pra mim é música. Não tinha essa coisa de ser um Roberto Carlos, eu gostava. E cá pra nós, alto nível. Olha só, é a nata assim. As pessoas falam muito da música brasileiro dos anos 30, mas esse pessoal dos anos 60 é impressionante, só o tempo mesmo que vai trazer o devido valor histórico desse grupo de pessoas
P/1 – E carta? Você tinha costume de mandar carta, receber carta na sua família?
R – Na minha família sim. Eu não porque os meus amigos estavam todos ao acesso do abraço. Mas minha família sim porque todos imigrantes, então essa coisa da imigração a carta é muito presente
P/1 – Quem que escrevia na sua casa?
R – Minha avó paterna, já que minha avó materna eu não conheci. Eu vim conhecê-la adulto quando ela morreu, às vésperas de morrer, eu vim conhecê-la. Então a minha vó materna, o meu avô Merciano cuidou da minha mãe a vida inteira, então eu não tinha avó, minha avó tinha morrido. Eu só descobri que minha vó não tinha morrido, agora, muito recentemente
P/1 – Mas aí a carta...
R – As cartas da minha avó paterna porque ela escrevia pra mãe, escrevia pros irmãos que ficaram em Portugal, pros tios e tal. Então essa coisa da carta pra Ribamondego é um negócio da minha infância. Chegar carta, meu pai ler carta, aquele papel de seda, caneta tinteiro, isso é muito presente. O selo eu comecei a gostar de ver selos, os selos portugueses, as cartas vinham com as bordas verde e vermelha, com selos sempre diferentes. Os selos tinham muitas vezes coisas de heráldica. É uma coisa que depois eu fui lendo assim, tinha os escudos, isso é uma coisa muito clara na minha memória também. De vez em quando eu ia lá e arrancava o selo, meu pai ficava bravo, não tinha nem lido a carta; não fazia anda com eles, eu guardava, botava no meio de livro e colava, mas os selos eram bonitos. Então, as cartas eram coisas importantes e foram importantes, era uma coisa que acontecia mesmo. As pessoas se comunicavam, e eu me lembro assim, na casa dos meus amigos, carta, família do interior, família do nordeste, família em Minas, carta, carta, ôxi, sem dúvida, sem dúvida. Carta era uma coisa, não tinha e-mail. Eu falo isso pros meus alunos, eu dando aula agora no Jornalismo, no Direito, no Serviço Social, agora na Medicina. Mas essa molecada com 20 anos não tem ideia do que era o mundo nos anos 70, essa coisa que eu to falando. Hoje você cria revolução, primavera árabe, você bota os caras na rua pra fazer manifestações e tal via twitter e tal. As pessoas antigamente não tinham nem telefone em casa, eu não tinha telefone em casa. Se tinha um cara doente você tinha que pedir pra vizinha, quase um telefone sem fio, aquela brincadeira. Ou então, nos anos 70 a gente começou a ter na cidade o orelhão, mas eu sei que as pessoas mais antigas não tinham nem orelhão, você tinha que ir no telefone público, que às vezes tinha lá num determinado ponto vinculado a um bar, a uma farmácia. Eu me lembro dessa coisa ainda, de ter que dar uma notícia pra alguém, ir com a minha mãe lá, não entendendo muito bem o que era, eu era pequeno: “Vem filho!”. E ela ia ligar na farmácia, entendeu? Isso é uma coisa, a comunicação era feita assim. Carta, telegrama, que não era tão comum, pelo menos eu não via tanto, telegrama era mais grave, telegrama morreu. Era assim. Mas as cartas e telefone público nessa situação, você vai. Saía no bairro, tinha lá o telefone, é assim. Hoje em dia você tá no banheiro você tá passando mensagem pras pessoas. Você joga na bolsa, sentado na privada. Naquela época, olha só, outro mundo.
P/1 – E você tinha na adolescência, você foi formando um pensamento: “Ah, quando crescer eu quero ser...”
R – Sem dúvida
P/1 – O que você pretendia, pensava?
R – Eu queria ser historiador. Pequenininho eu queria ser bombeiro ou policial, pequenininho. Aí depois eu fui me interessando por leitura. Como eu falei, gibi para mim era uma coisa importantíssima, tinha uma meia dúzia de gibis que eu lia, relia, tal. Gostava muito de desenhar por causa de gibis, eu gostava de fazer desenhos. Minha avó guardava meus desenhos. Quando eu ficava muito com ela em casa, papel de pão é um papel de seda, e a gente virava assim, tinh um lado que era melhor para pegar o grafite e a caneta, do outro lado deslizava mais. Minha avó tinha uma coleção de desenhos do neto. O que você perguntou mesmo?
P/1 – De você pensar ‘quando crescer quero ser’. E na adolescência...
R – Então, quando eu comecei a fazer o ginásio, na época a gente chamava de ginásio, mas já tinha mudado a nomenclatura, era quinta série. Começou a chamar quarta série, quinta série, mas foi muito naquele período da mudança, então as pessoas continuaram a chamar de ginásio. Mas o ginásio era da quinta à oitava série, hoje em dia tudo isso é ensino fundamental. A gente chamava de colegial, mas era ensino médio. Enfim, vou usar a nomenclatura que eu usava na época. Então, nesse período do ginásio eu comecei a intensificar a leitura, comecei a conhecer mais gente, você vai ficando mais velho, vai fazendo mais contatos, começa a ter mais liberdade pra ir daqui pra lá, tal. E eu comecei a me interessar muito por livros. Eu ganhei um livro do Monteiro Lobato quando era pequeno, eu devia ter uns 11, 12 anos, que foi muito importante pra mim, é o História do Mundo para as Crianças. Eu lia aquele livro assim, eu gostava muito de história. Nos gibis do Mickey e do Tio Patinhas, que eram publicações mais caras, eram mensais, vinha na capa figurinhas pra você colar no álbum que eles cediam. O álbum que eu fiz, eu enchi a paciência do meu pai e da minha mãe, e quando não dava pra comprar eu pedia pras pessoas, quem comprava dava pra mim. O álbum Guerreiros e Soldados era um álbum de histórias sobre essa coisa que fascina a molecada, guerra é impressionante, quando você é pequeno as guerras e tal fascinam, nos meninos por exemplo, não sei as meninas. Mas os meninos fascinava muito você ser guerreiro, você ser bombeiro, se bem que bombeiro apaga o fogo. Mas você ser policial, soldado, era uma coisa que tava muito no imaginário. E eu colecionei esse álbum Guerreiros e Soldados, gostava da história, de ler o porquê acontecia aquilo, porque o cara usava determinada armadura, não sei o quê papapa. E desde pequeno eu comecei a pensar que eu poderia estudar História. Aí, na hora de fazer uma decisão mais adiante eu pensei na questão do Jornalismo porque pô, vai ser professor de História estou ferrado, se fizesse História, mas e aí, o que eu ia fazer? Por isso que acabei estudando Economia. Por quê? Porque depois conversando com algumas pessoas, eu tentei juntar a fome com a vontade de comer porque o curso de Economia é um curso na área de Ciências Sociais, na verdade. As pessoas pensam que Economia é um curso da área de Ciências Exatas, ledo engano, o curso de Economia é um curso na área de Ciências Sociais e eu acabei tendo a sorte de estudar na PUC. Porque o curso de Economia é um curso que tem muita coisa na área de História, de Sociologia, Filosofia, além dos cálculos e tudo o mais, e me possibilitaria arrumar emprego. Porque um economista pode ser bem recebido tanto no setor público quanto no setor privado, trabalhando em empresa. E ao mesmo tempo eu ia me divertir um pouco estudando História que é uma coisa que eu sempre gostei, desde pequeno. E é isso. Quer dizer, nesse sentido, esse negócio da leitura e o querer ser, depois de ter passado aquela fase de querer ser bombeiro e tal. Teve um momento que eu achava que poderia ser engenheiro eletrônico, mas eu não sabia o que era isso, acho que era muito mais influência do meu pai. Meu pai queria que eu fosse médico, engenheiro ou advogado, não fui médico, engenheiro ou advogado, estou dando aula pros caras. Nossa, olha só que engraçado! Não tinha pensado nisso . Não sou médico, engenheiro e advogado, mas fui dar aula. Na Engenharia não, mas na Computação eu já cheguei a dar aula na faculdade. Mas assim, vontade mesmo de trabalhar eu queria ser historiador. Arqueólogo. Quando, na adolescência, eu acabei comprando livro de Arqueologia, boa essa, hein? Livros de Arqueologia C W Seran, por exemplo. Deuses, túmulos e sábios. Eu li isso acho que quando eu tinha 15 anos, você acredita? Livros de arqueologia. Do Lisner, por exemplo, eu li uns pedaços dele, da Editora Itatiaia. Nossa, gosto de Arqueologia, acho fascinante isso. Se tivesse mais peito pra encarar as coisas, eu sou muito devagar, é essa coisa das meninas também, se eu tivesse sido mais corajoso eu podia ter feito História, daí eu ia fazer Arqueologia. Mas assim, eu li Arqueologia quando eu era pequeno, até hoje eu tenho esses livros
P/1 – Aí você prestou vestibular pra PUC, pra USP
R – Pra PUC e pra USP, só. Prestei pra Economia. Eu fui influenciado pela irmã do Marcelo, que é um amigo que eu tive lá no Casimiro de abreu, quando eu desci pro ginásio. A irmã dele era secretária na USP. Acho que ela fez Letras e era secretária na Economia, na USP. E foi ela que chegou, pra ele também que era um cara que gostava muito de História, o Marcelo era bamba de História, Marcelo Monteiro de Melo. Bom, um cara muito bom de História. A família dele é da região de Ribeirão Preto. E ela chegou pra gente e falou: “Olha, vocês podem fazer Economia”. A gente não tinha noção dessas coisas. Bom, você imagina, eu to falando por volta de 1978, 79, pouquíssima gente fazia faculdade. Ao meu redor não me lembro de ninguém que tinha feito faculdade, na minha família ninguém tinha feito faculdade. Como é que você sabia o que era o quê? É um outro planeta essa coisa do tempo. Ela foi uma pessoa que tinha feito faculdade, das raras assim. As pessoas faziam colégio técnico, era o tchans. Estudar no Senai, no Albert Einstein, pegar uma Escola Federal no colégio técnico, essa era a grande saída pra uma carreira e tal. As pessoas faziam colegial e iam trabalhar, não faziam faculdade
P/1 – E você trabalhava?
R – Não, eu fui um privilegiado. E aí, a irmã do Marcelo fez esse papel porque nem meu pai tinha essa... Meu pai era um cara que fez curso técnico por correspondência, e virou diretor de empresa depois. Por isso que eu tive bancada a minha vida, eu fazia nada, jogava bola, e meu pai trabalhava
P/1 – E você fez cursinho, entrou direto pra faculdade?
R – Aí, eu tive essa sorte da orientação dela, ela falou: “Não, vocês gostam de História, podem fazer o curso de Economia”. Aí eu fui fazer o vestibular pra USP e pra PUC. E aí, eu fiz com o Marcelo, inclusive nós fizemos meio ano de Etapa. Aliás, no primeiro curso do Etapa da São Joaquim. Nós fomos a primeira turma do Etapa ali na estação São Joaquim. Veja, o metrô já está presente. E eu fiz meio ano de Etapa lá e entrei. Eu entrei direto na PUC, peguei espera na USP, mas aí depois eu fiz a PUC mesmo. Eu nem lembro o que aconteceu com a segunda chamada lá da USP porque depois eu acabei fazendo a PUC mesmo e fiz o curso na PUC, me formei como Bacharel em Ciências Econômicas pela PUC
P/1 – Como é que foi o curso?
R – Maravilhoso
P/1 – Como é que tava a PUC naquele momento?
R – Eu fui estudar na PUC em 80, dois anos antes o Erasmo Dias tinha botado o exército, a cavalaria entrou na PUC pra bater em professores e alunos. Quer dizer, essa universidade abraçou muita gente que veio do exílio. Paulo Freire tava dando aula lá naquele período. O parceiro do Brizola aqui em São Paulo que é pai do Rui, eu tive aula com o Rui Afonso, o Almino Afonso tava, eu tive aula com o filho dele, com o Rui. O Aloizio Mercadante dava aula na sala do lado da minha assim, ele não era nada famoso, era professor pura e simples, cabelo comprido, barba comprida, andava de sandália, sentava em cima da mesa e dava aula de Economia ali da PUC. Franco Montoro, eu tomei elevador com o Franco Montoro, ele dava aula em Direito. Dom Paulo Evaristo Arns, eu me lembro dele como eu to aqui com você, eu me lembro dele conversando com a gente. Dom Helder Câmara, eu o vi assim lá. A PUC era uma coisa, não tem preço (emocionado). Fantástico. Estudar, o apreço pelo professor é uma coisa comovente assim. Você não tem isso hoje. Eu dou aula. Pô, eu não posso reclamar porque eu fui dez vezes paraninfo e homenageado por turmas, eu não posso reclamar, mas o vínculo que se tinha com (choro) o estudo, com o professor. A gente saía de determinadas aulas pra ver aula nos outros cursos. E não tinha barreira. Hoje pra você entrar na faculdade você tem que passar cartão, pra você fazer uma pessoa entrar nas faculdades privadas especialmente falando é uma mercantilização desgraçada porque você não pode convidar uma pessoa pra ir, vai dar um mico porque o cara tem que apresentar RG. Eu to te falando isso porque eu levava os meus colegas que não estavam fazendo PUC pra assistir aula comigo. Olha que passeio, mas é. Pra mim, não ia pro cinema, você ia assistir aula com o cara lá, com determinados professores. Paul Singer, Ladislau Dowbor. Po, os caras ali, acessíveis. E é isso
P/1 – Aí você foi estagiar, você começou quando?
R – Eu fui estagiar de cara
P/1 – Logo no primeiro ano?
R – Logo de cara, eu fui ser estagiário na Caixa Econômica Federal
P/1 – No primeiro ano já?
R – De cara
P/1 – Foi seu primeiro trabalho
R – Primeiro trabalho
P/1 – Como que foi?
R – Os caras fizeram a seleção lá e me mandaram pra atender o público do PIS, reclamação do PIS na Avenida Rudge. Putz grilo, eu não sei porque cargas, o cara olhou pra minha cara lá na entrevista. Acho que é essa coisa: “Ah, você tem jeito pra falar com pessoas”. Meu, eu fui trabalhar na Avenida Rudge pra atender, eu fiquei um ano fazendo isso, só não completou exatamente um ano porque eles seriam obrigados a contratar, a legislação pede que você renove o contrato. Mas aí eu saí e fui trabalhar em outro banco. Mas esse primeiro emprego foi uma coisa muito engraçada porque eu fui fazer exatamente, receber as pessoas que vinham fazer reclamação do PIS. Quantas vezes a gente não fez vaquinha pro cara ir embora pra casa? Que destino. Só podia estar vinculado com as Ciências Sociais e tal. Não tem jeito, a coisa te atropela, você não procura e o negócio vem e te pega. Vaquinha? Sabe o que é isso? Porque o camarada achava que ele ia receber ali, mas ali era um posto de informações, então histórias absurdas, o camarada vinha andando do centro da cidade. A Avenida Rudge tá na Barra Funda, Bom Retiro, naquele pedaço. Então o cara achou que fosse receber no banco não sei das quantas no centro e não tinha dinheiro porque ele ia receber. E não tinha o dinheiro lá porque o PIS e o PASEP e essa coisa toda, mandava às vezes a conta dele pro raio que o parta, o cara não tinha nada a ver com a cidade, mas mandava. Não me pergunta porque, mas o sistema de operação mandava. E aí o cara não tinha como ir embora pra casa, garota. O que você faz? Banca a passagem do cara. Várias vezes aconteceu. Os alunos da PUC bancavam a passagem do coitado do cidadão ali, é mole? Isso, 1980, 81. Depois eu fui trabalhar no Banco América do Sul, que era uma outra coisa, fui trabalhar no Departamento de Câmbio, aí era uma outra realidade, botava terno e gravata, coisa que eu detestei
P/1 – Você estudava à noite?
R – Estudava à noite. Detestava fazer isso, botar terno e gravata. Primeiro ano de PUC, primeira coisa, essencial. Você faz o quê? História. Você faz o quê? Economia. Você faz Psicologia, você faz Medicina, você faz o que você for fazer. O primeiro ano você vai estuda Metodologia Científica, Psicologia, Antropologia, Problemas Filosóficos e Teológicos do Homem Contemporâneo. E Língua Portuguesa, Comunicação e Expressão. Isso chamava-se curso básico, todo mundo tinha que ter formação humanística. Você quer ser médico? Você tem que fazer isso. Você quer ser engenheiro, tem que fazer isso. Quando eu tava no fim do curso começaram a votar e votaram pra derrubar esse negócio. Um erro. Porque você está mercantilizando. Isso foi um erro da PUC, dos estudantes. Na PUC votava-se para reitor, embora seja uma entidade privada. Então é uma experiência de vida que não tem preço. E eu tinha essas cinco matérias e mais duas que eram do meu curso, Economia. Eu não me lembro quais eram as duas matérias, uma delas era Economia propriamente dita, Economia I. O cara chegou pra gente lá, 50 marmanjos na sala, homens e mulheres porque Economia é um curso que você mistura bem essa coisa, garotos e garotas, a maior parte com seus 18, 19, 20 anos, eram jovens mesmo, não tinha tanta gente com mais idade que nem na faculdade hoje, eu dou aula e tem muito essa coisa, um camarada com 18 e um sujeito com 40 e tal. Pelo menos na minha classe não tinha tanto essa discrepância. E olha, pra aula que vem Volume 1 do Capital, Karl Marx, se vira. O outro professor, Os Pensadores, Adam Smith. Texto em espanhol. Como assim? Você lia o Tio Patinhas, a Mônica, o Cebolinha. É um impacto cultural brutal. O que você faz? Vai ficar esperando? Não. Então você pega o livro e vai correr atrás dos comentaristas, dos autores. Então a tua luta pela compreensão, essa coisa do conhecimento era um negócio impressionante. Hoje você apostila, como um monte de maluco vai fazer faculdade apostilada, você pega, é basicamente um cursinho, porque cursinho fazia isso, pra você mentalizar o professor cantava, pendurava no lustre, decora isso. Faculdade não é isso. Olha só na época. O cara chegava assim, exatamente do jeito que eu to falando: “Volume 1 do Capital na aula que vem, capítulos 1, 2, 3”. Assim. Leia. Se você não leu o problema é seu, filho, você vai fazer prova em cima disso, se não fizer tá ferrado, vai tomar na cabeça. O que a gente ia fazer? Primeiro, os alunos todos tinham uma responsabilidade pelo que se está fazendo. O cara ia atrás, pegar comentaristas, te davam um toque, então você lia o livro e o comentarista, quer dizer, você começa a ter esse negócio. E essa estrutura de discurso e tudo o mais. Você vai trabalhar, voltando, com terno e gravata, uma leitura marxista que começa a entrar na sua vida. Você vira ateu. O primeiro e segundo ano na PUC foi um impacto na minha família porque o Zé ficou louco, o cara virou ateu. Como? Isso aqui é uma expressão burguesa, é o símbolo da dominação. De terno e gravata dentro do banco, símbolo da exploração do capitalismo, os bancos e tal, então é um negócio muito engraçado porque você tem que sobreviver de algum modo, você vai vender a sua força de trabalho para o sistema e aí era uma coisa horrorosa. Eu realmente não gostava daquilo que eu tava fazendo, mas trabalhei lá no Banco América do Sul, trabalhando com câmbio. Depois eu saí do Banco América do Sul, fui trabalhar na Helvétia que era a empresa que meu pai trabalhava. Foi um erro que eu fiz, trabalhar com meu pai, ele era diretor da empresa. Péssimo. É uma coisa muito ruim porque meu pai sempre foi muito exigente e trabalhar com o pai é mau. O meu pai era muito durão nesse sentido, então qualquer coisa que acontecia com outros funcionários, o que acontecia comigo o peso era muito maior porque ele era o filho do seu Amaral, entendeu? E aí, meu, é um negócio complicado. O dono da empresa gostava muito de mim, o seu Eurico, gosta, ele é vivo ainda, tal. Ele gostava muito de conversar comigo, ele me conhecia desde pequeno, também tem isso. E era uma coisa, ele me tratou sempre muito bem, muito bem, mas com o meu pai o negócio era complicado porque eu tomava carona pra ir pra casa. Nossa, era um inferno! Minha mãe, coitada, vivia apartando discussõe porque ‘você fez isso, você fez aquilo’ ‘mas todo mundo faz’ ‘mas você não pode fazer’. Então foi duro. Apesar que eu gostava do trabalho na Helvétia, então eu saí do setor de serviços bancários e fui pro setor secundário, pra indústria. E era fascinante aquele negócio dos teares. E eu estudando lá a Revolução Industria, você vê uma coisa da história, pela economia a história. Então ficava vendo o tipo de tear, lembrava de alguns textos que eu havia lido sobre Revolução Industrial e via a forma do trabalho, a linha de produção, aquela coisa toda. Fordismo, Tailorismo, não sei o quê, então isso se materializava na minha frente. Foi muito legal, apesar dessa tensão com meu pai. Até que chegou uma hora que não tava aguentando, coitada da minha mãe, ela começou a me incentivar a sair de lá pra outra coisa, vai trabalhar. Ela ficava apartando as minhas discussões com o meu pai.
P/1 – Vocês tinham discussões?
R – É, a gente tinha muito essas discussões
P/ - Sobre o quê?
R – Porque meu pai pegava muito no meu pé porque ele via lá: “Ah, porque você preencheu o negócio...”, porque como ele era diretor contábil e eu trabalhava na expedição da produção, então eu emitia muito documento e ele tinha que assinar muitas vezes. Então, de repente eu errava lá uma datilografia. Nossa, meu, chegava lá em cima. Todo dia eu errava, e quando ia com o meu pai era um negócio. E eu não datilografafa mal mas, putz, era dose, entendeu? Então tudo era motivo, teu pai ficava em cima. Ele me ensinou a dirigir quando eu tinha aí 16 pra 17 anos assim. Meu pai sempre dirigiu muito bem, hoje em dia ele não dirige mais, tá com muita idade. Mesma encrenca: “Olha o câmbio!” “Não corre”, era a mesma relação em relação aos documentos. Podia ter feito: “Olha o parágrafo, tá mal datilografado, estética”, mas eu aprendi com ele, essa coisa da responsabilidade
P/1 – Aí você saiu de lá
R – Prestei concurso e fui trabalhar na Prefeitura. Fui para o serviço público. E aí foi muito bom porque eu ficava longe do meu pai pegando no meu pé, eu ganhava minha grana, ajudava a pagar a faculdade. Meu pai falou pra mim que queria pagar a faculdade. Ótimo! Muito bom! Não fiz nada na minha adolescência em relação ao que muita gente faz, de ter que trabalhar jovem e sacrificar o estudo tal, eu não, eu tive essa coisa. O meu pai bancou a faculdade, ele falou: “Eu vou fazer isso”. É aquele negócio, eu também guardava a grana, eu estudava e trabalhava, então não ficava viajando, fazendo um monte de coisa, eu acabava guardando dinheiro, então de uma forma ou de outra uma mão lava a outra. E eu fui trabalhar na prefeitura, na Secretaria da Família e do Bem-estar Social. Eu queria trabalhar na Secretaria do Planejamento. O Marcelo que é esse cara que eu fui pra PUC com ele do colégio, depois outras pessoas do colégio entraram na PUC também. A dona Benedita, por exemplo, que é a mãe do Pedro, entrou na PUC em Sociologia um ano depois. O Pedrão também entrou na PUC dois anos depois em Letras ou Sociologia, não me lembro. Mas enfim, o pessoal do Casimiro de Abreu, alguns foram pra PUC. E eu fui trabalhar na Secretaria da Família e do Bem-Estar Social, eu fui trabalhar no escritório. E a Secretaria da Família e do Bem-Estar Social, como diz o nome, trabalha com o bem-estar social, onde você tinha um monte de assistentes sociais. Aí então foi onde eu, digamos, todo aquele período de dificuldades com as meninas, foi aí que as minhas dificuldades foram totalmente facilitadas. O meu mundo era outro, eu já era Puquiano e aí foi que eu namorei um monte de gente ali. Assistentes sociais foram as minhas namoradas. Pedagoga, assistente social, aí foi. Eu já tinha namorado, mas assim, retomando aquela questão das garotas, era um mundo que só tinha mulher, poucos homens ali dentro. E algumas delas, várias delas eram da PUC. Essa coisa dos discursos muito progressistas que a PUC tinha, tal, as meninas eram muito, garotas de esquerda, que beleza, é isso. Aí eu fui trabalhar na Secretaria da Família e do Bem-Estar Social. Chegou um determinado período, em 86, eu acabei criando uma encrenca com a diretora da Família e do Bem-Estar Social regional. Aí, muito besta da minha parte, quebrar o pau com a diretora eu sendo um mero administrativo, mas assim, o pessoal gostava do Zé Amaral, porque eu, modéstia à parte trabalhava bem, não dava problemas no trabalho administrativo e tal, então tinha alguma coisa de responsabilidade eu também fazia, de documento e bababa. Mas eu bati de frente com a direção. O que ela fez? Ela gentilmente, pra me botar pra fora, me convidou para ir tomar conta de uma creche, pra direção de uma creche. Você fala: “Pô, que legal.”. É, seria legal se não fosse a creche que ela tava me mandando, ela me mandou pra uma creche no meio da favela Cidade Nova que é onde o Fantástico, esse programa da Rede Globo que está fazendo 40 anos agora, pouco tempo antes tinha feito matérias que vira e mexe naquela região da Cidade Nova tinha presunto lá, ou seja, os caras se matavam, tinha uma tradição ali de matadores profissionais que eliminavam as pessoas na região. E a favela da Cidade Nova, favela, porque hoje em dia você tem outros denominações no serviço social. Mas era a favela. Ela me mandou pra ser diretor de creche no meio da Cidade Nova. Era a Cidade Nova, a favela da Vila Maria, a favela Funerária, porque a Funerária Municipal era ali também, tudo a ver. com todo cara sendo apagado ali, mas não era por isso, era uma coincidência só. Esses matadores ali da região ficaram famosos indo pro Fantástico, que como eu falei é uma revista eletrônica que a Rede Globo tem há 40 anos, então é um sucesso de bilheteria. Esses caras foram lideranças na época do presídio do Carandiru, eles foram lideranças de alguns levantes. O Carandiru teve levantes sérios na cidade de São Paulo, tanto que depois foi extinto, hoje em dia não existe mais o presídio do Carandiru. Aliás, o Dráuzio Varela escreveu um livro chamado Estação Carandiru, virou um filme excepcional, muito legal sobre isso. E essas lideranças, algumas eram daquela região, alguns personagens famosos e tal. Eu sei que essa diretora me mandou pra lá porque ela achava que eu ia, como diria a molecada, arregar. Mas eu fui. Eu fiquei um ano e meio na direção dessa creche e foi um trabalho muito legal, muito legal, tanto do ponto de vista de lidar com essa população. Chegar dentro de uma favela, tem uma curiosidade, quando eu cheguei algumas funcionárias que eram da própria favela e eram funcionárias públicas, olha só, da limpeza, eram contratadas pra limpeza. A Damiana, que era uma paraibana ou alagoana, uma nordestina. Ela falou: “Ô seu Zé”, depois ela me chamava de Zé Amaral mesmo. “Vem cá, vou te apresentar a comunidade”. Aí eu saí com ela, eu me lembro disso assim: “Ae pessoal, esse aqui veio ajudar a gente, hein? Ele tá trabalhando na direção da creche”. E todo mundo: “Ah, tudo bem?”. Ou seja, nessa passagem eles me apresentaram pra comunidade pra que evitasse que eu virasse algum alvo porque o negócio era assim, você não entrava na favela se você não fosse identificado, era um problema sério ali. Esse é um dado interessante. Nunca aconteceu nada comigo assim, muito pelo contrário, eles me tratavam super bem. Outra coisa importante, que há um negócio preconceituoso com relação a essa coisa do favelado. Chegava lá às vezes sete horas da manhã por causa da creche, eu não abria a creche porque tinha funcionários que moravam lá e eles abriam e tal, já tinham a chave. Mas eu tinha que chegar cedo, então sete e pouco tal, em determinados dias de escala eu ia cedo. Às vezes eu ia pra abrir e outras vezes eu ia pra fechar. Aí você vê como é que é o negócio com relação ao pobre. O cara é pobre, mas nào é vagabundo, isso é um negócio que precisa ser deixado claro, pobre não é vagabundo e o favelado não é bandido. O cara saía seis e pouco da manhã pra trabalhar e voltava tarde. Quando eu tava saindo, muitas vezes o cara que, quando eu tava chegando o cara saía e quando eu tava saindo o cara tava chegando do trabalho. Então muitas vezes isso acontecia. Por quê? Porque a vida do sujeito é muito dura, o cara não consegue gerar uma poupança mínima pessoal e ele não conseguia sair dali, não era fácil sair. Por isso que você tem tanto essa coisa do sujeito querer melhorar o próprio barraco. Aí tem essa coisa das políticas habitacionais e hoje a Cidade Nova já foi urbanizada e tal, mas as pessoas continuaram ali. Na época tinha um riacho e os caras montaram quase que palafita em cima daquilo, uma coisa horrorosa. O pessoal ralava ali. Então tudo isso, e isso é um aprendizado, ver as pessoas, enfim, conversar com as pessoas, você entender como é que elas conseguem se reproduzir, uma vida dura. Catação de papel, de plástico, que depois virou, tem aí organizações, ONGs que lidam com isso e tal. Eu vi muita gente sobreviver assim já em 1987 ali, cada um por si, entendeu? Catando papel, papelão, garrafa pet, essas coisas assim, e plástico e tudo o mais. Foi um período legal de ver essa criançada. Lidar com criança também é uma coisa muito boa. É muito responsável, todo dia você entra lá com aquela coisa torcendo pra que não aconteça nada porque criança fica doente, cair, dar um rolo filho da mãe, creche é um problema muito sério. Mas foi um período que eu gostei muito de ficar ali. Mesmo porque eu namorei algumas assistentes sociais, inclusive eu encontrei na creche Cidade Nova a professora da creche Cidade Nova virou a minha esposa
P/1 – É? Você encontrou sua esposa lá?
R – Na favela
P/1 – Conheceu ela lá?
R – A Tania, eu conheci a Tania na favela
P/1 – E vocês começaram a namorar
R – É, mas ela foi depois, foi a última, tanto que eu casei com ela . Mas assim, eu cheguei a namorar algumas assistentes sociais, algumas pessoas desse meio, entendeu? E foi isso
P/1 – E por que você saiu de lá?
R – Eu fiquei um ano, 86, 87, um ano e meio. Teve uma grande greve da qual eu participei
PAUSA
P/1 – Por que você saiu da creche, você tava comentando que teve uma greve
R – Isso, em 87, no governo do Jânio aconteceu uma greve. Jânio Quadros, eu vi o Jânio Quadros de perto. Os bilhetes dele são um negócio folclórico, ele publicava os bilhetes no Diário Oficial. Isso é uma coisa que tem, os bilhetes dele são publicados no Diário Oficial, se você for atrás você vai ver algumas coisas. E ele enfrentou uma greve na sua administração, e eu participei da greve. Participei de uma maneira não muito escancarada porque eu era diretor da creche, então eu não podia botar a cara pra bater assim. Mas de todo modo eu incentivei o negócio da greve apesar da gente ter feito, nós não podíamos, na situação da creche em que a gente estava, nós não podíamos fechar a creche porque tava no meio da favela, se você fecha a creche você dificulta a vida de todas aquelas pessoas, ia ser uma encrenca. Fizemos lá uns esquemas de plantão, mas o fato é que eu fui fotografado, e eu sofri um processo administrativo da prefeitura e o João Melão Neto, que era o secretário, um cara conservador assim, um dos intelectuais do Partido Liberal, ele aprontou uma sacanagem comigo. Ele publicou um direito de defesa, eu tinha pouco tempo para fazer e ele publicou isso na sexta-feira, ou seja, até o jornal rodar, o Diário Oficial, e isso tá comprovado, é uma coisa que é só checar lá, eu não tive como fazer o que ele tinha pedido pra recorrer dentro do processo. Eu fui ouvido lá por alguns arguidores da prefeitura, uns camaradas super grossos que me questionaram, enfim, é uma coisa que não era pra julgar exatamente o teu passado porque não foi feito um julgamento tranquilo do tipo: “Ah, você está na prefeitura há não sei quantos anos, vamos ponderar se você vai merecer ou não ser demitido”. Você vai demitido porque você é anti-janista, você é petista, você é comunista, algum ista do gênero, não é janista e você vai ser queimado. Essa era a mensagem que você percebia. E de fato foi, tomei um pé no traseiro e não tive essa oportunidade de defesa, o que me deixou muito louco da vida. Porém, nesse período eu tava começando o relacionamento com a Tania, eu tinha deixado outra situações, comecei um relacionamento com a Tania que ela era professora da creche. E o pai da Tania, o seu Rubens, que é vivo e tal, ele tinha um cargo, ele era um cara que estava envolvido com administração municipal há um bocado de tempo. E é um cara que tinha influencia junto desses grupos, mais de centro-direita como Jânio, Maluf, esses camaradas. Então, quando ela soube que eu tinha sido demitido, como eu falei, tava começando a namorar ela tal, ela falou assim: “Dá um tempo que eu vou perguntar pro meu pai se não tem como recorrer, ele conhecia todo mundo lá dentro”. E o pai dela tava trabalhando nas administrações regionais e tinha um cargo na Prodam, Companhia de Processamento de Dados do Município. Aí ela ligou e ele falou, é aquilo. “Como é que é, foi demitido? Pegou processo?”. Falou um monte na orelha dela: “Pô, esse cara que você vai namorar?”, não sei o que lá. Mas aí, apesar dos pesares , sei lá o que ela falou pra ele, ela deu um jeito lá com o pai e ele, de fato, nos apresentou para o Departamento de Pessoal da Prodam, que a Prodam tava querendo algumas pessoas pra digitar processos e multas nas administrações regionais, ela estava expandindo isso. E aí, peguei um subemprego nesse sentido. Em 86 eu tava formado, tinha acabado de me formar na PUC, quer dizer, um economista que tava na direção de uma creche, você tem toda uma coisa ali, virei um digitador, não era digitador o cargo, mas era uma coisa compatível na Prodam. Quer dizer, de certo modo não fiquei desempregado e fui trabalhar na Prodam. E a Prodam curiosamente pagava melhor os funcionários, a gente teve uns aumentos salariais lá que a minha condição até que não foi ruim, não era uma salarião, mas não era uma coisa. Eu ganhava mais do que os funcionários públicos de modo geral da administração, a não ser os caras que tinham cargo de direção e tudo o mais, e eu fui trabalhar nas administrações regionais da Vila Maria e da Vila Guilherme, pela Prodam. Isso acabou e extinguindo depois, eu fiquei 14 anos na Prodam, pra você ter uma ideia, nessa base. O que foi maravilhoso pra mim porque eu trabalhava um período e estudava, fiz um monte de cursos. Fui estudar Música, fui estudar História da Arte, Astronomia, não Astrologia, Astronomia, no Instituto de Física no Ibirapuera. Fiz quatro cursos de Astronomia lá. Estudei História da Arte no Liceu de Artes e Ofícios. Estudei Música. Quer dizer, fiz vários cursos, várias palestras pela Brasiliense. Fiz o Sentido da Paixão na Funarte, que é um curso maravilhoso de 86. Tinha umas meninas belíssimas lá naquela época, namorei com uma delas
P/1 – Você já não era namorado da...
R – Digamos assim, foi um período que tava pra ir e não foi e enquanto isso eu fui tirando um certo atraso . Nossa, que canalhice! Conhecendo pessoas, o que eu quero dizer é isso, embora elas fossem do sexo feminino. E é isso, foi um período que realmente eu estudei e conheci muita gente. Por quê? Porque a prefeitura tem esse lance. O curso é para o funcionário público, embora o funcionário da Prodam não seja um funcionário público porque você é de uma autarquia tem isso, você está vinculado à prefeitura, todo mundo te olha como funcionário público e você pensa como funcionário público também. Quer dizer, você tem aquele emprego, você faz aquele negócio, você volta lá, bate o cartão, entra, sai, entendeu, não é como uma empresa privada que você tem uma pressão brutal, no caso da universidade ou da Helvétia, ou Banco América do Sul que é um negócio, é outra coisa. É muito mais tranquilo. Eu fazia meu trabalho porque tinha lá um, não tinha com enrolar muito também porque eu atendia público, outra vez tive que atender público, outra vez atendendo multas, mas eu tinha aquilo, tinha que entregar, despachar aquelas coisas, não tinha como ficar deixando. Era legal por causa disso, eu conseguia manter uma organização na minha vida. E foi assim. Eu fiquei na Prodam até quando eu comecei a dar aula na Uninove. Aliás, eu comecei a dar aula em Educação de Adultos num curso que foi montado pela Método Engenharia através de assistentes sociais que eu conheci nessas histórias da PUC e da prefeitura. Eles me convidaram pra dar aula e eu comecei a dar aula assim, de alfabetização de adultos. Por isso que eu adoro Paulo Freire, eu tive contato com a Pedagogia do Oprimido, tal. Maravilhoso Paulo Freire. E é isso, então eu comecei a dar aula e ser incentivado. A Tania foi uma pessoa que me ajudou muito nesse sentido: “Você tem um perfil pra dar aula que é fantástico, blablabal”. E eu acreditei nela e comecei a me interessar por isso, fui fazendo cursos e tal, até que eu tive uma passagem pela São Judas fazendo trabalhos especiais pela universidade. Aí quando eu saí da São Judas por um contato de uma garota que eu tinha conhecido nessa história das parcerias das empresas pra dar aula pra alfabetização de adultos pra operários e tal, eu conheci uma historiadora da USP que era uma técnica do Museu do Ipiranga, a Ana Cristina Guilhoti, e ela me levou pra Uninove. Ela falou: “Vai trabalhar comigo na Uninove, na História”. Eu fui trabalhar na Uninove, e aí que eu comecei a me desinteressar pela prefeitura, pela Prodam. Aí começa a ficar uma coisa muito chata, com a dinâmica da universidade, tal. Então eu acabei trilhando esse caminho profissional e trabalho na Uninove até hoje, estou há 13 pra 14 anos na Uninove. É isso, 14 anos. Eu sou professor do Departamento de Ciências Sociais
P/1 – E aí, quando você casou?
R – Quando eu casei foi em 93, quando eu já era professor da Uninove. Não, tá louco. Eu casei em 1993, não era professor na Uninove ainda. A Tania dava aula na São Judas e eu trabalhava já dando aula nesses esquemas de pegar cursos pra alfabetização de adultos como no caso da Método Engenharia. Fiz vários cursos pra Método Engenharia de alfabetização de adultos, que foi muito legal, e eu me casei com a Tania em 93 e ela era professora na São Judas e estava iniciando o mestrado na PUC, a Tania. E era muito bom assim porque ela ganhava bem. Ela saiu de ser professora daquela creche, pegou um cargo de direção numa creche no Pari, que era o bairro dela quando eu a conheci, e depois ela era diretora de creche no Pari, era professora na São Judas e daí eu dava aula, nós tivemos uma condição financeira boa pra começar o casamento, tal. E eu tive uma sorte muito grande nesse sentido porque como eu falei do meu pai, eu acabei indo morar numa das casas que ele comprou. Quando ele ganhou o cargo de direção contábil lá dentro da Helvétia, obviamente ele teve uma melhor condição de trabalho, ganhou um pouco mais de grana e aí ele comprou casas. Meu pai é proprietário de cinco, seis casas na Vila Guilherme e eu acabei usando uma das casas pra gente morar senão eu tava ferrado
P/1 – Onde você mora até hoje?
R – Não, depois eu acabei mudando, mas teve essa condição. Hoje eu moro numa casa do meu pai porque depois a gente negociou. É aquela história, negociou uma casa para comprar outra, deu uma melhorada. Mas enfim, se não fosse o meu pai nada seria tão simples nesse sentido. As coisas não são simples mas foram facilitadas por ele. Eu tenho muito a agradecer. E essa é a trajetória de trabalho, quando eu caso com ela eu ainda to na Prodam, eu ainda sou funcionário da Prodam e nós temos essa coisa, sem filhos, porque a gente demorou pra ter filhos. O Gabriel vai nascer em 98, nós achávamos que não íamos ter filhos, queríamos, mas tínhamos problemas pra tê-los. Nós fizemos inseminação, a Tania sofreu um bocado assim na mão de médico e estudante. Nós nos inscrevemos no Pérola Byington, que é um trabalho público nesse campo e assim, é complicada a situação da mulher nessa, há uma exposição porque você assina lá que você vai ser meio que uma cobaia na mão dos estudantes, então você vai lá ficar naquela condição toda de inseminação e tá todo mundo estudando, tal. Sei lá, é complicado. Há um sofrimento da expectativa se você ficou ou não grávida. Foi um período duro que a gente teve no casamento, mas a gente se dava bem e tal, e essas outras coisas todas estavam funcionando. Até que ela teve uma gravidez, a gente não sabia que ela tinha tido uma gravidez tubária, ela começou a passar mal, gravidez tubária, acho que esse é o termo que tem. E foi que nós descobrimos, então ela conseguiu ter a gravidez mas ela foi uma gravidez tubária, deu uma encrenca, teve que limpar lá o ambiente todo de útero e tal. Aí o médico falou: “É o seguinte, vamos dar um tempo”. Isso acho que foi em meados do ano, mais ou menos no período como esse que a gente está, caminhando pra setembro, outubro. Mas nessa segunda metade do ano. O médico falou: “Vamos dar um tempo. Vai ter férias agora, é fim de ano, vamos começar a pensar isso pro ano que vem”. Quando a gente começou a pensar nisso pro ano que vem a gente engravidou do Gabriel. E foi o primeiro e um ano depois a gente teve o Tomás
P/1 – O que mudou an sua vida depois que você foi pai?
R – Ah, tudo! Tudo. Mas a gente pensou em adotar, isso foi uma coisa importante, nós pensamos em adotar. Começamos a pensar, vamos fazer, não vamos fazer. Fizemos uns contatos com serviço pessoal, as pessoas falaram que têm entidades pra você fazer e também ouvimos muita gente falando: “Não, dá pra você fazer pela forma mais direta que é pelo câmbio”, tem muita gente largando criança. Então fica-se sabendo pela polícia, um absurdo. Quando você começa a ver. E imagina numa cidade como essa aqui. E fora as histórias que falam: “Não, você pode adotar em outra cidade”. Quando você começa a pensar em adoção você tem muitos canais. A gente ficou nessa, e agora, faz o quê? Afinal de contas é uma adoção, você não está brincando, você está falando de gente, então vamos pensar isso direito, o que vai fazer. Nessa da gente pensar, punft, nasce Gabriel. E foi um negócio extraordinário, Gabriel é o cara. Tá com quase 15 anos. E muda tudo. Pra quem é pai de verdade como eu sou, isso eu posso te dizer, não sei se eu sou bom professor, mas eu sou pai. Isso eu acompanho o cara de limpar a bunda daquele moleque quando ele era pequeno, trocar fralda, e isso com o Tomás também. Tomás veio depois. Tomás, sem Th, em Português mesmo, com acento no a, Tomás. Então é isso, o Gabriel tem quase 15 anos é um adolescente. Meu Deus, é uma loucura isso! A gente pensa que a coisa vai melhorar, não, a coisa vai ficando mais complicada porque o caras vão se tornando mais complicados. É o início da independência, dele querer. É aquela história que eu contei dos 14 anos, ele tá querendo agora sair, viajar, não sei o que lá, sozinho. E até agora eu seguro esse cara, não deixei até agora ele andar de ônibus sozinho. Tenho muito medo, a cidade se tornou muito violenta. Eu sempre penso nessa história que eu contei há pouco de ter ido ver o Tubarão de Steven Spielberg, depois fui ver o E.T., e fui ver não sei o quê, bababa, que fui saindo. Eu acho que a cidade se tornou muito violenta, muito violenta, eu não tenho coragem de largar. Isso é uma fraqueza, outra, da minha parte. Não sei quando eu vou conseguir fazer isso, mas eu sei que de 2013 pra 2014 eu vou ter que fazer isso porque ele vai ter que estudar num colégio, não vou conseguir estar em dois lugares, bilocação como fez o Santo Antonio, não vai dar, eu vou ter que dar um jeito e confiar e engolir e vai fundo porque é assim, vou fazer o quê, vou ficar atrelado a ele quanto tempo? E o Tomás depois quando ele tiver que ir também, os dois, não tem jeito. Então eu sei que vou ter que fazer isso, mas por enquanto, deixa registrado, eles ainda não andaram de ônibus sozinhos . Todas as vezes a gente tenta ir e tal, mas é assim, é uma alegria. Muda tudo. A tua vida, antes você viajava, fazia um monte de coisa, agora, você tem que pensar neles. E nós os colocamos numa escola particular que custa caro pra caramba, um terço do meu salário vai limpo no pagamento da escola, eles estudam no Projeto Vida que é na Casa Verde, é uma escola que tem uma proposta construtivista. É muito caro e assim, eu fico, o que eu faço? Eu to investindo no futuro deles, é isso, o que eu posso fazer é Educação, eu boto dinheiro em cima disso, e isso me aperta pra caramba, isso me deixa assustado. E a Tania não tá trabalhando ainda, é uma coisa que ela precisa pensar na vida, já falei não dá mais pra ela ficar assim, ela vai ter que ir à luta porque não dá. Eu não sei o que vai acontecer, não dá pra deixá-los ir pra uma escola pública agora, infelizmente. Eu estudei em escola pública o tempo inteiro, como eu contei, mas não tem como. A não ser que ele pegue uma Etesp, mas a competição é muito grande e eu sei que a Etesp não é só ir pra Etesp, você precisa pegar uma boa
P/1 – Bom José, acho que a gente pode começar falando assim, desse seu ingresso na vida acadêmica, você como professor universitário
R – Uma coisa que eu tava lembrando, eu falei a Rua Major Dutra, ela não existe. Quando eu falei do endereço da minha mãe, é Major Diogo, e a minha mãe morava na Manuel Dutra. Porque a Rua Major Diogo no final, ali perto da Brigadeiro, eu troquei o nome da rua, é Manuel Dutra a rua onde ela viveu, passou a infância toda, na Bela Vista. A Dona Odette e o meu avô, o senhor Merciano. Mas assim, a minha carreira acadêmica é uma coisa muito importante na minha vida porque eu estou nela até hoje. Eu trabalhava na Prefeitura do Município de São Paulo até 86 quando aconteceu uma grande greve, eu participei da greve e fui demitido. E a Tania, que na época era minha namorada, eu já tinha começado a namorar com ela, naquela época ela conseguiu dar um jeito de pedir ajuda pro pai dela que trabalhava na prefeitura, estava lá dentro e tal e ela conseguiu. Eles estavam precisando de gente pra trabalhar na Prodam e eu fui trabalhar na Prodam. Trabalhando na Prodam, eu fiquei lá durante um tempo, mas essa coisa de serviço burocrático, eu sempre gostei muito de ler e tal. Eu fiz uma pós-graduação na virada dos anos 80 pros anos 90, me formei em Economia da PUC que foi uma coisa importantíssima, eu já falei. Daí eu estudei na Escola de Sociologia e Política. E da Escola de Sociologia e Política, onde eu fiz a pós-graduação, eu tentei ir pra PUC e começar a fazer mestrado lá na área de sociais. Aí ficou uma situação meio complicada porque eu precisava de bolsa porque pra pagar a pós ali era caro. Quer dizer, eu sempre achei que eu pudesse ter espaço no mundo acadêmico porque, como eu disse, eu gosto muito de estudar, sempre gostei muito de estudar, fui incentivado pelos meus pais a ler, a estudar. Apesar deles não terem aprofundado o ensino, eles sempre tiveram isso como uma coisa muito importante. Aí, eu fui trabalhar nesse período, acabei trabalhando como Professor de Educação de Adultos, com a Tania, onde eu conheci uma garota que era professora universitária e ela era técnica do Museu do Ipiranga, a Ana Cristina. Enfim, foi um contato. Isso foi durante os anos 90. Em 93 eu casei com a Tania e não comecei a trabalhar no mundo acadêmico porque aconteceu uma coisa, na PUC eu tava batalhando a bolsa mas tava difícil pra arrumar bolsa pro mestrado, então eu falei, eu vou ter que parar porque tá ficando muito caro. E pra não ficar triste eu falei, vou ter que fazer uma coisa pra ocupar meu espaço e uma coisa que eu tava querendo muito fazer, já que eu não ia conseguir fazer o mestrado naquele momento, então eu resolvi prestar um concurso e entrar na Universidade Livre de Música pra estudar Música. E eu entrei, foi uma coisa muito legal porque eu fiquei chateado de ter que parar o mestrado, essa coisa do mundo acadêmico, então eu parei e fui estudar música na ULM. E fui estudar clarineta. Lá eu fiquei três anos estudando clarineta com o maestro Portinho e estudei com Roberto Bomilcar, que é pianista
P/1 – Mas você já tinha essa ligação com a música?
R – Então, desde pequeno eu adoro música. A minha mãe e meu pai sempre tiveram rádios ligados em casa, sempre essa coisa. O que eu não tinha era facilidade pra ter discos a princípio, mas à medida que eu cresci recebendo salários. Um dos primeiros salários eu me lembro assim, eu comprei um Transglobe, eu adoro rádio, isso é uma coisa importante também, eu comprei um Transglobe que era um rádio da Philco que tinha várias faixas de ondas curtas e frequência modulada. Essa coisa de buscar rádios em FM e tudo o mais. Eu comecei a aprender um pouco de violão enquanto eu era adolescente, mas era meio largado, na adolescência eu sempre gostei de música, mas essa coisa sistemática de pegar o instrumento e estudar eu não tinha essa organização, essa disciplina. E isso foi uma bobagem porque depois, aí é que tá, você fala, eu devia ter feito isso melhor. Quando chegou em 1993, no ano do meu casamento, foi que eu acabei resolvendo fazer essa coisa da ULM e eu comecei a estudar pra valer, aí eu estudei música mesmo, me dediquei. Tinha casado, trabalhava na prefeitura, a Tania trabalhava também como professora na São Judas, a gente não tinha filhos, então tinha uma condição de vida razoavelmente tranquila com dois salários ali e tal, então eu peguei a ULM. Tudo o que queria fazer na ULM eu fiz, eu estudei canto coral com a Magali, a gente tinha um grupo coral de mantras com o Waltel Branco, que foi um nome importante da época da Bossa Nova como arranjador, violonista e tal. Fiz o coral de jazz com o Bomilcar. Com o Bomilcar toquei na Sinfoneta de Sopros dele, também ali na ULM. Já tinha feito um tempo atrás um coral no Centro Cultura Vergueiro, tinha um coral bem interessante com o Joaquim Paulo Espírito Santo, que também é pianista e tal. Então eu vim desenvolvendo essa coisa com a música de forma mais intensa depois de adulto. Quando eu era moleque eu gostava de música, mas é como eu disse, a disciplina pra música não era muito grande e a música exige isso porque ou você estuda ou o instrumento reclama com você, não é verdade? Você tem que pegar, o instrumento exige essa dedicação. E quando eu era moleque eu não tinha muito isso, mas depois eu acabei conseguindo arrumar um tempo e me dediquei. Tanto que com um ano e meio, dois anos, eu cheguei a tocar na orquestra com o Bomilcar no palco do Masp, tocamos Mozart, por exemplo, foi uma coisa muito bonita. Então essa coisa da música, ela se intensificou pra mim durante os anos 90 e foi num período em que eu estava pensando também em dar aula. Quando morreu o maestro Portinho, que era meu professor de clarinete, aí acabei saindo da ULM porque começaram a pintar essas coisas de escola. Então, eu fui estudar na São Judas pra fazer um curso pra me preparar como professor de ensino técnico, fiz o curso lá durante dois anos, foi uma coisa bem interessante também, aí foi uma bolsa que a Tania conseguiu descolar pra mim ali e aí eu comecei a trabalhar com o ensino técnico. E aquela moça que eu disse, chamada Ana Cristina, estava dando aula na Uninove. E em 98 ela me perguntou se eu não queria dar aula na Uninove: “Opa, beleza, vamos nessa”. Porque eu tinha trabalhado também com alfabetização de adultos durante alguns anos, foi quando nós a conhecemos, tal, e ela me convidou pra dar aula na Uninove. Eu entrei em 98 na Uninove, exatamente no ano que nasceu o Gabriel, meu primeiro filho, o que ajudou muito porque aí a minha vida mudou completamente, quando você tem filhos o impacto é brutal. E eu comecei a carreira acadêmica nesse momento. Eu ainda fiquei na Prodam durante um tempo, mas cada vez mais ficava incompatível porque perguntavam se eu não queria pegar um número maior de aulas e a Prodam muito burocrática. Com o tempo eu acabei abrindo mão daquilo, ainda mais quando eu resolvi fazer mestrado, acabei fazendo mestrado em Políticas de Educação. Chegou uma hora que não tava mais dando pra ficar com a prefeitura, então eu fiquei com a Uninove, fiquei fazendo os estudos de mestrado e, cada vez mais, acumulando aulas. E desde então eu mantive a carreira acadêmica, quer dizer, eu continuo sendo professor universitário. Mas aí aconteceram algumas coisas interessantes. Quando eu cheguei na Uninove, a Uninove ainda era uma escola relativamente pequena e ela estava bastante vinculada ao bairro da Vila Maria. E exatamente no momento que eu cheguei foi quando aconteceu o boom das universidades, e exatamente a Uninove foi uma protagonista nessa história toda, esse fenômeno de faculdades que proliferaram. Então, a Uninove passou a ter campus em vários locais na cidade, o número de alunos aumentou que foi uma coisa brutal, e as exigências assim, os pedidos pra se trabalhar dentro da Uninove aumentaram também. Eu acabei dando aula nas várias administrações porque eu peguei aulas de Economia e de Sociologia, são duas matérias que são muito utilizadas pra diversas faculdades. Então acabei dando aula na Admistração de Empresa, Comércio Exterior, Contabilidade. Dei aula pra Nutrição também na aula de Sociologia. Dei aula pra Informática no curso de Ciência da Computação porque eles também tinham Sociologia e Economia. Dei aula no Direito um bom tempo, dei aula no Serviço Social. E o curso que eu mais fiquei, estou até hoje, é o curso de Jornalismo. E o curso de Jornalismo pra mim foi especialmente importante. Por quê? Porque é como eu falei, eu gosto muito de rádio, já devo ter falado isso. Jornal pra mim é uma coisa que desde pequenininho está muito presente na minha vida e rádio então, pelo amor de Deus, por causa dos meus pais e tal. E dando aula no curso de Jornalismo é inevitável, os professores, vários são jornalistas mesmo e os alunos, muitos deles, já militam na área, no rádio, alguns na televisão e nos impressos. E aí, papo vai, papo vem, eu acabei recebendo convites pra escrever em jornais e tal. Então em 2003, 2004, eu já tinha feito meu mestrado, nessa coisa de dar aula, tal, acabei tendo um convite pra escrever pra um jornal chamado Jornal Cantareira, que era um jornal que tinha uma parceria de uma associação de bairro que existe até hoje na região da Brasilândia, que tem um trabalho social muito intenso ali. O jornal tinha participação de professores da PUC e eles me convidaram pra escrever nesse jornal, o que me deixou muito contente. Eu escrevo até hoje pra eles, isso foi em 2004, pros movimentos sociais. Isso me deixa muito contente com o trabalho lá na associação da Cantareira. Depois eu tive um convite pra escrever pro Jornal Mundo Lusíada, que eu escrevo até hoje também, escrevendo há quase sete anos pra ele, é um jornal pra comunidade portuguesa. Isso foi uma coincidência porque embora eu seja filho de português, minha mãe nasceu aqui, mas são primos, já contei essa passagem, minha família toda é portuguesa da Beira Alta, da Guarda. E coincidentemente uma garota que foi minha aluna, ela era filha do dono do Jornal Mundo Lusíada, estava estudando Jornalismo e ela acabou me convidando, ela gostava das aulas. Eu dava aula de Política e de Economia pra classe dela. Ela gostava das aulas e acabou me convidando pra escrever pro jornal, e desde então eu escrevo no jornal
P/1 – Você escreve sobre o quê?
R – Então, é uma coisa fascinante porque como eu dei aula pra ela de Economia e Política, ela pediu para que eu escrevesse sobre Economia, Política e Sociedade. E de fato, eu escrevo sobre Economia, Política e Sociedade. Ela me colocou no que a gente chama de jornal online, que é o da internet, e ele tem um impresso também. E é muito interessante porque de vez em quando eu faço umas pesquisas na internet, as pessoas falam: “Ah, mas será que você lê”. Essa coisa da internet é fantástico assim porque eu já vi os meus artigos sendo citados em dissertação de mestrado, já vi artigos que eu escrevi sendo... Existe um órgão no congresso que faz clipping de jornal. Eu já vi artigos que foram selecionados pra passar pros congressistas, através de entidades sindicais e tal. Então assim, você começa a perceber que, eu tive um artigo publicado um ou dois anos atrás no Jornal do Conselho Indigenista Missionário, por exemplo, quer dizer, os caras leem. Você acha que ninguém tá vendo, mas é um equívoco, por isso que você tem que ser muito responsável pelo que você está falando, é sempre fundamental ter o texto e tal, e você começa a ter reprodução de artigos. Depois disso, em 2004 mais ou menos. Então estava escrevendo já pro Jornal Cantareira, comecei a escrever pro Mundo Lusíada. Uma coisa importantíssima que aconteceu nesse período foi o nascimento do Tomás, meu segundo filho. O Gabriel é de 98, o Tomás é de 2000, eles tem um ano e pouquinho de diferença, aí então eu tava dedicado à carreira acadêmica e começaram acontecer essas coisas de escrever. Em 2005, 2006 eu escrevi para um site da Uol. Uol é um portal e eu escrevi para um pessoal que era do Rio de Janeiro, chamado Ziriguidum, que falava sobre música, foi a primeira vez que eu pude escrever especialmente sobre música. E foi um negócio muito... O Ziriguidum existe até hoje, eles cresceram muito, hoje têm patrocínio da Petrobrás, da Biscoito Fino, que é uma gravadora do Rio. Na época era uma coisa mais duro, o dono do negócio. A ideia era exatamente falar sobre música popular brasileira. E eu fiz muitos artigos pra eles, assim, escrevendo sobre biografia de músicos brasileiros. E pelo menos cinco vezes eu fui capa da Uol, que acho que é o maior portal que tem aqui, pelo menos era. O Uol tá vinculado à Folha de São Paulo. É uma coisa muito grande na internet. Eu pelo menos estive em cinco capaz, uma delas foi sobre a Carmen Miranda quando fez 90 anos do falecimento dela. Sobre o Secos e Molhados que é uma banda maravilhosa de 73, 74. Foi uma coisa surpreendente. O Secos & Molhados foi um fenômeno, mas eu não sabia que tinha tanta gente que gostava de Secos & Molhados em 2005. Eu gostava muito. Rapaz, eu quase furei o disco do Secos & Molhados, primeiro disco que tem Sangue Latino, o Vira, quase que furei aquilo. Eu sabia assim, botava aquele LP pra tocar, um LP da Continental, botava aquele negócio pra tocar, assim, você podia fazer um teste comigo que cada acorde inicial eu sabia qual é a música porque eu decorei aquilo, foi um disco muito importante. E eu vi que um monte de gente curtia ainda o Secos & Molhados assim, até hoje. Até 2005, 2006 muita gente acessando. Eu escrevi sobre Aracy de Almeida, sobre Os Demônios da Garoa, sobre Severino Araújo, Beto Guedes, escrevi sobre muita gente, muita gente e foi muito bom, foi um período muito legal. Mas aí a coisa do trabalho também começou a pegar e eu acabei parando um pouco de fazer esse negócio e comecei a me dedicar muito mais a esse outro lado das questões sociais por causa de cursos paralelos, palestras etc. Mas a música jamais abandonei, pelo contrário. Então eu passei pelo Ziriguidum, depois acabei não escrevendo mais. Outra coisa importante que aconteceu também, quando eu tava fazendo a dissertação de mestrado, isso em 2002, mais ou menos, eu tive a oportunidade de publicar um primeiro livro, e foi um livro sobre memórias. A Vila Guilherme que é onde eu moro desde os meus sete, oito anos de idade, como eu já falei. Sete, oito anos de idade sim, porque meu irmão Mauro nasceu, eu estava ainda na Rua Paulo Andriguetti, ele nasceu, com sete, oito anos a gente foi pra Vila Guilherme. É, eu vi a Copa de 70 na Vila Guilherme, é isso aí, por volta dos oito anos eu já estava na Vila Guilherme. To com 51, já viu estou há um certo tempo ali na vila. E a dona Benedita, que é uma pessoa que eu acredito que eu já tenha falado sobre ela. Eu estudei com ela no colégio, ela era mãe de um grande amigo meu, do Pedro, do Rui, da Rosa e tal e ela estudava na classe com o filho e eu, quer dizer, ela já tinha uma certa idade, o filho dela era mais velho do que eu, eu devia ter uns 16 anos na época, o Pedro devia estar com uns 18, e ela estudando conosco, então você imagina, já era uma senhora. Uma senhora. E ela foi pra PUC, aquela classe, eu tinha uma classe muito boa, as pessoas saíram da classe e boa parte deles pegaram faculdade, isso em 79 pra 80. E a dona Benedita por volta de 81, 82, acho que foi mais ou menos isso, ela foi pra PUC, conseguiu entrar na PUC e foi fazer Sociologia. E ela sempre foi muito devota, tal. E lá na Vila existe uma igreja que é a Igreja de São Sebastião, que é um marco assim do bairro porque o Guilherme, a Vila Guilherme era a Vila do Guilherme, o Guilher Praun, que era um carioca que veio pra São Paulo no início do século e era devoto de São Sebastião porque ele nasceu no dia de São Sebastião. Então tem lá, no meio da Joaquina Ramalho, que é uma avenida importante que sai da marginal, da Ponte da Vila Guilherme. Na década de 20 ele botou uma igreja naquele lugar e a avenida passou, a igreja faz a avenida abraçá-la. E ela tá lá. Num momento pensaram até em tirar, isso no início das obras, e a igreja tá lá e é um marco pro bairro. A dona Benedita morava ali durante muito tempo e era devota, frequentando a igreja, fazendo Sociologia, tal. Pediram pra ela escrever a memória da paróquia, e ela me contou essa história, isso na virada do milênio, de 99 pra 2000, foi um período agitado, você vê essa coisa acadêmica, pós-graduação, não sei o quê. Ela chegou pra mim e falou: “Olha, você não tá a fim de ajudar a fazer essa pesquisa?” Eu falei: “Ó, dona Benê”, eu a chamo assim, “dona Benê, vamos fazer uma coisa mais amplicada, ao invés de falar só sobre a paróquia vamos falar sobre o bairro porque não tem nada”. Os bairros de São Paulo do lado de lá do Tietê, lado norte do Tietê, eles ficaram durante muito tempo afastados dessa coisa do progresso da cidade. Se você sair procurando livros sobre os bairros, agora, a gente está em 2013, então algumas coisas aconteceram, já tem mais memórias e tal. Mas naquela época, eu percebi que havia uma ausência de documentação. Tinha um livro sobre bairros da zona norte que foram publicados pela prefeitura como concurso, mas da zona norte bem poucos foram contemplados. Aí eu falei pra ela, e ela falou: “Beleza, vamos nessa”. Tava dentro do objetivo das memórias, que ela queria fazer uma coisa de memórias, eu achei bárbaro aquilo e comecei a colaborar com o livro. Então, o livro que ia ser sobre a paróquia acabou sendo um livro sobre o bairro. E foi muito interessante, a gente fez mais de cem entrevistas com pessoas antigas do bairro. E durante a batalha da publicação é terrível, algumas pessoas acabaram falecendo naquele período. O que é inacreditável, foi duro publicar o livro. Inclusive a gente tentou a Associação Comercial do bairro, as associações de bairro e tal, eles não toparam bancar a publicação. Só depois que a gente falou com o Toninho Macedo, que é da Abaçaí, e com o Geraldo Nunes da Rádio Eldorado; ele tinha um programa chamado “São Paulo de todos os tempos” naquele período, um programa bárbaro que fazia isso, contava histórias da cidade, fazia entrevistas com as pessoas. Era um programa que acontecia de sábado à noite. Eu ouvia, achava aquele negócio muito legal. E nós levamos a proposta pra ele e a gente fez o programa e depois disso ai facilitou um pouco a coisa e o livro foi publicado pela Câmara de Cultura da Zona Norte com verba, se não me falha a memória, da Telefônica. Então a gente conseguiu publicar o livro, foram, acho, que mil exemplares. E aí é que tá, é engraçado isso, até hoje eu recebo pedidos pra ver se não tem o livro de memórias do bairro. Qual era o objetivo? A gente acabou colocando os livros, aqueles que ficaram conosco, a gente fez uma parceria lá, teve que dividir a publicação, complicado. Ficamos com alguns livros. A dona Benedita ficou com alguns, eu fiquei com alguns e eu passei os meus livros pras bibliotecas públicas, pras escolas. Eu levei o livro pras escolas do bairro e eu achei muito importante, me senti muito bem assim, como cidadania, entendeu? Quando eu pude fazer isso. E eu acredito que a dona Benedita também tenha ficado muito contente porque foi um trabalho bonito da memória, estamos aqui exatamente fazendo isso, gravando a memória das pessoas. E foi muito legal. O livro acabou sendo publicado em 2002. Então você vê que acontecem muitas coisas nessa passagem pra mim, que é o nascimento do Gabriel em 98, começou a dar aula em 98. Nesse período de 2002 acontece o Fórum Social Mundial de Porto Alegre e o Alcinei, que era um camarada que estudou comigo na PUC, trabalhava no Dieese, ele era amigo da Silvia também, uma grande pessoa, uma menina do Serviço Social, gente boníssima, eu morava perto dele, essas coisas acabaram nos aproximando. E em 2002 o Alcinei me convidou pra escrever também um livro sobre as cotas, quer dizer, o nosso trabalho foi um pedido do Inspir, que é uma entidade que estava batalhando pelas cotas naquele momento. Hoje já é uma realidade de políticas públicas, cotas pra negros, naquele momento foi um momento de batalha ainda pra que elas acontecessem e tal. Isso é uma coisa também que me deixa muito contente, nós escrevemos um pequeno livro que acabou sendo publicado e ele era pra ser levado pro Segundo Fórum Social Mundial e acabou não dando pra ser publicado. Não, ele acabou indo pro Fórum Social, ele ia pra Durban, onde tinha um fórum naquele momento aí teve um problema de verba. Eu sei que ele acabou sendo lançado no Fórum Social Mundial. E o livro acabou subsidiando um pouco essa discussão das cotas, quer dizer, ele foi um documento dessa entidade que está vinculada ao movimento negro e aos sindicatos, porque o Alcinei estava vinculado ao Dieese, ele era um técnico do Dieese, então ele me propôs escrever com ele esse livro. E o Marcelo Paixão da Federal do Rio de Janeiro que é um nome importante nessa luta pelo movimento negro, um professor de lá, colaborou com o livro também. O livro saiu e isso me deixa muito contente. É um livro exatamente falando sobre essa questão da compensação histórica pelos negros terem sido escravos etc etc e a sociedade brasileira precisa de uma forma, fazer uma reparação. E eu fico também muito contente com isso, naquele momento ter colaborado de alguma maneira, é uma gota d’água no oceano, mas está lá o nosso trabalho ajudando a fazer essa discussão sobre a reparação pros negros, e que depois acabou ajudando também nessa coisa das cotas. Ajudando nesse sentido, foi um trabalho que ajudou o debate, e que foi pro Fórum Social. Eu acabei não indo porque não tinha condições de sair, não tive liberação de universidade, mas o Alcinei foi. Eu falei: “Pô, legal, a gente ralou, ralei mais do que você”. Ele me fez o convite, escrevi mais do que ele, porque ele botou umas tabelas do Dieese lá e ele acabou indo pro Fórum Social, eu queria ter ido pra Porto Alegre. E foi muito legal, o Alcinei hoje está na Petrobrás, ele foi pro Rio de Janeiro. Ele morava na Vila Guilherme e foi morar no Rio de Janeiro, grande Alcinei. E aí é isso. Então escrever foi uma coisa que aconteceu bastante, e esse foi o meu primeiro livro de memórias, esse livro: “São Sebastião e a Vila Guilherme. Memórias Paulistanas da Zona Norte”. Aí veio esse livro de reparações, pedindo políticas públicas para reparações à condição dos negros. E eu tive a minha dissertação de mestrado, também em 2002, e agora, no ano de 2009, eu resolvi escrever um livro de memórias sobre os Chorões de São Paulo, que tá vinculado a essa questão toda das memórias e da música, e das Ciências Sociais. Por quê? Porque tá tudo junto. Vê se pode, o Choro tem 150 anos, calcula-se assim. Coloca-se como a data de criação do choro 1870 por causa do Antonio Calado, o Choro do Calado e tal. É uma data simbólica. São Paulo, com 150 anos de Choro não tinha um livro sobre o Choro escrito aqui. A meia dúzia de livros de Choro escritos eles são, evidentemente, baseados no Rio de Janeiro, com foco no Rio de Janeiro. Então, eu frequentando Rodas de Choro desde 95, 96. O seu Valdomiro que era um funcionário da prefeitura, eu trabalhava na prefeitura antes de ir pra Uninove e tal, o seu Valdomiro era um cara muito legal. Um senhor sindicalista, a gente discutia muito, ele gostava muito de falar sobre política e tal. Ele chegou pra mim e falou: “Zé, você precisa ir a uma Roda de Choro. Eu vou numa Roda de Choro lá na Del Vecchio”, eu conhecia a Del Vecchio pelos instrumentos musicais, que é uma fábrica de violão, cavaquinho, de instrumentos de corda, bandolim, já antiga aqui em São Paulo. E eu não sabia, tinha uma Roda de Choro que acontecia todo sábado lá. Ele ia nessa Roda de Choro e falou: “Você vai ter que ir”. Teve um dia que acabou dando certo, num sábado, e nós fomos. E aquilo foi uma preciosidade. Eu cheguei lá, eu me lembro assim, a Del Vecchio tá na Rua Aurora, que tá ali no meio do burburinho da Santa Ifigênia que tem um centro eletroeletrônico, e tem lá loja de música. E eu cheguei lá, uma negócio sensacional. Eu vi Rago tocando, o Rago foi um grande nome do rádio em São Paulo, ele tinha um conjunto que foi dos grupos mais importantes da história do rádio em São Paulo de todos os tempos. E eu vi o Rago, já um senhor de idade, tocando num violão elétrico Choros, Sambas Canção, Valsas, e ele ia tocando, tinha uma roda assim. Chegando lá nove horas da manhã na Del Vecchio, a loja tinha uma entrada, não era muito ampla mas era relativamente, facilitava a circulação porque o comerciante não ia deixar fazer uma roda de choro sem ter a circulação do comércio ali. . Então tinha a Roda de Choro e dava pra você entrar na loja e fazer compra. E aí, depois que ele tocava entrava os Chorões. Ele fazia muita coisa sozinho e quando ele gostava de um cantor ou outro, ou um músico ou outro, ele deixava dividir o palco ali entre eles. Ele tocava, quando chega umas dez, dez e pouco ele falava: “Bom, agora chega”. Ele levantava, saía e entravam os Chorões e fazia-se realmente uma Roda de Choro ali. E aí foi uma beleza. Eu me lembro do Danilo Brito, hoje ele é um cara premiado, faz excursões pros Estados Unidos, vira e mexe ele vai pros Estados Unidos fazer apresentações porque nos Estados Unidos existe um festival de bandolins, que eles chamam de mandolim, o Danilo Brito vai pra lá fazer workshops e tal. Eu lembro de ver o Danilo de calça curta, um moleque de dez, 11 anos de idade tocando com o Baloi e tal. Um negócio extraordinário, ver aqueles músicos antigos e com alguns garotos, alguns rapazes ali tocando que mostrava que o Choro não é uma música de ancião, de velho, não é uma música de museu, tem uma coisa viva ainda, apesar dele estar oculto da mídia. E tinha uma coisa assim sensacional que acontecia ali, a Del Vecchio chegava meio-dia, uma hora da tarde, ela fechava a porta no sábado. E o povo saía de lá, parecia uma procissão, saía da Rua Aurora e ia pra General Osório onde tem a Contemporânea. E A Contemporânea tinha uma outra Roda de Choro, então os caras saíam daqui, iam andando, conversando, tal, ia para na Roda de Choro da Contemporânea, e lá o seu Miguel deixava a roda correr até duas e tanto, tal. E era muito engraçado isso, era uma coisa muito curiosa, eu comento isso com o pessoal. Agora não acontece mais porque a Del Vecchio, ela existe, mas não tem mais a Roda de Choro. O Rago morreu, e eles diminuíram também a entrada lá, acho que os negócios ficaram mais difíceis e eles dividiram o prédio lá, a loja ficou mais estreita e tal. Mas a Contemporânea continua, a roda da Contemporânea continua lá firme e forte. E provavelmente é a Roda de Choro mais importante, mais tradicional de São Paulo, pelos anos que ela já existe e pela fluência das pessoas, pela frequência das pessoas. Esse pedaço da Santa Ifigênia que, como eu falei é uma região de eletroeletrônicos, é um lugar que o Jacob do Bandolim vinha pra São Paulo e ele ia nessa loja, na Del Vecchio, porque ela é muito antiga. A Contemporânea já é do final dos anos 50, início dos anos 60, se não me falha a memória. E os músicos do Rio vêm muito aqui. Lupicínio Rodrigues, por exemplo, chegou a ir na Contemporânea
P/1 – Mas isso tudo foi te despertando pra escrever
R – Exatamente, esse universo, essas histórias todas que as pessoas contavam, essa coisa do povo sair andando de uma pra ir pra outra eu falei: “Isso tinha que ter um trabalho antropológico”. Porque o povo ia pra lá cedo, de sábado, ia bater cartão na loja pra ir pra roda de choro de serestas. Fazer esse itinerário, tal. E isso me chamou exatamente a atenção, de novo, a questão da memória. Da mesma maneira como tinha acontecido lá na Vila Guilherme, e eu me preocupei porque precisaria ser registrado isso. E eu comecei a frequentar essas rodas e comecei a perceber que algumas pessoas começaram a falecer, dos frequentadores e dos músicos. E o que me deu assim o ponto de definição pra fazer o livro, chama Chorando na Garoa, Memórias Musicais de São Paulo, foi exatamente a morte do seu Miguel, que é o dono da Contemporânea. Ele aparentemente era uma pessoa que tinha saúde e subitamente ele passou mal, ficou mal e pá, morreu. Aí eu comentei com a Tania: “Olha, a gente precisa fazer alguma coisa porque não tem nada registrado desse pessoal”. E aí foi que botei mãos a obra. Juntei essa coisa que eu gosto muito de ler, então eu tinha vários livros de música popular brasileira e tal, e eu resolvi escrever um livro sobre memórias desses músicos, desses frequentadores e tal. Por que dos frequentadores também e não só dos músicos? Porque o músico toca pro público, tocar sozinho só pra músico é uma coisa muito, você tem que ter as pessoas que contam as histórias, que vão lá pra te aplaudir e tal. E o livro tem essa característica, ele tem 43, 44 depoimentos de pessoas, a maior parte são músicos, mas também tem jornalista, frequentadores das rodas e tal. E também é aquele negócio, eu fico muito feliz em ter feito esse trabalho porque não tem nada igual nesse sentido publicado. E como eu tava dizendo, do Choro, você tem uma meia dúzia de livros que foram feitos e são livros que são baseados especialmente no Rio de Janeiro porque, segundo a história oficial, nasce ali no Rio de Janeiro e tal. E a gente tem esse trabalho agora mostrando o Choro de São Paulo. O que há em termos de publicação são alguns livros de biografia, mas não é sobre o Choro como um todo, você tem um livro sobre o Garoto, sobre o Armandinho Neves, o Nabor Pires de Camargo, mas é pouca coisa, é pouca coisa, pela importância dos músicos de São Paulo
P/1 – Mas e aí? Esse livro, qual era o público, quem que comprou? Qual editora?
R – Não comprou, estão comprando. Aí é que está o problema todo. Pra se publicar um livro hoje em dia não é tão difícil pelos recursos eletrônicos que você tem, fazer o livro em si não é tão difícil, mas o problema é você fazer a distribuição do livro. Então eu fiz, tentei entrar pela Lei Rouanet, conseguimos entrar na Lei Rouanet, que não é uma coisa muito fácil pra você ser aceito para entrar na Lei Rouanet, você tem que ter toda uma burocracia pra passar por eles. Entramos. Aí achei que tava resolvido, mas que nada, bobagem. Porque a partir daí você fica apenas apto a receber o ok das empresas que se interessarem pelo seu trabalho pra eles terem isenção de impostos. Mas aí você vai competir com outros produtos, e você falar sobre o Choro e propor palestras sobre música popular brasileira, sobre Choro e tal, as empresas, muito legal, muito tapinha nas costas. Ganhei inúmeros elogios pelo projeto mas eu não consegui, em dois anos, captar recurso pra fazer isso. Por mais relevante que fosse, e várias editoras falavam: “Ó, se você trouxer dinheiro a gente publica”. Editoras acadêmicas inclusive, e o livro não é um livro acadêmico, não tem esse propósito de ser um livro com rigor acadêmico. Mas ele tem o rigor de respeitar o que as pessoas falaram, a reprodução que deu um trabalho violento que é exatamente você reproduzir o que as pessoas falaram, escrever o que ela fala, você faz ali o texto. Enfim, então qual a saída pra essa situação que eu me meti? Foi bancar o livro numa produção independente. Então eu peguei um selo que faz esse tipo de trabalho, escolhi esse selo porque eles fazem a distribuição pela Livraria Cultura. O livro ficou com 530 páginas e as livrarias parece, pelo que eu entendi, cobram muito caro para fazer esse trabalho, então o livro ficou custando 90 reais pra sair na Livraria Cultura e isso eu percebi que tem muita gente, porque o livro tá fazendo quatro, cinco meses agora que ele existe fisicamente. E toda semana, essa semana mesmo, anteontem, teve uma professora de Música, então ela falou: “Pô, 90 reais é muito caro, apesar do livro ter 530 páginas, a importância”. Mas é caro, e é assim mesmo que acontece porque a editora põe o valor dela e a livraria põe mais um pouco o valor dela e resta para o autor? 10% dessa brincadeira toda. Mas assim, o meu objetivo, de novo, é fazer com que o livro chegue às bibliotecas públicas. E hoje, nesse momento solene, a gente entrou em negociação com a prefeitura. Por quê? Porque o livro começou a circular, referente especificamente à pergunta que você fez, ele começou a ter aceitação assim, de modo geral, pro público tanto de músicos, que eu achei que músico não fosse muito a fim de ler, mas tem muita rapaziada que quer ler, então, eu comecei a fazer compras do livro através da própria gráfica pra poder fazer o livro com abatimento dando 30% de desconto para as pessoas e o livro começou a sair. E aí então, por exemplo, o Tomás que é o meu menino mais novo, ele está estudando na Escola Municipal de Música, até um ano e pouco ele fez uma ópera no centenário do Teatro Municipal ele participou de uma obra do Ravel, foi pro palco o Tomás. Ele tá estudando piano, a professora Margarida Ficuda é professora dele de piano, a professora Alcione é professora de Teoria Musical e elas compraram os livros. E aí outras pessoas, que são estudantes lá da Municipal, compraram o livro também. Eu voltei pra Universidade Livre de Música, pra ULM, agora neste ano, coincidentemente, enquanto eu tava nesse processo da batalha pelo livro, hoje chama Emesp, Escola de Música do Estado de São Paulo Tom Jobim, não é mais ULM, Universidade Livre de Música. Mas aí, eu fui pra fazer canto coral. Acabamos de fazer uma ópera, Treemonisha, na Sala São Paulo e agora estamos estudando pra fazer uma outra ópera, rock agora, Tommy, do The Who que vai pro Memorial da América Latina. Essas pessoas, professores e tal, a Mônica Giardini que é a maestrina da banda sinfônica jovem também ficou com um livro. Então o livro começou a circular entre colegas, professores, maestros e ele foi parar na Escola Municipal de Música, você tem o Teatro Municipal, que a Fundação do Teatro é ali. O livro foi parar nas mãos da Aline, que é a diretora de um departamento de produção da Fundação e a Fundação cismou de publicar o livro. Então eu estou sabendo disso agora, é uma notícia recentíssima, é praticamente certo que a Fundação do Teatro Municipal vai publicar o livro. Isso me deixa extremamente feliz porque não vou ganhar nada disso do ponto de vista financeiro, que as pessoas falam: “Olha, vai ganhar”. Não. O meu grande objetivo, como no livro do São Sebastião e a Vila Guilherme, é por os livros na biblioteca pública pra que as pessoas possam ter acesso, mais ou menos como o trabalho do Museu da Pessoa, quer dizer, você possa acessar os depoimentos. Porque pra que é esse trabalho? Esse trabalho é um trabalho pra ficar como documentação e as pessoas possam ler a história desses músicos, desses frequentadores dessa cultura do Choro, tem muita rapaziada tocando e tal. Então o livro tem um primeiro momento que é um livro de bibliografia com base nessas coisas todas que eu li e tal. Li muita, muita coisa. E a segunda parte tem as memórias. E isso me deixa profundamente contente. Eu quero deixar registrado uma outra coisa. Rádio. Por volta de 96, mais ou menos quando eu tava fazendo lá o Ziriguidum, aqui na Vila Madalena eu tive um projeto com o Pedrão, que é o filho da dona Benedita, chamado Balaio de Gato. Aquilo foi muito legal. Nós ficamos no ar dois anos e pouco aqui na Rádio Atividade. O Balaio de Gato era um programa que a gente tocava música de modo geral, não era um programa de samba, nem de rock, nem de música clássica, nem de jazz, não, era um programa de música. Então, a gente convidava pessoas às vezes pra vir pra tocar um pouco da sua discoteca, ou então nós mesmos fazíamos o programa com coisas variadas. E era um laboratório assim porque nós tínhamos audiência e tocávamos, por exemplo, um exemplo do que a gente fazia? Tocávamos Vivaldi, pegávamos uma peça de Vivaldi e depois tocávamos Elenor Rigby dos Beatles. “Olha, ouçam isso, essa peça do Vivaldi e vejam como o arranjo do George Martin para Elenor Rigby com os violinos tem a ver com esse quarteto de cordas do Vivaldi”. Aí pegava, sei lá, uma música do Almir Sater, uma viola, tocava uma música do Robert Johnson, um blues de 1930 com Almir Sater agora. Tocávamos Ravi Shankar, citarista, fazíamos cruzamento com sons. Foi uma coisa muito interessante que a gente fazia nesse sentido, e a gente recebia ligação de ouvintes falando: “Poxa, que interessante isso, você tocar uma orquestra com uma banda”, a banda do corpo de bombeiros, por exemplo, a gente arrumava lá algumas gravações deles e tocava traçando paralelos com outros grupos. Foi muito bom, foi uma coisa muito boa. Só que assim, a dificuldade, como a gente mora, o Pedro também morava na época, na Zona Norte, o problema de ficar fazendo essa viagem toda hora da Vila Guilherme pra Vila Madalena, a gente tinha um carro e daí a Tania reclamava: “Preciso ir pra casa da minha mãe no domingo a gente tem que ficar esperando”. E, às vezes, o programa tava muito legal e os caras: “Não, continua tocando”, rádio comunitária, ou pirata, como se dizia na época. E dava muita encrenca em casa com sogra, com a Tania e tal . Eu sei que chegou uma hora que não deu pra gente continuar fazendo, mas foi muito, muito bom. E o pessoal da Rádio Atividade aqui acabou ajudando depois a fazer a televisão aberta, que era uma tv comunitária, das primeiras, acho que a primeira, inclusive, tv comunitária que caiu nessa coisa de canal aberto. Então assim, a gente teve esse trabalho aqui de programas de rádio, que é uma coisa assim, rádio é maravilhoso. Se eu pudesse fazer rádio, programas de música, eu gostaria muito. Eu nunca deixei de participar, desde o momento que eu tive esse início o rádio sempre ficou zanzando comigo. Nós estamos em 2013, por volta de 2008, 2009 eu tive uma oportunidade de fazer um programa sindical na Rádio Nove de Julho, que é a rádio da Cúria Metropolitana, então tinha um espaço lá onde eles me deram uma coluna que era mais ou menos para eu fazer o que eu faço no Mundo Lusíada e lá no Jornal da Cantareira. Nós ficamos no ar um ano e tanto. Um ano depois que saiu o programa do ar, porque tudo é verba, os sindicatos, chega um determinado momento que estavam sem dinheiro lá e a gente perdeu o espaço. O que aconteceu? Eu acabei recebendo um convite da Rádio Nove de Julho e voltei, só que aí pro Departamento de Jornalismo da Rádio Nove de Julho, e eu to lá há quase quatro anos fazendo Jornalismo na Nove de Julho, falando sobre Economia e Política até hoje. É uma coisa que eu gosto, como eu falei, essa coisa do rádio, toda semana tem uma coluna de Economia e Política que eu faço comentários sobre as situações que estão ocorrendo no cenário brasileiro, alguma coisa internacional que possa atender o interesse público nesse sentido. Então rádio tá muito presente. E a música continua presente pra mim. Como eu disse, eu voltei a estudar música, o que me deixa muito feliz, os meus filhos estão estudando música
P/1 – Deixa eu te perguntar agora! Deixa eu perguntar um pouco . Olhando um pouco a sua trajetória, a gente vai acabar pra chegar à conclusão da entrevista. Olhando sua trajetória, se você pudesse ou tivesse que mudar alguma coisa, você mudaria alguma coisa na sua trajetória de vida?
R – Puxa, mudar?
P/1 – Faria diferente...
R – É, eu acho que eu teria estudado música antes, quando meus pais propuseram, eu abandonei aquela oportunidade, mas coisa de moleque. E eu acabei recuperando isso posteriormente. Mas talvez acho que tivesse estudado música, ficado com meus avós mais tempo (choro), ficado com minha mãe. (emocionado) Porque hoje essas coisas muito legais que eu contei dos últimos anos, pra mim, é uma ironia, mas assim, ter escrito um livro de memórias da Vila Guilherme, ter escrito um livro de memórias sobre os músicos. A minha mãe tem Alzheimer e ela não me reconhece mais (choro, emocionado). E o Alzheimer atinge exatamente essa questão da memória. Então é uma coisa muito dura porque é uma ironia muito grande você trabalhar com essa coisa da história e tua mãe não ter mais noção de história, não sabe quem é você. E meu pai teve um AVC esse ano também (emocionado). Então, esse período pra mim, eu fiquei pensando nisso agora, nessas horas recentes, 48 horas que eu soube: “Pô mãe, olha, teu filho tá tendo um livro publicado pela Fundação do Teatro Municipal”, e ela e ele que me estimularam tanto a estudar, a ler, a perceber essas questões todas (emocionado). Quantos livros sobre jazz eu tenho em casa, quantos livros sobre rock n’roll. E livro sobre Choro é tão raro, então você tá fazendo uma colaboração pra cultura brasileira, de ajudar a divulgar a cultura através de uma instituição tão importante, centenária, como o Teatro Municipal. O neto dela cantando no Teatro Municipal, o Gabriel estudando guitarra, tal e ela não pode ver isso, não tem consciência disso, isso é uma coisa muito dura pra mim (emocionado). Eu acho que eu teria, é uma bobagem muito grande, mas eu acho que eu teria feito isso, talvez agarrado mais nos meus avós, ouvido mais memórias deles, talvez registrado, ter pego um gravador pedindo pra ele: “Fala mais” (emocionado). Meu avô foi marinheiro mercante, quantas histórias, ele conheceu o mundo, oriente, jovem. Então acho que eu teria agarrado mais a eles. (emocionado) E acho que é isso, que de resto eu não tenho do que reclamar, acho que a minha vida em relação a muita coisa que eu vejo por aí, e como cientista social e tal, eu vou reclamar do quê. Eu tive educação, tive uma família estruturada, pais que me ajudaram muito, meu irmão é uma pessoa formada, tem a vida ele com todas as durezas que acontecem, mas a gente tem casa própria, estudamos, então não posso reclamar da minha vida, reclamar do quê? Talvez viajado mais? Certo, talvez acho que isso, ao invés de ter gastado tanto dinheiro com cinema e livro , ter feito uma sistema de crédito pra fazer uma viagenzinha maior e tal, que é uma coisa que eu não fiz ainda, é uma coisa que eu ressinto, eu não saí do país ainda, é uma coisa que eu gostaria de ter feito, ter saído do país, ido a Portugal, ter visto tanto uma coisa que eles falam, aproveitar e já andar pela península ibérica
P/1 – Vou aproveitar pra emendar: Quais são seus sonhos hoje?
R – Hum, bom. Meu sonho hoje, concretamente assim, meu sonho seria ver minha mãe boa, meu pai bom. Mas coisas que são mais concretas. Meu sonho hoje é que meus filhos tenham uma vida digna, que eles consigam se realizar enquanto pessoas. Essa é a minha preocupação central. Agora particularmente, eu quero assim, quero ter oportunidade de fazer mais trabalhos nessa linha de memórias e de cultura, trabalhar um pouco mais na área de cultura porque Economia e Política eu to um pouco cansado de fazer isso . Eu gostaria de trabalhar mais na área de música, de artes, colaborar mais nesse sentido assim. E talvez viajar um pouco. Porque eu li muito, eu li muita coisa assim, eu gosto muito de livros, muito de música, muito de discos, tal, mas acho que se você tem a oportunidade de estar presente e conversar, como a gente tá fazendo aqui, de conhecer as pessoas e vivenciar os lugares, acho que isso é um aprendizado maravilhoso, acho que se você tiver oportunidade de viajar, isso é uma ideia que eu deixo registrada. Viagens são muito importantes, pensar a viagem, o que você pode fazer, se você puder viajar, viaja. Conhecer pessoas é uma coisa muito linda, isso você aprende a diversidade do mundo como a existência é uma coisa interessante e você não fica com essas ideias fascistas, que é uma coisa que me preocupa demais, que você é o bom, nós somos os melhores, isso é uma visão muito idiota da vida. A diversidade, a cultura é muito ampla e eu acho que as viagens são muito boas por isso, pra você poder aprender, pra você poder ouvir, pra você poder conversar. Muita coisa tem nos livros, é verdade, não se questiona, mas eu acho que eu preciso dar um jeito de aproveitar um pouco isso, que é a ideia de conhecer pessoas através de viagens. Não só fora do país, que é uma coisa que eu fico pensando em conhecer alguns lugares do mundo, tal. Mas dentro do Brasil mesmo. O Brasil é um fenômeno extraordinário enquanto povo. Eu acho que uma coisa que eu discuto muito nesse livro é exatamente isso, como o Choro é a primeira música urbana nacional e ele se espalha pelo país e você percebe a diversidade de cultura que você tem dentro do Brasil. Uma das coisas mais importantes que acontece com a vinda da família real pra cá é exatamente a unidade nacional, a experiêcia que acontece na América espanhola é a fragmentação. Nós mantivemos um país unificado e essa unificação mostra as diversas culturas dentro do mesmo país, quer dizer, uma mesma língua com culturas tão diferentes que vai ser o Brasil. Eu acho que nós precisávamos nos conhecer melhor, nos valorizar melhor. E isso faz um projeto de nação, que é uma coisa que a gente meio que abandonou depois de tanto tempo de Ditadura, agora uma redemocratização que não tem um projeto de país muito claro. Eu não gosto da proposta neoliberal em que tudo é mercado, acho que o Estado tem uma presença fundamental na história dos países. O Estado precisa estar presente, agora, ele precisa ser melhor governado, tem uma série de coisas assim, mas esse é o ponto central. Acho que o grande sonho que eu tenho é poder contribuir com mais pesquisas e, pessoalmente assim, fazer algumas viagens dentro do país e fora dele
P/1 – José, o que você achou dessa experiência de contar seu depoimento pro Museu da Pessoa?
R – Maravilhoso! Isso aqui é fantástico! O Museu da Pessoa, eu ouvi falar do Museu da Pessoa há muito tempo, aí quando eu vi os prospectos acho que, um ou dois anos depois que vocês começaram a fazer os trabalhos eu já tinha noção da importância do Museu da Pessoa. Isso é exatamente por causa desse vínculo com as universidades, de estar vinculado ao mundo acadêmico, ao mundo da literatura. Eu sempre gostei muito, eu com meus amigos, de frequentar bibliotecas, livrarias, sebos, andar em São Paulo, andar atrás de sebo com o Pedro, com o Miguel, com o Zé Vieira, com as meninas mesmo, sempre foram pessoas que, além do cinema, que a gente ia no cinema, livraria era uma coisa que a gente frequentava. As pessoas fogem de livro muitas vezes; não, livraria é fabuloso. E isso te dá a valorização de um projeto como esse, de você perceber a importância da memória dos indivíduos. Uma cidade que nem São Paulo, 11 milhões de habitantes, veja quantas histórias você tem aí. E São Paulo acaba massacrando, ela não é só uma coisa de metrópole, é uma megalópole, então você cria uma situação, é o massacre do indivíduo. E todo mundo tem lá suas histórias pra contar. Então acho que essa individualização, você deixa todo mundo muito igual na massa. E todas essas pessoas têm aí suas experiências, a sua visão de mundo. E essa possibilidade do Museu da Pessoa é extraordinária. Eu acho que vocês têm um trabalho que, eu espero, tenha muito mais tempo de vida e desdobramentos porque ele é essencial mesmo pra essa questão da história, pra essa ideia humanística de existência. Diversidade, mostrar as pessoas, vocês estão de parabéns e muito obrigado pela oportunidade
P/1 – Obrigada!
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