Nasci na cidade de São Paulo, na zona norte no ano de 1957. Minha família era bem conhecida na região, meus avós foram professores com “P” maiúsculo como eles diziam. E após falecerem, foram homenageados com nomes de rua do meu bairro.
Meu tio mais velho, irmão de minha mãe, era médico, praticamente o único da região, e se casou com a irmã de um ex-governador de São Paulo o que deu mais notoriedade para nossa família na região.
Inicialmente meu pai, não se sentiu muito acolhido pela família da minha mãe, que também era professora. Ele era um simples contador de origem muito humilde, com pele bem morena, o que era para meu avô era um bom motivo de reprovação do pretendente. Mas, minha mãe se apaixonou perdidamente pelo meu pai e reagiu ao desejo de meu avô. O romance seguiu para o “casório” e para que este fosse bonito, sem apoio e aprovação dos seus pais, vendeu seu adorado piano para comprar os ingredientes dos doces e salgados que ela mesma fez e ainda comprou uma belíssima seda para fazer o seu vestido de noiva com a costureira mais talentosa do bairro.
Muitas águas se passaram, meu pai com ajuda financeira de minha avó e de minha mãe fez o curso de Direito e conseguiu um emprego melhor.
Eles desejavam ter somente três filhos, já tinham dois meninos e uma menina linda de cachinhos negros. Mas, após uma briga feia entre os dois, meu pai chegou em casa com flores, champagne e um disco de boleros debaixo do braço para fazerem as pazes. E assim, eu fui gerada!
Pelas fotos iniciais minhas de bebê, eu era bem feinha. Tinha sobrancelhas negras, gigantes, quase unidas e cabelos espetados, estes foram substituídos posteriormente por uma linda cabeleira loira que me acompanhou até os seis anos, ano que veio ao mundo meu irmão caçula nos inícios dos anos sessenta.
Com a casa pequena até então e os gastos aumentando, nos mudamos para uma casa maior. Era uma casa bem antiga, de meio lote provavelmente construída nos anos 40, que se distribuía por um grande corredor e com um quintal generoso. Meus pais que adoravam se socializar fizeram muitas festas memoráveis, nesta casa, casamento da minha tia, jantares para membros da igreja etc. Mas a mais aguardada por todos era a do mês de junho quando eu e a minha irmã fazíamos aniversário. Nossas festas juninas eram animadas e um mês antes já começávamos os preparativos: cortávamos bandeirinhas, fazíamos balões coloridos, para enfeitar nossa casa e ainda ensaiávamos a quadrilha. Além disso fazíamos muitos doces típicos, churrasco, fogueira, competições organizadas por minha mãe como corridas, com saco, com ovo na colher entre outros folguetos. No dia da festa tinha apresentação de sanfoneiro, show de mágica e para o deleite dos adultos meu pai providenciava um barril de chopp. Este era o preferido dos padres beneditinos do Colégio São Bento, onde meu irmão estudava. Eles eram os primeiros a chegar e os últimos a sair, levavam suas próprias canecas e se sentavam ao lado do barril.
Mesmo com uma casa agitada e cheia de gente cresci uma menina muito tímida, mas, com forte vocação para as artes. Era comum para mim, antes de ser alfabetizada desenhar o que queria contar, no formato de história em quadrinhos. Criava roupas para que minha mãe pudesse costurar; fazia cartazes para a escola onde minha mãe lecionava e ainda capas de trabalhos para meus irmãos.
Nossa casa era muito musical, cheia de problemas, mas, de muita alegria também. Meus irmãos mais velhos, tinham seus “conjuntos” (nome dado aos grupos musicais na época), minha irmã e eu cantávamos. Pequena ainda tentei aprender a tocar violão, um de meus sonhos, mas, meus irmãos se apoderaram do instrumento que meu pai comprou para tocar e raras vezes pude tocar nele. Meu pai até providenciou um professor particular para nós: o seu barbeiro que passava horas tocando no salão quando não tinha clientes. Mas ele só ia até em casa após fechar a barbearia. E nós o aguardávamos sentados em uma fila organizada por idade...como era a última, ele já estava sem paciência e com muito sono assim ele tinha pouca calma comigo e meu único aprendizado foi o clássico “Terezinha de Jesus”, música que odiava.
Outra grande paixão, minha era o balé, colocava um disco de músicas clássica que minha mãe tinha na vitrola, cujo conteúdo era de diversas peças tradicionais para balé e em sua capa tinha uma linda foto de uma bailarina vestida com saia “tutu”, se equilibrando na ponta dos pés. Com essa imagem na minha cabeça. eu saia pulando pelo corredor de casa, imaginando um teatro lindo, cheio de gente me vendo dançar e rodopiar. O máximo que consegui me aproximar disso naquela época, foi uma ida ao Teatro Municipal acompanhada de meu pai em um domingo de manhã, onde acontecia a gravação de um programa de dança que era transmitido pela antiga TVE Brasil, canal dois e que não perdia um. Aliás, esse passeio quase foi frustrado por conta do meu pai não estar adequadamente vestido para entrar no Teatro Municipal, estava sem paletó e gravata. Fomos salvos por um segurança que ficou sensibilizado com meu choro e emprestou sua vestimenta ao meu pai e depois ficou aguardando-o no banheiro para a devolução do seu traje. Anos mais tarde, por volta dos meus quinze anos, fiz ainda uma última tentativa, gordinha me inscrevi em dança de jazz, foi uma tragédia que não passou de um mês. Por fim, o balé transformou-se em meu livro de cabeceira a da memória da bailarina russa Isadora Duncan, ela me inspirou não só por sua dança, mas, por sua entrega à arte e a paixão pela vida.
Quando estava com 10 anos aproximadamente nossa família sofreu uma grande “avalanche” e uma mudança profunda ocorreu em nossas vidas: meu pai foi nomeado como Diretor Penal da Penitenciária do Estado e tivemos que nos mudar para dentro dela em um local muito bonito, destinado aos funcionários mais importantes da Instituição. Eu não senti muito problema em me adaptar, mas, minha irmã que na época era adolescente odiou, pois, suas amigas não iam visitá-la com medo de entrar em nossa casa, porque para se chegar até ela, antes, era obrigatório passar pelo portão principal do presídio e se identificar para uma guarda armada.
Apesar de ser “sui generis” minha infância dentro da Penitenciária, tínhamos dentro do possível, nossa rotina normal. Foi onde aprendi a andar de bicicleta, brincava com meu irmão caçula em uma pequena reserva de mata Atlântica, fazia minhas lições de casa no presídio feminino que era ao lado de casa com as detentas, assistíamos filmes que meu pai alugava para as sessões de cinema na Instituição, aliás, muitos Chaplin.
E meus irmãos mais velhos apesar de ser a época da Ditadura Militar, quando os encontros juvenis eram considerados como ameaça a ordem e eram praticamente proibidos, faziam seus famosos “bailinhos de garagem” com muita música do Beatles e Rowling Stones. Eu não podia participar, era expulsa por meus irmãos, mas adorava espionar.
A nossa vida pela Penitenciária seguia seu curso até que um dia, outro vendaval atingiu nossa família. O delegado Fleury Paranhos muito conhecido nessa época de ditadura, mais precisamente a partir de 1968, quando atuou como delegado do Dops (Departamento de Ordem Política e Social), sendo um de seus mais violentos e ativos neste órgão, invadiu nossa casa de madrugada e levou meu pai para um local desconhecido. Na época minha mãe não nos colocou a par do que estava acontecendo. Mas soube depois que meu pai se recusou a facilitar a fuga de um prisioneiro a quem o delegado devia favores. A vida estava muito tensa, meus irmãos mais velhos perdiam seus amigos e em sala de aula, as professoras de história se continham dizendo que aquilo ela não podia comentar, enfim a violência e o autoritarismo arrancaram a alegria das nossas vidas.
Para localizar o meu pai, minha mãe apelou ao meu tio, o médico, cuidava na época da saúde do então arcebispo de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns, que fazia frente ao sistema na época tentando salvar os perseguidos pela Ditadura. O arcebispo e o famoso cunhado do meu tio ajudaram a localizar meu pai e arranjaram para minha mãe um encontro com um militar mais moderado de alta patente. Um dia quando eu e meu irmão caçula saíamos da escola, minha mãe veio nos buscar e falou que iríamos visitar um homem importante do exército e que era para nos comportar bem e só ficarmos sentadinhos e calados. A casa era linda e sobre as mesas ao lado do enorme sofá dourado, tinham várias compoteiras de cristal com muitos bombons coloridos e brilhantes. Nós ficamos bem encolhidinhos, sentados e olhávamos os doces com desejo, então a mulher do General (cargo que soubemos depois também), se compadeceu da cena e nos chamando de anjinhos, nos ofereceu os chocolates, mas, sob o olhar severo de minha mãe recusamos os quitutes salivando... Não, obrigada!
O general conseguiu autorização para nos levar onde meu pai estava sofrendo maus tratos, Centros de Operações de Defesa Interna (DOI/CODI) no Ibirapuera, lá vi meu pai abatido, debilitado e muito assustado, mas, confiante de que sairia dali. Passado uns dias meu pai voltou para casa, mas, não era o mesmo, tinha explosões emocionais ocasionalmente o que para mim, criou uma relação com ele de muito medo.
Somente bem mais tarde, adulta e mãe de três filhos, consegui perceber no seu olhar muita doçura e sofrimento e conseguimos ter bons momentos juntos.
Como dito anteriormente tive muitos sonhos relacionados a arte, quis ser dançarina, cantora e pintora, mas, como uma filha da zona norte, região da cidade quase sem acesso a equipamentos culturais e de funcionários públicos que acreditavam que deveria trilhar o mesmo caminho pois teria segurança e benefícios para a vida toda, essa realidade era quase inatingível. E apesar de ter conseguido me aproximar dos meus objetivos quando estudei no Liceu de Artes e Ofícios, não fui autorizada a cursar Artes Plásticas e aceitei a proposta de fazer arquitetura.
Apesar de ter raras faculdades de arquitetura na época, na nossa cidade só a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e a da universidade Presbiteriana Mackenzie, a única condição imposta pelo meu pai era a que estudasse somente em São Paulo, nem pensar em estudar outra cidade! O único filho que pode fazer isso foi meu irmão mais velhos pois para ele valia o sacrifício do meu pai porque o curso era de medicina... E ele era homem!
Não passei na segunda fase da FUVEST por um ponto, e não me inscrevi no Mackenzie, que para mim era o reduto de reacionários, então uma amiga do Liceu me procurou para fazermos nossa inscrição no Curso de Arquitetura de Santos, achei uma boa solução, mas, confesso que nunca tinha ouvido falar dessa faculdade. Secretamente minha mãe autorizou fazer minha inscrição, porém, no fundo ela não acreditava que eu passasse e que me mudasse de casa. Bem passei na primeira lista e em minha casa quando souberam do resultado, o clima era como se estivesse acontecendo um velório, foi a primeira luta que enfrentei para sair de casa, mas, valeu a pena.
Santos foi uma das melhores épocas da minha vida, onde fiz minhas amizades com outras “ovelhas negras” e vivi muitas emoções e descobertas. Quanto a minha arte, ainda que não desenhasse como desejava, me entreguei ao canto, outra das minhas paixões. Lá cantei em diversos lugares acompanhada de amigos, organizei um show na faculdade e ainda participei de um famosos Madrigal da cidade, o “Ars Viva” que interpretava músicas contemporâneas e organizava o famoso Festival de Música Nova em Santos, sob a batuta do compositor e professor Gilberto Mendes um dos principais nomes da música de vanguarda no mundo. Com o madrigal viajei e participei de diversos concertos, entre eles no Festival de Inverno de Campos do Jordão, outro importante evento de música erudita no país.
Foi nessa época que surgiu a forte ideia de viajar pelo nordeste brasileiro de carona, coisa comum na minha geração. Muitos amigos tinham tido experiências mágicas nesse sentido e me encantavam com suas narrativas. E como a cidade tem um grande complexo portuário, alguns até mesmo conseguiram viajar de navio trabalhando, para diversos países.
Com “Bay Bay Brasil” na cabeça o filme de Cacá Diegues e música de Chico Buarque, essa vontade foi se fortalecendo e finalmente em 1982 saia por esse “mundão” de meu Deus, com amigos queridos, aberta para novas experiências. Essa minha grande aventura, será um livro que estou editando.
Segui minha vida casada com o lindo moço de conheci em Canoa Quebrada, trabalhando em arquitetura e criando três lindos filhos.
Hoje, aposentada e já com um neto de 6 anos, dedico-me à Artes Plástica integralmente.