Projeto Vidas, Vozes e Saberes Em Um Mundo Em Chamas
Entrevista de André Luiz Siqueira
Entrevistado por Bruna Oliveira
Campo Grande, 4 de junho de 2025
Entrevista número PCSH_HV1469
Revisado por Nataniel Torres
P - André, pra começar eu queria que você começasse apresentando. Dizendo seu nome completo, a data e o local do seu nascimento.
R - André Luiz Siqueira, nasci em 13 do oito de 1985, aqui mesmo em Campo Grande, capital do Mato Grosso do Sul.
P - [intervenção] Eu queria saber o nome dos seus pais.
R - Luiz Darcy Gonçalves Siqueira e Astrid Reben Siqueira.
P - E como você descreveria eles?
R - Ah, fantásticas essas perguntas, viu? Bom, eu não esperava por isso, não. Nossa, difícil falar assim. Meu pai é, acho que, uma das pessoas mais maravilhosas que eu conheço no mundo. Acho que ele que me fez entrar para esse mundo mais altruísta, assim, de ajudar o próximo, porque ele sempre fez isso, ele é médico de formação, mas desde muito criancinha, sempre que ele podia, as férias dele, ele aproveitava para atender as pessoas pelo Brasil, principalmente grupos sociais mais vulnerabilizados. Então ele ia para passar as férias, mas aproveitava e fazia uma campanha de atendimento às pessoas e a gente convivia com aquilo, e aí sempre esse olhar ao próximo, se colocar no lugar ao próximo, respeito acima de tudo, foram valores que ele sempre colocou. Ele e a minha mãe, mas como ele é uma pessoa muito calma, ele é pediatra e homeopata. Então é uma pessoa extremamente calma, sempre resolveu os conflitos de uma maneira muito tranquila, então é por isso que ele sempre me chamou mais atenção a forma como ele lida com a vida, além de muito bem-humorado. E aí os dois convivem de uma maneira muito harmônica. Casados até hoje, acho que vão fazer 39 anos de casados agora, dia 1º de junho. Então são referências para a vida toda.
P - E a sua mãe, como você descreveria ela?
R - Minha mãe é descendente alemã, Rio Grande do Sul,...
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Entrevista de André Luiz Siqueira
Entrevistado por Bruna Oliveira
Campo Grande, 4 de junho de 2025
Entrevista número PCSH_HV1469
Revisado por Nataniel Torres
P - André, pra começar eu queria que você começasse apresentando. Dizendo seu nome completo, a data e o local do seu nascimento.
R - André Luiz Siqueira, nasci em 13 do oito de 1985, aqui mesmo em Campo Grande, capital do Mato Grosso do Sul.
P - [intervenção] Eu queria saber o nome dos seus pais.
R - Luiz Darcy Gonçalves Siqueira e Astrid Reben Siqueira.
P - E como você descreveria eles?
R - Ah, fantásticas essas perguntas, viu? Bom, eu não esperava por isso, não. Nossa, difícil falar assim. Meu pai é, acho que, uma das pessoas mais maravilhosas que eu conheço no mundo. Acho que ele que me fez entrar para esse mundo mais altruísta, assim, de ajudar o próximo, porque ele sempre fez isso, ele é médico de formação, mas desde muito criancinha, sempre que ele podia, as férias dele, ele aproveitava para atender as pessoas pelo Brasil, principalmente grupos sociais mais vulnerabilizados. Então ele ia para passar as férias, mas aproveitava e fazia uma campanha de atendimento às pessoas e a gente convivia com aquilo, e aí sempre esse olhar ao próximo, se colocar no lugar ao próximo, respeito acima de tudo, foram valores que ele sempre colocou. Ele e a minha mãe, mas como ele é uma pessoa muito calma, ele é pediatra e homeopata. Então é uma pessoa extremamente calma, sempre resolveu os conflitos de uma maneira muito tranquila, então é por isso que ele sempre me chamou mais atenção a forma como ele lida com a vida, além de muito bem-humorado. E aí os dois convivem de uma maneira muito harmônica. Casados até hoje, acho que vão fazer 39 anos de casados agora, dia 1º de junho. Então são referências para a vida toda.
P - E a sua mãe, como você descreveria ela?
R - Minha mãe é descendente alemã, Rio Grande do Sul, nasceu numa colônia, começou a falar português com 14 anos só. E é imigrante, como grande parte da Mato Grosso do Sul, Mato Grosso do Sul e Mato Grosso é um grande caldo cultural, miscigenação de vários grupos étnicos que vieram e que ocuparam essa região. Não necessariamente que isso é bom ou ruim, mas enfim. E eles migraram na boleia de um caminhão justamente para tentar a vida. Então teve uma vida muito dura na infância, na adolescência. Então é uma mulher de muita garra, uma referência também em relação à resiliência, resistência, persistência.
P - E me conta, quando o seu pai ia nas férias fazer esses atendimentos em outros lugares, vocês iam juntos?
R - Íamos juntos sempre. Inclusive a gente mantém esse hábito até hoje. A família, a gente só viaja juntos. Até a lua de mel eles estavam presentes na nossa lua de mel. Casou eu e meu irmão juntos, né? E na Lua de Mel eles também foram pra curtir e tudo, participar, porque a gente só faz tudo junto. Até hoje.
P - E tem algum lugar que tenha te marcado durante a infância dessas viagens?
R - Um lugar em específico, assim, não consigo. Tem um lugar que a gente vai todos os anos, assim, que a gente vai desde pequenininho, que é o litoral catarinense, assim. Só traz relativamente boas memórias, mas nesse sentido mesmo, de sempre a família estar junto.
P - E qual é a primeira memória que você tem?
R - Excelente pergunta também, cara. Primeira memória? Eu acho que talvez morando em Aquidauana, meu pai serviu um tempo em Aquidauana, ele foi médico do exército antes de clinicar. Quando saiu da faculdade, o serviço obrigatório, NPOR, e aí eu lembro, acho que de muito pequeno, brincando, acho que em Aquidauana. Acho que devem ser as minhas primeiras memórias. É que, na verdade, agora eu estou confundindo, porque são histórias que ele conta, se é o que eu tenho de memória, mas é mais ou menos por aí, deve ser 4, 5 anos.
P - Você lembra dessa época de Aquidauana?
R - Lembro, lembro das casas antigas, mais isso.
P - E como é que era ela?
R - Eu gosto de Aquidauana até hoje. A minha ex-esposa, a família toda é de lá, então a gente até pouco tempo frequentava quase todo final de semana, uma cidadezinha histórica, uma dificuldade de crescimento grande, sempre baseado na agropecuária. Esse é um problema no estado do Mato Grosso do Sul, onde é baseado só na agropecuária e a gente tem dificuldade dos municípios e dos distritos se desenvolverem. Porque é uma atividade econômica que é onde o dinheiro do proprietário, na verdade, é gasto nas capitais em São Paulo, Rio, Goiás, e ali são poucos empregos gerados para grandes áreas. Então, eu lembro de uma cidade pequenininha, mas uma cidade muito interessante.
P - E já tinha um contato com mato?
R - Sempre, desde pequeno. Meus avós, por parte de pai, sempre tiveram chácara. Meu avô, também militar, aposentou muito cedo, com 48 anos, 49, quando eu nasci acho que meu avô já era aposentado. Por isso que quebra a Previdência, porque você imagina que ele tem mais tempo de aposentado do que de contribuição da Previdência. E aí a gente sempre viveu, sempre passou o final de semana em chácara, por parte de pai e por parte de mãe também. “Chacreiro” ou iam pescar, acampar na beira dos rios, aqui em Miranda, aqui de Aquidauana, então a gente se encontrava todo final de semana ou com muita frequência e ficava sempre dentro de áreas naturais.
P - E você gostava de pescar?
R - Eu gosto até hoje. Gosto de pescar até hoje e só tenho poucas oportunidades, mas as oportunidades são cada vez menores, infelizmente, mas eu gosto muito de pescar.
P - E me conta, como que seus pais se conheceram, você sabe?
R - Acho que foi no Colégio Dom Bosco aqui, inclusive esse colégio aqui na esquina dessa rua, aquela estrutura grande ali, foi ali. Meu pai veio de Ponta Porã, acho que com 11 anos, veio estudar o ensino médio aqui no Dom Bosco e minha mãe também. Também migrou mais ou menos nesse período, eles são do mesmo ano, de 62, e aí eles se encontraram, se não me engano, se encontraram aqui no Colégio Dom Bosco. Se conheceram.
P - E quando você estava contando que sua mãe é imigrante do Rio Grande do Sul, eu queria saber se você chegou a conhecer seus avós e você sabe a origem da sua família?
R - Sim, por parte de mãe, ambos são, vêm de lá, né? Eu acredito que venham fugidos da guerra, meus bisavôs, tataravôs. Se não me engano, é isso. Só não lembro agora se é a primeira ou segunda. Agora você me pegou. Já contaram a história tantas vezes, mas agora não lembro a data. Mas aí foram para essa colônia que chama Tuparendi, do lado de Santa Rosa. Santa Rosa é muito conhecida porque nasceu o Taffarel, a Xuxa. E aí de lá eles vieram tentar a vida aqui. E aí meus avós sempre trabalharam com churrascaria aqui, em Bonito, enfim. E, por parte de pai, a mesma coisa. Acho que meu avô é da Coluna Prestes, se não me falha a memória, e também veio do Rio Grande do Sul, que é um dissidente, um militar dissidente, que não concordava com as forças armadas, com o exército naquele momento. E minha avó nasceu aqui mesmo, são descendentes indígenas. Se não me engano, é Terena. Minha bisavó era Terena, dona Aninha, aqui no meio da região.
P - E você tem irmãos?
R - Tenho, meu irmão João Carlos.
P - E como era a relação quando era um pequeno?
R - Nossa! Cão e gato, assim. A gente brigava demais, demais, demais, assim. Somos três anos de diferença. Brigávamos muito, acho que talvez um pelos ciúmes do outro, assim, né? Porque hoje nós somos melhores amigos, assim, né? Então até os 15 anos era tiro, porrada e bomba.
P - Você era o mais velho?
R - Sou o mais velho.
P - E eu queria saber se tem algum costume familiar, assim, ou algum gosto, um cheiro que lembre a sua infância, a sua família?
R - Boa pergunta, acho que não, muito não. Talvez, sei lá, Toddy, assim. Toddy lembra a infância, eu acho.
P - E me conta, por que você chama André?
R - André Luiz, nome espírita. Meu pai e meu avô sempre foram da doutrina espírita. Minha mãe, obviamente, vem de uma base protestante, são os alemães, mas logo ela, quando casou, se encantou pela doutrina espírita e ela acompanha meu pai muito mais nesse sentido. Mas André Luiz vem daí.
P - E André, como foi a sua infância? Qual é a sua primeira memória de infância, além dessa de Aquidauana?
R - Sempre junto com os primos brincando e sempre em chácaras. Sempre na terra, tomando banho de rio. Basicamente isso.
P - Aonde você ia?
R - Aquidauana. Aquidauana a gente passou assim, a gente cresceu e viveu ali, assim, aqui pertinho, 100 km daqui, 100 km.
P - E essa infância inteira foi em Aquidauana?
R - Foi, fazendas ali próximo, chácaras, rio, sempre foi.
P - E como é que era essa casa?
R - Não, lá a gente morou pouco tempo, lá foi só um período de 10 a 12 meses que meu pai serviu, mas majoritariamente a gente ficou aqui, em Campo Grande, mas aí a gente sempre se deslocava pra casa de amigos e parentes.
P - E como é que era sua casa aqui em Campo Grande?
R - Ah, mudou muito, mudou muito. Meus pais têm um hábito, que eu acho que talvez herdaram dos meus avós, de mudar muito. Se vocês contarem ao longo de todas as mudanças que eles tiveram até hoje, talvez dê uma média de oito meses por casa. É um fenômeno. Casas, apartamentos, casas térreas.
P - E eram em bairros diferentes aqui de Campo Grande?
R - Bairros diferentes, é. Bairros diferentes. Talvez um primeiro momento mais periférico. Até porque tinha relação com os meus avós, morar perto e tudo, os avós vendiam a casa, emprestavam casa, não foi o começo da vida deles. A gente era pequeno, bebê, criança, mas depois em uma região mais central, porque daí tem a ver com o trabalho, com o clinicar, consultório e tudo, escola, então aí vem para uma região mais central, que é aqui, São Francisco, aqui em cima.
P - E me conta como foi começar na escola? Você lembra?
R - Lembro, isso eu lembro bem, porque minha mãe, meu pai ainda estava na residência, então minha mãe é que sustentava a casa, minha mãe era servidora pública do INSS, e acho que não existia seis meses de trabalho, como hoje tem, e ainda prorrogável, dependendo da empresa. Servidorismo público você pode até prorrogar para mais um ano. Acho que foram quatro meses, máximo. Então, nasci, minha mãe me criou ali. Pouco antes de um ano, eu já entrei para a creche numa escola chamada ASE, que não existe mais, ali na... acho que é 7 de setembro. 7 de setembro. Onde é a Previdência hoje, acho que é 7 de setembro ali. Era uma escola do lado ali. Então, ali que eu passei meu maternal, ensino infantil, tudo. E aí, quando eu tinha uma certa idade, eu já me... já encontrava com a minha mãe no trabalho, assim, antes de ir embora.
P - E como é que era esse bairro naquela época?
R - Bairro da escola, você fala? Não, igual hoje. Idêntico. Um bairro muito antigo. Até hoje são as mesmas estruturas, prédios. Bairro comercial.
P - E não é... o que a gente tem percebido aqui em Campo Grande é diferente... de onde a gente vem é que é muito arborizado. Esse bairro era assim?
R - Era, mas não era um bairro bonito, não. Era entre o Fernando Correa da Costa e a Afonso Pena, ali. Uma baixada. A Fernando Correa da Costa é um fundo de vale, onde tem um córrego que, na verdade, é que hoje foi fechado. Mas ali nunca foi um lugar bonito, não. Talvez por causa dos prédios muito antigos e só comercial. É do lado do Aracy Balabanian, o teatro do Aracy Balabanian.
P - E o que você gostava de brincar quando você era pequeno?
00:13:59
R - Nossa, a gente era muito arteiro. Quase vândalos, assim, na verdade. Guri, né, cara? Guri é terrível, assim. Então, de tudo. Todas essas brincadeiras de criança, de infância, até... explodir um muro com bombinha, quebrar janela com pedra. A gente era terrível. A gente e os nossos amigos, assim.
P - Vocês brincavam na rua?
R - Na rua. Sempre na rua. Sempre. Sempre.
P - E me conta, na escola tinha algum professor, alguma professora ou alguma matéria na época que você gostava mais?
R - Acho que sempre marca as professoras da infância, no maternal, no ensino infantil. Eu acho que sempre essas professoras que foram mães, que a gente chamava de tia, acho que sempre marcam. Não vou lembrar o nome, mas a fisionomia eu lembro bem delas.
P - E lembra de alguma história dessa época?
R - Lembro, eu lembro. Eu não sabia me limpar, e aí eu fui ao banheiro, fazer o número dois e eu não sabia me limpar, eu saí pelado até a porta da sala de aula, na frente dos meus coleguinhas, com a calça arriada, pedindo para a professora me limpar.
P - E deu tudo certo?
R - Essa é a que mais me marcou.
P - E me conta, como foi o andar dos seus estudos, quando você chegou no ensino médio, antes de contar sobre essa parte do caminhar dos seus estudos, eu queria saber se nessa época de infância você tinha sonho de ter alguma profissão específica.
R - Sim, bombeiro. Bombeiro, desde muito cedo. Bombeiro. Mas depois, próximo, acho que o vestibular fui inclinando para a biologia, para a área de conservação da biodiversidade, porque dentro da biologia há uma centena de especializações, de áreas para se trabalhar, desde laboratório, enfim, mas fui inclinar para essa parte da conservação da biodiversidade.
P - E o que te chamava a atenção? Por que você escolheu?
R - Excelente pergunta. Acho que talvez para... Acho que é um pouco mais essa questão da justiça social, ambiental com as pessoas, essa coisa de você também manter essas áreas verdes que a gente cresceu, essas áreas naturais que a gente cresceu e conviveu, daquilo se manter, porque naquele tempo a gente já via muita coisa acontecendo, né? Degradação das APPs, dos recursos naturais, grandes desmatamentos, mineração, predação, na época dos rios, na época tinha pesca, ainda existia acho que a pesca comercial industrial grande, foi proibida acho que só em 80, no final de 80, no estado. Então foi um pouco disso assim, talvez tentar contribuir para manter as coisas como a gente cresceu.
P - E nessa época que você presta vestibular, você tinha essa percepção sobre esses problemas ambientais?.
R - Total. Total, porque quando eu fiz o vestibular, eu já sabia o que eu queria. Inclusive, quando eu prestei para algumas universidades, como a Federal de Lavras, por exemplo, que aí você vai totalmente para uma área agronômica, assim, já não me interessava, sabe? Eu prestei, porque eu prestei para um monte de universidades federais, mas eu não estava feliz. Se eu tivesse passado, eu lembro que Lavras era extremamente concluído, com 48 candidatos-vaga. Existia ENEM. E eu lembro que se eu passasse, eu acho que provavelmente teria pedido transferência. Eu já não queria áreas agronômicas, não. Mas eu queria a experiência de sair daqui e viver um pouco fora, por isso que eu acabei até prestando, mas prestei Dourados e Lavras que eram literalmente baseados na agronomia, a biologia. Então não era algo que me interessava, não. Então já tinha, assim, delineado o que eu queria, sabe?
P - E me conta, tinha bastante gente que fazia biologia nessa época?
R - Tinha, tinha. Talvez mais que hoje. Bastante gente. As turmas eram cheias de alunos. Terminava bastante gente também.
P - E você acha que tem a ver, aí é uma pergunta, se você acha que tem a ver com essa proximidade com o Pantanal ou não?
R - Excelente pergunta. Sim, porque muita gente era do interior de São Paulo, do Paraná. Muita gente. Então, eu acho que porque o que encantava era justamente entender e vivenciar o Pantanal. Eu acho que as pessoas têm toda essa mística, esse romantismo. Na verdade, quando você vai para lá, não tem nada de romântico, mas acho que isso encantava mais as pessoas, as pessoas migravam para cá para fazer a universidade. Muito. Da minha turma, majoritariamente eram pessoas de fora, raríssimos de Campo Grande.
P - Me conta como foi esse ingresso na universidade.
R - Bom, eu prestei São Carlos, Lavras, USP e aqui, aqui, Dourados, porque não tinha no meio do ano, que eu estava no terceiro ano do ensino médio, não tinha Campo Grande. E aí passei só para Dourados. Fui para lá, todo baseado em agronomia, tranquei, prestei vestibular de novo aqui, que aí era no meio do ano, fiz mais meio ano de cursinho, e passei aqui, no meio do ano. E aí eu ingressei aqui na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, que aí foi muito legal, porque eu tinha tempo, como eu tinha feito um ano em Dourados, eu tinha tempo para fazer muito estágio, iniciação científica, porque eu não tinha pressa. Meus pais me deixaram muito confortável, eu não precisava, como muitos têm que trabalhar para sobreviver, eu tinha que só estudar. Então, eu aproveitei e fiquei só cumprindo duas disciplinas que não tinham em Dourados e vice-versa, ou que lá tinha que só ia ter no segundo ano. Então, eu tinha tempo e fui para fazer um monte de estágio, um monte, com um monte de gente.
P - E me conta como é que foi esse momento dos estágios, que estágios você escolheu?
R - Putz, desde geoprocessamento a trabalhar com psittacidaes, com fauna, com regeneração, com instauração. Era muita coisa, um monte de áreas.
P - E era licenciatura?
R - Não, bacharel. Eu podia ficar mais um ano pra fazer licenciatura, eu só fiz bacharel.
P - E me conta se teve algum estágio nessa época que foi importante pra você?
R - Eu acho que de geoprocessamento, com Antônio Carlos Paranhos, uma sumidade, uma referência na área, que está lá até hoje, porque pela aproximação de Aquidauana, um trabalho que eu fiz de iniciação científica era fazer um georreferenciamento de onde nasce o Aquidauana e a situação de degradação das APPs. E aí eu vi que era São Gabriel do Oeste, onde nasce o rio Aquidauana, um dos principais afluentes da bacia do Paraguai, e a área toda degradada, extremamente degradada. São vários rios que nascem em São Gabriel, uma área, hoje é um centro da agricultura no estado, e a área toda degradada, com as culturas não respeitando a APP, o Código Florestal, chegando já nos corpos d' água mesmo, e ali nasce um dos principais rios, um dos rios que tem grande importância para o estado, economicamente falando, socialmente. Então, isso assim, isso marcou porque é triste, né?
P - E você conseguia perceber naquela época os impactos sociais dessa degradação?
R - Muito, muito. Primeiro que esses rios hoje do estado, muitos assoreados, né? Então é uma carga de sedimento justamente pela ocupação do solo que foi feita. Então, deposita muitos sedimentos e os rios hoje não tem calha mais, não tem leito. Isso altera tanto a parte de fauna, quanto a parte de armazenamento de carga d'água. E aí, por um lado, as oportunidades que a gente perdeu, que hoje ainda melhorou um pouco em algumas regiões, como a estrada do Parque Piraputanga, onde passa o rio, mas por uma beleza cênica que compensou a degradação do rio. Mas se fossem rios bem mais saudáveis, como a gente tinha antes de 1980, acho que nós teríamos uma economia muito mais forte, baseada no que o rio poderia oferecer.
P - Me conta como é que foi essa época da faculdade em questão de se divertir? Como é que você se divertia? O que você fazia para se divertir nessa época?
R - A faculdade, putz, é muito legal, porque você tem aquele universo de pessoas dentro de uma mesma sala de aula. Tinha o pessoal da Esquadrilha da Fumaça, o pessoal que gostava da marijuana, tinha o pessoal que só estudava. Então é um universo de pessoas, pessoas de diferentes lugares que você veio, diferentes concepções, ideais, então é muito rico. Mas eu sempre tinha ali o nosso grupo, um grupo grande até. Eu transitava em vários grupos, nunca tive essa coisa da panelinha e tudo, sempre transitei em todos os grupos, sempre gostei.
P - E nessa época você já tinha esse interesse em lidar com a preservação ambiental, mas quando você entra na biologia tem alguma matéria, algum professor? Tenho.
R - A decisão de vir para Campo Grande foi por causa disso, que eu queria a conservação da biodiversidade, então meus primeiros livros, já no primeiro ano em Dourados, eram para isso. Eu ainda não tinha tido a disciplina, quando eu vim para o Campo Grande eu tive, foi frustrante, eu esperava muito mais, mas não pelo conteúdo em si, de quem aplicava o conteúdo. E aí eu já tinha outros colegas que compartilhavam isso comigo, que, inclusive, a gente tem relações de trabalho até hoje, tem o Rafael Chiaravalloti, que hoje é professor da Universidade College de Londres. trabalhou na ECOA há muitos anos, um dos poucos amigos que eu consegui trazer para o trabalho, que a gente manteve a amizade. Trabalho e amizade, pelo menos na minha experiência, não foi muito positiva ao longo dos anos, mas o Rafael foi um desses. Hoje ele é o nosso atual conselheiro, mas já foi diretor aqui científico há muitos anos e hoje está lá. Passou no concurso lá há algum tempo e está lá. Ele era um que sempre gostou de conservação e a gente sempre junto ali também tinha as mesmas frustrações em relação a isso, a ter mais conteúdo nesse sentido da universidade. Mas sempre, porque quando eu estive lá pela primeira vez, no primeiro ano, eu já queria trabalhar com isso, foi aí que eu consegui conhecer a ECOA. Porque aí o meu trabalho era articular, como eu permeava vários grupos, jornalistas, agronomia, eu conseguia mobilizar as pessoas para poder se envolver em causas, em militância, em ativismo, enfim.
P - Você tocou em um ponto interessante. Eu queria saber, então a ECOA já existia, né?
R - Sim, a ECOA tem 37 anos. Hoje é?
P - 2025.
R - Não, hoje é dia 4?
P - Quatro.
R - Se eu não me engano, é que eu fiz ontem, 37 anos. Acho que ninguém lembrou. Não é o pessoal mais antigo. Aí, é interessante isso. Geralmente a gente faz alguma coisa. É... Então, ECOA com 37 anos, quando eu entrei na faculdade, ela já existia e eu vi na televisão. Eu gostava de conservação da biodiversidade, já entendi que conservação, você tem que trabalhar com o sujeito humano, não necessariamente só com fauna e flora, só com pesquisa, que isso é uma parte do processo, mas muito mais as relações humanas. A gente ia para esse lado e como eu permeava diversos grupos dentro da faculdade, os grupos acadêmicos, engenharia ambiental, jornalismo, agronomia, veterinária não, biologia. E aí, com o tempo que eu tinha, eu queria pulverizar o máximo de possibilidades possíveis de fazer estágio, eu vi na TV a campanha, até que eu te contei isso rapidamente, na primeira vez que a gente se viu, a campanha sobre a usina de álcool no Pantanal, que estava tendo uma chamada para a Assembleia, que o governo queria mudar uma lei de 82 para permitir, é a lei que proíbe que se amplie plantas industriais ou se instale novas plantas ou se amplie novas plantas industriais, porque só tem em _____ antes de 80. [intervenção]. E que se ampliasse a usina de álcool no Pantanal. E aí existia uma frente parlamentar pressionando para isso, porque muitos têm fazenda de pecuária e queriam transferir para a cana e em vários municípios. E a ECOA tinha um papel protagônico na campanha de não permitir que a Lei de 1982 fragilizasse, obviamente, a parte ambiental e até social, porque se gera um emprego de começo e depois, sabe-se lá como isso se mantém, a gente já tem na história do país várias situações como essa, nordeste que o diga, e aí nós queríamos, a ECOA tinha o papel de sensibilizar a população, tanto nos municípios que eram previstos a implementação dessas plantas, quanto de não fazer com que os parlamentares aprovassem a desconstrução da lei, quer dizer, a nova lei, e derrubassem a antiga. E naquela época não existia internet, então, todo o trabalho era feito na rua. Então, aquela militância mesmo. Militância assim, um ativismo. Militância não é um ativismo de rua. Então, eram blitz, eram campanhas em escola, universidade, audiências públicas. Então, teve audiências em vários municípios aqui, teve várias na Assembleia Legislativa. A ECOA mobilizava, fretava ônibus, chamava o pessoal de lá, daqui. Ia muita gente lotava, faixas, imprensa. A Motosserra de Ouro, que na época, a SOS Mata Atlântica, uma organização parceira e irmã da ECOA, entregou a Motosserra de Ouro para o _______, Mato Grosso. A gente entregou aqui para o Dagoberto. O político está até hoje rodando. Então teve esse movimento e eu olhei isso na televisão e fui nas assembleias. E fui na assembleia, na primeira audiência e me encantei por aquilo, aquele mundo de gente com faixa e tudo, e aquele movimento de levar caixão, motosserra, todo aquele teatro, aquela situação teatral para você sensibilizar e tudo, as pessoas. E eu achei muito legal, aquilo, meu papel e eu vim aqui oferecer, quer dizer, pedir estágio. E eu vim oferecer o meu trabalho e a minha capacidade de conversar com as pessoas da universidade, de professores, alunos, para que enchessem as assembleias. Tanto aqui quanto no interior. E aí a ECOA topou, então ela entrava com recurso, com apoio, e meu trabalho era articular, principalmente com o movimento acadêmico. E aí foi muito legal, quer dizer, teve uma parte extremamente triste nisso, que é a autoimolação do Franselmo, um ambientalista que se autoimolou, se suicidou durante esse período, e foi a partir disso que de fato houve a vitória. Então aí o Brasil e o mundo se sensibilizaram, porque obviamente teve uma repercussão nacional e internacional, e foi quando a União, principalmente a União Europeia, eu acho, que na época era a que mais tinha interesse em relação ao álcool no Brasil, bloqueou qualquer venda na Amazônia Legal e no Pantanal. E aí foi uma vitória, mas teve uns episódios bastante grotescos da nossa política brasileira, teve a época o governador que falou que ia que ia pegar o ministro da meio ambiente à época, acho que não precisa citar nomes, em praça pública, agredi-lo sexualmente, coisas pesadíssimas que nós estamos acostumados a ver no circo que é, em grande parte, esse país, infelizmente. Então teve de tudo isso, todos esses elementos, foi muito pesado, que culminou com a autoimolação dele, mas que foi extremamente vitoriosa.
P - E me conta como foi esse período, pessoalmente para você, entrando no ECOA e participando desse ativismo que era mais físico do que...
R - É uma escola acelerada de vida, porque não só essa parte de você fazer conservação mesmo, mas também porque eu tive a oportunidade aqui dentro de ir para trabalhar em áreas e zonas de conflito com grupos sociais vulnerabilizados, que são as populações ribeirinhas, expulsas ou violentadas, cerceadas por algum ente, algum vetor de pressão. Então, aí eu consegui entender a forma como a ECOA trabalhava, mitigava, eu tentava resolver isso. Então, assim, foi uma escola acelerada de vida, sem dúvida, de formação como cidadão. Então já tinha essa bagagem do familiar, mas aqui essa coisa de a vida real como ela é, a violência que todo mundo sofre, sem a presença do Estado muitas vezes, com essas disputas políticas pesadas de interesse ideológico, de você passar por cima das pessoas. Então assim, foi uma incubadora mesmo.
P - E que ano que foi isso?
R - 2005.
P - Era um ano que o Brasil estava muito forte nos movimentos sociais também, de ativismo social, ambiental também.
R - Era em especial para o Pantanal, porque até o primeiro crash, que foi em 2008, econômico, você tinha muitas fundações que ainda olhavam para o Pantanal. Isso dava, obviamente, bagagem para a sociedade civil fazer, ajudar muito o estado a cumprir com os seus gargalos, todos os pontos de vista, filantrópicos, ambientais. Só que em 2008 muitas fundações se voltam para outras regiões por conta da quebra econômica americana e o Pantanal ficou bem esquecido, literalmente. Então foi um ano que o governo federal teve que dar muito suporte à sociedade civil organizada. E aí as estratégias se voltam para dialogar mais com o governo federal, ajudar a captar recursos, porque a gente é uma organização imparcial, a gente não tem uma empresa que patrocine, é um patrocinador, não tem um empresário. A gente vive literalmente editais públicos do Brasil e do mundo. Então as estratégias são moldadas de acordo com como o mundo toca. Claro, a gente tem nossas agendas, que isso é imutável, que são três, que eu acho que eu já te contei rapidamente, e aí a gente tem que ficar captando recurso para tocar essas agendas, que são bastante amplas. Então, é a partir de 2008 que a gente teve que se moldar bastante.
P - E nesse início, quando você entra no início da sua vida profissional, quando você entra no ECOA, o foco do ECOA era o quê? Já eram esses três pilares?
R - Já eram esses três pilares. A gente fala de eventos climáticos extremos. Essa palavra, essa expressão mesmo, essa terminologia, muito antes de falarem, porque de 2005 a 2008 estavam em voga mudanças climáticas. A gente já falava de fenômenos e eventos climáticos extremos, mas regionalizados, localizados, que não necessariamente tinham a ver com a mudança geral, mas que aconteciam coisas aqui. Mas lembrando que ECOA é uma organização do Pantanal, a gente trabalha América do Sul e aqui muito os biomas Cerrado e Pantanal. Mas são os mesmos. O que mudou é porque a usina de álcool saiu da agenda de infraestrutura e energia e continua, infelizmente, até hoje, hidrovía, que é o eterno fantasma, ainda mais com os PACs da vida e represas. Essa parte de infraestrutura. Eventos climáticos estão mais em evidência do que nunca. E a nossa parte de desenvolvimento integral de comunidades e áreas protegidas é a mesma coisa. Passam os anos e a dificuldade ainda continua.
P - E nessa ida que você começou a participar das assembleias e a se juntar ao movimento estudantil para fazer uma pressão para tentar barrar a questão das usinas, tem algum episódio que tenha sido marcante para você? Eu sei que para a história tem alguns episódios marcantes, mas pra você, que tem marcado a sua memória?
R - No começo. No começo, eu acho que foi a grande capacidade que a gente tinha de articular e levar pessoas pra rua. Eu acho que foi isso. E aí, logo na sequência, já tinha também uma outra campanha, logo na sequência não, a ECOA já tinha uma campanha que perdurou por nove anos, que é uma referência hoje no Pantanal, que foi o “Queimada Mata”. Como a gente trabalha muito com incêndios, a gente forma brigadas e a gente apoia o combate das autarquias, IBAMA, ICMBio, à época a gente já tinha uma campanha chamada Queimada Mata, que até hoje a terminologia não é correta, mas à época era justamente para... a linguagem técnica é absorvida pela população, então a gente sempre teve essa mirada estratégica. E o Queimada Mata durou quase dez anos, teve grandes resultados, então a gente tinha essas duas grandes campanhas ao mesmo tempo, simultâneas, e a gente tinha uma capacidade de levar muita gente pra rua e atrair instituições diversas, assim. Polícia Rodoviária Federal, Corpo de Bombeiros, Instituto de Meio Ambiente, Prévio Fogo, então isso sempre me marcou, essa capacidade de chamar muita gente, estudantes, voluntários, associações de bairro, era impressionante.
P - O que mobilzava?
R - Acho que a internet acabou com isso. É uma excelente pergunta. É a mesma situação em relação ao TRE. Vocês lembram que todas as eleições as pessoas iam, os dois grupos que disputavam as últimas eleições, geralmente segundo turno, iam pra frente do TRE e se degladiavam, literalmente? E hoje isso acabou, não existe mais. As pessoas acompanham a apuração dos votos na palma da mão ou em casa assistindo televisão. Então, acabou isso, o tete-a-tete, essa coisa. Eu acho que é o mesmo movimento. Não sei o que fez bem as pessoas perderem essa vontade de ir para as ruas. Hoje, a capacidade de você mobilizar as pessoas para as ruas é muito difícil. Está tudo na internet.
P - Mas naquela época era muito diferente
R - Muito. Imagina, a gente tinha abaixo assinados que era por escrito. Tanto que o dia, esse dia do Franselmo, por exemplo, nós estávamos todo mundo, eram dezenas de pessoas, centenas de pessoas, não lembro, com uma prancheta, com uma lista de abaixo assinados. A gente abordava as pessoas, as pessoas assinavam. Hoje você tem as plataformas que você só clica, põe seu e-mail, seu nome e está registrado. Não sei o que efetivamente fez com que as pessoas perdessem a vontade de ir para as ruas se manifestarem. Uma excelente pergunta.
P - E me conta como foi esse dia. Se você lembra desse dia do Franselmo, como foi? Como foi recebido isso no momento que aconteceu?
R - Ah, ninguém tinha a mínima ideia. Ele era uma pessoa extremamente respeitada, um ambientalista que fez isso por frustrações. Porque você imagina você se dedicar grande parte da sua vida a isso e você não vê avanços. É muito desgastante e frustrante. E aí ele preparou tudo aquilo no movimento que a gente estava fazendo aqui numa praça muito movimentada no centro da cidade. E foi um cenário terrível, de guerra, de atear fogo no próprio corpo. Só que, no momento, ninguém sabia que era ele. Então, a gente achou que tinha sido uma manifestação até contrária ao que a gente estava fazendo. Então, ali acabou. A gente ia entender quem era e tudo. Depois que ele faleceu, logo em seguida faleceu a esposa dele, Dona Iracema, que também era uma pessoa ligada ao movimento artístico aqui também na região. Então foi bem traumático naquele momento, pela cena em si e o ato em si, que não é fácil. Mas, como eu disse, por outro lado, tudo que ele fez foi extremamente respeitado, tanto que a vitória veio por conta disso, sem dúvida.
P - E me conta o que foram essas primeiras experiências de ir para comunidades que estavam sofrendo algum risco, como é que você entra nesse caminho e se encontra a primeira vez com essas comunidades?
R - Excelente pergunta. Bom, então foi logo na sequência também, aí eu acho que conta essa bagagem dos meus pais assim, de você chegar num lugar de populações que são os Guardiões do Pantanal, que vivem manejando de forma muito sustentável os recursos naturais e, ao mesmo tempo, completamente esquecidas, sendo exploradas, com direitos violados, cerceados. Então eram pessoas que só queriam viver em seus territórios e tinham uma pressão de inúmeros atores querendo que aquelas pessoas fossem expulsas e aumentassem os índices de pobreza nas periferias das cidades. Então, nós já tínhamos uma parte de migração, de uma migração de pantaneiros que foram para as cidades, que sofrem muito até hoje por conta da parte do Taquari, que foi uma aceleração da sedimentação do Taquari pela ocupação que o Estado promoveu, uma ocupação sem a mínima ordenamento na parte do Planalto, aqui do Mato Grosso do Sul, e que é pela característica do solo, que é um solo arenoso, isso acelerou a ocupação pecuária, acelerou o quanto que a bacia recebeu de sedimento, e aí você fez com que o Taquari, que é um dos principais afluentes, migrasse seu leito e pessoas, colônias, pessoas que viviam muito bem da agricultura familiar, pequenos produtores rurais, ou até grandes, perderam tudo, empobreceram e tiveram que migrar porque você tinha água, no outro dia você não tem mais. E outros que tinham áreas secas para a pecuária, virou um mar de água. Então, já tinha acontecido esse fenômeno no Pantanal, e aí você tinha essas populações ribeirinhas que vivem da pesca, pescadores profissionais artesanais, que são indígenas, negros, desse caldo cultural que é o Mato Grosso do Sul, pelas suas recentes ocupações. E aí você tinha essas pessoas que não tinham escola, saúde, presença do Estado, ministérios públicos. E pessoas que têm a tendência de terra, coronéis, que são muito comuns em outras regiões do país, determinaram como aquelas pessoas iam sobreviver e se iam sobreviver. Então, por isso, foi muito interessante, porque foi um choque de realidade, que eu já tinha um pouco essa bagagem e aí surgiu o interesse em fazer justiça, em trabalhar fazendo justiça social e ambiental.
P - E teve algum episódio que tenha sido marcante por alguma coisa que te contaram?
R - Vários, vários. Teve o caso de eu vi uma uma, à época, uma gestora de reserva particular do patrimônio, uma reserva particular. O problema não é a reserva particular, o problema são os gestores. Eu sempre falo que há um amadorismo muito grande em relação à gestão de UCs, de unidades de conservação no Pantanal. Talvez pela forma, bagagem das pessoas, a formação delas. Hoje as pessoas se qualificam muito mais. Pós-doutorado e tudo, naquela época não era muito assim. E aí eu vi uma senhora falando, uma gestora e proprietária da área falando que jogaria um agente laranja no Rio Paraguai para matar as pessoas, que aquelas meia dúzia de pessoas que vivem e cresceram e viveram ali eram a principal ameaça da região, do Pantanal ou para a sua área. Essa talvez tenha sido uma das maiores. Mas já escutamos de tudo. Pobres rurais, livros que foram feitos para deturpá-los, para denegrir a imagem dessas comunidades todas, vários movimentos de expulsão de todo tipo. Então, ixi, tanta coisa.
P - Eu queria saber se você tem alguma história de alguma comunidade que você foi, que tenha sido marcante, alguma pessoa que você encontrou, algum encontro.
R - Nossa, mas aí são dezenas, porque também cada um sofre um tipo de violência. Tem umas que são por grandes empresas, portos, outras por fazenda, outras por unidade de conservação, outras por empresários. Então, assim, são diferentes tipos de violência que afetam essas pessoas que só querem viver ali na margem do rio, no seu território. E aí você conhece figuras incríveis nesse período, que são resistência mesmo, liderança, e majoritariamente mulheres. Isso é uma característica do Pantanal. A capacidade das mulheres de defenderem seus territórios é muito maior que os homens. Os homens têm muito essa coisa do poder, sabe? De se preocupar muito mais em ser uma liderança e mandar numa área específica do que de fato lutar pelas políticas públicas, de se empenhar. Então, isso é característico delas, no Pantanal.
P - E tem alguma mulher que você queira citar?
R - Tem. Dona Joana, lá da Barra do São Lourenço. Joana, ela é cunhada, se não me engano, de Leonora. Leonora é uma das pessoas mais inteligentes que eu já vi na minha vida. Impressionante. Você dá um assunto pra ela, assim, numa câmera, na frente de uma câmera, ela discorre, assim, numa lógica sem parar. Impressionante. Manga, carroça e rio. Ela junta as três coisas numa história sem parar, sem se gaguejar. O raciocínio dela é uma coisa maluca. Mas Dona Joana, porque Dona Joana foi uma das mulheres mais corajosas, porque quando a gente deflagrou o conflito, quer dizer, nós já tínhamos estudado e levantado, diagnosticado o conflito na Barra do São Lourenço, que é uma das mais emblemáticas, talvez a gente vai falar um pouco mais, do conflito de expulsão de 97, e quão grave, quão pesado isso foi, mas quando nós chegamos para trabalhar mediação, resolução e tal, e o fortalecimento deles, e aí uma das estratégias nossas é a organização associativa, Dona Joana, sem titubear, foi que assumiu uma comunidade com dezenas de pessoas, ela que assumiu a bronca e falou, “eu quero, eu vou, eu faço”, mesmo não letrada, sabe? Dona Joana, sem dúvida. Nós temos Seu Sérgio e Dona Georgina no Porto Esperança, onde uma milícia foi lá, apontou uma metralhadora no peito dela às três horas da manhã, mandaram matar as lideranças por causa da região que parece ser um porto. Também tem positivos e negativos. O caso do Sr. Adriano foi extremamente negativo. Tem a dona Júlia, que já faleceu. Acho que vocês ouviram dela bastante. Tem uma imagem dela pintada lá na sede da APA Baía-Negra. A dona Júlia foi dos movimentos sociais. Principalmente de habitação, na década de 80, 90, e depois ela foi para a APA Baía-Negra, então a história dela até se confunde, inclusive, com a história da APA Baía-Negra. E essa luta sempre pelas pessoas, Dona Júlia, incrível, incrível. Eu acho, assim, acho não, se hoje ela estivesse viva, a APA Baía-Negra hoje estaria muito melhor, porque ali é um ambiente de muito conflito interno, porque, diferente das outras comunidades, onde você tem onde você tem a ancestralidade familiar, você tem famílias que bisavô, avô, que cresceram e criaram ali, aquela é a região que eles nasceram e cresceram, ali não. Na APA Baía-Negra foram pessoas que migraram desse fenômeno do Taquari, de outras regiões do Pantanal, cada um com sua história, uma forma de viver diferente, comportamento, dinâmica e aí o conflito está instalado. Então ali é bem complicado. Mas são vários assim. Várias isqueiras na manga, por exemplo. Na manga, os homens fazem o trabalho fácil, leve, e as mulheres o trabalho pesado, que são as isqueiras, que estão lá onze horas, dez horas por dia dentro d'água, que ela, quando está no período da seca, aquela água cheia de fungo, bactéria, isso para elas é pesado, pela característica do organismo da mulher, né? Então, assim, elas acabam se contaminando, ficando doentes e tudo, e elas é que estão ali na lida da pesca e da isca, enquanto os homens estão ali pilotando barco, cuidando de barco. Então tem muito isso ali na manga que também chama a atenção, mas são um monte de gente. Eliezer e Foca, que são dois pescadores que são guardiões do Pantanal, um é de Anastácio e o outro é de Miranda, que lutam pela profissão, criaram filhos, formaram todos os filhos, famílias e netos, tirando o sustento do rio e defendem os pescadores porque há um movimento esquisito no Pantanal, no Brasil não, mas no movimento. Primeiro que a pesca continental tem uma importância ímpar, por isso que existe um ministério para tratar, é uma pena que o ministério não tenha, não vou falar agora da atual gestão do André, acho que o ministro, mas do passado que a gente acompanhou bastante. Um ministério que precisava muito mais de carinho, foi um ministério que serviu de cabide e isso prejudicou muito a gente falar de pesca continental no Pantanal, mas aí voltando para o Pantanal, pesca continental no Brasil, mas voltando para Pantanal, a pesca é a segunda atividade que mais gera emprego e renda, junto com a pecuária, sem discutir. Se você pensar que o cara sai de São Paulo para vir pescar aqui, então sim, até a passagem que ele compra, você tem que botar na conta da pesca. Então, a cadeia econômica é muito grande. Mas existe um movimento no Pantanal muito grande de você achar que a pesca não é uma profissão digna e que ela é linda porque ela é a nossa base cultural, histórica. O pescador é um bioindicador, é ele que sabe a natureza do rio e ninguém se manifesta contra uma ameaça do rio como um pescador, ninguém. E aqui nós temos um fenômeno que o pescador esportivo, que ele é muito grande e são pessoas abastadas, ricas, quem é o pescador esportivo no Mato Grosso do Sul, que não se manifestam contra ameaças do rio. Não se manifestam, eles são completamente alheios a qualquer ameaça. Por exemplo, eles não se manifestam contra represas, contra a usurpação da APP, assoreamento. Não se manifesta. Já o pescador que vive daquilo, ama o que faz, é o que lidera os movimentos em defesa dos rios, da saúde dos rios. E acontece esse fenômeno no Pantanal, Mato Grosso Sul e Mato Grosso. E aí as pessoas têm aqui, principalmente os parlamentares, os governantes, os nossos gestores, governadores últimos, têm um hábito terrível de achar que isso tem que acabar. E isso repercute na classe média, e a classe média sabe, a gente sabe que a classe média brasileira é extremamente perigosa, até porque ela não tem parâmetros para entender a verdade, os fatos, as informações, de averiguar. Então, quando você cria uma narrativa de que, por exemplo, pescadores profissionais durante décadas são câncer dos rios, porque eles passam rede e matam com tudo, isso é perigoso e isso se propaga. Então, há um movimento político nos dois estados de extinguir uma profissão que é linda, de pessoas que literalmente cuidam dos rios. Isso é muito triste. E aí, voltando a falar do Elieser e do Foca, são duas resistentes incríveis, dois caras fantásticos. Maria Antônia, pescadora, profissional artesanal, líder da Colônia, na bacia do Paraná, que é uma bacia bastante renegada, porque como ela foi uma bacia que divide com São Paulo, ela foi toda antropizada por conta das represas, toda autuada, e na parte do Paraná, onde está a grande parte das grandes culturas, grandes frentes agrícolas, principalmente agora com eucalipto e tudo, é um ambiente tão degradado que as pessoas não olham para a bacia do Paraná. Aí existem impactos enormes ali na bacia e ela é uma das últimas linhas de frente que defendem a região toda. Maria Antônia é maravilhosa e uma história de vida pesadíssima. Para finalizar, Dona Catarina Guató, honoris causa, uma indígena Guató, nascida e criada lá na região da Barra do São Lourenço, sofreu todo tipo de violência da vida possível, violência doméstica, perseverou, cuidou dos filhos, fugiu e hoje defende com unhas e dentes as tradições com o trançado do Aguapé, muito idosa, frágil fisicamente, mas até hoje vai lá no meio do Pantanal, tira os recursos que tem, trabalha, vende, expõe. Dona Catarina é incrível!
P - André, o que você leva de memórias e de aprendizado com esses povos ribeirinhos que tem uma maneira de entender a terra, o território, o rio de uma maneira diferente?
R - Isso mesmo. O Pantanal é um ambiente extremamente imprevisível, muito duro. A gente está acostumado a romantizar, de olhar as imagens do tuiuiú, onça-pintada, novela Pantanal, tudo muito lindo e tudo mais. É um ambiente extremamente rude, duro. No período de mosquito, em grande parte do Pantanal, as pessoas, em especial para as mulheres, a pele delas parece uma pele de sapo. Porque são picadas que se acumulam em cima de picadas, e aí fica aquela camada. E você tem que sair para trabalhar. Você não pode ficar dentro de uma sala com ar-condicionado, dentro de uma tela. E aí você tem que ficar naquela fumaça o dia inteiro, tem que sair para o mato, e aí no mato você tem arraia, te picam, cobra, acidente ofídico, pneumonia, porque você está diretamente exposto ao ambiente, e você não pode ficar doente porque o seu ganha-pão vem do dia a dia. Se você fica uma semana sem trabalhar, sua família vai comer menos. E esses mapas mentais que eles têm, essa capacidade de se adaptar à imprevisibilidade, isso é único. Isso é único. E aí, nos faz muito, assim, você parar para pensar e falar assim, “como é que é a minha vida? Como é que é a vida das pessoas que eu conheço, dos meus progenitores? Que tipo de educação eu quero dar, de entendimento de sociedade, de compreender a sociedade?” E aí te dá uma condição de uma leitura da vida muito diferente.
P - Teve algum episódio, algum dia específico?
R - Tem, tem sim. Tem vários, na verdade, vários. Tem de violência contra os filhos, por exemplo. Um cara era muito bem articulado, um líder de uma comunidade e, de repente, o cara é preso porque o cara violentou as filhas. E hoje, as filhas casadas, felizes, você vai lá, te recebem. Tiveram toda a dificuldade do mundo para a gente ter lutado, apesar de a gente ter lutado muito para que tivessem os programas de assistência, pós-acontecimento, a dificuldade que o poder público tem de levar assistência em saúde para essas pessoas é gritante, e olhá-los com a devida importância, e mesmo assim hoje te recebem com sorriso no rosto, com uma família linda, e lutando, e parece que você olha, parece que a página virou, e com uma situação tão traumática, tão traumática, como que a pessoa consegue viver? E lutam todo dia naquele ambiente, não saíram de lá do seu território. Acho que esse foi um dos casos mais emblemáticos. Mas tem vários, principalmente de violência e agressão. Você imagina você ter um gestor público que cuida, por exemplo, as escolas a maioria são públicas e a gente trabalha no fortalecimento, na manutenção dessas escolas. Imagina você lutar por uma escola ser mantida em pé, uma escola com uma importância que já formou mais de 600 cidadãos na região. Jovens que serão cidadãos que podem ajudar a reverter esse quadro crônico do país de pobreza, de invisibilidade social, de violência e tudo. E aí você lutar, lutar, lutar, lutar, daí você imagina, daí você luta para a escola caindo aos pedaços, caindo assim. Então, ou seja, você como gestor, você não se põe naquele lugar. Então assim, se fosse seu filho estudando naquela escola, com o chão batido, comendo debaixo de uma mangueira, pouca merenda escolar, pobre nutricionalmente falando, você não deixaria. Mas tudo bem, você ainda é um gestor e tal, e aí você luta para fazer uma reforma numa escola que tem uma importância ímpar, com mais de 100 crianças a ano estudando e tudo. A escola fica um ano e meio em reformas, crianças vão estudar de forma improvisadas numa propriedade abandonada ali próximo, que é o que eles têm a oferecer, ou o que eles se interessaram em oferecer. E aí você vê as crianças estudando dentro do ensino infantil dentro de uma churrasqueira, churrasqueira telada, no pantanal é tudo telado. E depois de um ano e meio de uma reforma, você vê que ela ficou pior do que ela estava. Que assim, esses processos licitatórios [intervenção]. Esse processo licitatório, os esquemas todos, e aí você vê a escola numa situação pior do que estava. Cara, isso é muito desanimador e muito frustrante. É muito desanimador, é muito. Por outro lado, isso te faz, muitas vezes, cansar e falar assim “será?”, pensar em fazer outras coisas da vida, porque não é fácil.
P - Eu queria que você contasse um pouco dessa questão de... Quando a gente conversou a primeira vez, você citou uma frase, posso estar errada no jeito que eu vou falar, mas aí você me corrige, que era vocês protegem pessoas para que essas pessoas protejam a natureza, alguma coisa assim.
R - Isso. A gente preserva pessoas. É minha essa frase, não é paráfrase nenhuma. A gente preserva pessoas para que, obviamente, a gente tenha os recursos naturais preservados, protegidos, porque elas efetivamente protegem o ambiente. O que acontece é que tanto a parte de você tentar tirá-la de lá quanto você, e aí existem, a maneira de tirá-la de lá, existem várias estratégias para isso, então existe desde a violência física direta a você cercear direitos e fazer com que fique insustentável a vida naquele lugar, que tem o êxodo rural, por exemplo, que seu filho não tem oportunidade, não tem condição, não tem estudo e você tem que migrar com ele para para as escolas na cidade, ele morre lá na periferia como aconteceu, ou como já aconteceu com várias famílias. Então, isso tira as pessoas. Porque as pessoas sem perspectivas de falar, onde eu nasci, onde eu queria tanto viver, não têm condições mais. Então, quando você trabalha com políticas públicas, com garantia de direitos, você dá minimamente condições para que as pessoas continuem lá e protegendo aquele recurso natural.
P - E me conta dessa história do ECOA defender o associativismo nas comunidades?
R - Muito boa essa pergunta. Isso, na verdade, é uma tecnologia social que a gente desenvolveu há mais de 20 anos, chama Desenvolvimento Integral de Comunidades. A gente aplica, são cinco eixos, geralmente a comunidade que nos solicita apoio, ou uma instituição que trabalha lá e nos pede nosso apoio. Porque a gente, primeiro assim, sempre tem um diagnóstico, levantamentos, aí vem sempre com uma bagagem de pesquisas muito forte para entender um pouco o território, a dinâmica, o comportamento, o que está acontecendo, e aí isso dá base para judicializações, para inquéritos civis, ações civis públicas, uma série de coisas, que isso é importante. A outra, atrás, a gente organiza associativamente os grupos. Então, grupos de mulheres ou grupos de moradores, que é justamente para fazer frente ou para lutar pelas suas perspectivas. Porque aí, coletivamente, como é comunidade tradicional, já a partir do momento que eles são organizados, eles já têm um canal de proteção, que geralmente são os ministérios públicos, que tem incumbência a missão de proteger o coletivo, então, coletivamente, eles já conseguem acessar um órgão que os defende contra o próprio Estado, muitas vezes quando o Estado induz a violência, o cerceamento. Então, essas estratégias são básicas. Aí depois, escola, mesma coisa: manter a escola, formar, ajudar a construir, lutar por ela e as condições de trabalho também dos mestres, dos professores. A gente já teve também muito tempo programas, inclusive de qualificação, de formação também, de professores também, mas hoje é mais a manter a estrutura física mesmo e as condições de trabalho. Saúde. Então, é aquela coisa de denunciá-lo. O estado e o município estão cumprindo com a parte dele, com os direitos. Acesso a direitos. Então, a gente, por muito tempo, a gente leva a justiça itinerante, a justiça porque as pessoas não têm direito, porque muitas delas já estão aposentadas há 20 anos. Loas, pensão pós-morte. O que mais que a gente... Esses são os principais casos. São os principais casos. As pessoas não têm acesso. Elas chegam no município, nos municípios de Aquidauana, Miranda, Corumbá, não existe uma instituição, um órgão que dê atenção a eles para saber o mínimo direito que eles têm. Muitos são ludibriados com essa coisa, por exemplo, de enganar de empréstimo. Então, a gente ajuda muito nisso. Condições de trabalho, então a gente monta séries associativas, cozinhas, cozinha industrial, agroindústria. Condição de trabalho, por exemplo, a gente tem um trabalho de 13 anos com o Ministério Público do Trabalho que a gente doa EPIs para as mulheres no Pantanal, que são os macacões que a gente identificou em 2006, esse EPI, esse equipamento, e isso tirou delas uma série de problemas, e ajudou-nos a terem uma qualidade de vida e trabalho muito diferenciado, porque, como eu te falei, por conta do órgão genital feminino, as infecções eram muito graves, porque você fica imerso naquela condição de água, com uma série de parasitas e tudo, então isso acabou, aí também tem a questão do resfriado, da pneumonia e dos acidentes ofídicos. Então você pisar numa raia, igual um senhor lá, ele pisou num jacaré sem querer, se não fosse o EPI, ele tinha perdido o pé, ou destroçado o pé, enfim, né? Então, a gente, condições de trabalho, cadeia produtiva, a gente dá assessoria técnica, cadeia de negócios, tudo, tudo, para mel, baru, laranjinha, pesca, enfim, uma infinidade, bocaiúva, tudo, embalagem que você imaginar. A gente faz esse trabalho, você vê ali, tem uma máquina de tecelagem ali, que é da Renascer, que é a Associação de Mulheres e Artesãs da Barra do São Lourenço, que trabalha com o Aguapé, com o trançado Aguapé, que veio consertar. Então, é isso que a gente faz. É essa tecnologia que a gente aplica nos grupos que a gente acompanha.
P - Queria que você falasse um pouco dos projetos, se você quiser, também, da Paisagem Modelo.
R - Ah, a Paisagem Modelo é muito legal, quem coordena esse programa aqui dentro da organização é o André Nunes, é um outro André, as pessoas até confundem bastante, que é o nosso diretor científico. Mas a Paisagem Modelo surgiu, ela é uma plataforma social de diálogo, de governança, que surgiu no Canadá, justamente para mitigar conflitos territoriais. No caso, lá você tinha empresas que tinham interesse em explorar madeira, e aí você tinha os povos originários, você tinha cidades, você tinha comerciais, proprietários rurais da região, então todo mundo ali tinha diferentes interesses sobre o uso daquele espaço que teria, qual o impacto aquilo teria pelos diversos interesses, e aí eles se juntaram para conversar e ter uma melhor gestão sobre o território. Isso se expandiu em várias iniciativas pelo mundo. E nós trouxemos essa iniciativa por meio de vários parceiros que a gente conheceu ao longo desses anos para o Brasil, numa região que, do ponto de vista da conservação, ela é muito especial, que é a região do Urucum. Porque, além de ter uma idade geológica absurda, mais de cento e poucos milhões de anos, existe um alto grau de endemismo que é raro para o Pantanal. O Pantanal é um corredor biogeográfico, então é muito comum a gente ter influência de outros biomas, mas não espécies únicas, como em outros biomas. É um corredor, você tem várias espécies de vários lugares. Ali você tem muito isso. Por outro lado, é onde tem talvez um dos maiores impactos que se tem hoje no bioma, que são as presas minas siderúrgicas, com unidades de conservação, áreas que protegem, algumas áreas ali especiais e com pessoas vivendo dentro e fora, pecuaristas, agricultores familiares assentados da reforma agrária e ribeirinhos extrativistas. Então é um caldo ali, cara, de grupos com diferentes interesses e impactos sobre um território que é único do ponto de vista da conservação. Você tem espécies que migram do Bosque Seco Chiquitano, por exemplo, e que é único e que precisam sentar para dialogar, para que um respeite o outro, porque senão um atropela o outro ou um expulsa o outro. Então essa iniciativa a gente começou em 2019, mas só agora a gente conseguiu recursos mais especificamente para trabalhar muito a governança. Então tem dois anos que a gente está trabalhando a governança, mas a gente tem trabalho lá com fogo, com muita pesquisa, com restauração com SAFs, com restauração e restauração com SAFs, com cadeia produtiva. Então, assim, é o universo de coisas que a gente faz lá dentro da Paisagem Modelo, chama-se Paisagem Modelo Pantanal. Então, é uma plataforma social de diálogo entre os diferentes atores para que todos sejam respeitados e as áreas conservadas se mantenham. [intervenção]
P - André, queria que você me contasse, desde esse primeiro momento que você começa a ter contato com as comunidades ribeirinhas, como que se dá a sua trajetória aqui dentro do ECOA?
R - Bom, aí eu acho que por conta do... Quando nós chegamos, quando eu cheguei aqui propor essa iniciativa, eu acho que, na época, quem estava aqui viu isso com bons olhos, no sentido de que podia ser um quadro interessante para a organização, organização naquele momento precisando de jovens com aquele perfil, né? Então, quando eu comecei a fazer esse movimento, acho que deu certo, do ativismo de rua e tudo, de juntar as pessoas, eles me convidaram para conhecer as diferentes iniciativas que a organização tinha no campo, em diferentes comunidades, desde o Cerrado, aqui com o CEPEC, que é um dos maiores grupos extrativistas do baru que tem no Brasil, com uma agroindústria enorme que a gente acabou de formar, Manga, com seus desafios internos políticos muito profundos, brigas internas por religião, partidário, álcool também pesadíssimo, e a gente levando ali várias políticas públicas, desde Lusa a tentar mediar o conflito interno. Não sei se estou muito certo, mas muita coisa a gente fez de boa lá. Então, conheci esse universo, até a Barra de São Lourenço, onde a violência era latente, as pessoas não tinham condições de acessar o seu próprio território ancestral. Várias coisas, né? Então eu acho que foi isso, assim, aí esse perfil foi importante para a organização naquele momento e aí eu fui me inteirando dentro dos projetos, acompanhando, estagiando e aí logo depois você vai ajudar a escrever propostas, atender imprensa, que a gente tem uma demanda muito grande, a gente inclusive até, digamos assim, não é selecionar, mas a gente até recorta muito assim qual o ponto que nós... Porque se não... Por exemplo, Campo Grande a gente não atende mais, sabe? Porque a gente não tem mais uma relação com Campo Grande diretamente. Onde é a nossa base administrativa e tal. E aí eu acho que com esse perfil, isso chamou atenção da organização. E aí eu tive dois grandes professores aqui, que é o Alcides, que deve estar aí, que é o nosso diretor institucional, e o Alessandro Menezes, que foi presidente da ECOA há muito tempo, que ele também tem uma história muito legal. Só que o problema dele é que depois ele deixou de ser ambientalista. O DNA dele sofreu alguma mutaçãozinha ali, porque o Alessandro, só fazendo um parênteses, ele é o cara que entregou o motosserra de ouro para o Dagoberto, e ele sempre teve uma habilidade política incrível, de articular e conversar com as pessoas. E ele vai para a política a convite de um ex-governador, que gostava muito dele quando ele trabalhava aqui no ECOA, por conta dos projetos que a gente tinha na época, e eu aprendi muito com ele, porque eu ia a Brasília muito com ele, as reuniões, com as autoridades, tudo, e ele ia me ensinando, eu sempre do lado dele ali, ele me ensinando passo a passo como que é as coisas e observando a habilidade dele de conversar com as pessoas,as estratégias e tudo. Mas o curioso da história dele é que ele vai para a política mesmo, partidária, para candidatos e tudo, e esquece que ele foi um grande ambientalista um dia e transformou e tal. É uma figura incrível, tem um carinho por ele muito grande, mas ele deixou de ser ambientalista, mas enfim. Então, esses dois foram grandes. Agora, aí tive outros parceiros, o Jean, também está na política hoje. Enfim, vários colegas que passaram por aqui, que foram incríveis, assim. Vanessa, com sua ultra capacidade de organização. Várias, várias pessoas, assim, que foram muito boas nesse aprendizado. E aí foi isso. E aí eu assumi um quadro de diretor de políticas públicas, que o meu trabalho era atender imprensa, especificamente o trabalho que a gente desenvolvia. E aí eu ficava com essa linha diferente de receber a imprensa. Aí depois eu assumi a diretoria como diretor-presidente por oito anos. E aí eu saí, porque daí agora é a nossa presidenta, a Natália. E virei diretor-geral de projetos e programas porque eu coordeno, digamos, a maior parte dos projetos que circulam na organização.
P - E quais são esses projetos?
R - Da minha parte, são alguns, acho que são seis. São seis projetos com brigadas, com criação de áreas protegidas, com gestão de áreas protegidas, com... deixa eu ver... com restauração. É, acho que são esses.
P - E tem algum que você goste um pouquinho mais? Ou tenha mais carinho?
R - Não, todos eu gosto... Ah, com o Ministério do Trabalho também agora coordeno os projetos porque a gente recebe recursos do Ministério do Trabalho. Então são seis, acho que atualmente são seis que eu coordeno. E não, não tem assim um carinho especial, não. É que tem uns mais rigorosos, outros menos rigorosos do ponto de vista de ações e prestação de contas e que aí você tem que manejar de uma maneira ou de outra. Você queria fazer de uma forma diferente, mas tem que fazer de outra. Então, tem uns mais flexíveis, outros menos, outros te dão capacidade de mais articular, outros... Então, assim, não tem um preferido, assim, não.
P - E me conta, eu queria que você contasse um pouco como foi esse momento do fogo para ECOA, como foi esse momento, porque na nossa primeira conversa eu entendi que é um momento atual, né?
R - Ai, cara, super! A gente já tinha esse histórico por dez anos quase, foram nove especificamente da campanha, da campanha Queimada Mata, mas naquele período, até 2019, o Pantanal viveu um ciclo de cheias extraordinárias, cheias regulares. Então, o fogo nunca era tratado como uma ameaça para o Pantanal. E aí você tinha só aquela lacuna do período histórico, da série histórica, que é período de seca ou vazante no Pantanal, que as pessoas utilizam como uma ferramenta, principalmente para a agropecuária. Então você tinha ali alguns índices, mas sempre muito baixos. E você tem o eterno problema dos incêndios nas cidades, mas aí é uma outra tratativa. Esse é um problema que até hoje pouca gente trata. Mas as pessoas esqueceram que o fogo poderia ser uma grande ameaça. E aí, em 2018, começou-se, quer dizer, a bacia do Paraná, e a bacia do Paraguai já dava indícios, principalmente do Paraná, região central da América do Sul, que é uma agenda que a gente acompanha aqui, dessa coisa dos eventos climáticos extremos, da mudança no clima, a gente acompanhava já crises hídricas que teve Curitiba, São Paulo, Chile, Argentina. Então, que em algum momento aquilo poderia afetar a região central da América do Sul, que é o Pantanal. A Bolívia já tinha desde 2017 grandes incêndios no Bosque Seco Chiquitano, Bosque Seco Tropical, mas no Pantanal ainda aquilo não tinha chegado, ainda porque você tinha… Porque o que regula desmatamento e incêndio? É água. Ponto. Então, a gente imaginava que aquilo poderia chegar mais cedo ou mais tarde, e em 2018, tínhamos algumas análises feitas pelas instituições oficiais de análise, NOA, CEMADEN, enfim, vários pesquisadores trabalham com o tema, já indicavam que nós teríamos, a partir de 2019, uma situação de crise hídrica, de estresse hídrico profundo no Pantanal para os próximos anos. E aí, nós nos mexemos e a gente resolveu alertar todo mundo, somando a demais instituições, que a gente acompanhava os cenários no Paraguai e na Bolívia, aqui para a bacia do Pantanal, alertar as instituições de que nós tínhamos que nos preparar. Alertamos, mas ninguém fez nada. E aí chegou 2019, já tivemos o indício de grandes incêndios, foi quando a gente… Ah tá, mas antes disso, em 2006, a gente formou, dentro da agenda nossa da campanha Queimada Mata, a gente formou a primeira brigada para atuar lá junto com o Parque Nacional do Pantanal Mato Grossense, lá no Serra da Amolar, brigada da Comunidade da Barra do São Lourenço. A gente começava a trabalhar lá, questão da resolução do conflito, a gente aproveitou e fez uma brigada porque na época a gente tinha uma portaria, estava surgindo a portaria de contratação do ICMBio, IBAMA ICMbio, para as brigadas, para trabalharem formalmente dentro da unidade de conservação. Então a gente formou até para uma forma deles se desqualificarem, terem postos de trabalho, além da pesca e tal. Aí deixamos isso de lado. Quando em 2019 a gente vê os primeiros indícios, um milhão e poucos mil hectares queimados, acende um alerta, Bolívia e Paraguai trocentos milhares de hectares, a gente já começa a fazer as correlações e falar: “Olha, a coisa vai queimar”. E aí em 2019 a gente retoma a nossa estratégia de formação de brigadas com hectares voluntários, no sentido de que as pessoas que são mais vulnerabilizadas, elas tinham que ter condições de se defender, dar a primeira resposta, trabalhar a prevenção, defender seu pato, suas casas, suas famílias, seus bens. E a gente forma os primeiros grupos em 19, mas em 20 vem os incêndios avassaladores. O momento político do país fez de negacionismo, de desorganização em relação à agenda ambiental brasileira, até de desestruturação mesmo da política ambiental brasileira, fez com que todo mundo batesse cabeça e não houvesse uma resposta efetivamente organizada em relação ao que acontecia no Brasil no geral, com os incêndios na Amazônia em especial e no Pantanal, e com isso nós chegamos aos números de 4 milhões e 300 mil hectares, Bolívia também chegou acho que a 6 milhões, enfim. E aí isso chamou a atenção do Brasil e do mundo, e aí tivemos a oportunidade de ter a sociedade como um todo olhar para esse problema e investir nessa estratégia. Então a ECOA começou, fez escola, começou a formar mais brigadas e aí outras instituições seguiram essa linha de trabalho nossa, e aí também ampliando as agendas e tudo nessa para que evitasse os incêndios que viriam, porque aí 21 nós tivemos uma seca pior que 20, só que 21 não queimou porque não tinha mais combustível para queimar, 22 secas, 23 águas regulares até outubro e aí vem aquele fenômeno climático de calor global que chegou com tudo no Pantanal, então de repente nós tínhamos 43 graus com ventos muito fortes, aquela situação de umidade que nós tínhamos até outubro com chuvas regulares, não cheias, cheias a gente não tinha mais. Então esse é um problema, porque você não tem água no campo. A chuva cai e evapora na hora, mas nós tínhamos chuvas que pelo menos evitavam o pior. Em outubro, em novembro, com o calor extremo que afetou o mundo e aqui não foi diferente, tudo virou palha da noite para o dia. E aí começou incêndios em novembro, em dezembro, em várias regiões de novo, avassaladores, aí chega 24 com uma seca histórica maior dos últimos 80 anos e aí queima tudo de novo, porém, existia um outro nível de organização, preparo, principalmente do governo federal e do executivo estadual. Planos, inclusive a gente tem muita colaboração em relação a isso, planos de ações já tinham sido pensados, muito investimento. Então estava todo mundo preparado, sociedade civil já tinha um outro tipo de bagagem e compromisso, estratégia. Então aí se juntou a nós outras ONGs, né? SOS Pantanal, WWF, ICS, várias outras organizações que se juntaram. Outros fundos como o CASA, que apoiavam centros produtivos para organizações de base. Agora tinha uma linha específica de incêndios. Então, enfim. Tudo se preparou e aí, obviamente, nós não passamos de... Nós pegamos acho que dois e trezentos mil, no total, no Pantanal. E que, obviamente, se não houvesse esse nível de... Tivesse tido esse nível de investimento e organização, nós passaríamos os 4 de 2020. Porque as condições climáticas de 2024 eram muito piores que 2020. Muito piores.
P - Tem alguma comunidade específica que tenha formado brigada voluntária que quando vocês foram fazer o treinamento tenha sido muito marcante pelos relatos que as pessoas trouxeram?
R - Tem. Do ponto de vista organizacional, a Aldeia Mãe Terra é a maior. Aliás, os Terenas. Os Terenas, só para vocês entenderem, existem as Brigadas Federativas do Ibama, que são a maioria indígenas, Kadiwéus e Terenas, Guató, dessas três etnias espalhadas pelo Pantanal, e a Brigada Pronta-Emprego do Pantanal, que fica à base em Corumbá, que, nacionalmente, são indígenas. Existem as Brigadas Comunitárias Voluntárias que a gente formou e que muitas são indígenas a pedido deles, e elas coexistem, cooperam, com as federativas, inclusive, que isso é fantástico. As Terenas são as mais organizadas. A T.I. de Nioaque, das aldeias Brejão, Água Branca, Cachoeirinha, São Miguel e Mãe Terra são extremamente organizadas. Os caras têm uma alta capacidade, são extremamente fortes. Então é outro nível. Das ribeirinhas ou dos assentamentos rurais, dos assentamentos rurais o desafio de organização é maior. Acho que pela dinâmica, são cada um pequenos produtores rurais que vivem nas suas propriedades, lutando pelo que é seu, então para eles se juntarem não é tão simples, mas a gente tem um caso de muito sucesso que é o São Gabriel, liderado também por uma mulher, Dona Vera. No resto é mais difícil, mas cada um por si ali, todos são qualificados, equipados, que a gente dá tudo. Mas é mais difícil. E nas ribeirinhas é mais fácil também manter o nível organizacional porque muitas delas têm essa bagagem de se organizarem porque tiveram que lutar pelo direito de território, das políticas públicas e tal. Mas tem vários casos interessantes. Na Barra do São Lourenço, eles que sofreram aquele fenômeno que viralizou no Brasil e no mundo, que foi aquela tempestade de cinzas em 2020, que duas horas da tarde, dia virou noite. Essa nuvem chegou inclusive em São Paulo, São Paulo 4 horas da tarde, então aquela nuvem passou ali e somou com as fumaças da Bolívia. Nós temos a Roseli da Brigada do Baguari, que apesar de ela não ter muita capacidade de manter o grupo coeso, é um grupo formado só de mulheres, uma brigada só de mulheres, de manter todo mundo ali alinhado conversando, ela é uma brigadista nata, uma defensora nata. Então ela se emociona muito quando ela fala de tudo que ela perdeu nos incêndios de 2020, principalmente da fauna. Ela vê todos os bichinhos que ela cultiva, que ela cuida, porque ela mora no meio do Pantanal, é aquela visão cosmológica que a gente não tem, nós aqui. E aí ela se emociona muito, é um dos casos emblemáticos. Vergínia, que se emociona sempre quando ela fala. E ela luta com unhas e dentes mesmo para manter aquela APA. A APA muitas vezes com pouco incentivo, sorte que ali nós temos estrutura do pré-fogo, dos bombeiros e da marinha que dão suporte, porque de resto é muito difícil qualquer tipo de apoio ali, e queima. No passado foi a única unidade de conservação do Pantanal que não queimou, pelo trabalho dela, com o nosso apoio, com o apoio dessas instituições que eu acabei de citar, mas foi assim até os 49 do segundo tempo, para não queimar.
P - Você lembra de alguém contando alguma história dessas, como você contou da Vergínia, mas de outras comunidades?
R - A APA Bandeira, dona Nilza e seu esposo, eles são pescadores apicultores. Eles defendem as matas do rio Miranda, no Pantanal. Eles têm uma dinâmica de produção apícola totalmente diferente de qualquer pessoa. Eles têm uns barquinhos que eles descem processando, recolhendo os méis em caixas espalhadas pelo rio Miranda. E por isso eles resolveram se qualificar como brigadista, porque eles queriam defender as matas do Miranda que dão sustento para eles também, junto com a pesca. E a apicultura é importante para o pescador porque é no período que ele diminui a renda. No período de defesa ele diminui a renda mensal. E é onde o verão, que é onde a apicultura dá mais produção. E é uma atividade resiliente a eventos climáticos extremos. E quem trabalha com apicultura não trabalha com fogo. Então é importante, você muda a dinâmica da região. Eles quase morreram defendendo as caixas, tentando salvar suas caixas que estavam sendo queimadas nos incêndios de 2023. E foram hospitalizados, ficaram muito tempo hospitalizados e tudo, eles quase morreram, porque os enxames com a fumaça, elas se matam, porque assim, elas não fogem, elas entram na caixa, a caixa queima, morre todo mundo. Então, nessa de tentarem salvar, o fogo veio, inalaram muita fumaça e foram salvos, senão eles tinham morrido. Teria sido talvez uma das, mais uma, teria sido um caso É quase inédito, assim, em relação a... porque, infelizmente, tem brigadistas que falecem e tudo, nos incêndios, mas de uma população ribeirinha, assim, apicultor, talvez teria sido o primeiro caso.
P - E como que é para você, durante essas capacitações, ouvir esses relatos?
R - É uma mistura até de frustrações, porque, por exemplo, no caso dela, ela queimou o apiário dela, a grande parte, que há muito tempo eles trabalham, eles têm uma marca chamada Flor de Camalote, eles vendem para o Brasil todo, eles produzem muito mel, 11 toneladas a ano, é um grupo de pescadores e apicultores grande, é bem legal, todos da mesma família. Fazem parte de uma associação chamada Associação de Pescadores de Iscas de Miranda. E aí, quando eles perderam tudo e quase morreram, foram hospitalizados, a gente fez uma... A gente e outras instituições, até de pessoal conhecido de Miranda, tudo, fez uma campanha sensibilizando as pessoas para doarem para ela repor as caixas. Cara, não teve adesão nenhuma. Não teve adesão nenhuma. E aí é isso, assim, quer dizer, o sujeito... Como é que eu não vou falar isso para você ser insensível, assim? Mas a pegada do animal sensibiliza muito mais, do bicho sofrendo, sensibiliza muito mais que as pessoas. Muito mais. Muito. Daí você tem que trabalhar com isso. Então a gente foi lá, buscou dinheiro do Ministério do Trabalho, doamos várias caixas para ela de novo e tudo. Então assim, não sensibiliza. A situação das onças agora, que está muito em voga e tudo. A gente vem fazendo uma discussão desde 2021 que foram os eventos que é o stress hídrico e principalmente os incêndios é que mudaram o comportamento delas que agora elas de coexistência harmônica com as comunidades ribeirinhas agora elas estão literalmente na porta da casa delas e o ribeirinho tem uma relação diferente do pecuarista, que não é uma relação econômica, e eles não andam armados, não se defendem. Então eles têm um medo, até porque eles têm formas de trabalhar diferentes, chegam à noite, madrugada, e eles têm medo principalmente dos mais idosos e dos mais novos de acontecer algum acidente, porque o animal está literalmente todos os dias debaixo da casa deles, na palafita da casa deles. E a gente vem chamando a atenção das autoridades e das instituições que trabalham com a conservação do animal, para entender isso e propor medidas de defesas mais eficazes. Porque as defesas são caras, não é qualquer um que tem condições de colocar cercas elétricas, alambrado, eles não têm condições para isso. E ninguém quer se envolver com isso. E aí, inclusive, quando tem discussões sobre coexistência do animal, é para a pecuária, quer dizer, chamam os pesquisadores, chamam os proprietários rurais, não chamam os ribeirinhos que estão ali, centenas de famílias que tem ela todos os dias na porta de casa, literalmente. E isso é um exemplo do que eu estou te falando. Não há sensibilidade nesse sentido. Não há. Você tem que ficar provocando, chamar o Ministério Público talvez de provocar essas instituições, esperar não acontecer um acidente. Não tem.
P - Eu queria saber, você citou várias comunidades, mas eu queria saber de uma que você falou bastante, que é a Barra do São Lourenço. Como é que foi a primeira vez que você foi para lá?
R - Essa foi em 2005, logo nós tínhamos acabado de ajudar a construir a primeira escola, porque o secretário de Estado de Educação, na época, é um dos nossos fundadores. Então, isso facilitou muito. Na verdade, em 97, a ECOA tinha promovido uma expedição de Cáceres a Porto Martim, chamado “Rio Paraguai: suas Águas, sua Gente, com instituições de governo”, outras instituições da América do Sul, que era para discutir uma agenda de infraestrutura, que era o IRSA, que era uma iniciativa de rasgar a Amazônia, Portos, essas coisas. E aí a gente fez essa viagem quando se deparou com esse grupo que tinha acabado de ser expulso de onde eles viviam. Eles viviam em aterros familiares, em diferentes castas familiares, espalhados por uma grande área, com um comportamento muito similar aos Guató, quando os espanhóis chegaram. E eles foram expulsos justamente porque onde eles viviam tinha sido transformado em uma reserva particular, de uma fazenda, mas que eram áreas alagadas, ilhas, se transformou numa reserva particular, eles entendiam que tudo era deles, inclusive áreas que são da União, mas enfim. E aí se expulsaram as pessoas, não existia o Sistema Nacional de Unidade de Conservação, que é a lei de legislação que rege hoje sobre a Unidade de Conservação do país, e não existia Presidência do Estado, não existiam os defensores públicos, Ministério Público, não existiam aquilo na região. E aí nós vimos aquela situação de degradação humana mesmo, muita violência, eles debaixo de lona e tudo, e nós resolvemos voltar lá, a gente resolveu captar recursos, voltar lá anos depois, em 2004, 2003 para 2004, com alguns pesquisadores para fazer um amplo diagnóstico da região para entender o que tinha acontecido, tanto do ponto de vista biológico quanto do ponto de vista social. A gente identificou o conflito e a gente começa a trabalhar lá. Um dos casos, era demanda que tinha de escola, a gente ajudou na construção da primeira escola. E aí eu chego, quando eu iniciava o trabalho de organização associativa, com um ex-colega, que era um cara muito bom, Celso, e aí, lembrei, outro também que foi fantástico, e aí a gente iniciou o trabalho lá. E aí eu cheguei, na verdade, como um convidado. Não tinha um estágio ainda, nem nada aqui, não tinha programa, não estava registrado no programa de estágio, nem nada. Nós chegamos, eu cheguei como um convidado, do Alessandro Menezes, nosso ex-diretor-presidente. E aí é isso, os desafios de você organizar chapas de abaixo-assinados, de documentos, de ofícios. Então foi nesse ponto, de trazer outras perspectivas na luta deles.
P - E qual foi o impacto na sua vida dessa primeira visita?
R - Foi mágico dos dois pontos de vista, por duas formas. Uma, pela paisagem. Nós estamos falando de uma das paisagens mais bonitas do Brasil, que é a Serra do Amolar. É um negócio incrível, mesmo. Paisagem única. E, segundo, por ter aquele grupo ali de entender a dinâmica e você falar assim: “Poxa, eu quero fazer parte da resistência desse pessoal, da luta pela resistência desse pessoal, é direito deles permanecerem aqui”. É engraçado falar isso, porque até esses dias eu tive uma frustração muito grande, porque nós estamos com um processo engatilhado da criação da primeira Reserva de Desenvolvimento Sustentável, da Barra do São Lourenço, justamente para coroar o que começou lá em 2005, da falta de tenência, da falta de ordenamento jurídico que eles têm sobre o território, de gestão, de dominialidade sobre o território. E aí a Reserva de Desenvolvimento Sustentável, que é uma Barra Resecs. A gente vem trabalhando há 17 anos e agora com a atual gestão da Marina a gente está com o processo engatilhado e aí algumas pessoas externas chegaram lá e falaram que agora tudo é terra indígena e isso travou o processo. E para nós é muito frustrante porque a gente sabe que terra indígena é um processo muito longo, e que a gente pode, em 2026, não ter um governo como esse, a gente não voltar a falar durante oito anos nem de unidade de conservação, nem de terra indígena, e aí 17 anos serem jogados, quer dizer, do ponto de vista deles terem tranquilidade territorial, pode ser jogado no lixo por uma questão de mau planejamento, mal estratégia, uma ideologia meio complicada.
P - Eu queria pensar com você uma coisa. Estava comentando das campanhas do Queimada Mata e depois teve um período de cheias e esses eventos climáticos de seca extrema que tiveram depois de 2019. Eu queria que você falasse pra mim, o que você pensa, o que você vê de mudança dessa época do Queimada Mata, o que era o Queimada Mata naquela época e o que foi agora esses incêndios?
R - Excelente pergunta. Alguns bons resultados que nós tivemos lá não foram replicados nos últimos anos. Então, por exemplo, a parte de campanha, que você tem principalmente sensibilização em relação às BRs, que são indutores de incêndio. Você tem diversas causas hoje que começam dentro das BRs, até para você encobrir rastros, aqueles que colocam de forma criminal, criminosa, isso não foi absorvido como uma... Era uma herança que nós tínhamos deixado, então, por exemplo, outdoors, blitz, fiscalização de outras forças, outras instituições como, por exemplo, a própria Polícia Rodoviária Federal, junto com o DNIT, isso não foi absorvido dentro de um plano maior, apesar de a gente ter trabalhado num plano, que é o plano que hoje a gente tem, a gente tem a Política Nacional, outorgada no passado, mas a gente tem um plano que a gente ajudou para o específico Pantanal. A gente ainda tem muita dificuldade das instituições operarem, que era uma herança que a gente tinha deixado do Queimada Mata. À época, a gente tinha conseguido índices menores de queimadas nas áreas rurais das cidades, Corumbá e Campo Grande, porque isso tem uma série de impactos e efeitos em relação à cidade, você queimar o entorno, uma série para a fauna, para o Serviço Único de Saúde, para o SUS. Isso também não foi uma herança que vem sendo muito replicada. Eu acho que absorveram menos herança do que a gente tinha deixado, de forma mais exitosa, virtuosa, do que aplicaram coisas boas, eu acho. Eu acho que faltam mais coisas do que a gente aplicou nos nove anos agora, apesar do alto investimento e organização, do que de fato coisas boas.
P - E como era a campanha do Queimada Mata?
R - Era isso, era essa capacidade de você levar, de você sensibilizar a imprensa, outras instituições que fiscalizam, que monitoram com blitz e, principalmente, levar as pessoas às ruas. De você pegar um domingo ali na Afonso Pena, fechar a Afonso Pena em tudo e fazer a população brasileira, a população campo grandense inteira adesivar os carros, levar panfletos, escolas, tratar isso nas universidades, então era uma campanha muito ampla mesmo, de rádio, televisão ao pé no chão mesmo, com panfletagem, que hoje também isso parece não fazer mais sentido, mas tinha adesivagem de carro. E por anos depois que acabou a campanha, você viu os carros adesivados, as pessoas tinham orgulho disso, de trazer essa mensagem.
P - E como um biólogo há mais ou menos 20 anos. Como que um biólogo, 20 anos depois, vê esses eventos climáticos extremos que têm acontecido e acompanha as mudanças que têm acontecido no meio ambiente, nesses últimos 20 anos?
R - Como um biólogo vê isso? Como biólogo, a pergunta acho que é mais simples. Qual a nossa capacidade de uso dos recursos, intensificar o impacto que nós estamos tendo hoje? Então, por exemplo, quando a gente fala de seca, o Pantanal tem o ciclo seco de 50, 60, só que na época nós tínhamos um rio com leito. Então o rio tinha maior capacidade de armazenar água. Hoje, com o que nós conseguimos depositar de sedimento e com as barragens que seguram grande parte da água que deveria estar na planície, o impacto do efeito é maior, é mais intenso.
P - E pensando nas comunidades tradicionais, principalmente nos ribeirinhos, quais são as mudanças que você percebe nesses 20 anos de caminhadas próximo a eles?
R - Eles sentem, eu acho que ao longo do tempo, eu vou falar assim, do que eu imagino, pelo que a gente viu em 2020, 2021 e 2024, é os primeiros migrantes climáticos, os primeiros migrantes climáticos. Porque nós estamos falando assim, você imagina uma pessoa que não tem a capacidade como a gente tem de resiliência, de dormir dentro de um ar-condicionado, de uma estrutura. Hoje, você sai, vai para o banco, é ar-condicionado. Você vai para a oficina, você vai para o seu escritório. Você imagina pessoas que têm glaucomas pela incidência de luz, porque recebem luz de baixo para cima. Você tem pessoas que vão dormir fazendo 43 graus, como é a realidade hoje. Então você não dorme. Aí você já acorda numa situação de estrutura, de capacidade de trabalho extremamente reduzida, com inflação das coisas. Quer dizer, é cada vez mais difícil você ter condições de equipamentos e insumos para o seu trabalho, com as distâncias todas que tem e com as secas que isso te promove maior migração no território. Então as áreas que você utilizava para pesca e para isca, por exemplo, para coleta de frutos, hoje você não tem. Ou foi queimado ou secou e aí você tem que migrar para áreas mais distantes com um custo muito maior. Então eu acho que essa soma de tudo, para mim, vai provocar-se muito brevemente as primeiras migrações climáticas no Pantanal. E eles são os primeiros a sentir no mundo como um todo. Nos outros países, África e tudo aqui, não vai ser diferente. Infelizmente, para mim, isso vai ser...
R - Você já tem acompanhado isso?
P - Por exemplo, em 2020, eles não tinham água para beber. Então, você imagina, se a vida toda tinha o Rio Paraguai ali na sua frente, que te dá todos os recursos, principalmente água para dessedentação, e você não tem mais, você tem que receber doações ou pedir urgentemente uma estação de tratamento da água. Porque você não tem água, chegou a um nível tão baixo e com cinzas, que a água ficou não potável, água que você sempre utilizou. Então, se isso continua, é que em 2024 as previsões eram muito ruins e nós tivemos um alívio em relação a essas primeiras águas que chegaram agora. Como eu te falei, como aconteceu em 2023, isso pode mudar. Depende da carga de vento e calor que a gente pode sofrer, como aconteceu em 2023, mas a gente não está em uma situação confortável ainda.
P - E qual que é o maior desafio que você enfrentou na sua carreira, trabalhando com a conservação? Você consegue pensar nele?
R - Ah, eu acho que é agora da RDS. Tapa na cara que estava tudo pronto e aí essa discussão pode não criar. A gente tem um prazo curtíssimo. Talvez isso seja o maior, porque você imagina, você trabalha a partir de uma própria determinação do Ministério Público Federal, desde 2012 até agora, de juridicamente você resolver o conflito agrário da região, onde a comunidade vai ter seu espaço, seu território, sua dominialidade, sua gestão. Isso pode não acontecer, porque alguns entendem que aquilo não é coerente com uma terra indígena, mas a gente sabe que terra indígena não vai ser criada tão cedo. E aí está tudo bem se não for criado. Não é, porque as pessoas que discutem isso não são as pessoas que comeram pão com diabo amassou ali na ponta esses anos todos, com a tentativa de expulsões e falta de políticas públicas. Então, eu acho que isso é o mais frustrante. É o mais frustrante.
P - E as maiores conquistas?
R - Ah, não, mas aí tem uma dezena delas. Tem escolas, tem... Aí tem muitas, assim. Porto Esperança, capacidade deles permanecerem lá depois de tanta violência. Agroindústria, escola. Eu acho que é isso, assim. Tem vários. O próprio Paraguai-Mirim também, que foi tentativa de expulsão. De hoje eles discutirem uma outra situação, quer dizer, ninguém mais os expulsa, porque hoje eles têm TAUS. Acho que é isso.
P - Você quer contar a história do Paraguai-Mirim?
R - Na verdade, o TAUS é uma portaria, ele é um termo de autorização de uso sustentável. O governo federal em 2000... esses problemas em relação a produtores rurais, a propriedade da terra, do ribeirinho, do extrativista de usar, isso é eterno para a história do Chico Mendes. Aí, o que aconteceu? No Pantanal, a situação não era diferente. Você tinha os proprietários que achavam que a beira do rio, quer dizer, tudo no Pantanal, onde ele acha que a cerca dele vai… “É dele”, e não é assim. Muitas áreas são da União, claro que ninguém mexe com isso e tudo, mas você tinha a coexistência das comunidades ribeirinhas, e eles não entendiam isso. Então, muitos não queriam a presença dessas pessoas lá, porque: “Ah, o Porto é meu, a beira do rio é meu”, isso para rios estaduais é a mesma situação. E o governo federal para resolver essa situação no Pará, que eu acho que aí a gente está falando de um número muito maior de gente, eram mais de 6 mil famílias, talvez com a mesma situação, ilhas, que viviam em ilhas, aí chega um cara e fala assim: “Não, a ilha é minha, eu comprei isso aqui” - O cara queria ir pra um resort, pra um porto - “Não, eu comprei isso aqui, isso aqui é meu, eu tenho direito”. Isso aconteceu em Porto Esperança, mesma coisa. “Cara, eu quero montar um porto aqui. Isso aqui é meu, pode ir embora. Se vocês quiserem, no máximo, eu posso dar 5 mil aqui pra cada um, pra vocês não saírem de mão abanando”. Tudo ilegal. Tudo. Usando a falta da presença do Estado, que obviamente não tinha uma leitura do direito que eles têm, pra coagi-los, coibi-los, enganá-los. E aí o primeiro governo da gestão Lula traz, cria o TAUS, que é um instrumento que não é… Ele é frágil, mas ele é, o documento de entrada para você garantir que as pessoas tenham o mínimo direito. Até porque se o próprio governo federal tiver uma prerrogativa de, por exemplo, construir uma estrada, uma obra de interesse público e que as pessoas precisam ser desapropriadas, elas serão indenizadas. Caso contrário, não, porque elas não tinham absolutamente nada. Então é uma concessão que o governo federal dá para o ribeirinho, geralmente no nome da mulher, da matriarca, da família, para que eles continuem ali e tenham o direito de permanecer ali. E aí no Pantanal a resistência foi dos proprietários rurais. Então a gente começou a entregar mais de 150 TAUs para o Ministério Público Federal e SPU (Secretaria do Patrimônio da União), que é o órgão que... Esse órgão mudou, mas na época era ligado ao Ministério da Economia, eu acho. Hoje está no... Eu nem lembro qual o ministério que já está. Ele vai mudando, infelizmente. Escreveria do Patrimônio da União. E a gente foi entregando centenas de TAUs para muitas comunidades e no Paraguai-Mirim foi isso. Chegou uma proprietária lá e falou assim, “olha, eu não quero ninguém na minha margem”. E mais do que ela se incomodar alguém na minha margem, ela se incomodava com as pessoas da região. E aí ela tentou alguns mecanismos para que as pessoas saíssem dali. Nós estamos falando de 70, 80 famílias. E aí os TAUs acabaram com toda essa dinâmica que as pessoas tinham na época de querer tirar as pessoas de onde elas vivem.
P - Muito interessante. A gente está caminhando para o final agora. Queria perguntar uma reflexão pra você. O que é importante pra você hoje na sua vida? Pensando no seu trabalho e na sua vida pessoal.
R - A minha filha, sem dúvida.
P - E me conta como foi se tornar pai e como é o nome dela?
R - A Angelina. Eu escolhi o nome, Angelina. Foi um desejo de muitos anos. E eu sempre quis ter uma menina que tivesse uma infância como eu tive, como eu te falei, de estar no meio das coisas, do mato, de se relacionar muito bem com as pessoas. E hoje ela é a minha prioridade, até porque é um desafio hoje, com tantos vetores que te tiram do... Desafio de educar bem, né? E de ter uma leitura de sociedade justa, respeitosa, tudo, acho que esse é o maior desafio. Com tudo que as pessoas têm de acesso, essa avalanche de coisas e quando você deixa de ser individualista demais, narcisista e tudo, acho que esse é o maior desafio. Esse dia eu estava discutindo sobre a questão do sindicalismo. Por exemplo, com a Covid, com o trabalho remoto das pessoas, as pessoas deixaram de ter o momento dentro do escritório ou da empresa. E que no almoço é que se sindicalizava as coisas, os direitos do proletariado. Isso não existe. Então cada um hoje só defende o seu. O seu direito de permanecer em casa, com o seu direito de ter o seu salário, os seus benefícios e pronto. Então não existe mais a luta de classe. Inclusive, hoje, dependendo da pessoa que você vai fazer a entrevista, se não for remoto, a pessoa não quer. E aí isso traz um pouco para a questão de percepção de sociedade, de você criar uma pessoa, dar educação para ela, a formação, de que ela não seja assim, que ela se ponha no lugar do outro. E aí esses valores de solidariedade, tudo isso sejam claros como o meu pai teve, como o meu pai transmitiu. Acho que esse é o maior desafio e isso não é fácil, porque todo o tempo estão te vendendo outras coisas, estão te oferecendo outras coisas.
P - E o que você gosta de fazer com ela nos momentos de lazer?
R - Ah, com a Angelina? A gente assiste muito filme. Eu gosto de levar ela para, quando eu posso, eu gosto de levar ela para a chácara, para pescar. Falta ainda levá-la para o Pantanal, que daí é um desafio com a mãe, de, “ah, é mosquito, é perigoso, sol, insolação”, essas coisas. Então ainda, ela recém fez nove anos, então daqui a pouco ela deve... E aí tem o desafio da escola também, porque assim, perde prova, aí prejudica no ensino, então fica cada vez mais delicado, assim. Mas é viajar. A gente tenta viajar o máximo junto possível, assistir filme. Ainda não come carne, isso para nós é um problema, a gente gosta bastante de comer carne, para ela é importante, por causa do desenvolvimento muscular e cerebral, e aí para ela é um desafio ainda. Mas, enfim, é isso, a gente gosta de fazer essas coisas.
P - E qual é o legado que você deixa para o futuro?
R - Na verdade, confunde com o trabalho da ECOA. É isso: justiça social e ambiental. Fundamentalmente é isso.
P - E tem alguma pergunta que eu não tenha feito, que você queira contar, alguma memória que eu deixei passar?
R - Nossa, você fez todas as possíveis. Foi fantástico! Adorei essa linha de construção da entrevista. Nunca tinha visto isso. A gente recebe muita gente aqui, mas nunca tinha visto esse tipo de metodologia. Muito incrível.
P - E tem alguma mensagem que você queira deixar no final da sua entrevista?
R - Ah, eu acho que eu já deixei todas possíveis. Eu acho que principalmente isso, da parte das pessoas se importarem muito mais com as outras. Acho que essa é fundamental.
P - André, como foi contar um pouco da sua história? Eu sei que é um pouco de tempo e algumas perguntas, mas um pouco da sua história para o Museu da Pessoa hoje?
R - Cara, é muito diferente para você expor isso, apesar de coisas, memórias incríveis, mas como meu pai gosta de contar muitas histórias, quando a gente se encontra, ele adora ficar contando histórias, eu herdei bastante isso dele também. Essas coisas estão sempre na cabeça. Então foi legal só para expor um pouco elas, mas para nós isso é muito comum.
P - Tem alguma história que seu pai conte, que você guarda com carinho?
R - Uma história pesada, de quando a medicina... Ele sempre fala que a medicina evoluiu de forma muito rápida. E isso é fantástico, do ponto de vista da humanidade, porque aí ele conta um pouco como começou e da forma como começou, aprendendo tudo na garra, como tudo era muito agressivo, tudo era muito ainda, empírico. E aí o que mais ele conta são as histórias de decidir quem… De ver as pessoas morrendo por coisas mais simples. Então, por exemplo, a história aqui não é mais simples, é que hoje eu acho que acontece, mas existem mecanismos hoje que tentam evitar. Então, por exemplo, quando ele viu uma criança que consumiu um agrotóxico e a criança morreu nos braços dele, vomitando, convulsionando e tudo, em Aquidauana, por exemplo. Então, você imagina assim, uma distração de um pai, de uma mãe, a criança em um ambiente rural, pegou um recipiente, um veneno, que até hoje isso é uma realidade, mas como eu te falei, diferente, está mais ligado, apesar de que existe a situação dos Guarani-Kaiowás de pulverização, esse genocídio, isso é muito latente ainda, mas hoje existe visibilidade. Eu acho que isso foi uma das maiores. A mesma situação quando grávida era uma picada de cobra, que você tinha que salvar o bebê, não sabia se a mãe ia sobreviver. Então, ele iniciou a medicina num movimento de muitos desafios, muito pesados. E essa história ele contou mais recentemente para a gente. Ele sempre contou de um ponto de vista mais lúdico, igual, por exemplo, que existia um movimento como ele era do Exército, existiam umas campanhas que o Exército é que atendia, não existia FUNASA e SESAI. Então, o Exército é que fazia as campanhas de atendimento médico à gestão de saúde aos indígenas. Era comum em manobra militar, o que se chamava SISO. E eles tinham que atender todos os indígenas e ele também recebia muitos presentes e tudo deles. Ele contava isso com muito carinho, de forma muito lúdica e tudo, dos presentes. De manhã, tocava a sua campainha, batia à sua porta e tinha um pintado, frutas, leite de bocaiuva. Então, recebia um monte de coisas. Comida não faltava, porque eles eram gratos ao atendimento que eles recebiam, apesar que era um direito deles. Então, essa história das mortes, de como morreu e da tristeza que isso foi, foi bem mais recente.
P - André, em nome do Museu da Pessoa, eu te agradeço por compartilhar a sua história com a gente. Em nome do Saulo, da Thaís, em meu nome também, muito obrigada.
R - Imagina, eu que agradeço o carinho e o tempo de vocês.
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