Preconceito contra os nordestinos Um período difícil de minha vida foi quando vim para São Paulo na década de 70, migrante nordestina, de Campina Grande-PB com rápida passagem e estadia em Recife-PE. Vim de “Fuscão” modelo 1967, com dois filhos pequenos, a menor no meu colo, com apenas seis meses de vida, rasgando os três mil quilômetros que separam mais do que dois estados distantes, mas que separam tmbém dois estilos de vida completamente diferentes. Separam duas perspectivas de passado e de futuro quase que antagônicas. Viajei com a filha no colo para dar mais espaço para o filho de três anos poder dormir e descansar, e não é preciso falar da péssima qualidade das estradas e dos hotéis (naquele tempo não havia as famosas churrascarias gaúchas, hoje tão comuns ao longo das rodovias). A BR-116 era muito esburacada, e a Bahia, que tem 800 quilômetros de extensão Nordeste-Sul, parecia ter 2 mil quilômetros. Quando cheguei, fui morar no Parque Continental, bairro de classe média, metida a classe alta, e os olhares eram insinuantes. Olhares de reprovação ao nosso linguajar, aos nossos trajes e até um ranço de preconceito interessante e maquiado: como estes nordestinos têm dinheiro para vir morar aqui? No CEAGESP, logo nos primeiros dias, quando eu falava, era tratada por baiana (até por outros nordestinos radicados há mais tempo aqui). Havia um ar de espanto, de indignação e de ironia quando eu pedia jerimum em vez de abóbora, ou macaxeira em vez de mandioca, etc. Era um motivo de riso, mas jamais me deixei abater. Fazia uma pequena guerrilha para ir vencendo o preconceito, ou o preconceito indevido daqueles nordestinos aqui radicados há mais tempo. Ao dirigir o “fuscão” com a placa de Recife, vinham os gritos e as gozações, era um tormento. Depois de um ano, comecei a lecionar no SESI. Mudou o cenário, mudaram apenas as gozações e o estilo das mesmas. Uma colega me perguntou, para meu...
Continuar leitura
Preconceito contra os nordestinos Um período difícil de minha vida foi quando vim para São Paulo na década de 70, migrante nordestina, de Campina Grande-PB com rápida passagem e estadia em Recife-PE. Vim de “Fuscão” modelo 1967, com dois filhos pequenos, a menor no meu colo, com apenas seis meses de vida, rasgando os três mil quilômetros que separam mais do que dois estados distantes, mas que separam tmbém dois estilos de vida completamente diferentes. Separam duas perspectivas de passado e de futuro quase que antagônicas. Viajei com a filha no colo para dar mais espaço para o filho de três anos poder dormir e descansar, e não é preciso falar da péssima qualidade das estradas e dos hotéis (naquele tempo não havia as famosas churrascarias gaúchas, hoje tão comuns ao longo das rodovias). A BR-116 era muito esburacada, e a Bahia, que tem 800 quilômetros de extensão Nordeste-Sul, parecia ter 2 mil quilômetros. Quando cheguei, fui morar no Parque Continental, bairro de classe média, metida a classe alta, e os olhares eram insinuantes. Olhares de reprovação ao nosso linguajar, aos nossos trajes e até um ranço de preconceito interessante e maquiado: como estes nordestinos têm dinheiro para vir morar aqui? No CEAGESP, logo nos primeiros dias, quando eu falava, era tratada por baiana (até por outros nordestinos radicados há mais tempo aqui). Havia um ar de espanto, de indignação e de ironia quando eu pedia jerimum em vez de abóbora, ou macaxeira em vez de mandioca, etc. Era um motivo de riso, mas jamais me deixei abater. Fazia uma pequena guerrilha para ir vencendo o preconceito, ou o preconceito indevido daqueles nordestinos aqui radicados há mais tempo. Ao dirigir o “fuscão” com a placa de Recife, vinham os gritos e as gozações, era um tormento. Depois de um ano, comecei a lecionar no SESI. Mudou o cenário, mudaram apenas as gozações e o estilo das mesmas. Uma colega me perguntou, para meu espanto: - Como você pode ensinar aqui com a formação na Paraíba? Como foi que eles deixaram? A Delegacia de Ensino sabe disto? Se isto acontecia com colegas, podem imaginar com os alunos, com o fogo da juventude, a irreverência e a vontade de bagunçar. O meu "Boa Tarde" já era motivo de muita gozação, e tornava-se até empecilho para manter a disciplina da classe. A música “Paraíba Mulher Macho”, de Luiz Gonzaga, chegava a ser solfejada, e foi difícil - mas não impossível - me impor perante eles. Estas dificuldades foram sendo superadas uma a uma, cada vez deixando mais em mim um sabor de vitória, de passo dado, conquistado. De vez em quando ecoava no meu íntimo a sensação de uma mulher vitoriosa, e de uma vitória em constante progresso. Eu, que estudara na fazenda com professoras leigas, que só fiz a 4ª série com 15 anos, estava lecionando em São Paulo, a locomotiva que arrasta o meu país. Já casada, entre 1973 e 1975, fiz o curso de Estudos Sociais, com a responsabilidade de mãe e todas as outras responsabilidades domésticas. Meu marido viajava demais. Depois, na década de 80, fiz outra faculdade. Fiz concurso para professora do Estado e da Prefeitura, e em todos estes, a minha classificação superou a minha expectativa (e a de muitas colegas). Nessa época lecionava na Escola Estadual João Baptista de Brito, em Osasco-SP, e fui a única da escola aprovada no concurso. Mas a guerra, ou mais apropriadamente a batalha do preconceito continuava, no Parque Continental, nas ruas, nas lojas, nas escolas, etc. Um dia fui visitar com minhas filhas (já havia nascido a segunda filha) o Shopping Center West Plaza. Minhas filhas começaram a experimentar casacos, vários, como é comum entre as adolescentes. A atendente da loja comentou com a colega: - Odeio baianos. Chamei minhas filhas e fomos embora sem comprar nada. Devo reiterar, antes de concluir, que nem as piadas, nem as brincadeiras - algumas de mau gosto-, nem as anedotas, nem as muitas indiretas, nada disto atrapalha meu sentimento. Nada disto tem me abatido. Pelo contrário, é uma espécie de cimento valioso, um amálgama diferenciado de melhor quilate em duas pilastras mestras que estão a nortear minha vida: minha auto-estima e meu amor por este estado brasileiro. Estes percalços são fertilizantes de uma árvore que plantei e rego, a árvore de ternura e apreço por esta gente paulistana. Interessante e digno de nota: a recíproca não é verdadeira. Qualquer paulista ou paulistano que for ao Nordeste será bem tratado. Com uma dose mística de respeito, carinho, admiração e até inveja. Mas, não há traumas nem desejos de revanche, nem lamentos, porque é esta miscelânea de coisas, conceitos e preconceitos que faz e sustenta este país hamônico na sua diversidade – e chamado Brasil. (Depoimento enviado em 31 de agosto de 2008)
Recolher