Projeto: VLI – Estação de Memória: Porto & Pesca
Entrevista de Maria de Lurdes Diniz Santos
Entrevistado por Luiza Gallo e Ane Alves
São Luís, 27/09/2025
Entrevista nº: VLI_HV14
Realizada por Museu da Pessoa
Transcrita por Miriam Allodi
Revisado por Ane Alves
P1 - Primeiro, Dona Lurdes, eu quero te agradecer por nos receber aqui na sua casa.
R - Obrigada. Eu agradeço também a vocês.
P1 - Eba! E aí, eu vou começar te perguntando qual que é seu nome completo, a data e o local de nascimento?
R - O meu nome completo é Maria de Lurdes Diniz Santos, nascida no Porto do Mocajituba, município do Paço do Lumiar.
P1 - E que é que dia?
R - Dia 28 de setembro.
P1 - De que ano?
R - De 1960
P1 - Uau! E te contaram como foi o dia do seu nascimento?
R - Não, na verdade, não me contaram assim, porque minha mãe, foi assim... Antigamente no interior os pais nunca assim, explicavam as coisas pra gente direito. Mas eu nasci, quando meus pais... Que eu nasci, que eu me entendi um pouco, a minha mãe morava numa casinha de taipa, tapadinha de palha, coberta de palha. Não tinha parede de barro, era só coberta de palha mesmo. Era na beira do mangue. Quando as marés, era tempo de caranguejo, que eles andam, que o pessoal tem aquelas andanda de caranguejo e tudo, era tão perto do mangue que os caranguejos subiam pelas paredes e entrava para dentro de casa. Aí, como era antigamente, o pessoal mais antigo, aí minha mãe não deixava a gente comer, porque o pessoal do interior, antigamente, pra lá não existia, ela dizia que a gente não podia comer aquilo ali, que matava a gente. Aí, a gente começava a matar os bichinhos, porque ela dizia que não valia pra gente comer. Mas aí, de lá para cá, a minha mãe, com sete anos de idade, que eu estava, a minha mãe faleceu. Aí, a minha mãe faleceu, aí eu fiquei dentro da minha casa... Dentro da casa do meu pai, o meu pai viajou logo, foi atrás de outra companheira. Aí, ficando eu com mais três irmãos.
P1...
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Entrevista de Maria de Lurdes Diniz Santos
Entrevistado por Luiza Gallo e Ane Alves
São Luís, 27/09/2025
Entrevista nº: VLI_HV14
Realizada por Museu da Pessoa
Transcrita por Miriam Allodi
Revisado por Ane Alves
P1 - Primeiro, Dona Lurdes, eu quero te agradecer por nos receber aqui na sua casa.
R - Obrigada. Eu agradeço também a vocês.
P1 - Eba! E aí, eu vou começar te perguntando qual que é seu nome completo, a data e o local de nascimento?
R - O meu nome completo é Maria de Lurdes Diniz Santos, nascida no Porto do Mocajituba, município do Paço do Lumiar.
P1 - E que é que dia?
R - Dia 28 de setembro.
P1 - De que ano?
R - De 1960
P1 - Uau! E te contaram como foi o dia do seu nascimento?
R - Não, na verdade, não me contaram assim, porque minha mãe, foi assim... Antigamente no interior os pais nunca assim, explicavam as coisas pra gente direito. Mas eu nasci, quando meus pais... Que eu nasci, que eu me entendi um pouco, a minha mãe morava numa casinha de taipa, tapadinha de palha, coberta de palha. Não tinha parede de barro, era só coberta de palha mesmo. Era na beira do mangue. Quando as marés, era tempo de caranguejo, que eles andam, que o pessoal tem aquelas andanda de caranguejo e tudo, era tão perto do mangue que os caranguejos subiam pelas paredes e entrava para dentro de casa. Aí, como era antigamente, o pessoal mais antigo, aí minha mãe não deixava a gente comer, porque o pessoal do interior, antigamente, pra lá não existia, ela dizia que a gente não podia comer aquilo ali, que matava a gente. Aí, a gente começava a matar os bichinhos, porque ela dizia que não valia pra gente comer. Mas aí, de lá para cá, a minha mãe, com sete anos de idade, que eu estava, a minha mãe faleceu. Aí, a minha mãe faleceu, aí eu fiquei dentro da minha casa... Dentro da casa do meu pai, o meu pai viajou logo, foi atrás de outra companheira. Aí, ficando eu com mais três irmãos.
P1 - Mais velhos ou mais novos?
R - Mais novos, aliás, dois mais velhos e duas mais novas do que eu. O meu irmão estava com... Tinha um que estava com 12 anos, o outro estava com 9 anos e eu estava com 7 e a outra minha irmãzinha com 4 e a outra estava arrastando ainda no chão. Aí, meus irmãos, os maiorzinhos, os dois irmãozinhos homens que eu tinha. Justamente aquele que estava aqui ontem era um desses. Aí, o que ele fazia. Ele disse: minha irmã, tu fica aí com as meninas e eu vou no Porto atrás de um peixe e tu vai para as casas de fulano, atrás de uma farinha para nós comer. Nós estávamos só nós crianças em casa. E assim era. Eu pegava a menorzinha que tinha, botava aqui, nos quartos, aqui do lado, e pegava uma sacolinha e ia para casa de fulano, atrás da farinha, para gente poder comer. Quando, às vezes, eu chegava na casa de fulano com a farinha, saco de farinha na cabeça, a irmãzinha aqui de um lado, nos quartos, e a agarrada na outra pequenininha que estava andando. Ela até vai chegar aqui mais tarde. Aí, com isso, a gente foi se criando, nessa vida assim. Aí, a minha irmã mais velha soube, que a gente estava passando por essa crise. Aí, ela foi buscar a gente lá em casa, onde nós morávamos, no Porto de Mocajituba. Aí, trouxe pra casa dela. De lá, aí a vida foi mais complicada, porque ela...
P2 – A mais velha, ela não morava lá? Ela já morava em outro lugar?
R - Já morava em outro lugar, ela já tinha filho, ela tinha a família dela. Aí, o negócio foi mais complicado, porque ela deu a gente. Eu, com essa minha irmã, que ela vem até pra cá. Que nós passamos 50 anos sem a gente se conhecer. Eu já tinha ela como morta. E ela também pensava que eu também já tinha até morrido. 50 anos que nós não se via. Aí, agora ela retornou pra cá, pra São Luís, ela começou a andar atrás da família, até que nos encontramos de volta.
P1 - Vocês foram para aonde?
R - Nós fomos criadas aqui mesmo... Quer dizer, eu fui criada aqui mesmo dentro da ilha de São Luís e ela foi para o Rio de Janeiro, levaram ela para o Rio de Janeiro, porque nós vivíamos na rua, criada assim, na rua, entendeu? Aí uma moça agarrou ela na rua e levou para o Rio de Janeiro e eu fui para a casa de outra, ali mesmo, na Alemanha.
P2 - Alemanha é um...
R – É um bairro aqui mesmo dentro de São Luís. Pois é! E assim nos nós criamos assim. Aí, fui criada assim. Aí, eu passava um tempo na casa de um, outro tempo na casa de outro. E com isso eu fui crescendo, fui crescendo. Aí, foi o tempo que eu fugi da casa, que eu vivia muito maltratada lá, porque sabe como é, a gente humilde assim, pobre, filho de pobrezinho para estar em casa de família, sempre a pessoa sofre, na mão dos filhos de barão, essas coisas. Aí, eu sofria muito, eu apanhava muito. Aí, eu fugi. Quando eu fugi de lá eu estava com 17 anos. Aí, eu fugi de noite. Tinha uma empregada que trabalhava nessa casa, aí ela viu que eu sofria muito lá, aí ela me ajudou a fugir. Nós fugimos de noite, ela saiu do serviço, ia para a casa dela e ela me levou para a casa dela.
P2 - Só uma coisa antes, dona Maria. Lá a senhora trabalhava nessa casa que a senhora morava e estudava também, eles deixavam a senhora ir para a escola?
R - Não. Nessa época, não. Nessa época eu ainda não estudava. Eles não me deixavam ir para a escola. Eu era trancada dentro de casa, não saía para lugar nenhum. As roupas que eu usava, eram as roupas dela mesmo, que ela dava para eu me vestir. Aí, eu tinha vergonha de sair para a rua... Que aí eu já estava mocinha, e aí eu tinha vergonha de sair mal arrumada para a rua. Aí, com isso, a Magna, que era a mulher que trabalhava lá, ela disse: Lurdes, tu vai ter que sair daqui, que tu já tá grande, tu vai ficar nessa vida aqui todo tempo. Aí, eu disse assim: Magna, minha irmã, e para onde é que eu vou? Porque eu não conheço minha família. Eu não sei para onde minha família mora. Aí, ela disse: tu vai lá para casa, de lá de casa a gente vai ver se a gente faz uma procura da tua família. Que eu sabia que a minha família morava no Porto de Mocajutuba, mas eu não sabia para aonde era. Aí, assim foi. Ela me trouxe para a casa dela, eu já estava com 17 anos. Aí, eu arranjei um marido, que que justamente é o pai do meu filho mais velho, do Márcio, de um moreno alto que estava aqui ontem.
P2 - Como a senhora conheceu ele?
R - Lá através dela... Desse pai Do meu filho? Lá perto, que ele morava lá perto da casa que ela morava. Aí, lá eu passei com ele, lá eu passei quatro anos com ele lá. Depois também eu saí. Aí, depois de quatro anos que eu estava com o pai desse meu filho, foi que eu fui fazer a procuração... Aí, eu fui no mato tirar umas varinhas, pra gente fazer uma arapuca pra pegar bicho no mato. Aí, o facão escapuliu da minha mão, aí passou aqui na minha perna, até hoje está a marca aqui, ó. Aí, cortou aqui, aí eu fiquei uma porção de tempo doente. Aí, eu estava assim, sentada lá na porta da rua, quando vinha um rapaz vendendo peixe. Vendendo peixe. Aí ele passou gritando, “olha o peixe, olha o peixe, olha o peixe. Aí, eu achei assim, rapaz, aquele rapaz ali eu tenho assim, um pouco de lembrança dele. Aí, ele encostou. Ele encostou lá na barraquinha, pediu uma água. Aí, a mulher lá deu. Aí, eu fui investigar ele. Eu disse, assim, “moço, o senhor vem de onde?” Aí, ele disse: ah, eu vim do Porto do Mocajutuba. “Você vem de lá vendendo peixe andando?” Ele disse: é! Aí, eu fui procurar pra ele, eu disse: moço... Mas não sabendo que ele era meu parente, entendeu? Aí, eu disse: moço, você não conhece um senhor por lá, não sei se ainda é vivo, não sei se ainda mora por lá. Que é lá do Porto Mocajutuba, que se chama Martinho? Aí, ele disse: Martinho? “É!” Aí, ele disse: olha, eu sou neto dele. Aí, aquilo chega me deu assim, aquela coisa por dentro, aquele vento frio. Digo: você é neto desse Martinho? Aí, ele disse: sou! Aí, eu disse: pois eu sou filha desse Martinho. Aí, ele disse: O que? Disse: é! Sou filha dele. Só que eu saí de casa pequena, não tenho lembrança aonde ele mora, não tenho mais lembrança dele. Aí, com isso, através dele, eu fui procurando a minha família. Encontrei a minha família de volta. Aí, me separei do pai do meu filho. Porque eu arranjei a minha família, aí me separei do pai do meu filho mais velho e fui para minha família. Levei o meu filho, e com isso eu fui criar o meu filho só e Deus, e a ajuda da minha família. Aí criei. Aí, depois dele, arranjei outro marido, que justamente casei também.
P1 - Dona Lurdes, como foi encontrar sua família?
R - A minha família, como eu falei, foi através desse rapaz.
P1 - Mas o que você sentiu? Como foi?
R - Ah, uma reação muito boa! Você já pensou? Eu de alegria. Uma pessoa que andava no mundo sem parente nem aderente. E de repente, encontrar assim, é bom demais!
P2 - E como eles te receberam? Estavam quantos irmãos lá, quando a senhora reencontrou?
R - Não, na verdade foi assim, quando encontrei esse meu sobrinho... Eu encontrei esse meu sobrinho vendendo peixe, eu morava com esse pai do meu filho mais velho que eu estou lhe falando. Só que eles também eram assim, como era o primeiro filho também dele, e era o primeiro meu, aí eles não queriam que eu fosse embora e levasse o menino. Aí, eles prenderam, tomaram o menino de mim e prenderam lá na casa deles para lá, o menino molinho ainda. Aí, eu chorava, porque eu escutava o menino chorando pra mamar, e eu não podia ir dar mama pro menino. Aí, tinha um marido da minha ex-cunhada, que morava lá perto, que era pegado. Aí, eu convidei ele, eu disse... Até esqueci agora o nome dele. “Tu me ajuda a fugir daqui?” Aí, ele disse: Lurdes, não dá, porque esse pessoal, se eu te levar daqui eles vão ficar com raiva de mim e tudo. Aí, tudo bem! Eu digo: então deixa. Eu vou ficar por aqui mesmo, assim mesmo, até... Quando foi um belo... Aí, esse meu sobrinho chegou lá, espalhou por lá, para a minha família toda, que ele tinha me encontrado. Meus irmãos, quando eu pensei que não, chegaram uma turma lá na casa que eu morava. Eu morava numa casinha de taipa. Também nessa época era as casinhas tudo de taipa. Aí, quando eu pensei que não, invadiram. Invadiram lá, me agarraram, agarraram meu meninozinho, que era molinho de colo. E saíram comigo. Saíram comigo, aí o carro estava mais na frente, aí me botaram no carro com o meu meninozinho. Aí nós fomos embora. Aí, eles me levaram. Aí, para lá que eu fui conviver junto com a minha família. Foi dessa época pra cá. Aí, eles ainda lutaram pra lá, ainda botaram polícia, para tomar o menino, aí ainda fomos em questão. E com tanto, que graças a Deus, a gente resolveu tudo e eu terminei criando mesmo meu filho.
P1 - E você reencontrou seu pai?
R - Reencontrei minha família toda, toda. Só faltava essa que morava para o Rio de Janeiro, que estava com 50 anos, que a gente nunca... Sabia nem notícias, uma da outra.
P1 - E aí, quando você já tinha reencontrado sua família, você se casou novamente?
R - Sim, sim.
P1 - Como que foi?
R - Aí eu vim para cá pro... Que eu tinha essa, minha irmã mais velha, morava aqui, num lugarzinho ali perto, que chama Rio dos Cachorros. Aí, ela morava para lá. Como aconteceu isso deles terem me tirado de lá assim, na marra, sendo que eles não queriam deixar eu sair, por causa do menino. Aí, eles me trouxeram pra cá, para esse lugar, Rio dos Cachorros. Aí, nesse lugar, nesse Rio dos Cachorros, eu encontrei realmente, justamente, o pai de 12 filhos meus. Eu casei, passei 38 anos com ele.
P1 - E como que você conheceu ele?
R - Numa festa.
P1 - Você ia na festa?
R - Ia, ia numa festinha. Só assim... Eu ia numa festinha, mas só que eu não sabia dançar, ia só para olhar os outros.
P1 - Ah, é?
R – Era! Que eu não sabia dançar, eu não saía. Quando eu morava... Eu não ia para festa, eu não ia para lugar nenhum.
P1 - Aí você encontrou o seu marido? O seu ex-marido, né?
R - Sim, esse meu ex-marido.
P1 - Conta pra gente como que foi lá na festa.
R – Assim! Aí, eu estava sentada lá na festa, e ele também apareceu, aí ele veio, me convidou pra dançar. Aí, eu disse pra ele: Ó, rapaz, olha, eu sinto muito, mas eu não sei... Eu não sei dançar. Aí, ele disse assim: você não sabe dançar? Eu disse: não. “E você tá aqui na frente...” “Eu vim só olhar os outros dançando, mas eu mesma, não sei, porque eu não fui criada assim, em festa. Eu expliquei pra ele. “Eu fui criada em casa de família, criada presa, assim, eu não eu saía para lugar nenhum. Então... Depois, agora, que eu saí de lá, é que eu vim aqui nessa festazinha, mas não sei dançar.” Aí, ele, tudo bem. Aí, com isso. “Então, você não sabe, então vamos ficar aqui mesmo conversando assim, conta da sua vida e eu da minha.” E com isso foi pegando... Só que ele morava bem perto da casa da minha irmã, esse rapaz. Aí, de lá, ele ia lá na casa da minha irmã, aí eu ia lá na casa da irmã dele também, onde ele morava. E com isso nos fomos pegando aquela amizade, até que a amizade deu certo. Aí, fui me embora pra casa do meu pai de novo, com o meu filho. Fui me embora de volta lá para o Porto de Mocajituba. Aí, fui me embora, levei o menino, e fui para lá. Quando passou quase um mês, quando penso não, ele chegou, mais um sobrinho meu, filho dessa irmã que morava aí no Rio dos Cachorros. Aí, eles chegaram, aí eu disse, assim: Rapaz, o que vocês vieram fazer? A irmã dele, “você vai pra onde?” Ele disse: rapaz, vou arrumar o Badu lá no Mocajituba, nós vamos pescar. “E vocês vem quando?” Aí, disse que ele falou, assim: Ah, nós só vem de lá agora, quando cada qual trazer uma mulher. Era ele e o meu sobrinho. E parece que os anjos disseram amém, que deu tudo certo. Quando ele voltou, ele já me trouxe de novo para o Rio dos Cachorros e meu sobrinho trouxe a outra mulher também, pra ele. E com isso nós convivemos a nossa vida, 38 anos.
P1 - Lá no Rio dos Cachorros?
R - Lá no Porto do Mocajituba. Lá foi que eu tive todos os meus filhos, criei todos eles, foi lá no Porto Mocajituba, no mesmo lugar que eu nasci.
P2 - Dona Lourdes, e quando que a senhora estudou?
R - Eu estudei já depois que eu já tava... Eu estudava à noite. Estudei já depois que eu procurei família, que eu comecei, foi que eu estudava à noite.
P2 - Depois que a senhora já tinha filho?
R - Foi.
P2 - Quando estava casada com esse senhor?
R - Foi. Aí, ele ficava em casa pra onde os meninos e eu ia pra escola de noite.
P1 - E Dona Lourdes, você casou com esse segundo marido com quantos anos?
R - Com esse daqui?
P1 – Não, com o primeiro.
R - Com o primeiro? Eu estava com 19.
P1 - E posso voltar só um pouquinho?
R - Sim.
P1 - Você tem recordações da sua mãe?
R - Tenho.
P1 - O que você lembra dela?
R - Ah, da minha mãe, eu lembro o corpo dela todo. O jeito do corpo, o cabelo, tudo dela eu me lembro, tudinho, tudinho, tudinho. Nunca esqueci da feição da minha mãe.
P1 - Que que você mais gostava de fazer com ela?
R - Roça. Nós íamos para roça, ela ia pra roça mais o meu pai, aí nós éramos uma porção de menino pequeno também. Eles tinham uma porção de animal, que era jumento, aí fazia aquele jacá, aí botava os menorzinhos dentro do jacá, um sentava de um lado, outro do outro, os maiorzinhos, sentado em cima do jumento. Aí, levava a gente para a roça, lá para fazer aquela casinha no aceiro da roça. E levava nós tudinho. Aí, os maiorzinhos ia ajudar ela capinar, apanhar uma verdura. E os pequenininhos ficava dentro da casinha lá. E assim eu me criei junto com minha mãe, foi em roça.
P1 - E você brincava? Tinha tempo para brincar?
R - Tinha. Tinha tempo.
P1 - O que você gostava de brincar?
R - Brincava de pega-pega, brincava de casinha, brincava de um negócio que eu não sei se vocês entendem, que chama chucho. No inverno a gente fazia assim um arame... Uma pontinha no aramem, aí nós ia jogar no chão assim ó, tá! Aí, o arame enfiava, aí nós puxava para ali e ia fazendo um desenho no chão. Aí, com isso aí, esse dito ferrinho, uma vez eu joguei e ele enfiou aqui na minha unha que varou bem pra cá. Mas eu tive, brinquei muito, graças a Deus. Eu brinquei muito, nessa época, era pouca gente no interior que nós morávamos, ainda não tinha muita gente, nós brincávamos só de calcinha.
P1 - De tanto calor?
R – Não, é porque antigamente não tinha essas maldades que tem hoje em dia. A gente era uma porção de menina, menino, tudo banhando na maré, tudo nu, assim que era, lá no meu tempo, onde eu nasci, me criei. Era assim, nós ia tudo para a Maré, aí era menina, menino, brincar na maré, tomar banho, e todo nuzinho. Não tinha maldade em nada, hoje em dia. Hoje em dia uma criança nasceu, você não pode mais nem deixar ele sem uma fralda, por causa da maldade que já é demais. Pois é! E assim eu fui convivendo.
P1 - E o que que você gostava de comer na sua infância?
R - Minha irmã, a minha comida na minha infância era o peixe, que nós moravamos mesmo na beira do Porto, com pirão de farinha, que nessa época, nem arroz, era muito difícil a gente ver arroz. O nosso pai... Eu fui criada comendo peixe fresquinho na hora, com pirão, farinha, bota o caldo dentro de um prato e largava a farinha, fazia aquele pandu, para comer com peixe cozido.
P1 - Você falou que você morou na frente, na beira do mangue.
R – Justamente, foi onde eu nasci. Na beira do mangue.
P1 - E quando você começou a pescar, a pegar os caranguejos? Como que era isso? Dos caranguejos que subiam nas casas?
R – É, porque os caranguejos, eles andavam muito. Na época não tinha muita tiração de caranguejos, que nem hoje, que o povo vive mais disso. Lá no meu lugar, onde eu nasci e me criei, lá, o pessoal lá convive só de tiração de caranguejo. Eles saem dia de terça-feira, aí chegam só na sexta-feira, com as canoas cheias de covo de caranguejo. E nessa época não tinha isso. Nessa época era muito difícil a pessoa comer um caranguejo. Tinha muito caranguejo que andava assim, pelos terreiros assim, que a gente morava perto do mangue mesmo. Pois é! Aí, nessa época era bom demais, tinha muita fartura, muito peixe, muito caranguejo.
P1 - E quando que é quando que você começou a comer os caranguejos?
R - Quando eu já estava já grandinha já, que às vezes eu via os outros comer, aí eu também fui passando a comer, eu fui aprendendo a comer caranguejo. Aí, nós tínha caranguejo, sururu, sarnambi, ostra, tarioba, que vocês não conhecem, mas é um marisco também da praia, da maré. Tirei, trabalhei muito com isso aí, com essa tarioba. Que a tarioba a gente tirava por dúzia, às vezes, a gente esticava a areia assim, a gente vai cavando, cavando, cavando a areia, aquelas coroas de areia, como daqui, distância. A gente saía cavando com as mãos assim, ia encontrando e ia tirando. Aí, a gente vendia, tirava de 60, 70 dúzias.
P1 - E com quantos anos você aprendeu a fazer isso?
R - Ah, quando eu já tinha filho, já.
P1 – Ah, mais velha um pouco.
R - Já mais velha que eu comecei já a lutar com essas coisas, pra mim poder ganhar um dinheirinho para poder sustentar os meus filhos. Porque eu criei 12 filhos, eu tinha o pai, mas o pai pouco ajudava, entendeu? Pouco ajudava. Eu que ficava na luta, eu ia tirar caranguejo, ia tirar caranguejo. Eu tirava sururu, eu tirava sarnambi, ia tirando os quilos, de quilinho, botando na geladeira, e de quilinho em quilinho... Quando era final de semana, dia de sábado, eu ganhava a rua, eu ia vender o sarnambi, ou sururu. E os caranguejos, eu fazia as pencas de caranguejos, de três caranguejos numa cambada, aí amarrava, fazia 30, 35, cambada de caranguejos e amarrava tudinho num pau de carga. Você sabe o que é pau de caga, não?
P1 - Não? Explica pra gente?
R - O pau de carga é o seguinte: você pega um pedaço de pau grande assim, aí você faz um cortezinho assim, de um lado, um cortezinho de outro, aí você amarra as cordas de caranguejo, aí bota aqui no ombro, o pau aqui, ó. Aí fica uma trouxa de caranguejo para o lado, para frente e a outra lá para trás. Aí, saía na rua vendendo, gritando, “ó caranguejo, ó caranguejo, ó caranguejo. Eu andava o dia todinho, para vender 60 cambadas de caranguejo. Às vezes, eu vendia tudo, às vezes, não vendia, ainda sobrava ainda, pra mim. Aí, chegava, fazia minha despesinha, comprava logo um comezinho para levar para casa, para os meninos, um arrozinho. As minhas coisinhas. Aí, com isso, foi indo.
P1 - E foi assim que você criou seus 12 filhos?
R – Foi, sim senhora. Eu criei 12 filhos, nessa luta, vendendo sarnambi, caranguejo, ostra, tarioba. Assim que criei meus filhos. E pescando na maré, pegando peixe, pescando de tarrafa, de espinhel, pegando os peixinhos, para a gente poder comer.
P1 - E qual que é a diferença dessas pescas?
R - A diferença, porque é assim, cada tipo... Tem pesca, que nem o caranguejo, é na lama, dentro do mangue, na lama. Já o sururu, o sururu também é na lama, beirando o mangue, entendeu? Pelo lado de fora do mangue, beirando assim, o lavado. E o sarnambi, o sururu e a tarioba, que nem eu estou falando, já é na areia, nas croa de areia. Aí, cada tipo tem umas moradas, do tipo das coisas que eu tirava.
P1 - Você tem preferência? Tem algum que você gosta mais de fazer?
R - Tem. Na verdade, eu gosto de todos, porque de todos os tipos de pescaria, eu sempre gostei de fazer, trabalhei de todo jeito. Mas assim mesmo, o que eu mais gosto assim, de sempre fazer, é pescar.
P1 - Por quê?
R – É porque a pescaria, sempre é assim, a gente vai pescar, aí chega lá, a gente... Às vezes, bota a rede, aí os peixes já vêm assim, na malha da rede, a gente não tem aquele trabalho de estar andando em lama, entendeu? Se atolando até no meio da cintura, pra poder sair. Então, com a rede a gente bota dentro da água, sobe para a canoa, e fica só esperando o peixinho ir encostando na rede pra gente poder ir pegando.
P1 - E como que é a sua relação com o mar? Com as águas?
R - Eu gosto muito. Gosto muito do mar. Só para você ver que eu gosto muito do mar, que hoje eu sou diabética, sou hipertensa, sou deficiente visual, mas preferi fazer o meu canal de pesca, pescando. Porque sempre eu gosto da praia.
P2 - Dona Lourdes, em que momento a senhora perdeu a visão?
R - Olha, quando eu perdi minha visão, eu estava com uns 40... Uns 40 anos, por aí assim.
P2 - A senhora quer contar pra gente como que isso aconteceu?
R – Sim. Da minha visão foi assim, porque na verdade eu não tinha condição mesmo de me cuidar, porque eu trabalhava muito e não queria deixar meus filhos andar passando necessidade, e tudo, a fraçãozinha que eu ganhava era para casa,
não tinha condição de me cuidar, fazer exame de vista, comprar óculos, essas coisas. Nós somos quatro irmãos assim, deficientes. Aí, com aquilo foi indo, foi indo, aí foi o tempo que a diabete chegou, q aí eu também não me cuidei com a diabete logo cedo, aí ela ficou muito alta, e com isso perdi a visão. Por causa da diabetes.
P2 - E como foi esse momento? Como foi pra senhora se acostumar a fazer as coisas que a senhora já fazia?
R - Pelo tato mesmo. Pelo tato mesmo, que eu fazia antigamente, desse mesmo jeito, ainda vou pelo tato. Olha, eu pego um peixe, eu vou consertar ele, e eu não enxergo o peixe, mas eu vou apalpando aqui, ó, eu vou apalpando, aí eu pego a cabecinha dele aqui, aí eu passo o dedo aqui, sei a distância que eu vou cortar aqui, aí passa a mão aqui, aí vejo que a barriga dele está aqui, aí eu passo a faca cortando assim. Assim que é! Eu faço minhas coisas assim, só pelo tato mesmo.
P2 - Mas quando a senhora perdeu a visão, a senhora ficou um tempo sem pescar?
R – Fiquei.
P1 – Aí, como que a senhora tomou a decisão de...
R – Aí, depois eu tomei a decisão. Disse: Rapaz, ó! Os meus filhos cresceram, tudo já procuraram família. Eu fiquei assim... Assim, quase assim, abandonada, sem poder ir para a maré pescar, sem poder sair mais, porque eu não andava mais só. Aí, foi que eu fui e disse assim para o meu filho. “Meu filho, bora inventar alguma coisa, para mim ao menos sair de casa, porque se eu ficar só dentro de casa, eu ainda vou ficar mais doente, porque eu fico pensando nas minhas coisas que eu fazia, eu andava para aqui, andava para acolá, vendia minhas coisas, ia para a maré. Hoje eu me sinto.... Só dentro dessa rede, sentada aqui, não dá!” “Mamãe, a senhora quer fazer o quê? Meu filho, bora abrir um canal para gente no YouTube?”
P1 - Você que deu a ideia?
R – É! Aí, digo: Meu filho, bora abrir um canal pra gente no YouTube. Aí, ele ainda falou assim: mamãe, mas como? Que ele não sabia mexer. Como é que nós vamos fazer isso? Digo: olha, a gente vai atrás. A gente vai atrás de quem já tem, pra gente saber como é. Aí, assim fiz! Eu fui no lugar... Tem umas filhas que moram na Pirâmide. Aí, eu fui lá, quando eu cheguei lá, tinha um rapaz lá que também trabalhava. Aí, ele foi e abriu o canal para mim, direitinho. Disse: tá aí Dona Lurdes, tá aberto o seu canal nos vídeos, gravar e passar para o YouTube, para a televisão. E pronto” Aí comecei.
P1 - E qual que é o nome do seu canal no YouTube?
R – É Lurdes Diniz.
P1 - E o que você costuma postar?
R - Depois, quando terminar aqui, eu vou botar um pouco para vocês olharem aí na televisão. Para você ver o que eu faço no meu canal.
P1 - É você que filma Dona Lurdes?
R - Não, quem filma é o meu filho. O outro filho ali, que grava. Eu vou só fazendo as coisas ali e ele que fica falando tudo, e ele fica gravando. Aí, quando chega em casa, ele vai editar tudinho, para reparar se tem algum erro no vídeo, se tem algum erro, aí ele vai reparar todinho. Aí, se tá tudo limpo, ele envia pro YouTube. Ele que ajeita tudinho.
P2 - Quanto tempo tem esse canal do You tube?
R - Já está com três anos?
P1 - E Dona Lourdes, aí voltando. Eu queria saber como que foi se tornar mãe para você? Como é que foi se tornar mãe?
R - Na verdade, se tornar mãe, foi bom, porque eu comecei a ter meus filhos, mas também, ao mesmo tempo, não foi muito bom, porque eu cacei marido, casei, pensando que ia viver uma vida mais... Mais tranquila. Na hora piorou de tudo, porque piorou pelo lado, melhorou por outro, porque Deus me deu meus filhos. E eu pensava que eu ia ter mesmo o pai do meu lado, para estar me ajudando em tudo. E na hora o consumo foi mais meu. Mas graças a Deus, com o poder de Deus, que até hoje ele me protege, protege todos os meus filhos. Que eu criei meus filhos com todo trabalho, sacrifício. Hoje em dia eu tenho 12 filhos, mas não tenho nenhum formado em nada, entendeu? Eles todos trabalham mesmo por conta assim, por diária. É ajudante de pedreiro, é pedreiro e capinando e essas coisas assim, entendeu? Porque não tem nenhum que estudou bem, porque eu não tive condição de dar um bom estudo. Você sabe que nessa época também, os estudos eram mais difíceis, e eu não tive condição de botar para estudar, para se formar ninguém. Aí, eu não tenho nenhum formado, nenhum empregado. Todos trabalhão assim, por diária, para um e para outro. Todos eles.
P1 - E seus filhos pescam?
R – Pescam. Todos eles. Meus filhos todos são pescadores. Tudo.
P1 - E eles aprenderam com quem?
R - Comigo. Nós pescando.
P1 - E como é que você ensinou para eles?
R - Eu levava para a maré também. Os maiorzinhos. Levava para maré. “Meu filho, hoje nós vamos pegar um peixe para nós comer.” Aí, nós pegava uma redinha, saía beirando a maré. Aí, ele, como era menor, ficava mais para o lado do raso e eu ia mais pelo lado fundo. Aí, arrastando a redinha, aí nós pegava um camarãozinho, pegava um peixinho, siri. O que nós pegava levava para casa para comer. Assim que era.
P1 - E você ia explicando tudinho?
R - Tudinho, tudinho. Aí, eu ia pra maré, tirar sururu. Já pra Maré, pra tirar sururu, eu não levava eles, porque era longe, e nós andava muito embarcados, na verdade, e eu tinha medo de acontecer qualquer coisa, porque no meio da água, sabe, canoinha pequena, de repente a gente se naufragar no meio da água e meus filhos morrerem afogados. Aí, eu não levava eles para tirar o sururu. Deixava eles em casa. Digo: ó meus filhos, eu vou tirar o sururu, vocês vão no mato, pega o facão, vão tirar os pauzinhos secos, a lenha, para quando eu chegar cozinhar o sururu. E assim era.
Ia pra maré, tirava sururu, tirava dois, três sacos de sururu, cheio. Daí chegava em casa, eles já estavam com os montinhos de lenha já lá, só para fazer o fogo. Aí, nós íamos tirar umas tripinhas que ele tem, tudinho. Dá trabalho. A gente chega com o sururu, ele tem umas tripinhas, que ele fica grudado na lama. Aí, quando a gente chega em casa, que vai tirar essas tripinhas de um por um. Para você ver. Olha, eu passava era a noite todinha, sem dormir, tirando as tripinhas do sururu. Quando terminava de tirar essas tripinhas deles tudinho, a gente vai botar na panela para cozinhar, para ele abrir, que ele abre. Que ele tem a casca, aí a gente bota no fogo, aí ele abre, e a gente vai tirar a favinha que tem dentro. Aí, de novo também, de um por um, tirando aquela favinha de dentro, ia botando na bacia, botando para ali. Aí passava noite e dia, trabalhando com ele. Aí, às vezes, dava para eu tira 5 quilos. Às vezes, 6 quilos. De sururu para vender no final de semana. E eles todos me ajudando, trabalhando ali. Todos me ajudando. Aí, eles já estudavam, aí os que estudavam de manhã, iam para a escola. Os que estudam de manhã, vão para a escola. E os que estudam à tarde, me ajudam aqui pela manhã. Quando chegava os que chegavam da escola de meio dia, aí já iam me ajudar, e os que estudavam a tarde, iam para a escola. Assim que era.
P1 – E como que você se preparava para pescar?
R - Se preparava, assim, porque nós levava a farinhazinha, aí arranjava a canoa, que nessa época não tinha mesmo, a canoinha, pedia emprestado. Quando nós chegava, tinha que dividir ainda o apuro que a gente fazia, para pagar o aluguel da canoa. Levava a farinhazinha, chegava lá, tirava o sururu, botava lá para fazer o fogo lá no meio da lama e botava os sururuzinho para cozinhar e lá nós ia comendo com farinha. Assim que era. Eu tenho desses vídeos feitos bem aí.
P1 - A gente vai ver já, já.
R - Eu tenho esse vídeo cozinhando na beira da maré.
P1 - Que lindo!
R - Eu tenho aí. Tudo já gravado aí no YouTube.
P1 - E Dona Lourdes, você tem alguma história difícil de um dia de pesca?
R - Tem. Tem um dia difícil de pesca.
P1 - Como que foi? Você pode contar para nós?
R - Nós fomos numa canoinha que nós tínhamos, que eu mais meu irmão conseguimos comprar uma canoinha. Só que ela era muito pequenininha, mas era o que o dinheiro deu pra gente conseguir, foi ela. Aí, assim mesmo, nós fomos nela. Quando nós chegamos no meio do mar, os banzeiros estavam muito fortes.
P2 – Os o quê?
R - Os banzeiros, as ondas, estavam muito forte. Cada banzeiro, chega a canoa subia. Subia assim e descia, “tchau”, pro fundo assim. Aí, eu fiquei com nervoso. Aí, eu fiquei nervosa, gritando meu irmão, “bota essa canoa para a beirada.” Minha irmã, agora não tem como, porque se eu for mexer com a canoa aqui, nós vamos para o fundo da água.” Aí, desde esse tempo pra cá, eu fiquei com um pouco de nervoso, entendeu? Aí, eu também não andei mais assim pra longe, embarcado. Não andei pra longe que eu fiquei com nervoso, desde essa época, eu fiquei com nervoso. Porque na época, eu ainda enxergava um pouco, aí agora já não enxergo nada. Aí, eu tenho medo assim, de acontecer... Que em maré você sabe que é um perigo. Aí, eu tenho medo de naufragar no meio da maré e eu não saber nem para que lado que eu nado. No lugar de eu nadar para a beirada, nado mais para o fundo. Aí, eu tenho medo. Às vezes, eu vou fazer vídeo, aqui mesmo, com os meus meninos. Eu vou! Mas o coraçãozinho vai desse tamaninho. E me pegando com Deus, com Deus todo o tempo. Mas eles sabem andar comigo direitinho, quando as ondas estão meio altas, eles vão mais beirando. Assim que é. Mas nós grava, grava. Daqui a pouco bota a maioria aí para vocês assistirem aí um pouco das nossas aventuras.
P1 – Então, você vai com nervoso mesmo?
R - Vou com nervoso mesmo. Porque eu gosto, eu gosto da aventura, Gosto mesmo. Foi um lugar onde eu me criei, criei 12 filhos, e até hoje eu gosto da aventura do mar. Gosto daqueles cozidão na beira da maré, aqueles assadão. Eu tenho tudo aí. Tudo comendo fresquinho ali na hora.
P1 - É, dona Lourdes, você tem alguma história engraçada no mar?
R – Engraçada eu tenho demais. Quando você assistir aí os vídeos, até você vai achar graça, as molecagens que a gente faz dentro da canoa. Quando nós pegamos os peixinhos, que às vezes, nós pescamos de linha, jogando um anzolzinho dentro da água, com uma iscazinha, de camarão, aí joga lá. Vamos ver se a gente pega logo o do cozido. Porque quando a gente sai de casa, o canal já é aventura. Então, não adianta você sair de casa, leva carne, leva galinha, leva isso, leva aquilo. Que você não vai fazer aventura, você vai é fazer banquete. Então, a gente sai de casa com um pouquinho de farinha. Bota um pouquinho de farinha dentro de uma sacola, um pouquinho de sal e vamos para a maré. Vamos fazer a nossa aventura. O que nós pegar, lá se come. E se nós não pegar nada? Nós como farinha, bebe água e vem embora. E assim que é? Aí, nós vamos pescar de linha primeiro, os meninos botam a rede dentro da água. “Vamos pescar de linha para nós pegar logo aqui a merenda.” Aí, às vezes, nós joga o anzol, o anzol vem limpinho, não vem um peixe. Aí, nós começa a fazer mangação um do outro dentro da canoa. “Tá aí, porque tu é azarado, tu não pega nada.” Aí, começa aquela molecagem da canoa. Assim que é! Vocês vão ver quando começar a interação aí com os vídeos.
P1 - E você já viu alguma coisa diferente, assim, dentro do mar, pensando nessas histórias de pescadores?
R - Já, já vi muitas coisas assim, diferentes. Essas coisas esquisitas. Não assim muito... Assim, dentro do mar, até que não, ainda não vi. Mas sempre, em mangue, sempre tem coisa, a gente vê coisas assim, esquisitas, no mangue. Só que a gente não pode mexer, não pode falar nada, porque as coisas de Deus mesmo. Mas a gente vê. Às vezes, a gente dorme na maré, na beira do mangue, a gente escuta, escuta gritar, escuta bater, cortar pau pra dentro do mangue. Grita. Às vezes, é até mesmo, os donos mesmo... Que cada coisa tem o seu ambiente, tem os seus donos. A gente não mexe.
P1 - E você já dormiu no mangue?
R - E muitas vezes, muitas vezes. Muitas vezes a gente vai gravar, a gente faz vídeo noturno.
P1 - E como funciona isso?
R - A gente vai e passa a noite no mato, lá a gente faz a comida, a gente leva um café, para amanhecer o dia, a gente passar... Para passar lá. A gente passa a noite todinha no mato, acordado, gravando o que a gente está fazendo, como é que a gente está dormindo. E uns bichos que a gente vê pelo mato, um negócio de cotia, paca. A gente grava, vê os bichos, a gente grava lá, tudinho. A gente não mexe, porque eles estão fazendo as vezes deles também. Mesmo a gente não pode matar, não pode mexer com os bichinhos. A gente não mata assim.
P1 - E você, depois que você perdeu a visão, você não deixou de fazer nada?
R - Nada, nada. Tudo isso eu ainda faço.
P1 - E você quer contar mais alguma história desses encantados?
R - E porque é assim... Porque esse encantados, eles... Cada ponto no mangue... Olha, nós entra no matagal, numa mata que nem a gente aqui, eu também vivo no mato... Eles têm os donos dos mato, que justamente são os donos das criações dos matos, que chama Curupira. Então, é o dono dos matos. Então, a gente chega, a gente não vai entrar de peito... Chegando e invadindo a propriedade de ninguém. A gente tem que chegar e pedir licença, “olha pessoal, estou chegando aqui, vou fazer aqui o meu trabalho aqui a noite. Espero que vocês não mexam com a gente. Ninguém vai mexer com vocês. E espero que vocês nos ajudem também no nosso trabalho.” E aí, pronto! Nós entra no mato, passa a noite, não vejo sequer nem uma cobra andando
P1 - Você sempre faz isso?
R - Sempre faço isso.
P1 - E você ensinou seus filhos também?
R – Tudo! Eles também fazem do mesmo jeito. Às vezes, quando eles vão gravar, às vezes, estou meio ruim assim, ás vezes, minha diabetes está meio alta, eu fico assim, meia ruim, tonta. “Crianças, hoje eu não vou. Eu não estou me sentindo bem hoje. Hoje eu não vou para a Maré.” Aí, eles vão. Eles vão, gravam lá para mim. E quando chega em casa eu encerro o vídeo, porque eu tenho que aparecer no vídeo, porque o canal é meu. Aí, eu que tenho que aparecer no final do vídeo. Aí, quando eles chegam que eu apareço no vídeo. Às vezes, eu não vou gravar, só eles gravam lá pra mim. Aí, chega aqui, eu encerro o vídeo em casa.
P2 - Dona Lourdes, quando que a senhora chegou aqui em Porto Grande?
R - Quando eu cheguei aqui no Porto Grande, está com 17 anos. Que eu convivo aqui nesse Porto Grande, 17 anos que eu convivo com ele aí, ó!
P2 – E como que a senhora veio para cá? Como que é essa história?
R - Eu vim pra cá porque foi o seguinte, minha filha... A minha filha morava com um filho que era da mulher dele, que faleceu. A minha filha morava com o filho dela. E através dele, aí nós pegamos amizade aqui, uma vez, quando nós viemos visitar. Aí, do meio para o fim, lá começamos a se gostar, e com isso, a mulher dele já estava com 88 anos. Já estava bem velhinha. Aí já não estava dando mais para nada. Aí, eu vim para tomar conta dela. E nesse momento de tomar conta dela, até hoje estou aqui. Aí, ela faleceu. Aí, como eu já estava aqui, aqui eu fiquei.
P2 – Aí, a senhora começou a pescar aqui também?
R - Aqui também. Meus canais agora, por derradeiro mais é aqui. Que eu moro aqui, aí pra mim ir para lá, para o Porto Mocajituba, pra mim é meio distante. Assim, é meio ruim, porque eu não tenho transporte. Eu não tenho ainda transporte, aí pra gente andar de ônibus, não dá para a gente levar as coisas que a gente precisa de ônibus, que é longe, daqui para lá nós pegamos três ônibus, para ir para lá para o Porto Mocajituba. Aí é em terminal em terminal. Aí, a gente tem que levar o quê? Panela, prato, as coisas que a gente vai precisar. Rede, roupa. Aí, pra gente andar de ônibus, aí não dá para levar essas coisas tudo.
P2 - Mas o canal começou lá e aí quando a senhora veio para cá, continuou fazendo aqui?
R – Não, eu já comecei o canal aqui.
P2 – Ah, começou o canal aqui.
R – Daqui! Comecei aqui, aí daqui eu vou gravar pra lá e pra cá. Vou gravar para o Araçagi. Aí, sempre eu saio assim, para não gravar só num lugar, a gente tem que sair para um lugar para o outro. Para estar gravando os lugares, as aventuras diferentes, entendeu? Tipo vocês assim!
P2 - E na questão da pesca, qual é a diferença de pescar lá em Mocajituba e aqui
em Porto Grande?
R – Lá é vantagem, porque lá o Igarapé da gente lá, a maré lá, tem mais riquezas de que aqui. Porque aqui... O que tem aqui na praia, aqui é só o peixe e o camarão, que têm aqui, entendeu? Porque aqui é muito fundo. A gente atravessa a baía, que atravessa o navio, que passa o navio. Então, você vê que o navio, ele é grande, e onde ele anda é muito fundo, aí então, a gente não tem muita aventura assim para gente fazer, entendeu? A aventura daqui mais é só o peixe, o camarão, ou então o caranguejo. E já para lá, para Mocajituba, não. Lá para Mocajituba, tem o caranguejo, tem camarão, tem sarnambi, tem sururu, tem ostra, tem tarioba. Tem várias coisas para você estar fazendo aventura, tirando lá e fazendo a aventura.
P2 - Porque lá não é tão fundo que não dá para passar os navios?
R – É! Não! Lá não é tão fundo, e quando a maré está seca, você até corre, joga bola em cima das croas de areia. E já aqui não se faz isso, não tem como.
P1 - E como que é aprender a pescar num novo local?
R - Não, porque a gente é assim, a gente...
P1 – Quando veio para cá assim, para Porto Grande?
R - Quando eu vim para cá, a gente começou devagar, porque a gente não sabia como era as pescarias, a gente começou a pescar só na parte daqui, não atravessando para a parte de lá, porque a gente não sabia como era a parte para lá, atravessando. A gente sabia que era fundo, porque aí passa uns peixes bravos, passa tubarão, mero. Peixe bravo que come gente. Então, a gente ficava com aquele sobrou de atravessar para lá, ir para lá e se encontrar com esses tipos de peixe. A gente não sabia. A gente começou a pesca só do lado daqui, do lado daqui. Aí, a gente via os outros pessoal que também pescavam, atravessando para parte de lá e pescando e pegando peixe. Aí, os meninos diz: mamãe, rapaz, nessa outra semana que nós viermos, nós vamos atravessar para a parte de lá, que o pessoal tudo pegou peixe na parte de lá. Aí, digo: então é! Então, nós vamos fazer essa aventura para o lado de lá. Aí, assim nós começamos, e até hoje... Graças a Deus, nós vamos, pesca, e vem. Atravessar pra lá. Só que a minha canoinha, ela é muito pequena, para a gente fazer esse tipo de viagem. Porque é muito fundo, o mar venta muito e os banzeiros é alto. Aí, tem hora que ela só falta virar. A gente tem que ficar todo mundo ali, bem, bem quietinho ali dentro, pra não se mexer, que se mexer ela vira. Ela enche de água.
P1 - E você reza. Nessas horas você reza?
R - Nessa hora eu me pego lá com Deus! Digo: Meu Deus, bote sua mãozinha bem aqui na popinha da nossa canoinha aqui, vá segurando. Quando eu saio de casa, a primeira coisa que eu saio daqui, que a gente já vai saindo de casa, gravando, fazendo os vídeos na saída. Aí, eu peço logo pra Deus. “Deus, eu vou fazer minha aventura hoje, nós vamos pro mar, eu quero que você abençoe a nossa pescaria, a nossa aventura, e abençoe também a nossa vida. E acompanhe nós de ida e de vinda.” Sempre, toda vez eu falo isso. Quando eu vou para os matos também, gravar nos matos. A mesma coisa.
P1 - E Dona Lurdes, desde que você começou a pescar, até hoje, você percebeu alguma mudança no seu trabalho?
R - Muita mudança, porque hoje em dia, quem pesca mais é um dos meus filhos, porque eu já não enxergo para puxar uma rede, eu não sei para que lado que a rede está. Nem a canoa eu sei para onde é que fica, que eu não enxergo. Quando a gente chega lá do outro lado, para fazer a aventura, a pescaria. Eles me tiram logo da canoa, aí eu tenho um banquinho aí, que eu mandei fazer, para me sentar. Aí, eu fico sentada na beirada do mangue e eles estão pescando. Aí, eles vão gravando, pescando e gravando e eu estou sentadinha lá na beirada, esperando eles chegarem na beira da maré. Aí, quando eles chegam com peixe, aí gravo a quantidade de peixe que eles pegaram. Aí, nós vamos consertar lá mesmo, lavar e fazer o fogo, botar o cozidão no fogo, na panelona lá mesmo na lenha, na fogueira. E lá vamos comer aquele cozido. Aí, eles voltam pra buscar a rede, e eu estou lá sentadinha lá. Porque hoje em dia... Antigamente eu ajudava a arrastar, ajudava à pescar, mas hoje eu não faço mais isso. Só vou mesmo para estar acompanhando o vídeo. Porque eu tenho que acompanhar o vídeo. Mas pescar mesmo, hoje já não pesco mais.
P1 - Mas acha que antes tinha mais peixe, hoje tem menos, ou não?
R – Tem! Hoje a gente tem menos. Antigamente, quando eu era criança, realmente, lá onde eu nasci, era muita fartura de peixe, que as canoas vinham tão cheias, que nego não dava conta. Às vezes, estragava, jogavam na água, porque não tinha quem comesse. Hoje em dia, minha colega, quando você chega lá na beira do Porto Mocajituba, para você comprar um peixe, é um absurdo. É um absurdo para você comprar um peixe lá na beira do Porto. Que antigamente, ninguém nem comprava peixe, porque as canoas vinham tão cheias, que a gente fazia era encher os sacos, botava na cabeça e levava para casa pra comer. Hoje em dia não acontece mais isso. Até para você comprar um peixe quando chega no Porto, é um absurdo, já tudo dentro daquelas caixinhas de isopor lá. Pois é!
P1 - E como é ser uma mulher pescadora?
R - Eu acho que uma mulher pescadora, eu acho que é assim... Na verdade, eu não sei nem explicar, assim, direito. Porque uma mulher pescadora, ou ela vai pescar porque tem precisão, ou então, gosta da aventura, que nem eu gosto. Mas eu ia pescar, trabalhar na maré, mesmo com precisão, porque eu tinha muito filho para sustentar. E aí, eu não tinha emprego. O meu emprego tinha que ir para a maré, era pegar o que comer de lá.
P1 - E quais são os ditados de pescador que a senhora conhece? Você conhece algum?
R – Não, assim ditado assim, não. Porque eu pesco mesmo só mais meus filhos mesmo, a gente pesca só mais meus filhos mesmo. Nunca pesquei assim, com gente diferente, entendeu? Só que já umas duas vezes, três vezes, que veio já os inscritos do meu canal, já uns inscritos. Eu tenho muitos inscritos. Aí, já teve uns inscritos que já veio para pescar com a gente aqui. Que até nesse dia eu nem fui. O nosso amigo aí, Benjamin, ele é de São Paulo. Mas veio para cá, para São Luís, e já veio fazer essa aventura com nós aqui. No dia em que ele completou aniversário, ele estava fazendo a pesca aí, mais os meninos. Aí, nesse dia eu nem fui, porque eu não estava me sentindo bem. Aí, eu não fui. Eles foram. Mas de vez em quando vem, já o pessoal aqui da minha aventura, que segue o meu canal, que são inscritos, que veio já gravar com a gente aqui.
P2 - Dona Maria. Desculpa! Dona Lurdes...
R - Mas é Maria mesmo, que é Maria de Lurdes.
P2 - Dona Lurdes, eu queria saber como foi reencontrar a sua irmã depois de 50 anos. Como isso aconteceu?
R - Acho que foi Deus mesmo. Ela se separou do esposo dela lá no Rio de Janeiro, aí a mãe dela, essa mulher que levou ela, era daqui, de São Luís. Aí, como levou ela, foram embora para lá, pra lá, ela se criou para lá. E de repente, o esposo dessa mulher, faleceu. Aí, ela teve que voltar para cá, para São Luís. Aí, elas vieram juntas. Ela foi fazer a procuração para onde morava a família dela, ligando para um, ligando para outro. Aí, mandando mensagem, assim, em rádio, entendeu? Aí, até que nos reencontramos.
P2 - Mas você chegou a escutar essas mensagens pelo rádio?
R - Não, não. Eu não. Quando nós pensamos que não, ela já andava lá no nosso lugar, já a nossa procura, procurando onde morava fulano, onde morava beltrano, onde morava Lurdes? Onde morava Valdecir? Onde morava o Loro? E assim, ela foi, um ensinando, um ensinando, até que ela chegou aonde nós morávamos.
P2 - E como foi a emoção de reencontrar ela?
R - Ah, foi muito legal. Foi muito choro, muito... E na mesma hora, muita alegria. Porque a gente... Ela me tinha por morta e eu tinha ela também. Pelos anos que a gente não se via, separamos tudo pequena. E assim, nós encontramos tudo já adulta, tudo já velho. É bom demais, viu! Quando a gente encontra uma pessoa assim, com vida, ainda assim.
R – É essa daqui, ó. Essa daqui que eu estou falando nesse instante. É essa daqui, que estava com 50 anos que nós não se via.
P2 - Eu tenho mais uma pergunta pra senhora. Eu queria saber, depois que a senhora perdeu a visão, eu vi que a senhora continua cozinhando ali na sua cozinha, né?
R - Cozinho.
P2 - Eu queria saber como foi? Como que a senhora continua cozinhando?
R – Apalpando. Tudo eu faço apalpando com as mãos. Faz de conta que o olho não existe. Meus olhos são minhas mãos. Para fazer alguma coisa, tudo é a minha mão. E se cai alguma coisa no chão, o meu olho são os pés, aí eu fico caçando assim, ó. Caçando com os pés assim, passando no chão até eu encontrar, batendo com o pé naquilo ali, para aí eu me abaixar para juntar.
P2 - E tem alguém que fica aqui com a senhora pra ajudar?
R – Tem! Tem o meu filho. Esse que grava junto comigo é que me acompanha aqui. Realmente eles estão ali, porque amanhã é meu aniversário. Eles estão tudo ali pra cozinha, ali, ajeitando comida para amanhã.
P1 - E você gosta de cozinhar?
R - Ah, eu gosto. Só que às vezes eu tenho medo, porque, assim, eu tenho medo da panela revirar para cima de mim e me queimar. Porque como eu sou diabética, aí já viu, se eu me ferir. Um tempo desse eu caí, me feri aqui, ó. Está aqui o lugar. Isso aqui virou uma feridona, que eu tive que fazer duas cirurgias, só aqui, nessa perna, bem aqui, ó. E por sorte, Deus do meu lado, como sempre tá. Que não foi amputada a minha perna. Minha perna ficou um buracão horrível. Se vocês vissem. Entrava quase um dedo pra dentro, assim, ó. Aí, eu tenho medo de andar assim, às vezes, assim, com medo de eu me ferir. Olha, eu vou para a maré, mas eu tenho um calçado, que o calçado que eu calço aí, não é um calçado bem suficiente, porque eu ainda não encontrei um calçado melhor para mim. Mas mesmo assim eu ando com ele, que ele protege, mas só os dedos, para mim evitar dar topada em pau em pedra, entendeu? Para não ferir a cabeça do dedo, aí eu boto... É uma sandália, ela é coberta, assim, aa frente, mas é aberto para cá, para trás. Aí, eu boto meia. Eu boto duas meias em cada pé, aí calço a sandália, e aí vou para a maré, para o mato. Porque eu ainda não encontrei um calçado, assim, suficiente, para que eu possa calçar para proteger o pé todo. Aí, eu uso sandália e bota uma meia, para ver se a meia, não coisa, mas qualquer coisa impede de cortar e ferir meu pé.
P1 - E Dona Lurdes, você falou que você foi para a escola já um pouco mais velha.
R - Foi.
P1 - Como foi esse momento para você?
R - Não. Porque no início, assim, porque às vezes, eu ia num lugar, numa reunião, ia assistir alguma coisa da escola mesmo dos meus filhos. Aí, eu ficava com vergonha. O pessoal dizia, “Assina aqui!” Aí, eu ficava com vergonha de dizer que eu não sabia. Que eu não sabia. Aí, eu dizia: Meu Deus, esse pessoal sabe. Por que eu não sei? Por que que eu não me boto para aprender pelo menos a escrever o meu nome? Aí, eu disse: Rapaz! Aí, eu chamei o meu ex esposo. “Rapaz, eu vou procurar um jeito de eu aprender a assinar ao menos meu nome, porque eu tenho vergonha de ir numa repartição e mandarem eu assinar o meu nome e eu não saber. Aí, assim foi. Aí, eu fui na escola, aí eu procurei se ela não podia me ensinar. Aí, ela procurou: Que horas? “Ah, mas eu só tenho tempo à noite, porque durante o dia eu trabalho, vou pra maré, vou limpar sururu, sarnambi, e aí, eu não tenho tempo durante o dia. Eu tenho que cuidar dos meus filhos, lavar roupa, fazer comida. Mas dá para você me ensinar de noite? Aí de noite eu venho.” Ainda enxergava nessa época. “Então tá. Então, você vem à noite que de noite eu vou lhe ensinar você escrever ao menos o seu nome.”
Aí, com isso, eu continuei. Ela me ensinando, me ensinando. Botava para mim... Primeiro ela botava para mim cobrir, que nem criança mesmo. Aí, eu fui cobrindo. Aí, depois ela já foi botando no quadro, aí eu já ia fazendo pro caderno. E assim eu fui aprendendo, fui aprendendo. Aí, ainda estudei até a 5ª.
P2 - E como foi para o seu marido?
R - Ele ficava em casa reparando os meninos e eu ia para a escola.
P2 - Ele não achou ruim?
R – Não! Que ele estava sabendo. Digo: não acha ruim, porque eu estou procurando e o meu interesse! Não pense você que eu vou fazer outra coisa de ruim, não, eu vou procurar o meu interesse. Que até hoje eu me sinto assim, porque eu vou numa repartição, assim. Aí, “você assina?” “Não! Mas eu sei!” Eu explico. Digo: olha, eu sei fazer o meu nome, só que eu não enxergo por onde eu estou escrevendo. Porque eu começo a fazer aqui, boto o M bem aqui, o A já vai ficar lá para acolá, depois desce para cá, que eu não estou vendo por onde eu estou escrevendo! Mas eu saber fazer meu nome todinho, completinho. Eu sei! Só não faço é saber escrever, onde eu estou escrevendo.
P1 - E Dona Lurdes, quando você não está trabalhando nem em casa, nem na maré, nem no mato. O que você gosta de fazer?
R - Minha irmã, nada! Porque, na verdade, eu não me sinto nem bem quando eu fico só em casa. Logo assim, que aí fica em casa, bicho corre para um lado, aí o bicho corre para outro, aí me leva para ali, me leva para acolá. Eu fico naquela zoada, aquilo... Basta eu tivesse saído de casa, tivesse ido para o mato, ou tivesse ido pescar. Porque ficar só dentro de casa, aqui sentada, olhando para quê? Que eu não enxergo, não estou vendo nada. Antes tivesse ido pescar.
P2 - Mas o que a senhora faz para se divertir?
R – Minha irmã, para me divertir, aqui, nada! Nada.
P2 – A família vem bastante para cá?
R – Vem! A minha diversão mesmo aqui, é porque aqui não falta gente. Aqui na minha casa, é muito difícil a gente almoçar ou jantar só. Só nós aqui de casa. Tem vez que esse quintal aí está cheio, de colega meu, colega dos meninos, que às vezes, já sabe, já assiste meus vídeos, aí vem aqui me visitar. É assim!
P1 - E você tem netos?
R - E muito! Se eu for contar, não sei nem quantos eu tenho. Não sei nem quantos netos eu tenho por tudo.
P1 – E o que você gosta de fazer com eles?
R - Ah! Quando eles chegam, eles se socam nesses matos aí, nesse brejo, corre o dia todinho aí. Eu já tenho bisneto. Tenho neto, bisneto. Só não tenho tataraneto ainda.
P1 - E me conta uma coisa, como que foi a pandemia aqui para vocês?
R - Do Covid? Ah, foi a pior coisa do mundo que existiu. Porque nós não podia sair para lugar nenhum. Toda valença nossa aqui, é porque é a nossa pesca. Se a gente não podia ir para o centro comprar um comer. Aqui já é difícil pra gente encontrar uma comida. Porque aqui, nós moramos aqui, aqui não tem uma feira, aqui não tem um açougue, aqui não tem uma farmácia, aqui não tem nada. Olha, você tem um peixe, você quer compra um molhozinho de cheiro verde, você tem que pegar o ônibus, sair daqui, pra pegar na Vila Maranhão. Ou então lá no Mercado Central. Você saia de manhã, para chegar aqui 11h. Aqui tudo é difícil. Aí, na época da pandemia, nós ficava, toda valença que nós tinha era a maré. Que eu ia mais os meus meninos, meus meninos às vezes iam só. Era dali do Porto pra casa, daqui pro Porto. O nosso movimento era esse.
P1 - E o Apolo?
R – O Apolo ia comigo. Às vezes, ele vai! Às vezes, eu deixo ele amarrado. Porque uma vez ele, vacilou e eu também, porque ele caiu na água. Ele caiu na água, mas aí o menino que vinha mais atrás, assim, do lado, agarrou logo ele, não deixou ele descer. Aí, eu fiquei com medo de levar ele de novo. Mas quando eu vou, eu deixo ele preso aqui, amarrado na corrente, para ele não ir atrás, porque se eu não prender ele, quando eu chego no Porto, ele chega atrás. Aí, para ele não ficar jogado, para os cachorros não bater nele, aí o jeito é eu levar. Aí, eu deixo ele amarrado.
P1 – Então, ele e seu parceiro?
R - Esse cachorro aqui, eu já ganhei ele, já adulto assim, já grande. Não criei desde pequeno. Eu fui buscar ele num lugar lá perto de Ribamar, trouxe ele no ônibus. Ele sentadinho no meu colo. Pois você acredita que esse cachorro... Todo mundo ficava com medo dele me morder, porque ele não me conhecia, ele já era adulto. Mas você acredita que esse cachorro, quando eu entrava para dentro do quarto, ele entrava, deitava bem encostadinho da cama, assim. Nem ele aqui ó, não entrava dentro do quarto. Nem ele aqui. Asse aqui tinha medo. “Lurdes, lá vai, eu vou entrar aí, olha o teu cachorro aí.” Aí, que eu falava para ele, saía com ele, botava ele para fora, para esse aqui entrar. Eu me deito aqui, ó, de manhã cedinho, na hora que abre a porta do quarto, ele é o primeiro que entra, deita lá perto, em cima da minha chinela. Lá não encosta ninguém. É o dia todinho. Se eu der dez, cem viagens daqui desse quarto, lá naquele banheiro lá do lado de fora e de lá para cá. Ele todo tempo atrás. Eu vou para o banheiro tomar banho, ele vai e deita bem na porta. Só sai de lá quando eu saio de dentro do banheiro. Aí, eu venho trocar de roupa, ele vem atrás, fica lá, deitadinho lá. Assim que é. É meu companheiro para tudo. Para tudo na vida, ele está do meu lado. Se eu estou na cozinha, botando uma coisa no fogo, ele está lá, deitadinho perto.
P1 - E quando é quando ele ia pescar com você, como que era?
R – Ele fica todo tempo deitadinho do meu lado. Eu levo um paninho, aí eu boto no chão para ele não ficar muito preto de lama, aí eu boto um pano em cima da lama, ele deita lá e fica lá do meu lado. Levo a comida dele, a ração, aí boto pra ele lá, boto água e lá ele fica.
P1 - E Dona Lurdes, quais são os seus sonhos?
R - Ah, os meu sonhos... Primeiro lugar, o meu sonho, que eu tenho muita vontade e de eu ter uma casa mesmo, assim, minha mesmo. Porque aqui, essa casa aqui onde eu moro, é herança, entendeu? É de herança. Que era da primeira mulher dele... Que ele não tem filho, nem com essa falecida, e nem comigo também não. Mas a mulher que era dele, que faleceu, tem seis filhos. Então, tem um aí que é enjoado, de vez em quando tem confusão dele aqui, por causa de sítio, por causa de casa. Então, meu maior sonho era ter o que é meu, entendeu?
P1 - E quais são as coisas mais importantes para a senhora hoje?
R - Hoje em dia, minhas coisas mais importantes, em primeiro lugar, é o marido que eu tenho, que é um bom marido para mim até hoje. E espero que seja até o fim da nossa vida, porque ele é quem cuida de mim. Porque apesar dele ser mais velho e eu cuidar dele, ele já é quem cuida de mim. É ele que bota minha comida no meu prato pra mim almoçar, a minha janta, meu café. Ele que bota na tigela, leva para mim. Eu sentadinha naquela rede ali. Então, ele é quem cuida de mim. Apesar de eu cuidar dele, ele que cuida de mim. Pois é! E outra coisa, é meus filhos, que graças a Deus, eu criei os meus filhos, com muito sacrifício, muito trabalho, Deus me ajudando e me ajuda até hoje. Meus filhos, graças a Deus, nós somos todos pobres, não tenho nenhum... Para dizer assim, que é mais de cima. Nós somos a baixa, baixa mesmo. Mas eu não tenho preocupação de dizer, hoje eu estou preocupada que meu filho está na rua.” Que Deus, Nossa Senhora, defenda, Meu Deus! Meu filho andar assaltando, roubando ou envolvido com droga. Não! Graças a Deus! Isso aí eu peço a Deus. E todo santo dia eu agradeço a Deus por isso. Porque meus filhos, essa preocupação não me dá. Então, sou muito, muito feliz por isso.
P1 - E Dona Lourdes, como que é um dia seu aqui em Porto Grande.
R - Como é o meu dia?
P1 - E o seu dia a dia.
R – Ah, o meu dia a dia, minha irmã, quando eu não estou assim, fazendo alguma coisa na cozinha, é estar sentadinha naquela rede.
P1 - Você gosta da rede?
R – É! A única minha solução é aquela rede. Aí, quando eu canso de estar sentada na cadeira, vou pra rede. Saio da cadeira... da rede, vou para a cadeira. E o dia todinho assim. Porque eu não posso estar nem andando no sítio, que eu não enxergo. Que nem ontem, fui com vocês lá, ele agarrado na minha mão todo tempo. Aí, eu não tenho para onde sair. Aí, é o dia todinho dentro de casa. Aí, às vezes, agora, como tem buriti, aí ele vai, junta os buriti, a gente bota dentro da água, aí nós vamos descascar o buriti, aí nós vamos tirar a polpa. Aí, eu vou ajudar ele, ele vai tirando a casquinha, eu vou raspando com a colher, e vamos tirando a polpa e enchendo os saquinhos e bota na geladeira.
P1 - Para fazer suco?
R - Para fazer suco. Fazer suquinho. Eu não faço, suquinho, mas sempre deixo aí, às vezes chega os colegas da gente aí. Aí, eu dou. Às vezes, os inscritos da gente, que vem me visitar aqui, meus inscritos...
P2 - Suquinho é aquele geladinho?
R – É, o geladinho. Aí, eu dou para eles levarem. “Aí, para vocês levarem pra fazer o geladinho lá.” Aí, eles levam.
P1 - E tem outras frutas aqui no quintal?
R – Tem! Aqui, agora, é porque está no verão, não tem. Mas aqui tem jaca, tem abacate, tem juçara, tem o buriti, a manga.
P1 – E você gostaria de contar mais alguma coisa que a gente não tenha te perguntado? Alguma história que seja importante deixar registrado aqui?
R - Também tem um problema. Quando eu morava num lugar chamado Cotovelo, lá também perto de Raposa. Aí, lá eu me separei do meu ex-marido e fui embora para Bacabal. Agora, essa aí foi triste. Às vezes, eu não gosto de contar, porque às vezes eu não aguento, eu choro, porque foi um sofrimento. Aí, eu fui me embora, deixei o meu marido aí, levei a metade dos meninos e deixei a metade com ele. Aí, fui me embora, lá para a cá do meu irmão que morava lá em Bacabal. Aí, quando pensou que não, ele vendeu o sítio que nós tínhamos, a casa. Vendeu e foi embora atrás de mim, lá para Bacabal, com o resto dos meninos tudinho. Quando chegou em Bacabal, deixou os meninos e voltou para cá, para São Luís. Eu fiquei. Senhora, com esses meninos tudinho em Bacabal. Nessa época eu ainda não tinha nada. O que nós trabalhávamos, era de horta, fazendo canteiro para vender verduras e legumes. Era cheiro verde, cebola, essas coisinhas assim. Nós arrancava, aí botava na carroça e levava para o mercado para vender. Foi a pior coisa que eu passei da minha vida. Que nem no tempo que eu perdi a minha mãe, que eu fiquei pequena, nunca passei. Certo, o que eu passei lá nesse lugar. Senhora, eu passei tanta necessidade. Tanta necessidade. Que olha, eu saía de casa, eu comprei uma égua e uma carroça, lá. Que era para mim trabalhar. Aí, eu saía de casa 4h da madrugada, da manhã, para ir juntar coco babaçu nos matos, para fazer carvão, pra mim vender, para comprar o alimento dos meus filhos lá em Bacabal. Senhora, tinha dia que eu saía de casa 04h da manhã, com um filho meu que mora lá no em Mocajituba. Ele era um garotinho ainda, estava mais ou menos com uns 13 anos. Nós ia nos dois. Nós saía de casa em jejum, sem ter nada pra gente nem botar na boca pra nada. Nós saía de casa 4h da manhã, chegava 20h, 21h da noite, em casa. Quando eu chegava em casa, meus filhos estavam tudo dormindo... Desculpa que eu... Meus filhos estava tudo dormindo, que eu olhava para os meus filhos, o bucho estava quase encostado no espinhaço. Tudo com fome, sem eu ter nada para dar para os meus filhos comer. Eu não gosto de contar isso aí, porque eu não aguento isso aí! Eu passei muita necessidade. Muita necessidade, com os meus filhos. Meus filhos iam para a escola todo sujo, que eu não tinha dinheiro para comprar uma barra de sabão para lavar as roupas dos meus filhos. Aí, foi que uma vizinha lá... De tanto eu trabalhar com fome em mato, carregando coco, pesado, fazendo carvão, eu adoeci. Eu adoeci, prostrei, passei dois meses internada. Enfraqueci, passei dois meses internada. Aí, quando eu saí... Meus filhos em casa, já ficaram pela mão dos vizinhos. Os vizinhos é que dava... Chamava eles, dava aqueles comezinho para eles comerem. Aí, foi que a notícia foi correndo, foi elas escolas. Aí, eles começaram a fazer doação. Começaram a fazer doação para mim, levava pra casa, para eu comer mais os meus meninos. Aí, minha vizinha lá de disse: Lurdes, bora lá naquela rádio... A televisão lá é a Mirante. “Bora na TV...” É Mearim. “Bora na TV Mearim.” Aí, eu com vergonha. “Minha irmã, não vou! Não, não vou não, que eu vou passar em televisão, todo mundo me olhando, minha situação, meus filhos tudo com roupinha rasgada, tudo descalço. Eu com a minha roupa desse jeito. Não vou, não!” “Minha irmã, tu vai! Vamos embora, eu te levo lá! Tu vai melhorar mais um pouco tua vida.” Digo: minha irmã, não vou, não! Muita gente vai me olhar, aí eu desse jeito. Meus filhos tudo nu, descalço, roupinha rasgada. Vou nada! Mas aí, ela foi enchendo aquela minha cabeça. Minha irmã, eu tinha saído do hospital, eu estava fraquinha, fraquinha ainda. Eu digo: ó Bá, minha irmã, eu não aguento! Eu não aguento ir lá, eu estou muito fraca ainda. Ela disse: não, mas a gente não vai andando. É perto. Eu vou arranjar uma moto e nós vamos de moto. Bora! Aí, nós fomos lá. Aí, quando chegou lá... Aliás, não foi nem isso, a moto foi de outra vez. Errei bem aí! Ela disse: ó, manda pegar a carroça, a égua, e bota teus meninos tudinho na carroça, e tu também monta na carroça. E nós vamos lá! Vou te levar lá! Assim fizemos! Botei meus meninozinhos na carroça, montei de um lado, ela também do outro, meu meninozinho que guiava a égua na carroça. Fomos! Quando chegamos lá, eu toda envergonhada mesmo, doente, fraca. Aí, quando nós chegamos lá, de manhã, a audiência lá ia ser só 13h da tarde. Digo: Ixi, agora pronto! Meus meninozinhos, tudo com fome. E eu também fraca. Digo: Bá, eu não vou aguentar, minha irmã, ficar aqui até de tarde. Pensei, as crianças... Ainda tinha uma que ainda ia completar um aninho. Eu digo: com essa menina aqui com fome, desde de manhã assim. Aí, foi que o moço estava lá perto, aí pegou, me deu R$5,00. Disse: olhe, para a Senhora merendar com as suas crianças, para esperar até 13h00. Aí, um moço lá me deu, os R$5,00. Aí, eu mandei o meu menino ir comprar uma merenda. Aí, foi que eles foram merendar e nós ficamos até 13h00. Quando deu 13h00, eu já estava lá desde de manhã, fui a primeira atendida. Aí, disse que eles me chamaram, eu falando lá, eu fui explicar que eu morava aqui em São Luís, fui me embora pra Bacabal e lá eu não tinha como sobreviver, trabalhei muito, adoeci. Estava internada, tinha acabado de sair do hospital. E meus filhos estavam passando muita necessidade. Aí, tudo bem! Ela disse: é, agora... Amanhã de manhã, você vem aqui. Aí, tudo bem! Aí, nós fomos embora. Aí, quando foi de manhã... Não, aí ela ligou para essa mulher lá, que nesse tempo o telefone era de casa, assim, quase não tinha ainda celular. Aí, ela ligou. Aí, ela disse: Olha, Dona Lurdes, ligaram de lá, do coisa, para a senhora ir de manhã lá. Aí, eu fui! Mas esse meu Bendito menino, que mora para lá, que sempre me acompanhava. Aí, ela arranjou uma moto. Um vizinho, lá. “Ó, Dona Lurdes, vou te levar de moto, mais o menino. Aí eu digo: então, vamo embora! Aí, fomos. Quando chegamos lá, ela disse assim: você veio de quê? Eu disse: eu vim de moto mais o menino. “Como é que você vai levar essas coisas?” Ah, mas eu pensando... “Não, eu boto aqui no colo e dá de eu levar.” Aí, ele disse: olha, cadê a sua carroça? “Ficou em casa.” “Senhora, olha, o que tem aqui, nem a sua carroça não dá conta de levar. Você tem que arranjar outra carroça, mais duas carroças para levar. Quer vê, entre aqui!” Mas, irmã, eu entrei dentro do quarto, lá, de uma sala grande que tinha assim, uns bancos de cimento. Minha irmã, estava cheio, lotado, de tanta coisa, que eu quase desmaio, de ver aquilo tudo. Quase que eu desmaio de ver aquela coisa toda. Aí, eu disse: ixi, pra que isso aqui tudo? Ela disse: você que já ganhou isso aqui, tudinho. Isso aqui tudo é seu, e ainda tem mais coisas para vir. Não é só hoje que você vai receber essas coisas. Disse: olha, vai em casa e mande o menino pegar a carroça, a sua carroça e contrate mais duas carroças, para poder levar. Aí, eu disse: ah, e como é que eu vou pagar essas carroceiros? Se eu não tenho dinheiro. “Você não tem dinheiro? Você vai ter dinheiro que dá para você ir lá no seu lugar e voltar de novo e ainda sobrar dinheiro.” Aí, eu fiquei assim: dinheiro? E esse dinheiro? Ela disse: bora, bem aqui! Aí, eu entrei num quartinho com ela, ela abriu lá uma gaveta, tirou um monte de dinheiro assim, amarrado numa liguinha. E disse: olhe, esse dinheiro aqui todo já veio de doação para você. É seu! Minha irmã, eu chorava, chorei de um tanto. Chorei tanto, que eu não sabia se eu chorava de alegria, ou não sei! Ou era de emoção. Não sei o que era. Eu chorei tanto que passei mal, de eu ver tanta coisa, da necessidade que eu estava passando com os meus filhos. Olha, eu ganhei tanta coisa, que eu já estava doando para os meus vizinhos. Porque não dava conta de usar mais meus filhos. Comida, carne, que o prefeito de lá mandava, leite. Minha irmã, era muita coisa, muita coisa mesmo. Calçado, roupa, rede, de tudo. Colchão, de tudo eu ganhei. De tudo. Quando foi para mim vim de lá, de Bacabal, para mim vim de novo de volta aqui para São Luís, lá para o Porto do Mocajituba, foi o prefeito de lá que mandou vir me deixar aqui em São Luís. Também eu trouxe carroça, trouxe égua, trouxe tudo. Tudo de lá, pra cá pra São Luís, de volta. Aí, de lá para cá, graças a Deus! Eu fui... Voltei para a minha lida mesmo de sarnambi, sururu, que eu trabalhava mesmo. E com isso fui sobrevivendo o resto da vida.
P1 - Essa é uma história importante para a senhora?
R – É! Foi a maior parte que eu passei na minha vida, que eu não gosto... Eu não gosto de contar essa para ninguém, quer eu não aguento, assim, de lembrar o que eu já passei mais os meus filhos.
P1 - Obrigada por contar pra gente.
R - Pois é! Contando aqui para vocês. Mas isso aí, eu...
P1 - Eu vou aproveitar os fogos, então, e perguntar. Pensei no seu aniversário, só para a gente finalizar. Como que foi para você contar um pouco da sua história para gente, um dia antes do seu aniversário?
R - É porque vocês chegaram aqui... É sempre assim, devido ao meu canal, que eu faço, aí eu explico. “Olha, tal dia é o meu aniversário, galera! Vocês aí estão sabendo que tal dia é o meu aniversário aí? Dão meus parabéns!” Eu sempre falo no canal isso. Aí, vocês chegaram aí... “Vai ser meu aniversário, vocês são bem-vindas!”
P1 - Muito obrigada! A gente veio comemorar antes com a senhora.
R - Pois é! Hoje eu estou completando três anos de casada, hoje. E amanhã é meu aniversário mesmo.
P2 - Duas festas.
R - É
P2 – Dois motivos pra comemorar.
P1 - Dona Lourdes, muitíssimo obrigada por compartilhar suas histórias com a gente. Foi uma alegria!
R - Eu que agradeço. Pois é! Eu que agradeço muito vocês terem esse tempo para escutar tanta coisa.
P1 - Aprendemos muito!
AUTORIZAÇÃO
P2 - No que se refere às utilizações supramencionadas, utilização o licenciante firma presente licença de uso de imagem e som de voz com o objetivo de formalizar a sua plena anuência, pela qual concede ao museu autorização para veicular e utilizar suas imagens e vídeos capturados exclusivamente para fins institucionais, visando à promoção da cultura e da pesquisa.
Reconheço que meus dados pessoais e dados pessoais sensíveis, acima mencionados se encontrarão em responsabilidade do Museu pelo período de vigência deste instrumento, e que esta tem a autorização para trata-los conforme a Lei 13 13.709 de 2018 Lei Geral de Proteção de Dados no limite das finalidades acima previstas e nos termos do artigo sete, inciso I, da referida norma. A senhora autoriza a Dona Lurdes?
R - Sim.
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