Dias antes do sonho, perdi por distração uma reunião virtual da escola onde sou professora. No sonho, também perdi uma reunião virtual e me senti como uma adulta sem traquejo, que não acompanha como os colegas o andamento do trabalho. Então uma colega professora (muito considerada por ser precisa, confiável e positiva) me telefona em segredo e me passa uma espécie de código para garantir que eu não tivesse sanções nem descontos por ter perdido a reunião. Ela também disse algumas coisas sem sentido para que as pessoas perto dela não entendessem que ela estava me ajudando. Ela ainda me apressou para ir a um encontro com os colegas da escola, que aconteceria após a reunião virtual que eu tinha perdido. Acho que eu ainda estava com roupa de dormir, meio triste por ter perdido a reunião, meio deslocada e até sem vontade de ir ao encontro (como me sinto na vida real, quando me convidam para festas). Pensei no trabalho para trocar de roupa, no desânimo para tomar banho, mas acabei indo ao encontro. Era numa rua, à noite. Estava meio frio, talvez tivesse chovido. No meio da rua vazia tinham montado uma mesa comprida cheia de bandejas de fruta – abacaxi, melancia, banana, manga. Havia várias pessoas sentadas, alegres, conversando, falando alto. Eu queria abraçar a todos, mas sabia que havia um interdito – apesar de eu não pensar no vírus. Eu até gostei de rever a todos, mas não tomei lugar à mesa. Dei uma volta, ouvi um pouco da conversa e fui embora sem sequer comer (eu, que gosto bastante de confraternizar com comida). Não sei se queria voltar para casa, não tinha nada na cabeça. Mas saí andando pelas ruas vazias daquele lugar desconhecido, sentindo-me não perdida, mas mais do que perdida – eu estava sem propósito. Não soube estar nem partir, nem sequer pensar no que queria de verdade. Sequer problematizei. Fim.
Que associações você faz entre seu sonho e o momento de pandemia?
Tive muitos sonhos. Outros desejos não eram...
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Dias antes do sonho, perdi por distração uma reunião virtual da escola onde sou professora. No sonho, também perdi uma reunião virtual e me senti como uma adulta sem traquejo, que não acompanha como os colegas o andamento do trabalho. Então uma colega professora (muito considerada por ser precisa, confiável e positiva) me telefona em segredo e me passa uma espécie de código para garantir que eu não tivesse sanções nem descontos por ter perdido a reunião. Ela também disse algumas coisas sem sentido para que as pessoas perto dela não entendessem que ela estava me ajudando. Ela ainda me apressou para ir a um encontro com os colegas da escola, que aconteceria após a reunião virtual que eu tinha perdido. Acho que eu ainda estava com roupa de dormir, meio triste por ter perdido a reunião, meio deslocada e até sem vontade de ir ao encontro (como me sinto na vida real, quando me convidam para festas). Pensei no trabalho para trocar de roupa, no desânimo para tomar banho, mas acabei indo ao encontro. Era numa rua, à noite. Estava meio frio, talvez tivesse chovido. No meio da rua vazia tinham montado uma mesa comprida cheia de bandejas de fruta – abacaxi, melancia, banana, manga. Havia várias pessoas sentadas, alegres, conversando, falando alto. Eu queria abraçar a todos, mas sabia que havia um interdito – apesar de eu não pensar no vírus. Eu até gostei de rever a todos, mas não tomei lugar à mesa. Dei uma volta, ouvi um pouco da conversa e fui embora sem sequer comer (eu, que gosto bastante de confraternizar com comida). Não sei se queria voltar para casa, não tinha nada na cabeça. Mas saí andando pelas ruas vazias daquele lugar desconhecido, sentindo-me não perdida, mas mais do que perdida – eu estava sem propósito. Não soube estar nem partir, nem sequer pensar no que queria de verdade. Sequer problematizei. Fim.
Que associações você faz entre seu sonho e o momento de pandemia?
Tive muitos sonhos. Outros desejos não eram nem sonhos, mas objetivos realizáveis se eu não fosse pobre e parda (elementos limitadores da mobilidade social). A pandemia vem me dizer que, de toda a elaboração humana, poucas são realmente essenciais. Meu trabalho, por exemplo (sou professora) não tem significado além de cuidar dos filhos de pessoas que precisam trabalhar. A pandemia também mostra que o trabalho dessas pessoas não é um direito, mas uma obrigação acima do direito à vida. Na pandemia, o que já não tinha significado para mim perdeu muito mais o sentido. Tento escrever sobre isso, porque este período precisará de registros. Mas todo o meu entorno carece de significado, e então não escrevo nada. Outro dia chorei porque gostaria de fotografar as pessoas na frente dos hospitais, mas me falta um impulso que não tenho ideia de onde poderia vir. A atual política me amedronta, e teremos todos que ir às ruas. Mas tenho medo de que minhas ruas sejam aquelas onde me encontro sozinha e sem propósitos.
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