Não pense em tempo linear, apenas no processo. Meu corpo lançado e girando no ar. À minha direita, uma janela de avião. Imagens desconexas passam devagar, nuvens principalmente, tudo muito lento.
Sinto um forte enjoo e surge uma mensagem não falada, não vinda, mas explícita, presente, que me dá consciência, assim do nada, de que estou morrendo. Então morrer é assim? Pergunto assustado, mas sem duvidar. Que coisa louca, aguardar, voando e consciente, minha morte se consumar, sem nenhuma opção. Vou para outro lugar depois? Tenho a sensação que sim.
Mal dá tempo do último pensamento terminar e vem a pancada forte no chão, meio de lado, um pouco virado para a direita. Sinto as costas inteiras contra o
chão duro e quente. Meu corpo está alinhado, as pernas dobradas e abertas.
Vou tomando consciência com as primeiras imagens. Estou com a cabeça um pouco levantada para ver melhor. De repente, os músculos do pescoço não aguentam e sem aviso, a cabeça cai. A ergo de volta rapidamente. Foi apenas um pum pá, um bate e volta como se o pescoço fosse mola. Uma batidinha leve, da nuca no asfalto áspero.
Minha visão fica turva, mas não me assusto: sei, há anos, que a área do cérebro responsável pela visão fica exatamente na nuca. Eu e minhas leituras.
Nada grave, já vejo tudo nitidamente, apesar da claridade do meio-dia.
Há umas dez pessoas me circundando à
mesma distância, como se um diretor de teatro houvesse feito marcações no chão.
Por momentos, me pareceu teatro mesmo, aquelas pessoas com os corpos inclinados e expressões mais que esperadas, tudo ensaiado. A maioria por curiosidade, outras poucas, intrigadas e uma ou outra preocupada.
Dentre as curiosas, desconfio pelo olhar, que algumas procuram algo que lhes dê prazer em contemplar um atropelado.
Seria um troféu ser o primeiro a gritar?
- Olhem, olhem, está saindo sangue!
Para ser fiel, até saiu, mas foi um filete mínimo, ninguém viu, nem...
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Não pense em tempo linear, apenas no processo. Meu corpo lançado e girando no ar. À minha direita, uma janela de avião. Imagens desconexas passam devagar, nuvens principalmente, tudo muito lento.
Sinto um forte enjoo e surge uma mensagem não falada, não vinda, mas explícita, presente, que me dá consciência, assim do nada, de que estou morrendo. Então morrer é assim? Pergunto assustado, mas sem duvidar. Que coisa louca, aguardar, voando e consciente, minha morte se consumar, sem nenhuma opção. Vou para outro lugar depois? Tenho a sensação que sim.
Mal dá tempo do último pensamento terminar e vem a pancada forte no chão, meio de lado, um pouco virado para a direita. Sinto as costas inteiras contra o
chão duro e quente. Meu corpo está alinhado, as pernas dobradas e abertas.
Vou tomando consciência com as primeiras imagens. Estou com a cabeça um pouco levantada para ver melhor. De repente, os músculos do pescoço não aguentam e sem aviso, a cabeça cai. A ergo de volta rapidamente. Foi apenas um pum pá, um bate e volta como se o pescoço fosse mola. Uma batidinha leve, da nuca no asfalto áspero.
Minha visão fica turva, mas não me assusto: sei, há anos, que a área do cérebro responsável pela visão fica exatamente na nuca. Eu e minhas leituras.
Nada grave, já vejo tudo nitidamente, apesar da claridade do meio-dia.
Há umas dez pessoas me circundando à
mesma distância, como se um diretor de teatro houvesse feito marcações no chão.
Por momentos, me pareceu teatro mesmo, aquelas pessoas com os corpos inclinados e expressões mais que esperadas, tudo ensaiado. A maioria por curiosidade, outras poucas, intrigadas e uma ou outra preocupada.
Dentre as curiosas, desconfio pelo olhar, que algumas procuram algo que lhes dê prazer em contemplar um atropelado.
Seria um troféu ser o primeiro a gritar?
- Olhem, olhem, está saindo sangue!
Para ser fiel, até saiu, mas foi um filete mínimo, ninguém viu, nem eu. No hospital foi que senti uma dorzinha no couro cabeludo e um pouco de cabelo grudado.
Alguém disse que uma mão mística amparou minha queda. Se foi, e eu escolho acreditar que sim, me poupou de dores e complicações, de susto para meus filhos, parentes e amigos, e até de exposição pública: nenhuma escoriação, arranhão, nada, a não ser o sutil cortezinho na nuca, que desapareceu sem eu ver.
Ficou uma dúvida da mensagem recebida. Se foi sonho, imaginação, não importa, era o processo de minha morte.
Deus muda de ideia, tipo assim, de repente? Alguém ou algo interferiu?
Acreditar é uma opção. Acreditar na infinita beleza de um mundo interligado e complexo, acreditar que existe algo além do físico, acreditar, enfim, que somos
sobreviventes de milhões de acidentes, e que nossa própria vida é um acidente e um milagre ao mesmo tempo, é acreditar que alguém pode estar nos dizendo:
- Aguarde um pouco, seu papel, a parte que te cabe fazer neste mundo, ainda não acabou. Na hora certa você vai!
Talvez seja isso, talvez não!
Niraldo
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