Depoimento de Luciana Aparecida Pessôas
Entrevistada por Juliene Medeiros Dell’Anhol e Marcia Trezza
São Paulo, 05 de setembro de 2018
Entrevista ZN-HV05
Realização: Museu da Pessoa
P/1 - Qual é o seu nome?
R - Meu nome é Luciana Aparecida Pessoas.
P/1 - Onde você nasceu?
R - Eu nasci em Carapicuíba, São Paulo, em 1972.
P/2 - Que dia é esse?
R - Dia 12 de fevereiro. Era uma semana de carnaval. Foi quando houve o incêndio do Edifício Joelma e também, neste ano, o Emerson Fittipaldi ganhou o primeiro campeonato mundial de Fórmula 1 e a Apollo 17 foi lançada pela última vez até a Lua.
P/1 - Muito bom. Você tem irmãos?
R - Tenho, eu tenho quatro irmãos. Somos em três irmãs e dois irmãos.
P/2 - Desses acontecimentos todos, ou do carnaval por exemplo, seus pais
falam alguma coisa assim, na hora que você ia nascer estava em pleno carnaval?
R - Só falaram que era carnaval, que eles contaram para mim que eu nasci no dia de carnaval, só que eu nasci meia-noite e eu sentia muito frio, apesar de ser calor, e aí eu ouvi a minha infância inteira aquela música toda vez que as pessoas ouviam o meu nome, cantavam ‘‘Luciana..’‘.. Eu tinha uma raiva, porque acaba enjoando, não é?
P/1 - Fora esses acontecimentos do seu nascimento, durante a sua infância, o que mais te marcou?
R - Eu tenho algumas memórias, não tenho um percurso total. Quando eu tinha quatro anos, nós morávamos em Franco da Rocha e a minha mãe trabalhava muito, porque eu venho de uma família em que a minha mãe era o alicerce, então, era ela que dava o sustento, ela que tinha que ir atrás, uma mãe solteira de, na época nós éramos em quatro, quatro crianças bem ativas, hiperativas. Eu tinha quatro anos e eu me lembro, então, do sofrimento que ela tinha em levar o pão de cada dia para a mesa. E quando eu fiz cinco anos de idade, nós mudamos para a Serra da Cantareira, minha mãe foi ser caseira, porque ela ia assistir melhor os filhos, porque nós ficávamos sozinhos, então, a questão de alimentação, não tinha escola, não tinha creche por conta da idade, eu sou a segunda, eu tenho uma irmã mais velha. Então, a minha irmã mais velha ela é um ano e dez meses mais velha que eu. Então, ela tinha cinco e eu tinha quatro, tinha um bebê e tinha o meu irmão de dois; tinha um de dois e um bebê que pegou meningite por este motivo, da falta do cuidado, porque ela tinha que trabalhar. Então, foi uma história meio sofrida.
P/2 - Quando ela saía para trabalhar, quem ficava com vocês?
R - Ninguém, nós ficávamos sozinhas. A minha irmã mais velha tinha que cuidar da gente.
P/2 - Você lembra de alguma situação, vocês todos sozinhos em casa assim?
R - Eu lembro que tinha uma feira e que eu estava na feira, que eu pegava as coisas na feira e fazia comidinha, isso eu me recordo. Outra situação que aconteceu, eu me lembro que a minha mãe comprou um saco de laranja, vem muita laranja lá, ela tinha ensinado a gente descascar, então, eu lembro que eu fiquei o dia inteiro descascando laranjas. São as únicas coisas que eu me recordo.
P/2 - Ainda em Franco da Rocha?
R - Isso, quando eu tinha quatro anos de idade. E aí quando mudamos para a Serra da Cantareira, a nossa vida mudou muito, porque ela era uma mãe muito presente, então, a gente que não tinha regra nenhuma passou a ter horário, regras. Eu costumo dizer que nós passamos pelo exército da dona Cida, que ela regrada, então, 5:00 da manhã já tínhamos que estar em pé. Nessa época fazia muito frio na Serra da Cantareira, então, nós tínhamos que acordar, fazer o café da manhã, tomar café, organizar material, já dar uma arrumada na casa para poder ir para a escola. Voltava da escola, já tinha outras tarefas, ela tinha um quadro de tarefas porque nós éramos hiperativos, então, nunca tinha nenhum momento sem ser organizado. E a minha mãe, ela estudou até a terceira série e ela contava muitas histórias para a gente também, então, aí, o que acontecia com as histórias, eu sempre fui uma pessoa muito criativa, e gostava sempre de ouvir as histórias, então, eu colocava as histórias de saudade dela em prática. Então, ela contou uma história em que quando ela era pequena, em Duartina, ela matava passarinho para comer porque tinha necessidade, então, matava esse passarinho, falava: ‘‘era bom’‘. E eu falei: ‘‘era gostoso?’‘. ‘‘Era’‘. No dia seguinte eu matei um passarinho e fiz uma farofa, que era um passarinho pequenininho para ela comer.
P/2 - Para ela, você fez?
R - Para ela, era uma história dela.
P/2 - E quando ela viu aquele prato?
R - Ela ficou brava porque primeiro que ela não concordava em matar passarinho porque a gente nessa época não passava por necessidades, mas ela achou interessante, não bateu nem nada, mas ela falou: ‘‘não, esse passarinho só tem pele e osso’‘. Então, não dava, não tinha carne, não ia matar a fome de ninguém.
P/1 - Você recorda de alguma brincadeira, as brincadeiras que vocês costumavam participar quando era criança?
R - A gente fazia uma brincadeira, eu não sei o nome dela hoje, mas antigamente era uma brincadeira de que nós colocávamos duas madeiras paralelas e aí a gente ia aumentando e ia tentando pular a distância, era salto à distância, só que nós fazíamos com duas madeiras, e eu amava essa brincadeira, amava. Nós não tínhamos bicicleta, nem brinquedos, então, o brinquedo era o que nós tínhamos no nosso quintal.
P/1 - Com quantos anos você começou a sair sozinha de casa?
R - Então, nós nunca saíamos sozinhos até uns dez, 12 anos de idade. Porque era assim, como eram quatro filhos, ela tinha um costume de ir mensalmente fazer a compra, a compra do mês, então, ela escolhia um filho para ir com ela até a cidade, para fazer a compra juntamente com ela. E esse filho que ia, ganhava um prêmio, então, ganhava um lanche diferente, que não tinha em casa, que na minha casa era arroz, feijão, e carne era só de vez em quando, refrigerante não se via, frutas era só quando tinha compra também, ou que tinha no quintal. Então, os meus irmãos iam e eles eram muito espertos, eles comiam pizza, sorvete, não sei das quantas, na padaria; quando era a minha vez, eu era tão assim, eu amava Polenguinho, aí ela ficava com dó e me comprava mais alguma coisa, mas ela falava: ‘‘nossa, compra uma outra coisa’‘. ‘‘Não, mas eu gosto desse’‘, que era um queijinho bem pequenininho, eu gostava muito.
P/2 - Para onde vocês iam na cidade?
R - A gente ia na Vila Albertina, aqui na Zona Norte, fica próximo ao Tremembé. Então, ela fazia as compras lá antigamente, porque o acesso para Mairiporã era muito distante e tinha ônibus só uma vez ao dia na época, então, era mais fácil ir para a Vila Albertina. A minha mãe pegava carona para ir para a Vila Albertina, porque não dirigia na época, então, era bem complicado, e voltava de táxi.
P/2 - Você ia contar uma coisa, aí eu te perguntei?
R - Não me recordo mais.
P/1 - E com quantos anos você começou a trabalhar?
R - Quando eu saí de casa, nós passamos por um tempo de necessidades na minha família. A minha mãe trabalhava sozinha, os filhos vão crescendo, então, comem mais. E aí nós passamos por uma necessidade financeira muito grande e por isso motivo a minha mãe foi mandando os filhos mais velhos embora de casa. Então, primeiro foi a minha irmã embora e aí depois foi o meu irmão, que era mais novo que eu, que eu acho que eu era mais grudada. Isso foi um momento muito triste na minha vida, ser mandada embora de casa, eu tinha 12 anos. Aí eu fui, minha mãe me mandou embora, para trabalhar em casa de família, já com emprego numa casa, mas eu sempre fui muito moleca, ‘‘molecota’‘, imatura, então, quando eu cheguei, imagina chegar numa mansão em que uma criança tem tudo quanto é brinquedo que você nunca teve, então, eu ficava assim, ‘‘que coisa linda’‘. Então, no quarto do menino, tinha um aeroporto com vários aviões e eu ficava lá assim, ‘‘olha que lindo’‘. Não queria quebrar, não queria colocar a mão, mas a admiração era imensa, porque para quem não tem nada, não é? Nossa, quanta coisa legal que tem, quantos brinquedos legais, então, eu fazia amizade com as crianças para eu poder brincar com as crianças. É verdade. Eu tive uma infância saudável, brinquei muito, e nesse período não existia essa tal de pré-adolescência, eu continuei criança, até uns 15, 16 anos eu ainda era criança, brincava de boneca, sentava no chão.
P/2 - Então, como você está falando que você brincava bastante, a gente já estava pulando para a parte do trabalho, que também era quando você era bem nova, mas ainda lá na sua casa, sua mãe era caseira?
R - Isso.
P/2 - Seu pai?
R - Eu não tenho pai.
P/2 - Você tem lembrança dele, alguma memória?
R - Não. Minha mãe conta que meu pai faleceu antes de eu nascer, mas não tenho nenhum registro nem nada, nenhuma foto, porque também nessa época acho que não tinham máquinas fotográficas para todo mundo.
P/2 - E você disse que gostava de brincar bastante, você era moleca. Ainda lá, antes de você ir para essa casa, teve alguma brincadeira, alguma situação que até hoje lembra que tenha acontecido? Uma brincadeira, uma arte, uma coisa difícil?
R - Tem. Na minha época, quando eu entrei na escola, eu entrei com sete anos e eu sempre gostei do pessoal da saúde, eu sempre gostei. Então, a minha irmã mais velha, eu estava com medo de receber a vacina da pólio, aí minha irmã falou assim: ‘‘quem toma a vacina não fica paralítico e ela é muito gostosa’‘. Então, até os sete anos de idade, até nove, eu ia nas vacinações para tomar a vacina e o povo me dava porque não tinha tanta criança acabava a bendita da vacina contra a pólio, entretanto tinha a vacinação contra, é uma de revolverzinho, esqueci o nome. Antitetânica, eu tinha pavor dessa vacina, muito, muito. E aí eu fugi no dia, estava a equipe lá da saúde e eu fugi para o meio do mato, fiquei numa árvore, ficava vendo a hora que eles iam embora, mas eles sabiam que tinha um aluno que não tinha tomado a vacina, eles ficavam procurando, procurando e me acharam. Aí me deram a vacina. Gente, eu fiquei com tanta raiva, tanta raiva, que aí eu voltei da escola, estava tão chateada, porque não tinha dado certo o meu plano, que no meio do caminho tinha uma casa grande, uma mansão, e tinha um pastor alemão e o pastor alemão começou a latir para mim e eu mostrei a língua para ele. Ele pulou o portão, me mordeu e eu bati a cabeça numa pedra, e aí eu fui acordar, já estava no hospital. Então, ele comeu um pedacinho da minha orelha e machucou aqui o meu pescoço, mas como eu desmaiei, ele parou de me morder. O pior é essa, eu fiquei três meses tomando vacina todos os dias, era um absurdo. Não adiantou nada.
P/2 - Vou fazer uma pergunta que não está aqui no roteiro. Você tem alguma memória de carinho que a sua mãe fazia, do corpo, memória de corpo assim?
R - Não, minha mãe não era muito carinhosa.
P/2 - Ou ao contrário, que não era carinho, uma memória de corpo.
R - Então, como eu disse no início, que nós éramos muito ativos, a gente aprontava muito. Muito. Ao ponto de todo dia ir comunicado num caderninho para a minha mãe. Eu era muito esperta, então, eu descobri como falsificar a assinatura da minha mãe. Só que, assim, não adianta filho enganar a mãe, que mãe parece que sente o cheiro longe, não é? E aí eu comecei a assinar uma semana sem apanhar do que a gente aprontava, de desobedecer a professor, de bater no colega e et cétera. Então, uma semana, aí meus irmãos, ‘‘olha, que legal’‘, eu assinava de todo mundo, a minha e as dos outros. Aí a minha mãe falou assim: ‘‘está muito estranho esse negócio, eu vou lá na escola ver o que está acontecendo’‘. Quando chegou na escola, a professora: ‘‘não, a senhora assina todo dia, mas não está havendo melhora nenhuma’‘. Quando eu cheguei em casa... E era assim, se ela não descobrisse quem era, todo mundo apanhava; se ela descobrisse quem era aí a gente apanhava em dobro e ainda ficava com castigo, era apanhar e o castigo. Então, minha mãe era um pouco agressiva, mas a gente merecia, porque era fora da casinha, 100%. Ao ponto de, por exemplo, quando teve a época da catequese, nunca a gente se formava, todo mundo se formava e a gente não, porque nós éramos muito bagunceiros.
P/2 - Por que não formava?
R - Porque a gente aprontava muito. E assim, imagina, a Serra da Cantareira, condomínio pequeno, então, todo mundo sabia de tudo, então, por exemplo, a gente foi lá e jogou pedra na casa do Fulano, eram brincadeiras hoje tidas como bullying, então, a gente aprontava demais. Fora 100% da casinha.
P/2 - Houve uma época que era assim que educava, não é?
R - É, então, a gente apanhava. Hoje eu valorizo, mas na época a gente achava ruim apanhar, não era uma coisa gostosa, não.
P/2 - Você estava falando quando você chegou nessa casa.
R - Então, eu já trabalhava antes, todo mundo já. Nós plantávamos, tínhamos horta, então, a gente vendia as verduras no condomínio, de casa em casa. Tinha o meu dia, era sempre esquematizado, minha mãe era empresária e não sabia. Então, ela tinha a escala, segunda e terça era Fulano e Beltrano, iam de dois em dois, e quarta e quinta iam não sei quem. Na sexta a gente dava banho em cachorro e limpava os cachorros, penteava, secava. Então, nós fazíamos isso para as pessoas do condomínio, então, nós éramos prestadores de serviço. E aí a gente aprendeu a trabalhar muito cedo, então, quando eu tinha 12 anos, eu já fui trabalhar sozinha, longe da minha mãe, porque eu trabalhava numa casa, antes de ir, mas a minha mãe ia supervisionar o meu trabalho, se estava certo, se tinha feito direitinho, porque também não podia lesar a pessoa, ‘‘eu coloquei uma criança’‘.
P/2 - O que você fazia?
R - Eu lavava a louça, eu limpava a casa, tirava pó, só não lavava roupa, isso que eu me recordo, nas casas não lavava roupa. Mas quando tinha os fins de semana, que as famílias iam fazer festa, essas coisas, eu ficava para lavar a louça, eu ia na casa das pessoas, via que estava tendo uma festa, batia palma e falava assim: ‘‘tem louça para lavar?’‘. Aí lavava a louça e ganhava um dinheirinho e ajudava, ia ajudando a minha mãe.
P/1 - Isso com quantos anos?
R - Sete, oito. Uma vez foi muito engraçado, minha mãe falou assim: ‘‘vocês precisam arrumar um emprego’‘. Eu lembro que foi a minha irmã, eu e o meu irmão, eu acho que eu já tinha uns nove, meu irmão eu acho que tinha seis ou sete, ou eu tinha oito e ele tinha seis anos de idade, e nós íamos de casa em casa perguntando se tinha algum emprego para a gente. E as pessoas não queriam porque eram muito pequenos, ‘‘que essas crianças querem trabalhar?’‘. Mas no fim de semana a gente conseguia fazer, lavar a louça ou cuidar de cachorro, nós fazíamos esse tipo de tarefas.
P/2 - Você lembra se você comprou alguma coisa com algum dinheiro que você ganhou? Você lembra a primeira vez que você fez isso?
R - Eu lembro que na época tinha um tênis que passava na TV, uma propaganda, nós não tínhamos TV, mas na casa em que minha mãe trabalhava tinha, e como eles iam só fim de semana, então, às vezes a gente assistia TV lá de vez em quando. Então, tinha um tênis chamado Daytona e eu falava: ‘‘eu quero um tênis Daytona’‘. A minha mãe foi guardando e ela comprou esse tênis, comprou um tênis branco com listras azuis e vermelhas, e eu amei, só que ele era de tecido e aí na Serra da Cantareira, barro no tempo de chuva, sempre úmido o clima, então, o meu tênis não durou muito tempo, não. Ele sujou e a minha mãe ficou brava: ‘‘foi caro esse tênis, eu quero ele branquinho de novo’‘. Aí nós limpávamos piscina e a gente usava o cloro na piscina. Olha a mente brilhante. Aí eu fiz um balde com água com esse cloro da piscina e joguei o tênis, só ficaram as listras assim, que eram de couro. Acabou com o tênis, a minha mãe ficou uma fera. Mas era o que a gente tinha, as ideias, porque era também, ‘‘quero limpo’‘, mas não ensinava. Por exemplo, ‘‘você tem que cozinhar, hoje é o seu dia de fazer comida’‘, mas nunca me ensinou a cozinhar, então, sozinha eu tive que aprender como cozinhar e a minha mãe é cozinheira profissional.
P/2 - E como que você fazia?
R - Tinha um banquinho, eu subia no banquinho, aí ia na beira do fogão, aí eu via que tinha que acender, aí eu consegui acender, a pessoa vai testando, testando e eu consegui acender. Aí eu coloquei a água, o arroz e sal. Eu consegui cozinhar. Quando chegou a vez do meu irmão, mas também ninguém ensinava ninguém, eu já tinha passado por isso e não passei para ele, porque a minha mãe tinha uma filosofia: não existe diferença de trabalho para homem e para mulher; mulher faz trabalho de homem e homem faz trabalho de mulher. Então, nós fazíamos de tudo, não tinha essa desigualdade de sexos em casa. Aí chegou um dia, minha mãe falou assim: ‘‘hoje é o seu dia de cozinhar’‘. A gente plantava mandioca, deu umas mandiocas para ele e falou: ‘‘se vira’‘. Depois que a gente cozinhava e ficava ruim, nós tínhamos que comer tudo que ficava ruim e aí ela fazia uma comida gostosa para todo mundo, menos para nós, que aí ia aprender, ‘‘eu seu quero uma comida gostosa, eu tenho que fazer melhor’‘. Então, nós crescemos sendo pessoas muito perfeccionistas, eu percebo isso hoje, eu sou perfeccionista em quase tudo que eu faço e tenho uma dificuldade assim: ‘‘não ficou bom’‘. Então, a gente nunca aceita o quase bom, tem que ser o excelente. Então, aí ela tinha dado essas mandiocas para o meu irmão e ele foi cozinhar, só que ele não sabia acender o fogo. Ele até conseguiu descascar a mandioca, que é difícil. Ele descascou, não ficou perfeito, é lógico, colocou numa panela com água e achou que já estava pronto, aí chamou todo mundo para almoçar. Aí chegou lá, a minha mãe deu uma bronca nele, brigou com ele e falou: ‘‘agora eu vou fazer uma comida para todo mundo e você vai comer isso aí’‘. Então, ela era muito firme, extrema até, só que minha irmã mais velha era como se fosse a nossa mãe, então, ela via que ele ia ter que comer uma mandioca crua, então, ela separava um pouquinho da comida dela e depois ela falava: ‘‘come que eu guardei para você’‘. Ao ponto de uma vez a minha mãe chegou, e ela estava muito irada, e ela disse assim para a gente: ‘‘vocês não vão ser nada na vida, vocês só vão ser coisa ruim’‘. E começou a nomear umas coisas ruins, bem tristes de ser dizer hoje. E aí a minha irmã juntou a gente, colocou atrás dela e com o dedo em riste falou assim para a minha mãe: ‘‘nós não vamos ser nada disso que você está falando e você vai ver’‘. E nós pegamos isso para a gente, então, hoje todos são trabalhadores, a gente lutou para estudar, porque quando eu tinha 12 anos eu larguei a escola. Então, eu trabalhava, esse dinheiro não ficava comigo, eu tinha que levar para a minha mãe para ajudar a sustentar os que estavam em casa e era bem complicado. Até a gente ter essa noção, poxa, eu trabalho, eu tenho direito a usufruir desse benefício, do fruto do meu trabalho, demorou um bom tempo, eu acho que eu tinha uns 17 anos quando a caiu a ficha.
P/2 - E seu irmão, você falou que o seu irmão também saiu antes de você, foi trabalhar com o quê?
R - Ele foi trabalhar numa casa de família, mas ele foi trabalhar como jardineiro. Porque a gente sabia fazer de tudo, então, eu cortava grama, sabe aquelas máquinas de colete que são pesadas? A gente cortava a grama com aquelas máquinas, de carrinho nós cortávamos, rolete, então, a gente cortava a grama, limpava piscina. E aí ele foi para Granja Viana, meu avô tinha uma casa na Granja Viana e meu avô era jardineiro, então, tinha uma casa que estava precisando e aí ele morava na casa, conseguiu morar na casa, e ele começou a trabalhar lá nesse tempo.
P/1 - Todos esses trabalhos que vocês faziam, vocês aprendiam sozinhos?
R - A gente aprendeu fazendo, porque a minha mãe fazia, por exemplo filtrar uma piscina, a gente via o meu tio filtrando, meu tio também morava numa mansão e tinha uma piscina semiolímpica, que até eu quase morri afogada nessa piscina, que eu não sabia nadar. E aí meu tio filtrava, então, a gente aprendia bastante. E a cada dois anos eles esvaziavam e a gente lavava a piscina, então, toda a semana a gente colocava o cloro, filtrava essa água para ficar límpida, então, todos nós fazíamos isso. Cortar a grama, a gente via como cortava e criança, é engraçado, não sabe que é pesado, acha que é fácil. Nós que plantávamos, nós que fazíamos a horta, isso minha mãe ensinou. Primeiro a gente planta a semente, aí faz a mudinha, até hoje eu não esqueço, então, quando eu trabalho aqui na escola, por exemplo, eu amo fazer essa parte com as crianças porque é muito legal a criança ver e também saber esperar o tempo, o tempo da germinação, o tempo do fruto, em que a hortaliça vai estar pronta para comer.
P/2 - Você quase morreu afogada? Como foi isso?
R - Então, eu estava nessa mansão onde meu tio trabalhava, tinha umas crianças lá e tem o parque de frente com a piscina, mas não tinha obstáculos, então, a gente estava brincando e a menina me empurrou e eu caí na parte mais funda. E aí eu lembro que eu subia e descia, subia e descia até que o meu tio puxou. Me puxou e aí ficaram fazendo para tirar a água. A partir daí a minha mãe começou a jogar a gente na piscina para a gente se virar, ela não sabia nadar, mas nós tínhamos que aprender a nadar.
P/2 - E você, como foi esse dia que falou: ‘‘opa, agora eu sei’‘? Você lembra?
R - Eu lembro. Eu nado que nem um helicóptero até hoje, sai mais água para fora do que eu saio do lugar.
P/2 - Você lembra da sua sensação? ‘‘Agora eu nado’‘.
R - A minha irmã mais velha não sabe nadar, mas ela sabe mergulhar, então, ela falava assim: ‘‘olha, faz assim que você não vai cair’‘. Aí ela falou: ‘‘olha como é que os cachorros’‘. Aí assistia televisão, as olimpíadas, e o povo nadando assim, aí a gente começou a fazer também. Aí a minha mãe contava uma história: ‘‘se você engolir um peixinho vivo inteiro, você vai nadar para sempre’‘. Aí um dia nós estávamos passando na Serra da Cantareira, tem cachoeira e a casa onde nós morávamos era acesso à essa cachoeira, demorava uns quatro quilômetros, mas a gente chegava. E aí a gente passeando lá por essa mata, tinha um riozinho, um pouquinho de água, aí tinha uns bichinhos, aí meu irmão falou assim: ‘‘olha os peixinhos, vamos engolir vivo para nadar direitinho’‘. Aí o meu irmão engoliu, só que não era peixe, era girino. Mas meu irmão até hoje nada melhor do que todo mundo e ele foi o corajoso, ele era corajoso, comeu umas coisas doidas. Aí a minha mãe, teve uma época que ela queria ganhar muito dinheiro, vamos criar escargot. E aí ela criava e eu falava: ‘‘que coisa nojenta’‘. Aí ela: ‘‘eu vou dar dez cruzeiros para quem tiver coragem de comer um escargot’‘. E eu falei: ‘‘eu não como nem que me pague 1 milhão’‘. Aí o meu irmão falou assim: ‘‘eu como’‘. E ele foi lá, cozinhou, comeu e disse que era gostoso, mas eu não, até hoje eu não sei o sabor disso. Mas ela desistiu, que não deram certo os planos.
P/1 - E dessa casa que você morou na Cantareira, você tem uma lembrança que marcou muito a sua infância?
R - Então, eu acho que todas essas histórias aconteceram nessa casa. Eu lembro que festa junina a gente não tinha, mas a minha mãe fazia sempre uma fogueira junto com o meu tio, com a família do meu tio e a gente assava o que a gente colhia ali, então, isso era a festa junina. E até hoje para mim, é a melhor festa junina que existe, porque é realmente de raiz.
P/2 - Assar o que colheu, não é?
R - Assar o que colheu, então, era milho, a batata doce, a mandioca, a pipoca que minha mãe fazia, que aí eu acho que ela comprava o milho para pipoca, porque nós plantávamos o outro milho, que é aquele de cozinhar. Mas para mim, a minha infância foi a melhor de todas, mesmo assim, com as dificuldades, foi a melhor de todas.
P/2 - E ir para uma casa agora com 12 anos, como que você se virou lá para fazer o trabalho?
R - Então, eu fiquei pouco tempo nessa casa, porque eu era fora da casinha. Eles tinham uma escada caracol, aí eu queria saber como andar de costas na escada. E tinham câmeras na casa, aí eles devolveram, falaram: ‘‘não, essa menina tem problema mental’‘. Mas eu era criança.
P/2 - Você descia de costas?
R - Coisa de criança, não é? Eu descia de costas.
P/2 - E tinha quantos filhos a família?
R - Tinham dois, um menino e uma menina.
P/2 - Brincavam? Você brincava com eles?
R - Brincava com ele.
P/2 - Eles deixavam?
R - Era uma família judaica alemã e as crianças tinham multitarefas também, então, as crianças praticamente não ficavam em casa, ou ficava na hebraica, ou ficava no colégio. Então, não tinha esse tempo de brincar com as crianças em casa, que eles tinham muitas coisas para fazer. Eu não lembro disso, de eles estarem em cara. Eles chegavam à noite só, então, era pegar o uniforme, lavar o uniforme, limpar o sapatinho deles para ir para a escola e organizar material, era isso que eu via. No fim de semana eles iam para a Serra da Cantareira, minha mãe que arrumou esse emprego porque era filho da patroa dela, aí eles me devolveram, eu fiquei duas semanas e eles me devolveram para a minha mãe.
P/1 - O que a sua mãe fez?
R - Uma fera, ficou uma fera que eu não fiquei no serviço. Aí meu avô arrumou lá na Granja Viana uma outra casa, mas também não fiquei muito tempo. E aí tinha uma pessoa, um japonês que trabalhava lá na Serra da Cantareira, que comentou e que eu até lembro de quando eu era pequena, eu cuidava do filhinho deles, eu acho que eu tinha uns nove anos, eles saiam e eu ficava de babá do bebê. Aí ele comentou que tinha uma família ali no Tremembé que estava precisando de uma empregada, então, aí eu fui morar com essa família, morei sete anos nessa casa. Aí eu fiquei. Eu já tinha 13 anos, aí foi onde eu consegui ficar firme no emprego.
P/2 - Você fazia o que nessa casa?
R - Então, eu limpava a casa, não cozinhava porque era uma família italiana e as mulheres italianas amam cozinhar, e eu fiquei muito feliz com isso. É uma família em que eu tive uma experiência do que é ser família em questão de cuidados, é uma família que me deixou estudar, então, eu trabalhava até as 6:00 da tarde, morava na casa. Não tinha criança para cuidar, os filhos já eram adultos, quase adultos, e aí eles me matricularam na escola, foi onde eu voltei a estudar, e fiz o quinto ano, tinha 13 anos de idade. Eles iam preocupados, ‘‘você está indo bem na escola’‘, se eu tinha dificuldade. Os meninos me ajudavam em matemática, que eles estavam fazendo engenharia, e aí era bem legal. Quando eu terminei o fundamental, que era o primeiro grau antigamente, e eu ia para o médio, eles me incentivaram a fazer a escola técnica. Aí eu fiz um curso, eles me ajudaram, ‘‘olha, tem um professor de matemática ali, vai estudar matemática’‘, eu nunca fui muito boa em matemática. Aí estudei, todos os dias estudava matemática, prestei para o Liceu de Artes e Ofícios e para a Escola Técnica Federal, mas meu sonho era fazer Artes e Ofícios, eu queria fazer edificações na época. Eu tinha um sonho de arquiteta desde criança, eu queria ser arquiteta porque na casa da família que a minha mãe trabalhava sempre tinham aquelas revistas de casa e eu era apaixonada por aquelas casas. ‘‘Um dia eu vou ter uma casa dessa’‘. E aí eu prestei, não passei no Liceu, mas eu fui sozinha, aí fui até Escola Técnica Federal, que é próxima ao Liceu, também para ver e aí tinha números no meu e não tinha estrelinha, e tinha estrelinha no de algumas pessoas, e ninguém dava a informação correta. Depois de um ano eu descobri que eu tinha passado na Escola Técnica Federal e não fiz, mas eu tinha prestado para mecatrônica, que era o único curso que tinha vagas, então, a matemática fez bem para mim, para poder passar. Aí continuei, terminei o segundo grau normalmente, quando eu estava no segundo ano, eu recebi uma proposta de emprego para ser secretária numa igreja que estava abrindo um projeto social, porque era aquele casal que eu contei, que era o Tomi e a Carol, que ele é médico, ela era assistente social, eles sempre faziam um trabalho social. Então, na minha escola, foi como eu conheci, eles fizeram uma semana cultural, então, eles queriam ajudar as crianças carentes, os adolescentes carentes, a terem uma perspective de vida e eu sempre tive isso, era a minha luta interna, como pessoa. Falava assim: ‘‘eu sempre vou sem empregada na minha vida? Eu sempre vou ser assim?’‘. Então, eu queria mudar a minha história e foi onde eu comecei a participar do grupo que eles tinham, eles tinham um grupo de apoio, eles pagavam alguns cursos para os adolescentes, de datilografia, assistente administrativo, e aí eu fui beneficiada. Eles faziam grupos também de estudos, então, eles assinavam jornais, Folha, Estadão, fazia a gente ler e ter uma consciência mais crítica, eles faziam teatro. Tinha a questão religiosa, mas eles não focavam tanto na questão religiosa, porque eles queriam formar pessoas transformadores, então, eu fui agraciada com o projeto deles e aí eles precisavam, como aumentou o número de adolescentes, eles são excelentes para trabalhar com adolescentes, é de tirar o chapéu, eu nunca vi alguém com esse perfil que eles tinham, que eles tem ate hoje, até hoje eles trabalham com adolescentes, e aí eles me chamaram para ser secretária. Então, aí eu aceitei o propósito e a família com a qual eu trabalhava, eles ficaram muito tristes, porque eles investiram também em mim. E eu tenho um carinho muito especial com essa família e uma dívida com eles, porque eles também foram alicerces para a minha vida, para ser o que eu sou hoje. Então, por exemplo, situações que aconteciam lá, nunca vi esse casal brigando. O caos que era na minha família, de briga, de agressividade e tudo, eles eram extremamente amorosos, então, se eles compravam presentes para os filhos, eles traziam um presente para mim; se eles iam ao restaurante, eles compravam uma roupa nova para mim para eu ir ao restaurante com eles; se eles iam ao museu eu ia junto. Eu entendo porque pode ser porque ela perdeu uma filha e ela só tinha dois meninos, então, como eu era muito garotona, pode ser que ela me adotou como filha do coração e isso me emociona porque foi onde eu aprendi o que é ser família, de verdade, sem ser segmentada. E eles eram uma família muito equilibrada e a época que eu saí, eu não fui sábia em ter dado uma notícia um pouco mais tranquila para eles, ela ficou em depressão. Mas aí eu continuei indo na casa, porque eu tinha um vínculo com eles. E aí eu fui continuando a trabalhar na igreja, nessa secretaria.
P/2 - O casal era da igreja?
R - Não, eles não eram da igreja, eles tinham uma outra religião, não eram nem cristãos.
P/1 - Você tem contato ainda com eles?
R - Então, eles não estão mais aqui na capital, eles estão no litoral, moram no litoral agora, mas eu estou organizando para fazer uma visita para eles, porque eles somaram na minha vida e eu sou muito grata a essa família.
P/2 - Porque aí você nem continuou lá morando com eles?
R - Não. Então, eu comecei a morar em igreja, eu era sem-teto, aí eu morava na igreja. Então, morava lá, estudava de manhã, que funcionava como funciona aqui e tinham cursos à tarde, então, eu trabalhava das 2:00 às 10:00. Aí eu cansei depois de dois anos, ‘‘não sei se é bem isso... eu quero ganhar mais’‘. Aí eu fui trabalhar numa agência dos Correios, lá no Paraíso. E eu comecei a trabalhar nessa agência, mas também não gostei, fiquei um ano e meio, mas começou a me dar um processo depressivo e aí na igreja tinha uma psicóloga, e ela estava gestante, e eu pedi para passar com ela, uma consulta gratuita, aí ela falou assim: ‘‘vem trabalhar comigo na minha casa’‘. E eles não me registraram como babá, eles me registraram como secretária também. Eles tinham uma empresa, registraram pela empresa, e eu comecei a cuidar da filha dela, ela tinha uma filha de cinco aninhos. Eu sempre tive aptidão para trabalhar com criança. E aí ela estava gestante, eu nunca tinha visto um bebê recém-nascido, foi a primeira vez. E aí a criança quando chegou do hospital, eu falei assim: ‘‘nossa, essa criança foi espancada?’‘. Porque a criança nasceu com um negócio roxo aqui na testa. Eu falei: ‘‘nossa, essa criança toda roxinha’‘. E eu pensando, nunca falei ‘‘nossa foi espancada’‘, mas eu estava pensando, ‘‘o que aconteceu com essa criança? Que ela é muito magra, não é um bebê gordinho e tal’‘. Que eu nunca tinha visto um recém-nascido, ou percebido, deve ter tido e eu nunca percebi. Aí eu trabalhei com essa família durante um ano, eu cuidei dessa bebê e foi muito bom, muito gratificante também, eu amo bebês, então, para mim foi bem legal saber cuidar de um bebê recém-nascido, até um ano, primeiro dente, papinha, era bem joia. E eu cuidava da casa também, então, limpava a casa, organizava e ao mesmo tempo, duas vezes na semana, eu dava aula de informática numa organização.
P/2 - Você continuou morando na igreja?
R - Não, eu morava nessa casa e eles moravam na Serra da Cantareira, então, eles moravam em outro condomínio, que não era o condomínio onde eu vivenciei a minha infância. Aí depois eu fui para um congresso de jovens em Curitiba, pela igreja, e aí eu conheci o Maurício Cunha, que tem um projeto chamado CADI, Centro de Assistência e Desenvolvimento Integral, e ele me convidou para fazer o curso de desenvolvimento social, técnico em desenvolvimento social.
P/2 - Como foi esse encontro? Porque tem muita gente num congresso. Você continuava com o contato com a igreja?
R - Isso, e eu era babá, só que nos fins de semana sempre estava na igreja. Eu fazia parte do grupo de jovens e aí o pastor falou assim: ‘‘a gente vai mandar vocês para Curitiba’‘. Escolheram os jovens que iriam, iam pagar hotel, a gente ia participar de um congresso internacional de jovens. Aí eu fui, fui agraciada porque eu não tinha dinheiro para ir, e foi onde eu conheci o Maurício Cunha, que tem nas fotos aí. O Marcel foi comigo, o Marcel foi quem começou um projeto social depois comigo aqui em São Paulo, e nós fomos para lá, mais os outros jovens que foram, e aí um dos jovens era amigo do Maurício e apresentou a gente. ‘‘Vocês gostam muito de trabalho social’‘. Porque nós éramos da igreja e o pastor era esse médico, que a esposa é assistente social, e sempre canalizou para projetos sociais, então, nós fazíamos trabalhos nos fins de semana nas comunidades da região da Vila Albertina, então, o Morro do Piolho, onde chamava a Favela Crime da Mala, que hoje é a Fundação Gol de Letra, era uma escola, e nós fazíamos contação de história para as crianças todo sábado e domingo nessa escola. A escola abriu para a gente, a secretaria da educação abriu, e a gente ia lá para contar história para as crianças, era bem bacana. Então, a gente fazia, todo fim de semana, uma festa, aí fazíamos distribuição de cesta básica, era bem bacana.
P/2 - Já começou cedo no trabalho social.
R - É, eu fui criada no trabalho social, então, eu tenho isso nítido na minha vida, eu respiro projeto social. E aí quando eu fui para Curitiba, foi onde eu fui para Curitiba, e a igreja que financiou esse um ano que eu fiquei lá.
P/2 - Igreja evangélica?
R - Isso, se chama Edificando em Cristo, ela está lá na Vila Albertina hoje. Ela era lá no Tremembé, na Mariquinha Sciascia, e foi para a José Antônio Ermírio de Moraes, ali na Vila Albertina. Nós fazíamos esses trabalhos, ele era muito dinâmico esse pastor, pensa numa igreja que tinha muitos jovens, e é um evangelho vivo, não é um evangelho que dá aqui as coisas, é um evangelho prático. Então, quando chegava o natal, nós fazíamos um arrastão do amor, então, a gente fazia peça de teatro na rua, a gente fazia pedágio nos faróis, mas não era para pedir nada para ninguém, era para dar uma mensagem, ‘‘que o seu natal seja excelente’‘ e a gente dava um pirulito daquele de coração para identificar que era um arrastão do amor, para as pessoas se sentirem amadas. E aí à noite a gente fazia a serenata de natal de casa em casa e dava um presente para as casas que a gente visitava, era bem bacana. A gente fazia teatro no horto florestal, mimica, levava uma banda, tocava música, então, era bem bacana. Eu tive uma adolescência muito, muito joia.
P/1 - Você tinha quantos anos nessa época?
R - 17. Minha adolescência foi um pouco mais, porque eu sou meio retardada. Foi de 17 até uns 25, 26, por aí.
P/2 - E os amores? E os namoros?
R - Então, eu tive um único namorado, não namorei mais, porque eu tinha um propósito, da minha mudança de vida, de eu me sentir como pessoa que alcancei o meu objetivo como pessoa, então, eu tive um namorado na escola, na época eu tinha 17 anos, e aí ‘‘não vai dar futuro para nada’‘. E porque também, eu presenciei, a minha mãe tinha sofrido muito agressividade masculina, e quando eu trabalhei no Nordeste também vi muito isso, que a gente trabalhou com as mulheres vítimas de violência, pessoas que eram casadas e que o cara tinha uma, duas; uma era a matriz e as outras eram filiais, então, isso formou um bloqueio, uma barreira, eu falei: ‘‘eu não quero isso para a minha vida, eu estou tão bem só, para que eu vou arrumar alguém que não vá somar, alguém que só vai trazer destruição ou desamores, desafetos?’‘. Então, eu, por enquanto, ainda estou solteira.
P/1 - Fala um pouquinho de quando você foi para Curitiba.
R - Então, quando eu fui para Curitiba eu fui fazer esse curso de desenvolvimento comunitário, era um curso bilingue, então, eu tinha minha professora canadense, professor americano, era um grupo misto de todas as regiões do Brasil, tinha um grupo de meninas, a gente ficava numa casa só das meninas e tinha uma casa só dos rapazes. Aí na casa das meninas eu era meio que comandante, mandava no povo. Então, tinha gente mais velha que eu e eu tinha que ter a ordem. Pensa numa pessoa perfeccionista e ligada à limpeza, aí eu ganhei um troféu da mulher mais limpa, e tudo tinha que estar perfeito. E nessa época, era uma questão de maturidade, que eu não tinha maturidade de respeitar as diferenças. Tem gente que tem dificuldade de se organizar, tem gente que tem dificuldade de manter as coisas em ordem, então, tinha uma moça lá no grupo que me irritava. Então, ela catava tudo quanto era reciclado e guardava e eu falava: ‘‘nossa, mas isso é acumulo de lixo, vamos jogar fora’‘. Aí ela não queria jogar fora e eu: ‘‘vou jogar fora, eu vou te dar até tal dia’‘. Era exército, exército da Luciana agora funcionando. ‘‘Eu vou te dar até tal dia para tirar todo esse lixo desse lugar’‘, e aí ela ficava chateada. Eu não tinha ainda esse equilíbrio emocional para poder lidar com os grupos, eu era muito diretiva. É assim, sargentão, capitão Nascimento aqui mesmo, então, vamos, é assim. Hoje é dia de limpeza, você vai limpar tal lugar, tal lugar e eu vou ver se está bom. Igualzinha alguém fazia comigo quando eu era criança, sabe? Reprodução. Mesmo assim acabei me destacando nesse curso.
P/2 - Você nessa casa, você foi designada a ser a liderança?
R - Não, eu me autointitulei, não tinha líder nenhum, porque o que eu aprendi com o pessoal em Curitiba, eles têm uma flexibilidade de relacionamento muito boa, muito boa mesmo. E até de ideias, por exemplo, eu era de uma igreja evangélica e que existia essas coisas: ‘‘a gente não ouve música do mundo’‘, ‘‘isso que a gente assiste não é de Deus’‘, contra a televisão. Então, eu tinha muito disso regrado, que foi a minha formação, ‘‘é melhor ler um livro do que assistir TV’‘. E aí, quando eu fui para Curitiba, ‘‘nossa, o povo muito tranquilo. Cristãos, faziam o trabalho social, mas muito tranquilos nessas questões de ouvir música, então, aí foi onde eu aprendi a ouvir música popular brasileira e apreciar, mas ainda com receio, ‘‘não estou pecando?’‘. Faz parte. E onde eu aprendi também, com o tempo, a respeitar as diferenças, o tempo de cada um, então, nem tudo tem que ser no meu tempo, tem o tempo da outra, que ela tem mais dificuldade, e foi onde eu ouvi uma frase que marcou a minha vida. No dia que os mentores estavam fazendo a avaliação, eles me chamaram e eles falaram: ‘‘conta um pouco da sua história’‘. Como eu estou contando aqui hoje, aí eu contei. Aí eles falaram assim: ‘‘puxa, você tinha tudo para ser um rio amargo, de águas amargas, e você flui um rio de águas doces, saudáveis, e isso é muito bom porque a gente vê que tudo que você sofreu no passado, hoje é só uma cicatriz, mas ela não dói, porque você consegue rir em cima das situações difíceis que você viveu’‘. Então, isso para mim foi bem bacana e eles falaram: ‘‘por isso nós estamos te escolhendo para ir para o Nordeste fazer esse trabalho que nós fazemos aqui, fazer parte da equipe técnica’‘. E foi para onde que eu fui e foi a escola que financiou também.
P/2 - Você ficou um ano em Curitiba?
R - Um ano. Aí de lá eu fui para a Paraíba, fiquei dois meses em Cabedelo, mas conheci todas as praias da Paraíba, eu amo praia, gente. Pensa numa pessoa que é louca por praia.
P/1 - (inint) [00:55:04] engolir o peixinho, não é?
R - Não, não engoli, não. Eu fiquei dois meses na Paraíba formando uma equipe, as lideranças locais para desenvolvimento de projetos sociais e aí eu conheci a Ajovep, que é uma organização que faz um trabalho social nos sertões, eles fazem um enduro.
P/2 - Antes de você mudar, sair da Paraíba, você lembra a primeira vez que você viu o mar como foi?
R - Foi em São Paulo, eu estava em São Paulo, foi uma moça da igreja que falou assim: ‘‘você conhece praia?’‘. ‘‘Não, só na TV’‘. E aí me levou para Itanhaém, foi onde eu vi a praia pela primeira vez, mas estava chovendo muito e eu não pude usufruir desse prazer de pular uma onda, de por o pé numa areia, então, eu só vi, mas eu não participei.
P/2 - E teve alguma sensação quando viu?
R - Sim, é bem bacana quando você vê o mar, é uma imensidão. Quando está um sol, então, eu fico apaixonada, eu falo assim: ‘‘como é possível o mar tocar o céu’‘. Porque é muito joia, se você olha o infinito é mar e aí o céu, aquele azul maravilhoso, então, por isso que eu sou encantada pelo mar, pela praia. Um dia eu vou morar na praia, outro objetivo, um plano para o futuro.
P/1 - Como foi trabalhar no Nordeste, lá nessas ações sociais?
R - Então, no Nordeste eu trabalhei na Paraíba com a formação, aí eu fui dar duas palestras em Natal e amei Natal. Gente, o povo de Natal é super acolhedor. Então, quando nós chegamos, eles falaram: ‘‘vocês vão ficar em tal lugar’‘. Na paraíba a gente tinha alugado um lugar, mas quando eu cheguei no Ceará, para o seminário, a gente não tinha nem onde ficar.
P/2 - E Natal?
R - E em Natal, não, quando a gente chegou, foi uma receptividade tão grande que eu falei assim: ‘‘nossa, como eles são diferentes do pessoal da Paraíba’‘. A Paraíba é linda, maravilhosa, mas não tem essa receptividade que o pessoal de Natal teve. Então, por exemplo, em um dia nós conhecemos todas as praias de Natal. Em um dia num buggy, aí a gente parou no meio de uma duna, tinha um lago azul e em frente tinha o mar, só que ali era água doce e lá na frente água salgada, que era o mar. Aí a gente ficou lá, esse dia, ‘‘vamos ficar de boa aqui na lagoa’‘. E a gente ficou, daqui a pouco eles voltaram com sorvete, com água. Eu falei: ‘‘mas gente, de onde esse povo é?’‘. Então, foi muito legal essa receptividade. De Natal nós fomos para Fortaleza, quando a gente chegou em Fortaleza, nós íamos ficar numa casa, quando a gente chegou lá não tinha lugar nessa casa e a gente teve que dormir numa varanda, colocaram umas cortinas e a gente dormiu na varanda. E nesse dia que nós dormimos na varanda, normalmente não chove no Nordeste, choveu e a gente dormiu debaixo de chuva. Pensa, aventureiro, gosta de qualquer coisa, para a gente não foi um empecilho. No dia seguinte a gente arrumou uma casa, a gente alugou, e aí ficamos tranquilos.
P/2 - Como que era para você mudar de cidade? ‘‘Vamos para lá’‘ e você ia. Que sensação você sempre teve quando mudava?
R - Eu gosto, gosto muito, eu acho que tenho sangue cigano. Eu sou meio nômade mesmo, eu sempre preciso de algo novo para me animar, então, quando eu estou meio triste eu tenho que arrumar um projeto novo para melhorar o meu ânimo, então, eu fico muito animada. ‘‘nossa, eu vou viajar? Vamos’‘. ‘‘Luciana precisa disso, vamos abrir um projeto?’‘, ‘‘vamos, se você quiser eu escrevo, eu faço’‘. Então, eu sou apaixonada por mudança, eu tenho que mudar sempre, eu não sei se faz parte da característica do hiperativo, mas é uma das coisas que eu mais curto.
P/2 - E quando você chega num lugar novo, você lembra de alguma sensação que sempre você tem? Você gosta de mudar e quando você chega?
R - Eu observo, eu observo tudo. Eu sou um radar, 360 graus mesmo, eu faço. Eu já sei onde tem não sei quem, não sei o que, tal coisa não é legal, muito rápido. Eu tenho uma percepção visual de chego no lugar, consigo sentir o ambiente, se é positivo ou negativo. Por exemplo, quando eu cheguei em Curitiba, essa é uma situação que o outro falava: ‘‘meu amigo, mas eu não lembro do meu amigo mais, eu conheci quando ele tinha 14 anos e agora eu já estou mais velho, não lembro do meu amigo’‘. Aí eu falei: ‘‘não tem problema, a gente acha o seu amigo para você’‘. Aí quando eu cheguei em Curitiba, a gente sai de uma rodoviária Tietê, que é gigantesca, organizada, não é linda e maravilhosa, hoje é, mas na época não era tão, mas era o top que nós tínhamos, era o padrão que eu tinha de rodoviária. Quando eu cheguei na rodoviária de Curitiba, eu falei: ‘‘que rodoviária feia’‘. Rodoviária feinha. Eu falei: ‘‘só tem uma única coisa bonita, aquele cara de sobretudo’‘. Na minha cabeça, eu não falei nada para ninguém. Um loirão, de olho azul, com sobretudo preto, aí eu falei: ‘‘é a única coisa bonita que tem nessa rodoviária’‘. Aí quando a gente desceu, o Marcel estava junto comigo, a gente sempre trabalhou muito bem juntos, e aí ele falou assim: ‘‘a gente vai achar o seu amigo’‘. Falou para o rapaz que estava procurando um amigo, que ele não ia ficar no hotel, ele ia ficar na casa desse amigo, que é o Maurício Cunha, que é o diretor da escola. E aí o Marcel falou assim: ‘‘eu já sei quem é o seu amigo, se você não lembra, eu sei quem é’‘. Então, dois radares juntos, um já fez a vistoria local, o outro já ‘‘eu já sei quem é o cara’‘. Aí eu falei: ‘‘como é que você sabe quem é?’‘. ‘‘É aquele ali’‘, o de sobretudo, que eu falei que era a única coisa bonita que tinha na rodoviária. Aí o Marcel falou assim: ‘‘você duvida?’‘. ‘‘Eu duvido’‘. Aí ele falou assim: ‘‘ô cara, você é amigo desse cara aqui, do Elton?’‘. Aí o outro falou assim: ‘‘É, eu vim busca-lo’‘. E foi onde a gente conheceu o Maurício Cunha, que é a escola onde eu fiz desenvolvimento comunitário. Então, tem essa coisa. Então, por exemplo, cheguei em Fortaleza, aí cheguei na rodoviária, primeira coisa que eu olho, eu olho tudo, passo o scanner. Aí a rodoviária de Fortaleza não é feia, mas também não é muito bonita, diferente do aeroporto, o aeroporto é de primeiro mundo. Você chegou no aeroporto de fortaleza você fala assim: ‘‘gente, o que é isso?’‘. É melhor do que o de Guarulhos, mais para frente, foi em 1998 quando eu fui, já era muito informatizado. E eu falava assim: ‘‘tudo muito clean, muito bonito’‘. Tudo de vidro, era bem bonito o de Fortaleza. Eu faço uma varredura, varredura e vejo o que tem e o que não tem. E eu tenho essa habilidade de fazer amizade com muita facilidade, eu tenho. Não sou muito simpática, não sou 100% simpática, mas eu tenho essa qualidade de conseguir me envolver rápido com os processos. ‘‘Vamos fazer não sei o quê?’‘, ‘‘vamos, estou dentro’‘; ‘‘vamos não sei aonde?’‘, ‘‘vamos’‘. E aí a gente ficou nessa casa lá no Ceará, dois meses, foram dois meses que a gente ficou num seminário lá, e aí o meu pastor, que era aqui de São Paulo, era médico, mudou para o Ceará porque ele tinha um sonho de ser missionário, ele e a esposa dele, mas fazendo missões sociais. Quando eles eram da igreja católica, eles faziam santas missões católicas, então, ele tinha esse gosto e ele queria fazer um trabalho missionário e social. Aí ele soube que eu estava lá em Fortaleza e falou assim: ‘‘não volta para São Paulo, vem para cá’‘. Então, quando eu fui, ele está no Maciço de Baturité, na cidade de Aratuba, e aí a gente foi junto, a equipe toda foi lá para conhecer o trabalho que ele fazia. E nessa época, umas duas semanas antes, tinha ido um garoto de 12 anos na Secretaria da Saúde pedindo para secretária fazer um projeto de orientação sexual para os adolescentes da idade deles. E aí a secretária não tinha tempo de fazer esse trabalho, porque ela tinha muitas demandas, e a esposa do Tomi era secretária voluntária dele lá no consultório e ela ouviu, e aí ela se prontificou: ‘‘se a senhora quiser eu posso, quantos meninos são?’‘. ‘‘São uns quatro ou cinco’‘, ‘‘tudo bem, a gente gosta dessa faixa etária, de 12 a 18 anos, a gente faz um trabalho bem legal, é só arrumar um espacinho para a gente que a gente faz’‘. E aí eles começaram um trabalho de orientação sexual com esse grupo, primeiro dia tinha 20 adolescentes, no segundo dia tinha 50 adolescentes, quando eu cheguei tinha 70 adolescentes já. E aí a gente fazia um trabalho de dinâmicas, teatros, gincanas, que ele é ótimo, ele foi escoteiro muito tempo, trouxe toda essa técnica do escotismo para envolver os adolescentes.
P/2 - Ele é americano?
R - Inglês, é filho de ingleses.
P/1 - Tem algum fato marcante que aconteceu lá no Ceará?
R - Tem, sim, vários. O sertão nordestino ele é muito cheio de crenças, de valores totalmente diversos do que a gente tem aqui no Sudeste. Então, por exemplo, eu nunca tinha observado, eu falo que eu sou um radar, mas tem coisas que eu não observo, que as mulheres não usavam bolsas e eu tinha uma mochilinha, sempre tive uma mochilinha de guerra.
P/2 - Você falou da bolsa.
R - Isso, que eu nunca tinha percebido que as mulheres não usavam bolsa. Esse Tomi, ele tem o mesmo perfil que a minha mãe, então, põe você no fogo, se vira para resolver as coisas.
P/2 - Fala de novo do Tomi, para usar a história.
R - Então, lá no Ceará, o Tomi, que foi o meu orientador na minha adolescência, ele tinha vários grupos e a esposa dele também tinha vários grupos. Eles acordavam as 5:00 da manhã e iam dormir meia-noite, só com atividades, então, ele trabalhava das 7:00 da manhã até as 4:00 da tarde como médico e depois desse período ele fazia os grupos, então, ele trabalhava com os adolescentes. Aí eu ia dando suporte, então, eu trabalhava com os adolescentes, eu trabalhava com as mulheres, trabalhava com criança. E aí nesse grupo de mulheres, que nós trabalhávamos lá, nunca tinha percebido que as mulheres não usavam bolsa, e um dia elas viram a minha bolsa, era uma bolsa de couro com franjinha, aí elas falaram assim: ‘‘nossa, que vontade de usar uma bolsa igual a sua’‘. Aí eu perguntei: ‘‘mas vocês não usam bolsa?’‘. ‘‘Não, a gente não pode usar bolsa aqui’‘. Aí eu: ‘‘por que não pode usar bolsa aqui?’‘. ‘‘Quem usa bolsa aqui é quenga’‘. Aí eu: ‘‘quenga?’‘. Aí eu tive que me regionalizar em relação aos dialetos locais. ‘‘O que é quenga?’‘, aí elas me explicaram, aí eu falei: ‘‘e vocês acham que eu sou?’‘. ‘‘Não, você é doutora’‘, porque eu andava com a equipe médica, então, eles achavam que eu era médica também, era engraçado. Mas aí foi assustador falar assim ‘‘poxa, é uma cultura tão diferente, não é?’‘, mas a gente precisa se aculturar. Não deixei de usar a bolsa, porque eu era da equipe médica para eles. Perceber a dificuldade de que a mulher não podia ser livre, em questão até de usar uma bolsa, porque tinha a questão do machismo, que já designava que era algo bom ou ruim, então, isso é bem complicado, foi uma das situações que eu falei: ‘‘gente’‘. Eram mulheres bem sofridas, de famílias numerosas. Eu vim de uma família que na época eu tinha quatro irmãos, nós éramos em quatro irmãos, ainda não tinha a minha irmã, a minha irmã veio depois, eu já tinha 27 anos quando a minha irmã nasceu, a minha mãe teve a minha irmã com 50 anos. E aí minha mãe casou, hoje a minha mãe é casada e essa minha irmã mora comigo hoje. Então, eu achava muito estranho no Nordeste em não ter esse respeito da figura feminina por conta do machismo. Mas sabe quem impõe o machismo nas famílias? São as mulheres.
P/1 - Por quê?
R - Porque elas que ditam: ‘‘isso é coisa de menina’‘, ‘‘isso é coisa de menino’‘, ‘‘menina anda assim’‘, ‘‘menino anda assim’‘. Isso é mais porque no Nordeste é a sociedade matriarcal, então, são elas que dominam. Por exemplo, tinha lá as situações, deixa eu lembrar uma situação. O rapaz que cortava a grama, fazia o jardim do doutor Thomas, ele tinha gastrite, então, ‘‘você tem isso porque você é fraco’‘. Mas quem tinha imposto para ele? A própria mãe. Então, é uma sociedade mais matriarcal, então, são elas que reproduzem o machismo, somos nós, eu vou me incluir porque às vezes eu também tenho umas vias assim, ‘‘isso aí não está certo’‘, todo mundo tem um pouco do certo e errado muito extremo. E aí isso me assustou bastante, de elas não terem essa liberdade e também por as famílias serem muito numerosas, 11 filhos, 12 filhos, primos com primas, ao ponto de uma situação que aconteceu lá. Tinha uma família que o primo casou com a prima e tinha incompatibilidade genética e todos os filhos que nasciam, nasciam com problemas intelectuais, e aí ele falou: ‘‘olha, eu acho que eu vou fazer uma ligadura na tua esposa’‘. E o cara falou assim: ‘‘se o senhor fizer, eu vou lhe matar porque eu vou ter filho até vir um bom’‘. Então, era gritante. Tudo também a ferro e fogo, não tem o meio termo e nem o pensar.
P/2 - Eles não tinham o conhecimento da causa, então?
R - Não, mas provavelmente porque eram primos.
P/2 - Sim, mas eles não sabiam da causa, não tinham consciência?
R - Com certeza, não, ou não aceita. Uma coisa que eu percebi muito no Nordeste em geral: não chove no Nordeste, a gente passa por seca, ‘‘porque Deus não gosta da gente’‘. Então, sempre a culpa era de Deus, nunca era ‘‘o que eu estou fazendo aqui, o que eu estou fazendo com o meio ambiente, qual é o meu papel nessa situação’‘. Não tem a minha parcela de culpa, então, sempre a culpa é de Deus. Uma outra coisa que eu percebi também lá, é que Deus para eles era um Deus castigador e não um Deus de amor. Por isso que quando a gente começou o trabalho com os adolescentes lá, eles viram uma face diferente de Deus, Deus de amor, Deus que ama, que cuida, que se importa com você, não que castiga, que vem com chicote, que vem com uma espada. Então, isso é muito importante apresentar e conhecer que o amor é importante na nossa vida. Quem que não tem necessidade de amar e ser amado? Todo ser humano, não é verdade?
P/2 - Você teve uma história, pegando o gancho da Juliene, com os jovens que tinha (inint) [01:14:5] momento que foi marcante? Alguma situação. Ou com as mulheres mesmo. Uma situação se você pudesse contar para a gente, para a gente depois mudar de história.
R - Então, lá no Ceará, lá em Aratuba, eles nunca, pela questão da necessidade, questão econômica mesmo, eles não tinham tido uma ceia de natal. E a Carol veio de uma família muito abastada, ela teve curso de etiqueta social e ela falou assim: ‘‘Então, vocês nunca tiveram? Todos vocês do sítio aqui vão passar o natal conosco’‘. E ela tinha aquelas baixelas, aqueles jogos de pratos, todos chiques, desenhados, de porcelana, facas, tudo o mais chique possível, e numa intenção muito boa, então, ela juntou as mulheres, todas fizeram comida na casa dela, fizeram aquela mesona, eles decoraram isso. Eles são extremamente criativos, eles fazem umas decorações lindas, eles fizeram com folha de palmeira e flores no meio, eles foram colocando flores, e fizeram todo aquele terraço deles, porque foi no terraço, e montaram todas aquelas mesonas, levaram mesa da casa, e aí veio a Carol com uma toalha chique, de linho, e colocou prato, garfo, faca, copos e não sei o quê. Aí chegou no momento de servir, que era creme de frango, arroz e salada, alguma coisa assim, simples, mas a mesa estava colocada de uma forma que eles nunca tinham visto e ninguém falava nada para ninguém e ninguém comia também. E a gente: ‘‘vai lá se servir’‘, ‘‘olha que mesa bonita, olha que coisa legal, que foi feito para vocês, porque vocês são muito especiais’‘. Porque ela tinha isso, ela tem o dom do amor, é uma pessoa que tem o dom do amor e quer receber as pessoas como se elas fossem as mais importantes do mundo, não foi de ostentação nem nada, eu conheço bem, era para dizer para eles ‘‘vocês são as pessoas mais importantes da nossa vida, hoje vocês são a nossa família’‘, então, era para agregar. E aí eu fui percebendo, falei assim: ‘‘alguma coisa tem aí’‘. Aí eu perguntei para a moça: ‘‘por que ninguém está comendo?’‘. ‘‘Porque tem garfo e faca, a gente come de colher’‘. Eu falei: ‘‘está bem, vou por colher aqui, gente’‘. E colocamos as colheres e aí eles começaram a se servirem, então, foi muito importante a gente se adequar a cultura local, isso é muito importante, me marcou. Falar assim, quanto que às vezes a gente quer chegar com uma forma de amar e servir, mas o retorno para eles não foi, a informação não foi disso. ‘‘Poxa, é tão estranho, é tudo muito chique, eu não sei me movimentar nesse sistema chique’‘. E aí, quando eu perguntei para alguém, que é descer do pedestal, ‘‘o que está acontecendo que ninguém se mexe para comer aqui nesse lugar?’‘. Eu já falava o sotaque deles tão bem falado, que o povo achava que eu era do Ceará. Aí eles falaram. Outra coisa que me emocionou: não existia cabeleireiro lá no Ceará, tinha uma pessoa que com um facão cortava o cabelo deles, porque eram de tribos indígenas, aquele cabelo liso, perfeito, cabelo sem nenhuma onda, cabelo maravilhoso que eles tinham, e era tudo espigado porque eles cortavam com uma faca, e eu tinha feito curso de cabeleireiro. Eles falaram: ‘‘aqui não tem’‘. E um dia, esse rapaz que era o jardineiro, viu eu fazendo a barba do doutor Thomas, com a maquininha, que eu tinha comprado um equipamento e levei para o Nordeste, não sei porque, agora sei o porquê, foi porque ia poder levar desenvolvimento para eles e qualidade de vida. Aí ele viu e falou assim: ‘‘a senhora não cortaria o meu cabelo?’‘. Aí eu falei: ‘‘eu corto’‘. Aí cortei. Nunca fui uma excelente aluna em corte, mas aprendi na prática. Aí cortei o cabelo dele, aí ele começou a anunciar para todo mundo, então, fazia fila para eu cortar cabelo dos homens lá, então, era muito legal. Então, o que era o trabalho que a gente fazia? A gente fazia um trabalho para que os homens mudassem um pouco a questão do machismo e as mulheres fossem mais valorizadas. Então, a gente fazia um trabalho com contação de histórias, eles eram os atores, então, era muito bacana essa formatação. Então, a gente tinha esses grupos e ia crescendo, então, tinha os grupos nas matas, grupos nos sítios, grupos na cidade. E aí abriu-se uma igrejinha lá, já tinha mais de 100 pessoas. Hoje eles têm o projeto social, eles têm uma escola missionária, eles têm igreja em três cidades. Eles começaram com um grupo de adolescentes, a gente fazia palestra nas escolas sobre droga, mas não tinha tanta droga, era mais sobre o alcoolismo, que era gritante, por isso que ele tinha feito o grupo dos sem-pingas, então, ele conseguiu reduzir também a taxa de alcoólatras na cidade.
P/2 - Quanto tempo você ficou lá?
R - Eu fiquei um ano. De lá eu saí, voltei para São Paulo.
P/2 - Por quê?
R - Porque o Laudo e a Roseni, que são os diretores-presidentes aqui dessa organização, trabalhavam aqui numa empresa de peças para ônibus, e eles falavam de sempre fazer o bem, e o dono dessa empresa sempre fazia o bem para essa comunidade, então, ele distribuía cesta básica, no dia das crianças ele distribuía brinquedo para as crianças da comunidade. Só que o que ele fazia não foi visto como um benefício e sim o que ele tinha, o que eu vou ganhar com isso, e aí ele começou a sofrer inúmeros assaltos aqui. E aí o Laudo e a Roseni falavam muito do amor de Deus para esse proprietário e ele falou assim: ‘‘vamos ver se você é de Deus mesmo. Eu vou tirar a minha empresa daqui, você vai abrir um projeto social e vai mudar essa comunidade’‘. Eles pegaram, receberam, engoliram o desafio, mas eles não tinham técnicas para trabalhar com projeto social, eram da mesma igreja que a minha, aqui em São Paulo, e eles conversaram na igreja, o pastor mandou me chamar e eu falei: ‘‘não, aqui tem sol todo dia, São Paulo chove todo dia; aqui eu conheço todo mundo, aqui eu sou doutora, vou para São Paulo? Não vou’‘. Aí o Tomi me chamou e falou assim: ‘‘é melhor obedecer, que Deus tem algo para você’‘. Aí quando eu cheguei, estava no avião, quando passou minas gerais, chegou em São Paulo, o piloto diz assim: ‘‘chegamos em São Paulo e está uma leve garoa. Êh São Paulo’‘, começou a cantar. Eu: ‘‘não, eu quero voltar, está frio, não gosto do frio’‘. E aí eu desci, nós fizemos uma reunião, eu já montei o esquema como seria, primeiro nós faríamos uma sondagem, porque eu não conhecia essa comunidade, eu precisava conhecer o público a ser atendido, e aí eu vim, junto com o Marcel, esse que fez o curso técnico comigo lá em Curitiba, nós dois nos unimos, eu falei assim: ‘‘eu preciso de alguém que conheça as técnicas’‘. Aí eu chamei o Marcel, ‘‘vamos juntos e a gente faz o projeto’‘, e a igreja financiou eu e o Marcel, nos financiou o nosso trabalho aqui. Aí nós fomos conhecer a comunidade, fui conhecendo a comunidade, Marcel também esteve lá no Ceará, então, conhecia o vocabulário do povo já, só que ele ficou seis meses, eu fiquei um ano. E aí nós conhecendo a comunidade, ‘‘de onde você é?’‘, aí o povo com o mesmo sotaque, ‘‘de onde tu é? A maioria daqui é Jaguaribe, Jaguaretama e Jaguaribara’‘. Aí eu falei: ‘‘nossa, é perto de Aratuba, é pertinho de Aratuba’‘. São três cidades próximas à cidade onde nós estávamos, próximo ao Maciço de Baturité. Aí eu falei assim: ‘‘Marcel, a gente já conhece esse povo aqui, agora é só começar a fazer um projeto’‘.
P/2 - O que será que faz, porque vem muita gente de lá para esse lugar aqui, tem alguma ideia disso?
R - Então, hoje o Marcel é um sociólogo, eu sou uma pedagoga, nós iniciamos a faculdade no mesmo ano, por conta do projeto social e também para a gente aprimorar o trabalho.
P/2 - Este projeto?
R - Isso, por conta desse projeto. E a gente começou a analisar, nessa sondagem, além do povo ser de lá, os nordestinos que vêm para cá, eles tem uma ilusão de que São Paulo vai fazer com que eles cresçam financeiramente, eles tenham empregabilidade, então, a gente vê lá uma obra dos retirantes lá de Cândido Portinari, que retrata muito isso, por conta da seca, então, eles vêm para melhorar de vida. Só que quando o nordestino está aqui, o cearense, o paraibano, seja lá em que área do nordeste ele esteja, ele vai, conta uma história maravilhosa, ele leva presentes, por exemplo fogão, geladeira, máquina de lavar roupa, que ninguém tem lá. E aí as pessoas falam: ‘‘então se tu enricou em São Paulo, eu também vou enricar’‘. E também vem com esse sonho americano, sonho paulista, de que vai enricar aqui. Quando ele chega, ele se depara com uma comunidade de altíssima vulnerabilidade social, em que cresce a violência. Quando eu cheguei aqui, tinha tiroteios três vezes ao dia. O Marcel tinha tanto medo que ele ligava para a polícia, ele ligava para a polícia: ‘‘por favor, venha tirar a gente daqui para ir embora para a minha casa’‘. Porque tinha os tiroteios, e nós não conhecíamos a liderança local, foi um erro no início, nós deveríamos ter conhecido a liderança primeiro para poder fazer o projeto, mas aconteceu. A gente começou a fazer o projeto, começamos com criança, porque nós detectamos que as crianças de quatro a seis anos de idade, na época, ficavam muito soltas aqui na comunidade, não eram assistidas por ninguém, eu lembro da minha infância, com quatro anos sozinha na feira. E há necessidade de um tutor, de um adulto, para orientar, para ajudar, então, a gente via muito isso, que as crianças de quatro a seis anos, que não entravam nos programas da prefeitura, os programas sociais não eram assistidos. E aqui tinha uma freira, chamada irmã penha, que também deu a dica, falou: ‘‘vocês querem fazer trabalho com qual faixa etária’‘. A gente: ‘‘com criança, qualquer faixa etária’‘. Ao ponto que nós recebíamos bebê, criança, adolescente tudo junto e misturado, era aqui. A primeira vez, começo, início, a gente louca, tudo louco. Aí tinha gente contando história, fazia contação de história, sempre tinha o lanche, tinha doce, criança sempre vai nessas coisas, eu sei porque eu ia com interesse. E aí a gente fazendo esse tipo de trabalho, no meio de contação de história, eu tinha chamado uma amiga que era nutricionista para ajudar a gente a adequar um cardápio, eu sempre prezei por uma alimentação qualitativa. Aí eu falei: ‘‘vem me ajudar para a gente fazer um cardápio para essas crianças’‘. Porque nós tínhamos um nível de desnutrição altíssimo, as crianças aqui se alimentavam uma vez ao dia, e aí eu tinha essa preocupação de trazer qualidade na alimentação. Aí estava conversando com essa nutricionista, de repente eu olho, radar funcionando, da janela, o Marcel estava contando uma história, e vejo um adolescente de 16 anos no grupo com um pedaço de pau com pregos e ia bater num menino pequenininho assim, que tinha xingado a mãe dele. Aí eu saí, eu falei: ‘‘só um minuto’‘. Abri a porta e segurei o pedaço de pau na minha mão, eu falei: ‘‘aqui não, aqui é para a gente amar um ao outro, aprender a amar, aprender a conviver. Aqui não’‘. Aí trouxe ele para dentro. A nutricionista assim, assustada, olhando, que nunca tinha visto a violência, agressividade tão forte. Aí o menino ficou bravo, bravo, e eu falei assim: ‘‘você precisa ser amado, nós amamos você, por isso que existe esse trabalho aqui, então, por isso que eu também arranquei isso de você, você depois ia ficar triste porque você bateu nele e machucou ele’‘. Aí o menino começou a chorar, pediu desculpa, foi muito legal de ver. E a nutricionista: ‘‘Como que você conseguiu isso?’‘. Eu falei: ‘‘não sei, só sei que foi assim’‘. Foi dessa maneira. Então, com o tempo, a gente foi melhorando o trabalho, o adolescente não deveria estar misturado com uma criança porque eu não posso por essa criança em situação de risco, então, daí veio, do adolescente vão ser tais dias e da criança vão ser tais dias, até dez anos, depois de anos não. Porque as crianças também eram muitas agressivas, ao ponto de um menino pegar um tijolo, ‘‘eu vou tacar na tua cara’‘, com o diretor daqui. Ele falou: ‘‘se isso vai te fazer feliz, então, joga’‘. Aí o menino ficou olhando, aí ele abaixou e jogou no chão. Então, o amor ele quebra essa barreira de agressividade, então, para mim, esse projeto é o meu bebê, é o meu filho o núcleo, fui eu que comecei. Começamos com oito crianças regularmente, esporadicamente nós tínhamos 300, que eram os dias das histórias, e aí, quando nós começamos o trabalho em si mesmo, tinha onde distribuía leite aqui e a gente foi, ‘‘nós vamos abrir um projeto com crianças de quatro a seis anos’‘, foi onde a gente fixou a faixa etária que nós trabalharíamos, ‘‘se você tiver interesse, compareça’‘. E foi onde nós fizemos uma roda de conversa e fizemos um planejamento participativo dos pais. ‘‘Como que vai funcionar? Vai ser uma escola?’‘, ‘‘escola ainda não porque não temos documentação’‘. Não tinha documentação nenhuma, nem como organização. ‘‘Então, a gente pode funcionar segunda, quarta e sexta, da 1:00 as 5:00, com alimentação..’‘., ‘‘e isso vai custar quanto?’‘, porque alguém tem que pagar isso, que é a contrapartida da pessoa. ‘‘dez reais?’‘, ‘‘dez reais’‘. Então, foi muito legal, foi quando os pais participaram, eles trouxeram as ideias, como ia funcionar, até ideias de cardápio, de atividades que deveriam ter, então, para mim é gratificante falar assim: ‘‘poxa, foi difícil, tantas coisas difíceis’‘. A gente passa por dificuldades na vida, mas as nossas experiências, elas trazem esperança para aquele que está passando por aquela dificuldade que a gente já passou e já venceu, então, isso é muito importante, bem bacana frisar isso. E aí a gente foi crescendo, nós trabalhamos seis meses assim, de segunda, quarta e sexta com essa faixa etária de quatro a seis anos, que era a que mais tinha necessidade.
P/2 - Estou vendo a hora, faltam 15 minutos para as 2:00, não sei como está o seu tempo, se você tem compromisso.
R - Não, está tranquila. É que 4:00 eu tenho que dar aula, eu dou aula particular também.
P/2 - Então, você morou sempre aqui na região norte, Tremembé, Caeira.
R - Quando eu voltei do Nordeste, eu morava na casa do Marcel, com a família do Marcel, e aí depois, porque quando a gente faz o curso de desenvolvimento comunitário, você só pode mudar a realidade de uma comunidade se você vive a realidade e eu tinha um sonho de morar aqui no Cingapura, o pessoal da igreja que não deixava. ‘‘Mas eu tenho que morar lá porque eu tenho que sentir a dor do povo’‘. Então, eles deixaram eu morara aqui no espaço da ONG, eu morava aqui.
P/2 - Era uma empresa aqui?
R - Era uma empresa de peças para ônibus.
P/2 - Nesse espaço físico?
R - Não, esse espaço físico não era isso aqui, eram cinco casinhas que chovia mais dentro do que fora.
P/2 - E a empresa ficava aberta?
R - A empresa foi transferida para um outro bairro.
P/2 - Mas o terreno era da empresa?
R - Isso, o terreno é da empresa, esse local é cedido, é um comodato por 100 anos. Nós já estamos há 18.
P/2 - Então, a empresa, o proprietário cedeu o terreno, vocês (inint) [01:34:54] a empresa?
R - Não, a gente funcionou até 2007 nessas cinco casinhas, com uma reforminha de tapa-buraco aqui, tinha enchente quando chovia, o rio não transbordava, mas as bocas de lobo aqui elas vazavam, então, a gente não podia atender nesses dias de chuvas intensas. E aí foi crescendo, depois de seis meses que nós fizemos esse projeto, aí a gente fez uma avaliação, então, trouxemos as famílias de volta, vamos avaliar os projetos, aí os pais falaram: ‘‘é muito bom o projeto, só que tem que funcionar todos os dias, porque para a gente não ajuda segunda, quarta e sexta, e terça e quinta, onde essa criança fica, que eu preciso trabalhar?’‘. Então, foi onde nós regularizamos e ficamos de segunda a sexta-feira, da 1:00 as 5:00 da tarde.
P/2 - Por que vocês não tinham logo que começaram?
R - Uma questão financeira e até mesmo para ganhar força, ‘‘vai funcionar, não vai funcionar’‘, então, foi um protótipo que nós fizemos para analisar se ia dar certo ou não. Aí a gente fechou a semana, começamos a oferecer almoço, lanche da tarde e janta, porque era aquele caso, as crianças tinham uma refeição no dia porque a comunidade aqui, na época, é difícil falar isso, de que eles tiravam uma refeição da família para poder comprar um carro, e aí as crianças não estavam sendo nutridas por conta disso. E aí melhorou, depois de seis meses, nós abrimos inscrição para o próximo ano. Aí dois sem noção, malucos, sem noção 100%, dois fora da casinha: ‘‘vamos abrir para o próximo ano’‘. Nós não tínhamos feitos nem as matrículas, então, todo mundo ficou sem vaga, porque vinha quem quisesse. Quando a gente chegou no dia da matrícula, que ia ter lá a matrícula, a gente descobriu que a propaganda é de boca a boca mesmo, as filas davam volta no quarteirão, porque o trabalho era excelente que era realizado com as crianças aqui. E aí a gente: ‘‘nossa, o que está acontecendo? E agora? A gente vai atender como?’‘ E foi onde a gente começou a distribuir a senhas. A gente separou as 30 que nós já atendíamos, deixamos as vagas delas, que elas já faziam parte do projeto, e aí abrimos mais 30 vagas e era por ordem de chegada, foi que a gente distribuiu senha e depois a gente fez um caderno de demanda. Aprendemos na prática, ninguém nunca falou: ‘‘faça um caderno de demandas’‘. Não, a gente fez na prática, nunca tinha visto isso na minha vida, que ia ter fica dando volta no quarteirão por conta do projeto. A gente se sentia tão nada, nada, tão fraquinho, tão pequenininho. Tinham algumas situações assim, que por exemplo, a gente visitava as casas duas vezes na semana, para conhecer a história das crianças, relacionamento da família. A gente não avisava, ‘‘cheguei, vim aqui na sua casa’‘, e a gente pegava umas coisas gritantes, de questão de drogadição, de alcoolismo. Aí tiveram tantas situações assim que a gente começou a avisar: ‘‘olha, nós vamos tal dia na sua casa’‘. Aí quando a gente chegava lá, tinha um banquete para a gente, por isso que a gente não gostava de avisar, então, era meio assistente social mesmo, vamos sem avisar. Mas tinha algumas coisas assim tão estranhas que a gente começou a avisar para não passar por um constrangimento, então, a gente fazia essas visitas e a gente ia conhecendo as famílias.
P/2 - Continuaram com crianças?
R - Sim, até 2007.
P/2 - Quando que começou, que ano?
R - Em 2002, umas coisas fora do comum que aconteceram aqui. Nós estávamos aqui, era Marcel e eu, chupa cana, assovia, limpa, dá aula, brinca, canta, o Marcel tocava violão e eu acho isso bárbaro porque envolve muito a criança e até traz acessibilidade à música, então, as crianças não eram mais agressivas conosco, elas eram muito afetuosas até. Eu estava dando aula, o Marcelo estava lavando a louça: ‘‘você tem que lavar louça, porque eu aprendi com a minha mãe que todo mundo faz um pouco de tudo.’‘ Tocou a campainha, só que era uma distância grande para chegar, e o (inint) [01:40:16] e a Roseni colocaram uma campainha bem forte para a gente ouvir, porque a gente não ouvia a campainha. O povo tocava, tocava e a gente não ouvia. Aí ele colocou uma campainha bem gritante, aí a gente ouvia. Ele foi lá atender e eu sempre muito curiosa, muito agitada: ‘‘quem é, quem é?’‘ Ele chegou e eu falei: ‘‘quem é?’‘ ‘‘Uma velhinha doida passou aí e falou: 'Deus está muito feliz com vocês e ele vai fazer esse negócio crescer para cima.'‘‘ Aí a gente: ‘‘que louca.’‘ Depois de um tempo veio uma arquiteta aqui, chovia mais dentro do que fora, e ela perguntou: ‘‘qual é o sonho de vocês?’‘ A gente não tinha um sonho. ‘‘O nosso sonho é arrumar essas casas aqui.’‘ ‘‘Ah, está bom. Vocês têm um sonho de fazer um prédio aqui?’‘ ‘‘É, pode ser um prédio.’‘ Aí ela fez uma planta. Era uma arquiteta da CIC na época. ‘‘Olha, tem aqui uma planta, eu fiz para vocês, é o prédio.’‘ Ok, o prédio. Dinheiro que é bom a gente não tinha. São situações de milagre, eu acredito em milagres. A Roseni, esposa do (inint) [01:41:43], a diretora presidente é uma mulher de fé. Ela falou: ‘‘vamos transformar essa planta em um 3D e vamos começar a orar por esse projeto.’‘
P/1 - Isso na igreja?
R - Não, aqui. Em grupo.
P/1 - Porque (inint) [01:42:00] vocês dois.
R - Isso, e o (inint) [01:42:03] e a Roseni eram nosso respaldo.
P/1 - Que foi quem trouxe vocês.
R - Isso, e a igreja que bancava financeiramente na época. A gente começou a se organizar, ela fez esse 3D e a gente orava todo dia: ‘‘Deus, a gente precisa de um prédio’‘, mas não tinha um plano 100%. Veio uma pessoa visitar aqui, ele olhou tudo, e a gente tinha tudo muito arrumadinho. Apesar de sermos pobres, nós éramos bem limpinhos. Ele olhou e falou: ‘‘bacana isso aqui. O que é isso aqui?’‘ O banner, porque ela fez um banner em 3D de como ia ficar o prédio. ‘‘Ah, esse é o nosso sonho de fazer um prédio aqui.’‘ ‘‘Já ganhou.’‘ ‘‘Como assim já ganhou?’‘ Porque a gente tem o estereótipo de ver a pessoa de chinelo, de bermuda e não dar nada por ela, não é verdade? Infelizmente. Esse cara era dono de uma construtora, aí ele falou assim: ‘‘junta mais três pessoas comigo e nós vamos dar o prédio.’‘ Ele começou a construir em 2006, em 2007 esse prédio ficou pronto e nós recebemos uma equipe de americanos aqui, gente tudo doida mesmo. 40 americanos, aí que a gente foi para a comunidade, porque eles queriam apresentar um teatro ali na comunidade. Falei: ‘‘meu pai do céu, nós vamos ter um problema internacional se acontecer qualquer coisa’‘, porque tinham os tiroteios. A gente foi até lá: ‘‘olha, não sou eu quem manda aqui não, mas nós vamos fazer um teatro aqui.’‘ Veio um cara e falou assim: ‘‘que horas?’‘ ‘‘Tal hora. Vai ter tiroteio?’‘ Ele falou: ‘‘não, não vai ter não.’‘ Eles já sabiam do trabalho, que tinha crescido. A gente, na época, estava atendendo 180 crianças.
P/1 - Tinha o prédio já?
R - Não. A gente falou: ‘‘não vai ter tiro não, não vai ter encrenca não, não é?’‘ E ele: ‘‘não, não, demorou.’‘ A gente não entendia o que era demorou. Eu perguntei: ‘‘demorou é que a gente pode vir?’‘ Ele: ‘‘demorou.’‘ E eu: ‘‘demorou, então pode vir, não é? Então vamos.’‘ O povo veio e a gente assim. Só que os americanos que vieram, a maioria eram negros americanos. Eu estava no meio do grupo e só ouvia as meninas: ‘‘eu vou ficar com aquele ali, eu vou ficar com aquele outro, eu vou ficar com não sei quem.’‘ Eu olhava para elas e a menina falou: ‘‘você não é americana não?’‘ Eu falei: ‘‘não. Eu estou entendendo tudo que vocês estão falando.’‘ Eles foram embora, não teve tiroteio aquele dia até eles irem embora, aí no final teve. A gente começou de novo com o plano de oração: ‘‘vamos parar com os tiroteios.’‘ A gente orou durante uns três meses, de repente saíram as gangues, porque eram brigas das casinhas de baixo com as casinhas de cima, com Singapura, com a São João. Isso foi um tempo de paz, não teve mais. A partir daí não tivemos mais.
P/1 - Quem orava?
R - A gente. ‘‘Deus, por favor, que não tenha mais tiroteio.’‘
P/1 - Você e quem mais?
R - Eu, Marcelo, (inint) [01:45:49], Roseni, mas era mais Marcelo e eu. ‘‘Hoje nós vamos orar por isso.’‘ ‘‘Então vamos orar.’‘ E as crianças, a gente ensinava as crianças. Orar é conversar com Deus. Tudo que a gente pede, Deus fala. Ainda mais se for uma criança, Deus inclina os ouvidos para ouvir a oração de uma criança. Tinha uma criancinha de três anos de idade, a gente começou a fazer até com três anos, a menina olhou para mim um dia e falou assim: ‘‘você é diretora aqui?’‘ Eu falei: ‘‘eu sou a diretora aqui da escola.’‘ ‘‘Um dia eu vou ser a diretora desse lugar.’‘ Ela falou e eu falei: ‘‘é mesmo, vai ser mesmo.’‘ Então as crianças tinham isso de orar, e isso traz mudança em casa, traz mudança na vida da criança. Quando a criança tem essa experiência, ela leva isso para casa. Se a casa é uma casa conflitante, isso muda. Tem um caso que uma mãe chegou uma vez aqui chorando desesperada, foi onde nós começamos a abrir uma escola para pais. Ela falou: ‘‘eu não sei, a fulana não queria ficar em casa e ela está muito doente, aí ela orou, Falou: 'papai do céu, me cura.' Aí ela falou: 'agora eu já posso ir para a escola, papai do céu já me curou.'‘‘ Ela falou: ‘‘não, mas está muito doente.’‘ ‘‘Eu tenho fé que papai do céu já me curou e eu vou para a escola. Eles chamavam aqui de escolinha. A filha veio e a mãe veio chorando: ‘‘eu não tenho a fé que a minha filha tem.’‘ Isso é muito legal. Teve um outro caso aqui, que é bárbaro, de uma outra criança. A Érica tinha quatro anos. Eu falo que Deus usa as crianças de três, quatro, cinco e seis anos, eu não sei como e nem o porquê. Ele usa para tratar o coração dos pais. A mãe colocou não porque nós tínhamos qualidade de ensino, mas porque ia ter comida para essa criança aqui. A gente fazia o trabalho, tinha dentista, nós conseguimos voluntários que vinham fazer a higienização bucal das crianças, a nutricionista, tinha psicóloga. Então era um trabalho que nós tínhamos muitos voluntários queriam fazer um bom trabalho. Isso agregava. Essa criança nunca expressou nada, um dia a mãe veio chorando e falando: ‘‘a minha casa é um inferno’‘, não contou o que era. ‘‘A gente passa necessidade, por isso eu pus as crianças aqui’‘, e ela não contou tudo. A gente tinha a escola para pais e houve uma situação na casa dela, ela não veio, quem veio foi o pai. Nesse dia, a palestra foi: que tipo de pai você é? Você é um pai que o seu filho pede uma bala e você diz não, mas é capaz de pagar uma rodada de cerveja para os seus amigos para ficar bem na fita? E isso tinha acontecido com esse pai e ele começou a chorar na reunião, ficou bravo, aí chegou em casa e teve uma situação quebrou o pau lá na casa, brigou com a mulher dizendo que a mulher foi contar tudo que acontecia lá, e não foi. Foi uma coincidência. Ele começou a chorar, ele era usuário de entorpecentes e a criança de quatro anos estava dentro de casa, começou a chorar, a mais velha também estava aqui, a de seis anos. A mais velha falou: ‘‘não, pai, não chora não, mamãe ainda ama você.’‘ A pequena falou: ‘‘não, você tem que chorar. Sabe por que você tem que chorar? Não tem uma banana nessa casa. Você tem que chorar porque falta comida para os seus filhos. Você tem que chorar porque não tem nem leite para o bebê’‘ e tinha uma bebê na casa. ‘‘Você tem que chorar para ver se Deus tem dó de você.’‘ Quatro anos. Eu a chamo de Joana Batista, raça divina. Isso foi o start para a mudança de vida desse pai. Ele começou a vir e falou: ‘‘eu vou ser voluntário.’‘ Ele pintou as casinhas, não era ainda um prédio, ele ficava muito com o (inint) [01:50:43], que tem muito dessa sabedoria de ir orientando. Ele falou: ‘‘o que você quer para o seu futuro? Quando sua filha estiver no quinto ano, que você não estudou. Volta a estudar.’‘ Animar. Ele voltou a estudar, mudou radicalmente, largou as drogas. Trabalhava em uma empresa em que ele era o cara que ficava carregando os pesos, eu não sei o que ele era na empresa. De repente, ele terminou o ensino fundamental, o médio e ele subiu de cargo, hoje ele é gerente na empresa. Ele mudou daqui com as filhas para os prédios aqui na praça e teve uma mudança de vida radical. Eu creio em um Deus que faz milagres, e o primeiro milagre é a mudança da nossa vida da água para o vinho. A gente pode mudar. A minha história é uma história de mudança e eu sou um fruto vivo de que eu posso trabalhar com as pessoas para que as pessoas também mudem, se elas estiverem abertas para a mudança. Isso é bem bacana, é uma das coisas que eu mais gosto nesse lugar, ouvir histórias. Por exemplo, tinha aqui uma adolescente nos cursos profissionalizantes, ela não parava, hiperativa. Eu me identificava com ela, falava assim: ‘‘olha eu lá.’‘ Ela não parava. Já tinha o prédio, aí a gente começou os cursos, tinha vindo essa equipe de americanos e eles falaram: ‘‘cada porta, cada sala que vocês abrirem, Deus vai encher esse lugar.’‘ Nós tivemos que alargar, não funciona só nesse prédio, funciona o CCA, que atende 120 crianças, o abrigo que atende de 15 a 20 crianças, tem o CDCM que atende 100, 120 mulheres vítimas de violência. Então, hoje, nós atendemos por dia mais de 1 mil pessoas. É muita gente. Quando foi para fazer o prédio aqui, o (inint) [01:52:56] e a Roseni trabalhavam com informática, também faziam a parte de informática desse empresário e esse empresário falou: ‘‘olha, eu vou ajudar o projeto, mas primeiro eu vou fazer uma pesquisa.’‘ A pesquisa que ele fez foi: desde quando o projeto foi implantado aqui, quanto que diminuiu a violência? E ele detectou que a violência diminuiu em 70%.
P/1 - Daqui da comunidade.
R - Daqui da comunidade. Dos tiroteios, que eram três vezes ao dia, hoje não tem mais nenhum. É muito legal. Essa menina, quando ela veio para os cursos profissionalizantes, ela só bagunçava. Ela já estava querendo fazer um grupo de meninas para montar uma gangue para fazer saidinhas de banco. Nossa, mas a gente tem que olhar o que a pessoa tem de especial, o que ela tem de bom e transformar essa negatividade para que esse bom floresça. Eu falei: ‘‘meu, está difícil essa menina. Vou abrir um grupo de meninas, vou fazer um trabalho de orientação e tal’‘, e eu fiz um grupo de meninas. A gente fez jogos de orientação sexual, de tudo quanto era título. Nisso, elas iam colocando para fora tudo que estava grilado dentro delas. Um dia ela falou assim: ‘‘eu nunca vou ser nada. Olha onde eu moro.’‘ E a maioria das pessoas daqui da comunidade nunca tinham saído da comunidade. Não enxergavam outra realidade, não tinham aberto a visão para outras coisas. A gente começou os cursos, eu levei ao Mercado Municipal. Por isso é legal quando tem o incentivo para a cultura, para conhecimento de outras coisas. Levamos na Casa São Paulo, Teatro. Essa menina foi melhorando, só que por conta do comportamento dela ter sido tão ruim, os outros não davam chance. Eu não estava mais na gerência porque eu já estava na escola, aí ela falou: ‘‘eu preciso arrumar um emprego, minha mãe abriu um boteco lá dentro.’‘ Eu falei: ‘‘meu Deus.’‘ Quando abre um boteco dentro de uma comunidade, você vende de tudo, o que é lícito e o que é ilícito. Eu falei: ‘‘eu preciso ajudar essa menina.’‘ Ela me chama de mãe até hoje. Tem o Edinho, ele era o gerente do CJ e ia ter uma entrevista para uma multinacional. Eu falei: ‘‘Edinho, dá uma chance para fulana, para ela mudar o foco da vida dela.’‘ Ele falou: ‘‘pede para ela vir.’‘ Eu falei: ‘‘olha, você vai. Vou te orientar no que você vai fazer. Faz assim, assim, assim, vem vestida assim, assim, assim.’‘ Treinei redação com ela, porque normalmente tem nessas multinacionais. Uma semana treinando. ‘‘Agora vamos fazer entrevista. Isso, e agora, o que você vai falar? Como você vai sentar? O que você vai fazer?’‘ Treinei a menina, e no grupo só tinha modelo. As meninas mais bonitas foram as escolhidas e ela não era modelo, não era padrão top model. Chegou lá na (Brentag) [01:56:33], nessa empresa, ela passou pelo processo seletivo, primeira entrevista, segunda entrevista, foi passando, ficou. Ela ficou. É como uma filha mesmo. Que bom que ela teve essa chance porque vai mudar a vida dela. Ela começou a fazer faculdade, terminou administração de empresas, hoje ela é uma das assistentes da direção da empresa. Ela casou, está gestante, eu vou ser avó. É muito gratificante. Eu me emociono com as histórias daqui porque a gente vê as pessoas se desenvolvendo e esse era o propósito, desenvolvimento humano e não dar. A gente não deve dar o peixe, a gente tem que ensinar a pessoa a fazer a vara, depois ensinar técnicas de pesca, para que a pessoa seja o seu próprio agente de mudança. Por isso eu sou fã number one do NCCV, meu filho número um.
P/1 - O dono antigo, o (inint) [01:58:04], que fez o desafio para vocês. Você sabe como ele reagiu diante de tudo isso que se tornou aqui?
R - Ele vem aqui direto. Ninguém sabe quem é por uma questão que ele não quer que ninguém saiba, mas ele é uma pessoa de uma benevolência tão grande. Ele falou assim: ‘‘eu quero dar’‘, a gente que não quis, porque a gente não pode usurpar ou pegar algo de alguém sendo que ele tem família e a gente não sabe o dia de amanhã. É o filho dele. Ele não mora em São Paulo, mora em outro estado e no estado onde ele mora ele desenvolveu um projeto social. Empresário, formado, foi fazer psicologia e, com a família dele, eles fazem um trabalho social em uma comunidade semelhante à essa. Gerou frutos. A gente acaba sendo semeadores que dão frutos. Esse fruto está em outro estado e ele continua gerando e transformando vidas.
P/1 - Vou te fazer uma última pergunta, depois se você quiser fechar. Além da fé, das orações todas, desse propósito, o que mais você acha que fez a diferença no trabalho de vocês? O que, no trabalho, fez a diferença, além da fé, das orações?
R - O que eu acredito? Que é uma tríade: educação, assistência social e a parte religiosa, porque nós, seres humanos, somos compostos de espírito, alma e corpo. Nós somos pessoas integrais, não estou solto no mundo. Eu tenho sentimentos, eu tenho valores, mas eu tenho crenças também. Eu tenho um físico que precisa ser tratado, que precisa ser alimentado, precisa ser cuidado. Então primeiro é o físico, segundo é o social, eu preciso aprender a conviver, preciso ser amado, eu preciso me sentir parte de um grupo, que é o social. Eu preciso desenvolver o meu intelecto. Eu sou um ser pensante. Aí vem o espiritual. Eu preciso saber que existe um Deus que muda a história. Eu sou um ser completo. Aí tem essa tríade que nós trabalhamos: a social, a assistência e o espiritual. Deveria ser quádruplo, que deveria ter a saúde, mas a gente desenvolve ações de saúde de acordo com os focos. A gente faz as campanhas. Por exemplo, existem as práticas esportivas, quando a gente vê se a alimentação tem qualidade ou não eu estou pensando em saúde também. A saúde emocional é superimportante, o saber conviver, o saber respeitar as diferenças. A gente não tem nenhuma placa de igreja aqui, nós somos (interdenominacionais) [02:01:56], não é A, nem B, nem C, não é o evangélico, não é o católico. Nós temos a designação de que nós somos cristãos, mas nós temos professores que trabalham conosco e são budistas. É aceitável. Espíritas? Aceitável. Porque o que é amar o próximo? Isso é amar o próximo. Jesus não trouxe uma placa: ‘‘sejam cristãos, seja não sei o quê.’‘ Amem uns aos outros, amem seus inimigos. É difícil amar seu inimigo, alguém que deu um tapa na sua cara. A gente vai querer dar outro, dar a outra face é difícil. É muito importante ter isso muito claro, que o social por si só não muda, a educação por si só não muda ninguém. O espiritual é mesmo uma alavanca, é um dínamo para isso. Os três juntos, mais a saúde, é de suma importância para a mudança de um ser humano.
P/1 - Aqui você tinha os líderes da comunidade, que você comentou.
R - É.
P/1 - Houve depois alguma conversa, alguma (inint) [02:03:20] ou eles mudaram? Você começou a falar que saíram os focos.
R - Não, os líderes continuam. Sempre há mudança de liderança aqui da comunidade, sempre tem, mas como a gente atende os filhos dos líderes, ninguém sabe quem é, por uma questão até de prezar pela pessoa, então é um serviço que é prestado para a comunidade. Por exemplo, eles não pixam o nosso muro, eles não depredam. Tem funk aqui na rua, mas chega na segunda e está limpo, porque eles prezam por esse lugar, que é um lugar de vida, de esperança, um lugar que vai levar um propósito para eles. Eles respeitam, há um respeito. Nunca nós fizemos (inint) [02:04:23]: ‘‘cuida daqui para nós.’‘ Isso nunca, mas eles cuidam, mesmo a gente não sabendo. Uma vez teve um cara que veio arrumar um telhado aqui, e nós não viemos (inint) [02:04:34]: ‘‘ah, vai lá e arruma o telhado.’‘ Ele estava em cima do telhado, a hora que ele olha para baixo está uma fileira de homem: ‘‘o que você está fazendo aí em cima da creche?’‘ ‘‘Eu vim arrumar o telhado.’‘ ‘‘Espera aí. Vamos deixar dois caras aqui, fica aí onde você está, vamos procurar alguém que conhece alguém daí para saber se é verdade. Se estiver mexendo aí vai ter fogo.’‘ Foram lá perguntar, ligaram para o (inint) [02:05:08], o (inint) [02:05:08] veio correndo. Ele morava no Parque São Lucas, veio correndo para não ter nenhum problema: ‘‘não, está cuidando aqui, vai arrumar o telhado.’‘ Eles cuidam. A gente não sabia. Dura forma de saber que eles cuidam do espaço. No começo não. No começo eles entraram, pegaram os alimentos e jogaram aqui no córrego, porque não sabiam o propósito, qual o objetivo disso. Depois que ficaram sabendo e sabem que a comunidade é realmente assistida, então eles deixaram de fazer essas coisas. Fizeram duas vezes só.
P/1 - A escola de pais, por exemplo.
R - É uma coisa muito boa, porque é uma forma de que eles se sintam parte do projeto, as ideias deles sejam valorizadas e a gente aprende também: ‘‘poxa, não tinha pensado nisso.’‘ Ajuda a mudar: ‘‘acho que, realmente, essa estratégia vai ser melhor do que a que eu pensei.’‘ O eu é muito ruim.
P/1 - Nessa escola de pais você acha que tinham pessoas de vários segmentos ou não, era só um?
R - Sim, tinha. Vou contar um outro caso, não sei se vocês vão pôr, porque não vou falar nomes.
P/1 - A gente põe tudo.
R - Então, por exemplo, nós tínhamos uma reunião com os pais, aí chegou um pai que tinha acabado de sair da prisão e nós estávamos preparando a comemoração do dia das mães. A gente cantava uma música e eu sempre penso em como essa mulher, em uma comunidade, se sente. Eu sempre penso na questão psicológica. O pessoal fala: ‘‘você deveria ter feito psicologia.’‘ Tinha uma música que cantava muito e falava: ‘‘se tentaram matar os seus sonhos’‘, eu sou péssima para lembrar letra de música. ‘‘Não desista, não para de crer, os sonhos de Deus jamais vão morrer.’‘ E Deus tem um sonho para a gente, não é? Isso é muito legal porque levanta a auto estima. A gente estava ensaiando com as crianças, para as crianças apresentarem. Eu não ia cantar porque sou péssima em música. Aí nós ensaiando a música, esse pai disse que ele estava em casa tomando banho com a arma no chuveiro, porque quando eu faço parte de um grupo criminoso, eu tenho que estar alerta. Então ele estava lá tomando banho com a arma, saiu e ouviu a menina de quatro anos, por isso que eu falo que Deus usa as crianças de quatro anos, não sei como, cantando essa música. Ele começou a sentir um aperto no coração porque os sonhos dele tinham sido frustrados. Ele nunca conseguiu nada, nunca fez diferença na vida dele, não tinha conseguido isso. Ele veio na reunião e falou: ‘‘eu quero saber o que acontece aqui.’‘ Aí o (inint) [02:08:47], uma graça, começou a contar uma história para criança, tão simples e aquilo foi de encontro às angústias do coração daquele pai. Ele falou: ‘‘tá, agora vocês têm que orar por mim.’‘ Pegou a arma, pôs em cima da mesa, todo mundo que estava no grupo ficou com medo. Ele falou: ‘‘eu acabei de sair da prisão, não sei o que vou fazer da minha vida, já estava planejando cometer um crime, então eu preciso de ajuda.’‘ Às vezes é um grupo de apoio onde a pessoa vai ser ouvida, porque às vezes ela está em angústia. Infelizmente, quando a pessoa sai de uma situação dessa de prisão, as empresas não dão chance mais. Ela está rotulada para uma vida toda. O (inint) [02:09:48] abraçou essa pessoa, cuidou, orientou, essa pessoa arrumou um emprego e foi. Esse é o nosso objetivo, é levar uma transformação, ser agente de transformação. Nós não somos nada, mas a gente pode, com poucas coisas que a gente viveu e um pouco de conhecimento que nós temos, ajudar as pessoas a terem um start para mudança.
P/1 - (inint) [02:10:23]. A última pergunta.
R - Lá vai a Juliene.
P/1 - Como foi para você contar um pouco da sua história para a gente?
R - À princípio foi difícil, porque quando a gente fala de nós, a gente passa por ondas de emoções, umas mais fortes, outras mais leves, e nem todo mundo gosta de falar de si. Eu tenho um pouco mais dessa dificuldade. A gente sempre fala do outro e nunca fala de si. Então foi gratificante, passei por momentos de ansiedades, essas ondulações, sim, mas é precioso. Você faz uma retrospectiva de vida e isso é gratificante, porque você fala: ‘‘minha história lá casa com a história de fulano aqui.’‘ O mundo dá voltas, e quando ele dá uma volta gigantesca, os 360 graus não é bom, o 180 é ótimo, que aí é realmente onde tem mudança. O 360 a pessoa pode voltar para onde ela estava. Isso é muito importante. Para mim, foi gratificante. Eu agradeço ao Museu da Pessoa, agradeço a vocês que vieram aqui, disponibilizaram esse tempo e obrigada por me escolher. Eu espero que essa história traga vida para outras pessoas também, que oscile em outras vidas, em outros seres humanos, mudança. Nós estamos aqui para ser água. A água mata a sede e não a sequidão.
P/1 - Água doce.
R - A água doce, a salgada não.
P/1 - Muito bom.
P/2 - Para fechar, queria que você falasse aquela frase tão bonita que tem na porta.
R - Não temos visto milagres. A gente não vê milagre, porque milagre é impalpável, mas temos vivido. Eu penso, voltando na história daquela velhinha que a gente riu, que eu não sei quem é até hoje, a gente supõe que possa ser um anjo, passou e falou: ‘‘aqui vai crescer para cima’‘, e a gente não acreditava. Hoje tem um prédio com três andares, hoje tem esse crescimento lateral também, não só vertical, mas o horizontal e a gente atende mais de 1 mil pessoas. É um milagre real, porque a gente não tinha nada, vivia com 300 reais por mês. Eu fiz faculdade, não tinha dinheiro e terminei minha faculdade sem dívida. Marcelo fez faculdade, também não tinha dinheiro e terminou a faculdade sem dívidas. Não é uma teoria da prosperidade nem nada, mas quando você faz o bem para o próximo, isso volta para você de alguma forma. Isso é muito legal.
P/1 - Mais uma vez, palmas.
R - Obrigada.
P/1 - Obrigada pela sua história, nossa. Intensa.
[02:13:55]
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