PCSH_HV761_PAGU_FUNI-O
ENTREVISTA DE PAGU FUNI-O
ENTREVISTADA POR JONAS SAMAÚMA E ROSANA MIZIARA
SÃO PAULO, 9 DE MAIO DE 2019
PROJETO __________ [00:10] MEMÓRIA INDÍGENA
PROGRAMA CONTE SUA HISTÓRIA
GRAVADO POR JADE RAINHO
ENTREVISTA PCSH_HV761
TRANSCRITO POR SELMA PAIVA
P/1 – Bem-vinda!
R – Obrigada!
P/1 – Eu ia falar pra você se apresentar: seu nome, o lugar onde você nasceu, o povo.
R – Eu me chamo Pagu. Patrícia, na verdade. O meu nome foi dado, mesmo, em homenagem a Patrícia Galvão, a Pagu e o fato é que desde sempre eu sou conhecida como Pagu, então é como eu me identifico, que realmente o nome que está lá no registro de batismo é o que não é usado, né? Então, Pagu, Pagu Rodrigues. Pertenço a dois povos indígenas: o povo guarani e o povo funi-o. E é isso. Estou com 33 anos.
P/1 – E você pertence a dois povos como?
R – Porque de pai e de mãe, né? Pai é funi-o e mãe guarani. Minha relação maior é, de fato, com toda a cultura, espiritualidade, religiosidade funi-o, porque minha mãe eu não conheci nova. Ela foi embora eu tinha três meses. E eu só a conheci muitos, muitos anos depois. Então, todo o meu processo de luta foi, sim, buscar também as minhas raízes guarani, convivi em aldeias guarani durante muitos anos da minha vida, acho que até um pouco por conta dessa perspectiva de poder achar o que fosse mais próximo ali da minha mãe. Eu só tinha a localização por sobrenome, né, como a gente conhece as famílias indígenas, pelo sobrenome, mas eu acho que toda a tradição, mesmo, acabou ficando mais a cargo do processo funi-o do que propriamente o guarani, mas depois você vai conhecendo, entendendo como funciona pra cada cultura e as diferenças.
P/1 – Você sabe um pouco da história dos seus pais?
R – Sei. Eu, hoje, tenho pouquíssima relação, na verdade, nenhuma, na verdade, com meu pai, desde os 18, 19 anos que eu já não tenho mais relação com ele, mantive mais relação com a minha avó paterna e com alguns parentes tipo tio mais distante, mas meu pai, mesmo, não. Meu pai saiu muito cedo de aldeia, lá em Pernambuco, ele devia ter uns 16, 17 anos. Eu acho que não tanto por renegar, mas por conta dos conflitos, mesmo, que existiam. Pra quem era mais velho, naquela época, não era simples você viver em Pernambuco, no semi árido, situação de fome e seca e numa guerra ali que tinha, por conflito de terra, mesmo. Então, minha vó, minha tataravó, minha bisavó, todos vieram pra São Paulo meio fugidos, mesmo. O meu bisavô, que é o Antônio Rodrigues, eu não cheguei a conhecê-lo. Eu conheci minha tata, que foi quem me ensinou muita coisa do que eu sei, mas não conheci meu bisavô. E o que minha avó conta é que ele saiu de lá jurado de morte. Teve briga ali de cangaço, mataram um filho dele e ele foi cobrar a dívida da morte do filho, ele não conseguiu matar a pessoa que matou o filho dele e, como ele não conseguiu matar, essa pessoa, depois, foi atrás dele. Fazendeiro, né? E eles tiveram que vir pra São Paulo fugidos. E tinha uma tradição, que é muito histórica no Brasil, norte e nordeste, desde eu acho que lá na reforma do Marquês de Pombal, que é a prática do roçado, mesmo. Quase todo índio, ali naquela região, era obrigado a trabalhar pra alguma família ou obrigado a viver cultivando plantio em fazendas e tinha direito a um pequeno pedaço de terra, um roçado. E foi muito o que aconteceu com a minha família: eles viviam com um roçadinho. A minha vó, por exemplo, chegou a ser sequestrada, pra trabalhar na casa de um fazendeiro, que é até conhecido ali na região, que são os Barbalho. Eles têm muita propriedade ali naquele entorno, quase tudo foi de terra expropriada de indígena. E ela trabalhava em plantação. Acho que na época era de cana. Hoje eu sei que eles plantam mais feijão, lá. Foi estuprada no trabalho, ali na fazenda, chegou a engravidar, mas eles tinham um pedacinho de terra que eles podiam plantar e sobreviver daquilo que plantavam. Quando eles vêm pra São Paulo, eles não têm mais nada, assim. Aí a minha vó fala que o meu bisavô sai de uma condição em que pelo menos ele tinha o que comer, do plantio dele, pra vir pra São Paulo e vender doce em porta de escola. E ele trabalhou até o dia que ele conseguiu juntar um dinheirinho, voltar pra Pernambuco, pagar a dívida que ele tinha de empréstimo no Banco Rural, que era como eles conseguiam fazer plantio, né, e depois disso ele faleceu. E eu sei que, nessas idas e vindas, o meu pai, antes deles virem, estava com 16, 17 anos. E aí foi quando realmente todo mundo veio pra cá e aí eu acho que começa toda uma complicação de sobrevivência da minha família, da manutenção (choro) das tradições que a gente tinha como índio, né, porque o que eu lembro muito que minha tata falava pra mim quando eu era criança, né, porque a gente tem toda uma tradição com ervas, a gente é de uma família de fato que sabe a medicina tradicional, carrega toda a espiritualidade do nosso povo, do tronco do qual a gente faz parte e a minha tataravó sempre foi a grande cuidadora, né, da família, assim. E minha avó e meu pai tinham uma certa... minha vó não era vergonha, ela tinha um receio de dizer que era índia; o meu pai já, mais, vergonha, mesmo, de assumir que era índio. Eu acho que muito pelo preconceito, né, que o povo nordestino sofre quando chega aqui em São Paulo. Minha vó falava muito isso pra mim: “A gente é, sim, tudo índio, mas minha filha, estar aqui em São Paulo e dizer que é nordestino já é um problema. Se a gente disser que a gente é índio, a gente está morto”. Aí eu me lembro que, numa ocasião, a minha tataravó estava preparando um remédio pra mim. Eu não estava muito bem. E tem uma coisa: o povo funi-o não fala, não fala mesmo porque ele está fazendo, como está fazendo, porque a gente nasce com o dom ou a gente não nasce. Se a gente nasce, em algum momento a gente vai aprender a fazer as coisas. Se a gente não nasce, a gente aprende um pouco com o mais velho, mas nunca é a mesma coisa. Então, a minha avó também não sabia exatamente como eu ia ser. A minha tataravó. Eu tinha uns cinco pra seis anos, algumas coisas da minha vida espiritual já aconteciam, eu falava pouco, mas numa ocasião eu perguntei pra ela como ela fazia o remédio, pra que era o remédio que ela estava fazendo e ela só botou em cima da mesa e mandou eu tomar. E aí eu perguntei de novo, pela segunda vez, ela falou: “Toma logo aí esse remédio, você precisa dele e só toma”. Aí, quando eu terminei de tomar, daí ela sentou, olhou pra mim e falou: “Olha, minha filha, nós somos todos índios e eu não quero que você nunca esqueça disso, que nós somos índios”. Eu olhei pra ela e falei: “Tudo bem, eu não vou esquecer”, mas eu acho que eu levei muito tempo depois pra entender o que é ser índio, porque, quando a gente é, não é uma questão pra gente, a gente é. A gente tem conhecimentos, a gente tem tradições, tem uma língua, tem uma espiritualidade que é, nascemos e é isso. Eu só fui entender o que significava ser índio nesse mundo, isso como questão política, quando eu tinha uns 16 anos, assim, porque eu sempre ouvia meu pai dizer, minha avó, minha tata, mesmo quando eu perguntava mais aprofundadamente pra eles as coisas, a minha vó só falava assim: “Somos tudo bugres, vai. É isso aí”. Porque funi-o realmente não detalha as coisas.
P/1 – Eu queria só te perguntar... muito forte isso que você está falando... que você falou que a sua família é de medicina tradicional, que você também é benzedeira. Que memórias que você tem dos mais velhos da sua família estarem fazendo isso? Quem te tocou?
R – Essencialmente a minha tataravó. Eu acho que ela era, de fato, a que mais... eu não sei se preservava, mas a que mais tinha essa relação com a cura, com a erva, com o benzer, com o rezar. Depois eu fui descobrindo que a minha vó é também, né? Ela não falava. “Dá seu nome aí que eu boto lá nas minhas orações” (risos) Ela falava: “Sou rezadora”. Quem você imaginar na família, a minha vó sempre, toda noite, rezava. E aí essas coisas não são exatamente explicadas. Você convive com elas e aprende nessa convivência, né? Não é como se você entrasse numa sala de aula e tivesse lá um professor na frente que ficasse dizendo como é cada coisa. Você só vai aprendendo e absorvendo na medida que você vai convivendo. E, na convivência que eu tive com a minha tata e com a minha vó... a minha bisavó menos, ela era acho que mais estilo do meu pai, tinha uma certa vergonha do que ela era. Então, ela não conversava, não fazia muita coisa e tal, mas a minha tataravó e minha vó, não. É muito engraçado, porque hoje em dia eu converso com a minha vó sobre várias coisas que aconteceram comigo e ela sabe e hoje ela fala pra mim, dá alguns conselhos, mas ela nunca entra no detalhe, ela só fala: “Você vai ter que aguentar” (risos) Só fala assim pra mim. Então, o aprendizado eu acho que dá pra dizer que é natural, né? Porque desde criança você vai convivendo com isso, aquilo, pra você, é sua rotina. Aí, um pouco depois, sim, que eu vi realmente o meu pai com maior dedicação, assim. Eu acho que ele fazia as coisas, mas eu acho que ele não fazia na minha presença. E aí, quando eu fui morar especificamente com ele, eu realmente passei a ver mais de perto e a aprender, mesmo, mais de perto, porque daí ele explicava: “É assim que funciona”. Quando eu relatava algumas coisas que aconteciam comigo...
P/1 – Tipo o quê? Você lembra alguma específica?
R – É porque como a gente é índio e nasce com a espiritualidade, algumas coisas pra gente que tem numa tradição numa família de rezador, de benzedeira, de curandeiros, vão necessariamente se impor num plano espiritual. Que você não necessariamente vai entender na primeira vista, mas é como se fosse uma espécie de vocação. Você nasce com uma determinada vocação, ela começa a surgir pra você e alguém tem que, em alguma medida, orientar a vocação que você tem, pra que você não pire, não surte, não ache que é uma coisa inexplicável. E aí, algumas dessas coisas realmente foram acontecendo. Desde a facilidade que eu tinha, por exemplo, com as ervas, sem muita explicação, sabia muitas vezes pra que determinada erva servia.
P/1 – Qual era uma erva que você tinha bastante intimidade?
R – Muita?
P/1 – É.
R – Arruda. Arruda era uma que eu sempre tive muita intimidade, desde criança.
P/1 – Você teve algum causo com a arruda, alguma vez, que a arruda te ajudou bastante?
R – Tive. Eu tive uma situação que eu estava dormindo, daí eu fui usar o banheiro e eu não acendi a luz, mas quando eu voltei, eu senti, no quarto, uma energia estranha. Vi também. Mas eu acho que senti, pra vocês, é mais palatável do que ver. Alguns de nós vê, mesmo, as coisas. E aí, quando aconteceu, eu tomei um susto e eu saí correndo pro quintal e a primeira coisa que eu fiz foi pegar uma arruda e eu sentei com o galhinho de arruda, assim, na minha cama, e fiquei a madrugada ali todinha, rezando. Rezando, rezando, rezando, rezando, rezando, rezando, rezando, rezando, até que eu peguei no sono e, quando era amanhecer, assim, já estava tudo bem e quando eu fui contar isso pro meu pai, ele: “Ah, coisa de criança”, só que quando isso começa a acontecer com frequência, daí ele fala: “Não, não é coisa de criança. (risos) Nós vamos ter que cuidar, vamos ter que conversar”. E foi quando ele realmente começou a me ensinar algumas coisas da religião.
P/2 – Pagu, você sabe como seu pai e sua mãe se conheceram?
R – Não. Essa é uma parte da história da minha vida que eu tenho pouco conhecimento, porque minha mãe foi embora eu tinha três meses, sei que meu pai casou com ela, teve a minha irmã, que é mais velha, eu do meio... não, depois ele casou e teve mais um filho. Eu e minha irmã. Ela conviveu... minha irmã deve estar com 35, ela conviveu com a gente, eu até três, minha irmã devia ter um ano e meio, mais ou menos. E ela foi embora, eu não sei exatamente o motivo, nem sei exatamente como eles se conheceram. Tem muita coisa dessa minha história familiar que meu pai escondeu durante muito tempo, que eu passei muitos anos da vida procurando. Eu conheci minha mãe só em 2016, depois de muito procurar, pesquisar pista em internet e tal e, mesmo quando eu fui conversar com ela, foi muito pouco que eu consegui saber. Uma das coisas quando eu fui procurar a minha mãe, me encontrar com ela, mesmo, em 2016, foi pra ver a outra parte da minha família, que é de origem guarani, que eu queria conhecer: minha avó materna, a minha tia. Ela casou e teve mais dois filhos. Então, em tese, eu tinha mais dois irmãos, né, por parte de mãe e eu fui um pouco lá pedir pra ela: “Eu quero ir lá na aldeia onde a gente ainda tem parente e tal”. E eu só falei com ela duas vezes desde que eu a conheci. E aí, na ocasião em que a gente, em tese, ia pra aldeia conhecer alguns parentes, eu cheguei lá no Rio de Janeiro, em Rio das Ostras, mais especificamente, e tinha programado tudo, peguei um feriado longuíssimo de Páscoa, emendado e tal, pra ter tempo pra subir até Socorro, Resende e ver quem eram essas pessoas e ela olhou pra mim e falou: “Eu não vou te levar lá e desde que eu te conheci, fico aqui tentando ver a quem você puxou e você não puxou nem a mim, nem ao seu pai. Eu não entendia porque, mas agora eu entendo: porque você é índia e eu não gosto dessas coisas, então eu não vou te levar lá”. Eu falei: “Mas por que você não vai me levar lá?” “Porque se eu te levar lá, você vai querer ficar na aldeia e eu não aceito, não quero e é isso”. E aí eu saí do Rio de Janeiro e nunca mais a procurei.
P/2 – Quando você era pequena, você perguntava? Você sentia a falta de mãe? Perguntava por quê?
R – Sim.
P/2 - Que história te contavam por que ela tinha ido embora?
R – O meu pai dizia que é porque ela era imatura, não queria cuidar das filhas de jeito nenhum e não gostava, queria ter uma vida de luxo, de riqueza e eu acho que em alguma parte ele tinha razão: minha mãe realmente renegou bastante o que ela era. Ela foi levar uma vida de branco, mesmo. Mas o pouco que eu conversei com ela, eu acho que o problema era das duas partes, assim. Meu pai não a tratava bem. Eu acho que chegou a rolar, inclusive, violência doméstica, entendestes? Então, não era uma coisa só dela. Era dele também. E acho que, conhecendo o gênio dele, eu acho que sim, eu acho que ela não mentiu pra mim. Eu acho que ela não ia aguentar ficar morando com ele. Ela fala que ele negou o direito dela fazer visitas pra gente, chegou a pegar os nossos documentos, deu sumiço em certidão de nascimento, depois ele refez certidão de nascimento. Quando foi dia de julgar nossa guarda ele conta que ela não apareceu e por isso ele ficou com a nossa guarda. E ela conta outra história: ela diz que ela foi e, mesmo assim, ele tinha vários argumentos que ele mesmo tinha construído, por exemplo, a proibição da visita e tal, da gente, que serviram pra ele conseguir ficar com a nossa guarda. E a verdade é que esse ponto específico eu nunca consegui qual é, de fato, a verdade que aconteceu. Eu nunca vi nem um documento de guarda da gente, entendestes? A única coisa que eu vi concretamente, quando eu cheguei lá no Rio de Janeiro, foram certidões, outras, originais também, de nascimento, minha e da minha irmã. Então, acho que sim, que tinha problemas das duas partes. E acho que talvez eu nunca vá chegar a saber, de fato, tudo que aconteceu.
P/2 – Depois que ela foi, ele casou de novo?
R – Casou, mais duas vezes.
P/2 – E foi essa mulher que te criou?
R – O segundo casamento dele foi muito difícil, assim. Ele casou com uma pessoa que me espancava todo santo dia, quando ele saía pra trabalhar e aí ela pedia pra não contar pra ele, porque senão ela fazia de novo. E um dia eu contei. Acho que eles ficaram casados, no máximo, dois anos. E aí, no dia que eu contei, foi um arranca rabo em casa, ela puxou faca pro meu pai. Eu só lembro que eu e a minha irmã saímos de lá meio arrastadas pelo meu pai. A gente saiu quando terminou a briga e aí voltamos a morar com minha vó.
P/2 – Com a mãe dele?
R – Com a mãe dele.
P/2 – Aí vocês moravam onde? Como era o lugar que você morava, quando era pequena?
R – Foi em Diadema. Quando aconteceu esse episódio com essa primeira madrasta era Diadema. Aí a gente saiu de lá e voltou pra São Paulo. Nessa época meu pai contava que aquela pessoa que estava com a gente é que era nossa mãe de verdade. E a gente só foi descobrir porque tem uma coisa que é do sentido, né? Eu sentia que ela não era minha mãe. Como é que você tem memória até os quatro anos de idade? Não lembra. Eu só sentia que ela não era minha mãe, mas ele falava: “É, sua mãe que voltou. Ela é sua mãe, mesmo, nanana”. Aí, quando ele separou dela, é que a gente, realmente, descobriu que não, que ela não era nossa mãe. E foi quando ele contou uma parte da história da separação com a minha mãe. Que é essa que até hoje é uma nuvem pra mim. Uma nuvem. Eu acho que talvez a minha tia, que é irmã da minha mãe, tenha conseguido acompanhar esse processo e ela é uma das pessoas que eu ainda mantive algum nível de relação, mas eu passei tantos anos da minha vida buscando essas lacunas, desde os meus parentes de Pernambuco, até meus parentes do Rio de Janeiro, que eu estou cansada também. Eu estou num ponto, assim, que eu cansei de ficar buscando isso tudo, porque toda vez que eu vou mexendo... quando eu fui pra Pernambuco, eu descobri outras coisas do meu pai e isso vai cansando a gente, sabe? Eu descobri conflitos lá, com a minha família por parte de pai. Eu descobri outros abandonos que ele fez na vida. E eu acho que eu cansei de mexer nisso, entendestes? Não tenho mais essa disposição. Então, eu não procurei mais minha mãe. Eu acho que o que está lá, no passado deles, em algum momento eles vão ter que resolver.
P/1 – Mas quando você voltou pra sua vó era na aldeia?
R – Não. Já estava todo mundo aqui em São Paulo.
P/1 – Veio todo mundo pra cá? E aí eles continuaram mantendo a tradição aqui?
R - Eu acho que minha vó, não. A minha vó mantém a tradição, mas não manteve relação. A minha tataravó, mais. Tudo que ela queria fazer antes de morrer era voltar, percebe? Mas a minha avó é uma coisa que, quando eu converso com ela, eu sinto um certo incômodo. Porque eu acho que pra minha avó não é fácil não ter relação com o filho, vir pra São Paulo pra passar fome, trabalhar em casa de família, com toda essa problematização de é índio ou não é índio, não podia lá dizer que era índio, não podia aqui dizer que era índio. Descobri que a gente perdeu terra lá pra próprio índio. Além de perder pra fazendeiro, perdemos pra outros índios. Ela falou assim: “Mas minha filha, pra que você fica aí, fazendo isso aí, dizendo que é índia, indo atrás do que você não deve? Esquece isso”. Eu falo: “Não, vó, não esqueço”. Quando eu comecei a mostrar pra minha avó algumas das coisas que eu fui descobrindo, fui desenhando nossa árvore genealógica e mostrando pra ela, ela sabia, mas ela só ficava olhando pra minha cara. “Deixa isso pra lá”. Aí eu falava: “Mas por que, vovó?” “Deixa pra lá”. Aí, quando eu fui a primeira vez pra Pernambuco: “Tem certeza, mesmo, que você vai pra lá?” “Eu vou, vovó. Eu vou” “Então vá procurar a família de papai”, que é o meu bisavô, Antônio Rodrigues. “Esse aí, vê se alguém lá quer falar alguma coisa”. Tem um incômodo aí. Eu acho que eu sei porque tem.
P/1 – Mas aí você chegou lá?
R – Fui várias vezes. Eu passei anos da minha vida fazendo isso: indo e voltando.
P/1 – Como foi a primeira vez que você foi lá? Foi encontrar esse pai dela?
R – Eu fui encontrar parentes vivos dele. Porque ele faleceu antes de eu conhecê-lo. E foi muito difícil. Quando eu cheguei lá tem um local que ficam só os Rodrigues. Aquele batidão de chão, as casinhas simples e tal e eu nem sabia por onde começar, não vou mentir. Eu tinha um irmão vivo ainda da minha tataravó, que é o tio Doca. Eu falei: “Vou começar por ele”. Bati lá na porta dele e comecei a conversar com ele e aí eu descobri que ele não estava ouvindo a metade do que eu estava falando, porque ele já estava surdo. Mas, quando eu encontrei com ele, a primeira reação foi chorar, porque ele é exatamente a cara da minha tataravó. E aí eu tinha que falar com ele gritando e, quando eu comecei a falar da minha tataravó pra ele, ele começou a chorar, chorar, chorar e ele já não estava mais com a cabeça, também, boa. Muito velho. 95 anos. E aí ele ficava perguntando pra mim: “Mas cadê a Porcina? Ela está viva?” e eu dizia: “Não, ela morreu”. E, quando ele entendeu que ela morreu, ele começou a chorar, a esposa dele falou pra eu parar e ela conhecia um pouquinho algumas pessoas e me ajudou e falou: “Mas você vai lá procurar essas pessoas, porque eu não falo com essas pessoas”. E aí eu peguei um nome e fui e, quando eu cheguei onde estavam os Rodrigues, a primeira pessoa que eu encontrei foi essa que me deram o nome, estava sentada na porta, daí ela olhou pra mim e eu falei: “Tudo bem com a senhora?” “Tudo. Quem é você?” Eu disse: “Olha, eu sou a neta de Jandira”. Quando eu falei ‘sou a neta de Jandira’, ela arregalou o olho e falou: “Você está mentindo”. Eu falei: “Não, eu sou a neta de Jandira” “Dida? Que saiu daqui mocinha?” Eu falei: “Dida, minha vó” “Você não é filha de Airton, não?” Eu falei: “Sou filha de Airton, sim” “Não acredito. E o que você quer aqui?” Eu falei: “Estou procurando informações sobre meu bisavô, Antônio Rodrigues” “Meu pai” Falei: “O quê?” “É, aqui é a casa onde ele morava”. Aí entrei na casa, fiquei lá, escutei a história e tal e ela falou: “Olha, a gente é índio, sim, mas aqui não dá pra você ficar dizendo essas coisas, não. Se você quiser informação sobre isso, tem a sua outra bisavó, que é a Virtuosa Avelina Vasconcelos, que não está viva, mas o parente dele está ali, do outro lado da rua”. Aí eu atravessei e fui lá, na casa de Esmeralda. Esmeralda me recebeu muito bem, até eu perguntar da Avelina e falar com ela sobre a questão do nosso passado e ela praticamente me expulsou de casa: “Índio, não. Não tem essas coisas aqui, não”. Eu falei: “Mas tem, sim” “Tem, não. O que você quer atrás disso?” Eu falei: “Minha vó não fala, minha bisavó falava menos ainda. A única que falava era minha tataravó, meu pai não fala, ninguém fala. Eu quero saber o que todo mundo está escondendo”. Ela: “Não, vá se embora, volta pra São Paulo, não tem nada que fazer aqui, mas você quer saber? Eu vou lhe dar dois nomes que estão ali em Águas Belas ainda, que não saíram de lá, estão lá. Se você achar, de família Cordeiro e de família Rodrigues, aí você vê como é que você faz. Acho que são primas suas”. Aí eu fui até Águas Belas, atrás. E aí foi muito difícil até aqui porque (choro) eu falo a minha língua, desde pequena. Que eu até hoje ainda estou achando gente, nesse processo, que se nega a contar o que aconteceu. Eu volto em junho pra lá, pra conhecer mais uma pessoa.
P/2 – Lá em Águas Claras?
R – Em Águas Belas. Lá pra aldeia, mesmo. Pra conhecer mais uma pessoa que é parente. E que sabe da história da guerra, dos conflitos ali e que está se perguntando porque ninguém nunca me apresentou a ela, ela disse - deve ser uma sobrinha neta minha – “Eu conheço essas pessoas todas”. Eu levei foto pra ela que tinha, com tios meus, primos, o cacique da aldeia. Uma foto de 1900 e sei lá quanto. E ela fala: “Por que ninguém nunca me apresentou?” Ela deve ser uma sobrinha neta minha e ela conhece toda a história. (choro)
P/1 – Antes de você contar um pouco da resolução do que você descobriu, eu queria saber, que você falou que falava a sua língua desde pequena. E se você estava procurando sua descendência, como foi que você aprendeu a sua língua e com quem você falava?
R – A língua de um índio é sagrada. A gente nasce com ela. A gente tem a que a gente constrói, que é a que a gente usa, pra quem não é índio. Na frente, tal. A gente até explica como são algumas palavras e tal, mas pra quem herda da família a tradição que eu herdei, a gente só fala. E a gente não pode falar na frente de quem não é índio. Às vezes eu falo um pouco, como você viu aqui embaixo, antes da gente subir. Então, no tempo que eu ainda morei com meu pai, eu praticava um pouco só dentro de casa, com ele e, desde que eu saí de casa, eu só voltei a falar mesmo a língua sagrada quando eu cheguei até a aldeia. E quando eu estou aqui em São Paulo, que eu não estou com nenhum parente, nada, eu só converso na língua quando eu preciso fazer os meus trabalhos espirituais e com a minha cachorra, que entende. Eu tenho uma cachorrinha que me acompanha pra cima e pra baixo, onde eu vou. Se eu vou pra Pernambuco, ela vai comigo; se eu volto, ela vem comigo. E ela entende bastante, quase tudo o que eu falo, porque desde que eu a peguei, eu sempre conversei com ela na língua e não adestrar em português, né? Então, quando eu preciso que ela fique quietinha, que ela sente, que ela pare de bagunçar alguma coisa, eu sempre falo tudo na língua.
P/2 – Mas seu pai conversava com você? Foi assim que você foi aprendendo?
R – É, pouca coisa.
P/2 – Com sua irmã também?
R – A minha irmã, não. Eu acho que é isso que eu preciso entender e que eu preciso saber: porque, primeiro, tanta renegação da parte dele com o que é de índio, nosso. Eu briguei muitos anos com ele, porque eu queria ir pra Pernambuco e ele não deixava. E ele voltou, sim, ele foi pra lá. Eu não sei o que aconteceu quando ele foi pra lá. Mas alguma coisa eu acho que aconteceu, porque senão ninguém estava até hoje me escondendo esses fatos todos. E eu preciso saber o que aconteceu. Porque ninguém fala pra mim. E todo mundo pede pra eu deixar quieto. Minha avó fala isso.
P/2 – Mas a sua avó também falava?
R – Minha avó também: “Não vai atrás disso. Por quê?”.
P/2 – Não. Eu estou falando a língua.
R – Minha vó? Eu não sei se ela fala. Acho que minha vó fala. Ela não fala pra mim.
P/2 – Você aprendeu com seu pai. E a sua irmã não falava?
R – Não. A minha irmã nunca gostou de nada disso. Nem da espiritualidade, nem de nada. Nada, nada, nada, nada. Era uma das que falava pra mim também: “Mas pra que você vai atrás disso?” “Eu vou pra Pernambuco, eu vou lá”.
P/1 – Mas, por exemplo, quando sua tataravó estava rezando, ela rezava, benzia falando a língua?
R – A minha tataravó, sim. Ela não tinha problema nenhum. Ela sempre na língua, no costume todinho, que é nosso. Minha tataravó sempre, sem problema nenhum.
P/1 – E ela veio pra cá, também, pra São Paulo?
R – Veio.
P/2 – Ficava sua vó e a tataravó?
R – E a minha bisavó.
P/2 – Moravam todos na mesma casa? Como é que era?
R – Uma loucura! (risos)
P/2 – Você lembra? Como que era essa convivência?
R – Uma loucura porque a minha tataravó é arretada que só. Era, né? Morreu com 100 anos. Arretada. A véia não parava nunca. Tudo que você imaginar de cozinhar, limpar a casa, dar bronca em todo mundo, cuidar de todo mundo, era uma loucura. A minha avó é arretada que nem minha tataravó e a minha bisavó, não. Foi a que eu menos tive essa proximidade. Ela era uma pessoa mais amarga, mesmo. Mais ressentida. Então, ela sempre ficava mais no cantinho dela.
P/2 – E quem cozinhava? Como é que era? Morava um monte de mulheres, então?
R – Era. A minha tataravó, até ela ter limitações físicas, mesmo, da idade, era ela quem fazia a comida. E tem uma coisa que era muito tradicional pra gente, que era o feijão de coco. Você o faz batido com leite de coco, com coco mesmo. Tradição de Páscoa. É uma tradição, mesmo, do funi-o. É você fazer feijão de coco e comer feijão de coco. E quem fazia era minha tataravó. Depois que a minha tataravó faleceu, a minha avó quem ficou durante um tempo segurando a tradição. Até hoje eu cobro a minha vó: “Vó, vou passar aí na Páscoa. Faz feijão de coco, que eu quero comer feijão de coco”. E era uma loucura, porque você imagina duas senhoras, uma não tanto, (risos) brigando o dia todo, com tudo: “Deixou o chinelo espalhado”. E minha tataravó, sempre que ia dormir, pedia pra pentear o cabelo dela. Ela já estava com a idade que fosse, mas ela tinha muito cabelo, mesmo. Tudo branquinho, bem lisinho, assim. E tinha dia que minha vó ficava brigando com ela: “Vai pentear esse cabelo de novo pra dormir, pra que vai fazer isso? Não tem porquê”. Mas estava lá todo dia e brigava muito, depois, com a minha tataravó, porque já não tinha mais dente na boca e tinha algumas restrições alimentares, mas ela tinha uma saúde de ferro e aí a minha tataravó ficava comendo escondido algumas coisas, né? Tipo banana, por exemplo, soltava muito o intestino dela, mas ela não abria mão de jeito nenhum da banana dela. Então, quando ela não conseguia mais mastigar a banana, ela amassava a banana lá com feijão, amassava tudo no prato e comia. Quando minha avó descobria que ela comia: “Não sei o que lá, nanana. Não pode”. E aí era uma confusão. E a minha tata fazia as coisas, gostava de fazer ela mesma a farinha da mandioca e tal. E ela não gostava de ficar no chão cimentado e tal e às vezes ela gostava de fazer isso com o sol bem quente. Então, vira e mexe a gente ia procurar minha tataravó, ela estava em cima do telhado ralando a mandioca. Ralando milho em cima do telhado, pra garantir que o sol ia ficar ali, bem em cima da cabeça dela, que era como ela gostava. E era um sacrifício pra tirar! Você imagina uma senhora, toda magrinha, miudinha, subia, escalava o telhado e ficava lá, sentada com o ralador dela. Enlouquecia a minha vó. E eu convivi muito com isso, assim. (risos)
P/1 – E como era? Como elas mantinham a tradição, esses costumes, no meio de Diadema? Como era Diadema? Era cimentado?
R – Não. Elas não era Diadema, aqui em São Paulo. Diadema foi quando meu pai casou.
P/1 – Era onde, em São Paulo?
R – Era Pompéia. Até hoje minha vó está lá.
P/1 – Como era Pompéia?
R – Eu acho que não devia ter nem metade do que tem hoje, assim, porque minha recordação era assim: pouca rua ainda asfaltada, acho que mesmo as casas eram muito mais simples, aluguel era muito mais barato, entendestes? Eu acho que pra minha avó foi mais fácil conviver com o chão cimentado, do que pra minha tataravó. Porque quando minha tataravó vem pra São Paulo, minha tataravó já é muito mais velha do que minha vó que, vamos dizer assim, mesmo que tivesse lá os seus 40 anos, sei lá, comparar com uma que tem 80, 90 anos, ela está mais cabeça aberta pra algumas coisas, do que minha tataravó estava. Mas esse negócio da tradição é que eu acho o mais louco, assim, porque pra você entender a diferença de tradição, é só quando você vai lidar com aquilo que é diferente, porque quando você não vai lidar com aquilo diferente, é com o que você cresce dentro da sua casa. Está tudo ali, colocado. Desde a comida que se come, que era a bolacha lá que a gente fala que é aquela bolacha do norte, que é aquela bolacha seca, dura, entendestes, até a forma que você faz o café, que não é com coador nem de pano, você mistura tudo junto na panela e vai tomar aquele café, vai adoçar com rapadura, entendestes, até minha tataravó subir no telhado pra ficar ralando mandioca, porque ela tinha que ficar lá, com sol a pino na cabeça. Vai entender porquê! Mas é isso. Ela tinha que ficar lá com o sol: “Eu vou ficar dentro de casa ralando isso aqui? Não vou, não. Vou subir no telhado e vou ficar lá, eu mais o sol conversando, enquanto eu ralo minha mandioca”. O feijão de coco, as ervas. Porque erva plantada tinha um monte.
P/2 – Tinha na casa? Casa térrea?
R – Sim. Em vaso. E minha tataravó sempre mexendo nas ervas. Então, não é um negócio que você fala... bom, é isso. Eu convivo com isso. Você não vai parar, pensar, é assim, porque faz parte da rotina. Hábitos, mesmo.
P/1 – E as pessoas iam lá ser benzidas por ela também?
R – A minha tataravó benzia, sim, crianças. Quando precisava, ela sempre sabia o que fazer: benzer, rezar, fazer um remedinho lá, botar uma arrudinha ali no umbigo da criança, pra criança curar de alguma diarreia, alguma coisa. Sempre. É um negócio...
P/2 – Como vocês viviam financeiramente? Quem mantinha a casa?
R – Muita pobreza. Minha vó trabalhava como doméstica, em casas de família, várias e o meu pai, eu acho que trabalhava em firma, trabalhava acho que na Papaiz, que eu acho que foi onde ele deve ter conhecido minha madrasta. Ele trabalhava na Papaiz. Trabalhava de motoboy. Era isso, assim. Eu não vou mentir, porque eu mesma, eu acho, nessa fase, eu nem dava muita conta, assim, de onde saía o dinheiro, entendestes? Tinha comida lá dentro de casa e era isso. Você é criança, você vai brincar, você vai pra escola, você volta e ok, não tem uma preocupação a mais. O que eu sei é que era pobre. A gente dividia muito as coisas sempre e não era um negócio show, era uma casinha simples, mesmo. Pequena, no mesmo quintal, uma escadinha. Um negócio simples. E pobreza, mesmo, porque você sai do nordeste pra cá, vai arrumar emprego, o que nordestino arruma de emprego? Minha vó, a primeira coisa que ela conseguiu, até hoje, é lavadeira. Minha vó até hoje tem que lavar roupa pra fora, pra conseguir pagar aluguel, pra conseguir pagar as contas dela. E vez ou outra ela ainda vai e faz uma faxina na casa de alguém. Agora não muito, porque ela está com 75 anos, a saúde dela não dá conta de: “Vou lá ficar limpando casa o dia inteiro”, mas roupa, minha vó tem problema na perna, passa o dia inteiro no tanque, não é na máquina. Toda roupa branca, mancha, essas coisas, tudo no tanque. Sabão de coco. Até hoje ela faz isso. E é rezadora: “Dá seu nome, eu passo seu nome na reza, minha filha”. E ela me ensinou algumas rezas. A minha avó concretamente me ensinou. Porque tem algumas rezas que só as mulheres podem ensinar.
P/2 – Quando você era pequena, ela te ensinou?
R – Sim.
P/1 – Reza pra que, você aprendeu?
R – Pra combater o mal. Reza pra proteção. Reza pra ajudar as pessoas a dormir melhor. E aí, mesmo recentemente, eu estava lá na aldeia, estava muito difícil lá, aí um dia eu liguei pra minha vó e falei: “Vovó, está acontecendo isso, isso e isso. O que eu faço?” “Vou lhe ensinar mais uma reza” Aí me passou mais uma reza e falou: “E você só vai ensinar isso algum dia a alguém se você achar que deve, mas vou lhe ensinar agora”. E me ensinou e falou: “Vai lhe ajudar”. E realmente me ajudou. E eu falava: “E o que eu faço mais, vovó?” “Vai ter que aguentar, minha filha. A hora que você tiver com o corpo fechado, daí a gente volta a conversar”. Assim. E aí eu perguntando as coisas nela e ela nunca entrava em detalhe: “É assim mesmo. Você é igual a papai”, ela falava pra mim, por telefone. “Mas o que quer dizer, vovó?” “Seu bisavô tinha corpo fechado” “Sim, mas o que quer dizer isso, vovó?” (risos) “Ninguém o matava, não”. Eu falei: “Como assim, vovó?” “Você vai entender, mas faz a reza aí” (risos)
P/1 – Chegava a quebrar a faca, assim, essas histórias ou não?
R – Tem um processo muito pesado que a gente passa desde pequeno, bastante doloroso, que exige da gente crescimento espiritual, elevação, purificação e que não é simples, nem um pouco, assim. E você precisa, realmente, em alguns momentos, ter alguém que saiba lhe dizer o que você faz naquele momento. Acho que nem sempre eu tive isso, mas às vezes eu tinha, aí ela me explicava o que estava acontecendo comigo, mas ela sabia dizer o que eu tinha que fazer, a minha vó. Mas sim, tem processos bastante dolorosos.
P/1 – Eu já conheci já vários benzedores, tem vários que tem uma hora que a pessoa vira, mesmo e fala assim, alguém mais velho: “Agora você é benzedor”. Você teve isso com você? Um dia especifico que você se tornou?
R – Sim.
P/1 – E como é que foi?
R – A pessoa falou pra mim: “Você está pronta”. Essa foi a palavra: “Você está pronta”. Tem um termo que a gente usa pra dizer quando alguém está pronto, que eu não vou poder dizer aqui. Mas tem um termo e a pessoa falou, sim.
P/2 – Que pessoa que disse?
R – Foi uma liderança que a gente tem, que a gente fala que é uma liderança espiritual. Que me orientou no que pôde, porque quem tinha que ter feito concretamente isso desde sempre era o meu pai e ele não fez a parte devida da preparação. Em algumas situações, na verdade, ele barrou a preparação e aí essa pessoa acabou me auxiliando no limite, mesmo, do que ela pôde. Muita coisa ela não podia e eu acabei tendo que ir descobrindo sozinha no processo, assim. E aí eu acho que isso foi muito difícil pra mim: você descobrir, entender muitas coisas sozinha, no processo, é complicado. E outras coisas que foi isso: numa determinada situação ligar pra minha vó e falar: “Olha, está acontecendo de tal forma, tem tal coisa pra fazer, não sei se eu vou dar conta” e ela só falar pra mim: “É isso aí, mesmo. Você vai ter que aguentar. Vou lhe ensinar uma reza”. E aí, quando você realmente conclui, é um teste, que esgarça a gente até o nosso limite. É inimaginável. É físico, é emocional, é espiritual. São limites, assim e eu acho que os limites físicos eu dava conta, todas as vezes eu dizia: “Pode ser, vai ser, não tem problema”. Mesmo às vezes eu tendo que cumprir jejuns longuíssimos, assim, de 15 dias, mas eu acho que o emocional, o psicológico, é a maior provação, assim, que aguentar não é... você tem que ter a cabeça muito firme e falar: “Eu vou terminar a minha preparação”. Uma preparação que foram anos.
P/1 – A preparação é segredo também?
R – É. E aí, quando você conclui, é como se concluísse a graduação, assim. Aí realmente tem um termo que se usa e aí, sim, eu ouvi o termo e aí, depois, você está pronta.
P/1 – E depois que você ficou pronta, qual foi uma vez que você passou por uma situação bem forte, assim, sendo benzedeira?
R – Acho que são várias, assim, porque como é uma prática que, durante toda a vida, quando as pessoas demandam, você vai fazendo, você sabe como fazer as coisas e vai fazendo. Então, muita coisa, no começo, te assusta. Mas depois você não se assusta mais e quando você não se assusta mais, é que eu acho que você realmente está pronta. E aí, o que eu acho que é sempre difícil, é quando você sente a dor do outro. Eu acho que essa é a parte sempre muito difícil: sentir a dor do outro, entender a situação que a outra pessoa está passando. Eu acho que, pra isso, a gente nunca está pronta. Eu estou com 33 anos e há mais de 20 eu pratico. E eu continuo sentindo a dor do outro. E, toda vez que isso acontece, eu acabo carregando um pouco essa dor comigo. E os mais velhos falam: “Não pode deixar, você não pode levar pra você”. Mas, na minha compreensão, assim, se eu não deixar, se eu não levar comigo também, eu perco a sensibilidade pra coisa, percebe? É como se a gente fosse médico, certo? Só que com a medicina tradicional que a gente conhece.
P/1 – E teve alguma vez uma cura que você fez em alguém e ‘nossa, aquela foi a coisa’?
R – Teve, sim. Acho que ainda tem e eu acho que essa, em específico, que teve, eu fiquei com medo. Mas eu não fiquei com medo do que eu tinha que encarar. Eu fiquei com medo porque a gente está lidando com a vida das pessoas. É uma responsabilidade muito grande. Você não pode fazer a coisa de qualquer jeito. E você tem que estar com a cabeça muito firme pra poder fazer, né?
P/1 – O que era que era? Pode contar o que era?
R – Eu acho que não. Eu não consigo e nem tenho a permissão pra fazer. Mas a gente lida com vários níveis, assim, que é desde uma reza, até enfrentar maus espíritos, tirar energias negativas da vida de uma pessoa, mas a parte, pra mim, que eu sempre tenho o receio, mas que eu tenho que fazer, porque isso é prática da minha família, que é justamente a cura, me causa essa angústia, justamente pela responsabilidade que traz com a vida do outro. Então, foi um caso? Não, foram vários. Que eu, muitas vezes, achava que eu não ia conseguir. Eu falava: “Imagina! Não vou dar conta, não. Não é possível, porque é uma responsabilidade com a vida de alguém, de uma pessoa que está confiando no que você faz e eu acho que quando a gente também consegue se desincumbir um pouco desse receio, a gente também consegue trabalhar melhor. E eu acho que o meu desafio de preparação maior em todos esses anos foi sempre o da cura. É um desafio. Acho que pra cada índio tem um desafio. Eu acho que, pra mim, foi esse, assim. Os outros eu acho que não tanto, eu já estava mais habituada a conviver, desde lá, pequena, quando aconteceu a primeira vez, que eu peguei lá meu galhinho de arruda, eu acho que eu não tinha medo, especificamente. Mas o processo de cura não é um negócio à toa, que a gente fala.
P/2 – Com quantos anos você entrou na escola?
R – Não, cedo. Escola não é um... depois eu descobrindo que é muito diferente pra quem é guarani, mas pra quem é funi-o, não. Cedo eu tive muitas dificuldades na escola, justamente porque o fenótipo indígena é muito marcado, no meu caso, né? Tem índio que não tem um fenótipo tão puxado, mas no meu caso sempre tive. E, antes de ter o cabelo muito longo, quando o cabelo é muito liso, ele cresce pra cima, espetado, aquela coisa meio Chitãozinho e Xororó. E meu pai fazia franjinha. E fazia aqueles mullets, né? Então eu ficava mesmo parecendo Chitãozinho e Xororó. (risos) E aí, o meu apelido na escola era indiazinha, mesmo, mas não era indiazinha no sentido bom do termo. Era no sentido ruim, mesmo, assim. De você se entender, mesmo, diferente das crianças. Eu acho que mais adolescente foi mais difícil porque é a época que você também descobre sentimentos, emoções pelos meninos e foi quando eu acho que eu comecei a perceber essa diferença de padrão, mesmo, assim. Como eu não era loira, porque eu me lembro que uma coisa que ficava muito na minha cabeça é que só as loiras, realmente, eram as queridas da escola. E isso realmente era uma coisa que eu percebia. Quando eu começava a paquerar algum menino e tal e que um outro chegava pra mim e dizia ‘a índia’, porque durante muitos anos, na escola, eu era chamada como a índia, mesmo, assim. Eu tive uma situação que um menino que eu gostava falou pra mim: “Eu não vou ficar com você, porque você é macumbeira”. E eu lá sabia o que era macumbeira! Eu não fazia nem ideia do que era macumbeira. Mas macumbeira, pras pessoas, é o índio também, que tudo aquilo que é manipular erva, da religião e tal, eu fui entendendo que as pessoas de fora entendem como macumba e eu cheguei em casa e falei: “Macumbeira? O que é macumbeira? Eu não entendo isso”. (risos) E ele falou na minha cara: “Não vou ficar com você, porque você é macumbeira”. E eu: “Oxi”. E aí eu perguntei pro meu pai: “O que é macumbeira?” Ele falou: “Isso aí é mais dos negros, mas a gente que tem as nossas questões religiosas...”. Então eu acho que, no período de escola, algumas dessas coisas iam ficando evidentes pra mim, mas eu não formulava sobre elas. Eu entendia que tinham diferenças, que pessoas não gostavam de mim porque eu era de tal forma, tinha a pele morena, não era loira e tal e acho que, de algum jeito, no meu inconsciente, também ficou gravado que eu não conseguiria ter namorados, alguma coisa do tipo, porque eu era do jeito que eu era. E ficou durante muito tempo isso gravado na minha cabeça e aí eu acho que eu entendi mesmo, isso da escola, do porquê era Chitãozinho e Xororó (risos) quando eu, um dia, fui fazer uma entrevista de emprego, que é uma coisa que, assim, tanto minha avó, quanto meu pai, quase todo mundo falava pra mim dentro de casa é: “Você não é parda. Você é indígena”. E meu pai falava mesmo: “Pardo é cor de papel, não diga que você é parda”. E um dia, numa entrevista de emprego, eu coloquei lá indígena e estava lá a opção pardo, porque não tinha opção indígena. Tinha negro, pardo, branco, tal e aí eu risquei o pardo lá e escrevi à mão indígena no currículo, porque na época você não preenchia currículo digitado. Você chegava no lugar onde você estava querendo trabalhar e preenchia à mão, mesmo, três folhas lá, um monte de coisa. Aí eu preenchi, tal, voltei pra casa e fui chamada uma semana depois pra fazer, mesmo, a entrevista. E eu fiz toda a entrevista, depois que terminou a entrevista, o homem que estava lá fazendo a entrevista comigo olhou pra mim e falou assim: “Olha, então, acho até que você poderia trabalhar aqui, só que você é índia, né?” Eu falei: “Sim, sou índia”. Ele falou: “Então, eu acho que eu tenho pessoa que cumpre melhor essa vaga do que você”. Eu acho que essa foi, realmente, a primeira vez que eu formulei o que isso significava. Minha vó falava, meu pai falava, minha tataravó falava: “Nunca esqueça que nós somos todos índios”, mas assim, tá. O que isso queria dizer exatamente nesse mundo foi naquele dia que eu descobri. Eu voltei pra casa muito mal. Sabe quando algumas fichas caem, assim? Que aí você vai entendendo porque algumas pessoas te destratavam, porque eu não conseguia namorar, porque o menino me chamou de macumbeira. E aí eu falei: “Gente, mas é isso?” Eu fiquei, naquela ocasião, com alguma vergonha, não vou mentir. Falava: “Então eu acho que eu não quero ser mais isso, porque se é pra ser isso, pra ter que aguentar esse tipo de situação...” Eu voltei muito mal pra casa. E acho que foi a primeira vez que realmente me doeu a descoberta, assim. Eu não conseguia ter orgulho naquela época. E aí eu acho que foi dali pra frente que eu realmente comecei a formular o que isso significava. Em termos do que eram os meus costumes, comportamentos, que eu não entendia como comportamentos errados. Eu tinha sido criada daquela forma. Mas é que aí você passa a entender como os outros de fora estão vendo você. E aí eu realmente fiquei muito mal. Eu nem tinha a formulação política do que é o racismo. Não. Eu só entendi mesmo que é um problema eu ser desse jeito, é um problema eu ser dessa cor, é um problema a forma como eu falo, as coisas que eu faço, as inserções que eu tenho e aquilo... eu acho que eu fiquei um pouco revoltada, não vou mentir. E eu não conseguia, naquela ocasião, ter orgulho do que eu era. Eu não conseguia me sentir bem com o que eu era. Eu acho que eu só fui formular politicamente o que eu era, mesmo e o que significava isso na relação com o de fora, quando eu entrei na faculdade. Eu comecei na Escola de Sociologia e Política, porque eu estava desesperada pra me formar, porque eu acreditava, mesmo, depois dessa entrevista que eu fiz, passei muitos anos da minha vida acreditando, então, que eu precisava ter, no mínimo, uma formação, pra ser melhor aceita nos espaços. Que eu me sentia nos espaços, assim, mesmo aqueles que eu atuava já com alguma luta, completamente renegada nesses espaços. E achava que era um problema da minha incapacidade intelectual. Então, eu tinha um desespero muito grande de entrar na faculdade. E eu prestei vestibular a primeira vez e eu não passei pra área de Ciências Sociais, Sociologia, que eu queria fazer. Falei: “Bom, eu vou prestar a prova lá na Escola de Sociologia e Política, vou tentar uma bolsa”. Eu não tinha condições de pagar. Eu trabalhava como balconista, não ganhava nada e aí eu falei, bom, prestei, ganhei acho que no primeiro semestre 30% de desconto na bolsa e passei devendo mesmo assim, eu não conseguia pagar a mensalidade, fiquei um ano inteirinho, estudava muito pra conseguir boas notas, pra depois pegar essas boas notas e ir na diretoria, tentar pleitear uma bolsa de 100% e tal e todas as vezes que eu chegava lá na diretoria com as notas do trimestre, do semestre e falava: “Não dá pra vocês me darem um desconto maior? Eu não estou conseguindo pagar”, eu nunca conseguia. E aí eu fiquei um ano inteirinho devendo à faculdade. E desesperada, porque eu cheguei no final do primeiro ano e falei: “Não vou conseguir continuar estudando”. Renegociava a dívida, ficava com a dívida da renegociação paga, a mensalidade do semestre seguinte, a matrícula... aí eu falei: “Bom, eu vou ter que prestar de novo o vestibular” e descobri que tinha prova de transferência pra USP. Aí eu ficava trabalhando e estudando na faculdade e estudando pra prestar a prova de transferência pra USP. Aí renegociei a dívida no final do ano, pra conseguir fazer a rematrícula pra iniciar o segundo ano, porque eu só ia poder prestar a prova de transferência ainda no ano seguinte. E aí passei mais um ano inteirinho nesse esquema, rolando dívida e aí prestei pra USP a prova de transferência e passei. Tinham 12 vagas na época e tinham só seis à noite, que era o período que eu podia fazer. E aí eu passei acho que em segundo lugar e aí fui pra USP. Quando eu matriculei na USP, a Escola de Sociologia e Política me ofereceu bolsa de 100% e aí eu falei: “Olha, eu já estou matriculada lá, agora não dá mais”, mas ainda passei o período todo na USP pagando a dívida que eu devia na Escola de Sociologia e Política e, na Escola de Sociologia e Política, meu apelido era Potira. Todo mundo sabia que eu era indígena e aí teve um professor meu de Antropologia, que eu acho que foi o que olhou, mesmo, com cuidado, a minha questão, não dessa forma pejorativa ‘a índia, a Potira’, sei lá, o que fosse. E aí, um dia, na primeira aula dele, ele ficava olhando, olhando, olhando, olhando pra minha cara e aí, quando terminou a aula, ele me chamou e aí perguntou pra mim: “Você é índia, né?” Eu falei: “Sou”. Ele falou: “Mas você sabe a história da sua família?” Eu falei: “Olha, eu preciso ir pra Pernambuco, pra ver tudo que aconteceu, mas eu conheço uma parte da história da minha família”. Ele falou: “De que região?” Eu falei a região pra ele, ele falou: “É funi-o, mesmo. Só que assim: o histórico lá não é simples, na briga por terra. Então, quanto antes você for pra Pernambuco, mais fácil pra você resolver, porque você deve até ter direito a alguma terra lá”. E eu falei pra ele: “Eu sei que eu preciso ir, mas agora eu não tenho nenhuma condição de ir pra Pernambuco. Eu estou fora de casa, eu estou pagando aluguel, estou devendo tudo aqui pra faculdade, eu trabalho de balconista, eu não tenho nenhuma possibilidade de ir pra Pernambuco agora, resolver isso”. E ele falou: “Mas vai atrás, porque com certeza... “ – ele perguntou o nome da minha família, né, sobrenome e, quando eu falei Rodrigues, ele é antropólogo – “... você tem que ir, mesmo, porque com certeza você tem coisa lá ainda de direito, que você precisa ver”. E aí eu acho que foi ali que eu acho que realmente eu comecei a entender politicamente o que era a questão indígena, o ser índio. Depois eu fui pra USP, perdi contato com esse professor, mas quando eu cheguei na USP eu realmente compreendi a questão do racismo, assim. Porque eu ouvi de muita gente algumas coisas, assim. Eu ouvi de uma professora que eu tinha entrado pelas portas dos fundos, então que eu tinha que estudar muito, pra não fazer o nível da universidade cair.
P/1 – De Antropologia?
P/2 – Na USP?
R – Isso, assim, no primeiro semestre que eu estava lá. No primeiro dia que eu entrei na sala de aula eu lembro que a primeira coisa que eu realmente notei é que só tinha branco. Eu olhava aquilo e eu falava: “Gente, como é que eu vou estudar aqui dentro? Não vou aguentar ficar aqui dentro”. E aí, pouco tempo depois, eu escutei isso. O sobrenome também te denuncia. Além de eu ter ido por meio de transferência, eu era uma Rodrigues da Silva. Depois eu ouvi de alguns professores também que, se eu era índia, que eu não tinha que estar lá, que eu tinha que voltar pra aldeia. Que aquele não era o meu lugar. E eu via colegas de sala meus fazendo pesquisa com índio num processo, assim, que eu falava: “Gente, que absurdo isso! Não é isso que a gente é”. Eu ficava muito ressentida. E eu tinha algumas amizades, com quem eu conversava, assim, sobre a questão indígena, sobre o fato de eu ser indígena, que ignoravam completamente o que eu dizia. Era como se as pessoas simplesmente não ouvissem o que eu estava dizendo: “Eu sou indígena, não é isso aí”. Tanto é que alguns eu reencontrei muitos anos depois que eu saí da USP e que hoje acompanham toda a minha luta, sei lá, em rede social, ficam me chamando no privado: “Mas como assim?” “Então, você não escutava o que eu estava te dizendo”, porque a verdade é que eu estudei numa fase na USP em que todo esse movimento indígena que hoje tem lá não existia, era um ou outro de nós que estava, mesmo, ali naquele espaço, que não era branco. Não tinha nem cota pra essa população. Isso era um negócio que ninguém nem discutia, quando eu entrei na USP. Então, realmente, nem o que era mais próximo meu, ouvia o que eu estava dizendo. E eu lembro de um amigo que hoje está na Espanha, que uma vez eu disse pra ele o quanto era doloroso estar naquele espaço, ser indígena, ser ignorada e tal. E ele falava pra mim: “Não, você só precisa ter um pouco de calma”. E depois de alguns anos, quando ele, acho, entendeu a importância da questão indígena, ele voltou a me procurar e ele mesmo falou pra mim: “Eu não acredito que eu fiz isso com você”. E eu falei: “Sim, você fez várias vezes”. Então, eu acho que nessa época, realmente, eu acho que aí foi quando eu comecei a formular politicamente isso e a lutar politicamente por isso. Me empenhar, mesmo, em fazer todo esse levantamento da minha família, porque daí eu realmente comecei a me organizar, inclusive financeiramente, pra ir atrás das coisas, levantar documento em cartório, questionar mais a minha vó de frente sobre essas coisas e aí eu fui reunindo subsídios, mas foram quase dez anos assim, fazendo isso. Indo atrás, vendo as coisas, ia pra Pernambuco, voltava de Pernambuco, reunia informação, voltava e tal. Até eu conseguir me situar nesse processo.
P/1 – Nossa! E qual foi o momento que você, por exemplo, que você disse que é da luta, então acho que teve um momento que você começou a ter orgulho de ser indígena também.
R – Sim.
P/1 - Como foi esse... mesmo com tudo isso que você passou, o que fez com que você assumisse isso, assim, como vida?
R – Eu acho que teve uma chave, mesmo, que me virou, que foi na USP. Quando terminou o primeiro ano, no final do primeiro ano eu estava um dia na biblioteca estudando, eu não entrei na sala porque eu precisava estudar pruma prova que eu tinha e eu não tinha muito tempo, mesmo, pra estudar, então eu às vezes tinha que matar uma aula, pra poder conseguir estudar pruma prova que ia ter, sei lá, na semana seguinte. E eu sentei, eu estava muito cansada mesmo, de trabalho, horas dentro de um ônibus pra chegar na universidade e eu tive uma crise de síndrome do pânico e eu não entendia o que estava acontecendo comigo porque, como eu nunca tinha passado por aquilo, eu achei que eu ia morrer literalmente, eu achei que eu estava tendo um infarto no meio da biblioteca e eu saí correndo pra fora da biblioteca. A única coisa era que eu queria sair, assim, pro ar. E eu saí correndo e eu peguei o primeiro ônibus, porque eu tinha certeza que eu estava enfartando. E eu liguei prum amigo da Escola de Sociologia e Política e falei: “Eu preciso de ajuda, porque eu acho que eu estou tendo um infarto, eu estou morrendo”. Passava muito mal, suava frio, o meu batimento cardíaco lá em cima, a sensação mesmo que você tem é que você vai morrer. E quando eu encontrei com ele, eu desci no meio da Augusta, sentei lá pra espera-lo, passando muito mal e eu comecei a ter uma crise de choro. Quando ele chegou, que foi que ele falou pra mim: “Você não está tendo um infarto, está tendo uma crise de ansiedade, Pagu”. Eu chorava desesperadamente. Eu falava: “Gente, o que está acontecendo comigo? Não aguento mais ficar nessa universidade, não dou conta. Esse monte de gente rica”. Eu entrava em sala de aula e é gente que sabia falar inglês, espanhol, francês, o que vocês imaginassem. Eu não conseguia pegar uma matéria que tivesse um texto em inglês pra ler. Eu estava desesperada. Falei: “Não vou dar conta de ficar quatro anos aqui dentro”. E aí eu acho que foi ali a minha virada de chave. Porque daí eu falei: “Não, não, não, não é possível. Eu não sou menor do que ninguém, ninguém é melhor do que ninguém e então, portanto, ninguém é melhor do que eu sou. Eu não posso mais permitir que as pessoas fiquem fazendo o que elas estão fazendo comigo dentro dessa faculdade”. E aí eu acho que foi aí que eu realmente virei a chave e passei a ter um posicionamento político, mesmo, sobre o que eu era e a necessidade de entrar na luta concreta pela questão indígena. E aí eu realmente comecei o segundo ano na USP de outra forma. Eu passei a me posicionar em sala de aula, eu passei a comprar muita briga com professores, inclusive, por causa de me posicionar em sala de aula. Passei a acompanhar os processos do movimento indígena, a ir atrás de aldeia. Foi aí que eu realmente falei: “Acabou. Não vai ser mais isso”. Eu sabia tudo que era da minha espiritualidade, tudo que eu era e eu falei: “Não. Não vou mais permitir. Eu acho que foi esse o ponto de inflexão, quando eu adoeci e, como era um negócio que eu nunca tinha vivido, eu falei: “Eu não quero mais isso”, porque eu tive quatro crises de pânico. E até eu entender que aquilo ali não era razoável, não era um problema físico, que era gerado justamente por causa de todo um acúmulo de coisas, eu falei: “Não posso mais deixar as pessoas fazerem isso comigo”. Aí foi quando eu realmente virei a chave, assim. E aí eu passei, realmente, a formular o que era o racismo, o que era a luta política, o que era militar nessa questão, ter orgulho do que eu era. Mas não foi fácil, assim, não. Até esse momento eu tinha situações em que eu tinha, sim, vergonha, porque era o que as pessoas queriam que eu tivesse. Elas me tratavam daquela forma, então eu ficava com vergonha, eu ficava silenciada. E não percebia o quanto aquilo estava me fazendo mal.
P/1 – Nossa! Como foi a sua vida dentro do movimento indígena? O que você fez?
R – Muita coisa.
P/2 – Quando você se aproximou? Foi nesse período da faculdade?
R – Sim. Eu acho que, com maior proximidade mesmo da luta organizada, ninguém. Eu fui, eu só fui. Eu fui numa aldeia por conta própria. (risos) E foi muito engraçado, que eu não sabia nem o que eu ia fazer lá, com quem que eu ia falar. (risos) Peguei um ônibus aqui no Jabaquara, sabia que tinha aldeia e cheguei lá e entrei, sentei com meu cachimbo, fiquei lá fumando um tempão. Não tinha um guarani que me dava valor, né? Eu fiquei lá fumando, fumando, fumando, fumando, sentada numa pedra, mesmo. Aí, criando coragem, também, pra falar. Porque eu estava criando coragem. Aí passou um guarani, assim, na frente da casa de reza, aí eu o chamei, me apresentei, falei que eu era indígena e aí comecei a conversar e tal, aí ele me mostrou a aldeia e aí eu fiz uma primeira relação e depois disso eu só sei que eu fui indo aldeia por aldeia, conhecer cada uma delas. Eu só ia, gente, com a cara e com a coragem. E aí eu tinha colocado na minha cabeça que eu tinha que construir luta e que o dia que eu tivesse um pouco mais de condição, fosse financeira, fosse de espaço político, que eu ia ajudar a resolver questões dessas aldeias, dessas pessoas que estavam pendentes. E aí, sim, muito tempo depois, na verdade, que eu fui trabalhar, trabalhei na prefeitura de São Paulo, mas pra fazer política pras mulheres, porque eu sempre militei com o movimento de mulheres. Aí eu falei: “Agora eu consigo fazer coisas que são concretas pras mulheres indígenas, desde organizar conferência de mulheres pra que as guaranis pudessem participar, até compor grupos de trabalho com a Funai, com órgãos públicos, pra discutir situações de demarcações de terra. Tudo isso eu fui fazendo, mas foram processos de anos, assim, mesmo, de trabalho mesmo, de ir conhecer liderança por liderança, ficar participando das coisas e muitas vezes você nem tem nenhum tipo de visibilidade, ficava lá no cantinho ouvindo todo mundo falar. Tudo isso eu fiz, assim. O que vocês imaginarem. (risos) Chegar três horas da manhã, no meio de uma rodovia, pra subir a serra e entrar numa aldeia, eu fiz. E foi assim que eu fui, concretamente, construindo luta. Tudo que eu podia, até mesmo não tendo dinheiro, tirar dinheiro do bolso pra fazer coisas, eu fui fazendo.
P/1 – Nesse caminho todo que você fez, qual foi um momento, uma aldeia que te marcou, que te transformou, que teve alguma história forte pra você?
R – Eu, embora não tenha conseguido conhecer os parentes guaranis que eu tenho por parte de mãe, que é da família Ribeiro, a aldeia que eu falo assim que é a do meu coração, mesmo, é a Rio Silveira. Que foi onde eu mais tive um vínculo emocional, mesmo, espiritual, assim. E eu conheço bem quase todas, mesmo, aqui. Eu fui durante anos, uma por uma. Conheço a realidade, sei das necessidades, histórico do processo de demarcação, mas Rio Silveira é a que eu tenho essa relação, assim.
P/1 – E qual foi aquela história que você falou da SanFran?
R – Sim. Essa é mais recente, porque nos últimos três anos, a gente organizou a vinda de alguns parentes funi-o meus, pra cá, pra se apresentar mesmo e eu já tinha sido chamada algumas vezes na SanFran, pra dialogar a questão indígena e a luta por demarcação de terras e o próprio pessoal da faculdade me dizia sempre: “Os estudantes aqui não têm a menor noção, não aprendem direitos constitucionais indígenas, questão de demarcação por terra”. Tem essa estrutura, mesmo, de ter muita gente ali que é afeita ao agronegócio, ao ruralismo e então, sempre que a gente organizava atividades nesse núcleo, pra discutir demarcação de terra, rolava muito enfrentamento, mesmo. Teve dias que eles tiravam faixas, cortavam as faixas sobre demarcação de terra e tal. E a primeira vez que a gente organizou pra gente funi-o se apresentar, mesmo, na Faculdade de Direito, um dos professores lá cedeu a aula dele e queria que eu desse aula pra uma turma de primeiro ano, acho que era primeiro ano, mesmo, discutir direitos, mesmo, legislação sobre demarcação de terra, direitos constitucionais e tal e aí foi a primeira vez, mesmo, que um indígena deu uma aula do currículo formal, sobre a questão indígena, para alunos do primeiro ano do Direito. E eu só fiquei sabendo também naquele dia, depois que eu já tinha dado a aula. (risos) Que a menina falou: “É a primeira vez que isso acontece aqui. Isso nunca aconteceu”.
P/2 – Que ano foi isso?
R – Nós estamos em 2019, eu acho que foi 2015. 2015? Eu acho que sim. Mas posso até olhar lá depois, mas acho que 2015. É mais recente, mesmo.
P/1 – Como foi a aula?
R – Eu achei muito boa, na verdade. Eu fiquei com um certo receio, não vou mentir, porque eu acho que eu esperava que as pessoas ali realmente fossem destratar. Porque é aquela galera branca, faculdade de Direito da USP, eu falei: “Bom, vou lá”. Eu entrei nervosa pra dar aula, mas eu acho que, quando a gente abriu o momento pras pessoas perguntarem, eu entendi que realmente muitos ali não tinham nenhuma noção, mesmo, do que era a luta indígena, estavam extremamente curiosos pra aprofundar a questão da luta e aí foi quando eu também relaxei um pouco, assim, na aula e falei: “Bom, tá bom, ninguém vai, aqui, me acochar, me afrontar ou qualquer coisa do tipo”. E aí acho que fluiu melhor também. Mas eu entrei nervosa, eu fiquei com medo de que as pessoas pudessem ter qualquer reação discriminatória na hora que eu estava lá dando a aula. (risos) Eu fiquei muito assim: “O que eles vão fazer, começar a me xingar na aula: “Sua índia, sai daí”?” Fiquei com receio. Mas foi legal. Foi bem legal. Saí da aula bem, falei: “Nossa, gente, é isso: a gente precisa, realmente, discutir com as pessoas, que isso existe. São alunos do Direito, vão se formar advogados. A maioria, talvez, não vai, nunca, atuar na causa, porque nem ouve falar disso os cinco anos de curso, entendestes?” E é mesmo assim, porque se a gente pensar esse movimento pra dentro das universidades, é muito recente. Ele é de cinco, seis anos pra cá. Não é uma coisa lá, de 30 anos, entendestes? Entrar nas universidades, discursar sobre a questão indígena, que não é aquela do pesquisador, que vai lá numa aldeia da Amazônia, é super recente. Então, sim, a gente espera, às vezes, quando a gente entra nesses espaços, que as pessoas vão ter uma reação completamente negativa. E não foi o que aconteceu. Foi muito legal.
P/2 – Posso cortar um pouco?
R – Pode.
P/2 – Na sua adolescência, quer dizer antes de ______ [1:38:16], o que você gostava na escola, o que você fazia fora da escola? Como é que você se divertia? Como era sua relação com outros jovens?
R – Eu não tinha isso. Eu dificilmente frequentava a casa de outros colegas de escola, até a adolescência. Sempre fui muito reservada, mesmo. Como as pessoas diziam, mesmo, que eu era meio bicho do mato com as pessoas. Acho que até hoje eu sou meio assim, reservadona. Eu acho que eu fui aprendendo a ser um pouco menos, quanto mais velha eu fui ficando, mas não tinha. Muitas vezes eu ficava dentro de casa, ajudando nos afazeres domésticos e estudando. Estudava muito. Estudar sempre foi uma coisa que me atraiu muito, assim. Pra mim não era uma coisa obrigatória, era uma atividade que eu gostava. O que tivesse na frente, que eu conseguisse ler, eu lia. Era assim que eu ficava. Então, muitas vezes eu passava tardes dentro de casa, lendo. Às vezes eu saía, ia pra alguma biblioteca, sentava, ficava a tarde todinha lendo.
P/1 – O que você gostava de ler?
R – Nossa, de tudo que você imaginar. De filósofos que, de muita nova, eu já lia muitos. Eu li meu primeiro livro com 11 anos. Eu nunca esqueço. Cem Noites Tapuias. Foi o primeiro livro que eu li. Eu só fui entender o enredo de Cem Noites Tapuias depois. Mas foi o primeiro livro que eu li. E aí, depois dele, eu só ia lendo. Eu chegava às vezes em biblioteca e eu pegava Agatha Christie, mas eu pegava também Nietzsche. Eu não entendia metade, mas eu lia. E aí eu tive, muito antes da faculdade, relação com vários autores que eu fui ver depois, na faculdade. Fui compreender melhor na faculdade. Então, Marx, Hegel, Sartre, eu já tinha lido tudo. O que passava na minha mão, eu lia. Literatura brasileira. E aí, às vezes, nem era leitura. Às vezes eu ficava em casa fazendo conta de matemática. Pegava lá um exercício e um caderno e ficava lá.
P/1 – Você não namorava?
R – Não muito. (risos) Até os 16, 17 anos uhm uhm.
P/2 – Qual foi sua primeira...
R - Um pouquinho depois dos 17, mesmo, é que eu fui dar os primeiros beijos. Por isso que os meninos me chamavam de bicho do mato, mesmo. Eu não fazia essas coisas. Não saí muito. Ficar em turma...
P/2 – Mas seu primeiro namoro foi quando?
R – Namoro, namoro, mesmo?
P/2 – Ou paixão.
R – Paixão foi antes. Foi por esse aí que me chamou de macumbeira.
P/2 – Você falou lá atrás, antes da adolescência, né?
R – É. Agora namoro firme foi quando eu entrei na faculdade e paquerinha, assim, tinha uma ou outra, mas eu não sei, mas eu acho que tinha uma coisa de costume, do jeito de eu ser realmente que, às vezes, não ajudava.
P/1 – Você chegou a casar?
R – Nunca. Eu acho que até hoje, assim, e isso eu também fui entender depois: os costumes realmente criam diferenças no relacionamento, porque quando eu estou dentro de casa, isso sempre foi a vida toda, eu sempre tive os meus costumes dentro de casa. Inclusive o cachimbo. E, quando você começa a namorar, você explica pro namorado que você fuma cachimbo. Já que ele entra na sua casa, ele vai descobrir que você fuma cachimbo. O dia que ele entrar na sua casa, ele vai descobrir que você tem horários pra algumas obrigações que você tem que fazer, espirituais. O dia em que ele entrar na sua casa, ele vai ver as ervas, as suas coisas e aí eu acho que, quando tem mesmo essa relação, isso começa a acontecer. A diferença do costume se impõe na relação. Então, eu tinha, realmente, muita dificuldade. Mesmo quando eu comecei a namorar fixo. O primeiro menino na faculdade...
P/2 – Na USP?
R – Não. Aí foi na Escola de Sociologia e Política. Não deu certo. E não deu certo, mesmo, porque ele realmente não entendia algumas regras espirituais que eu tinha e aí, quando é namoro, você realmente também tem um sentimento um pouco mais forte, mais amadurecido. E eu acho que, realmente, quando terminou, eu sofri um pouco, assim. Mas também fui entendendo que bom, é isso: se não tiver compreensão sobre os meus hábitos e costumes, não tem como ser, mesmo e não dá pra ser. É muito difícil. Até hoje, se eu me relacionar com quem é índio, com certeza é muito mais fácil. Então eu, dificilmente, e aí dificilmente mesmo, me relaciono com alguém que não é índio.
P/1 – Você já teve um namoro com algum indígena?
R – Sim. Já tive. Mas eu acho que eu tenho uma opção, mesmo: eu não tenho pretensão de casar. Não tenho pretensão de ter filho. E aí, quando você diz isso pra um índio, homem, né, porque pra mulheres não. Tem mulheres que são como eu e elas entendem, mas quando é homem e você está namorando e diz: “Não tenho essa pretensão”, é difícil. Eles não aceitam. Então, você não consegue manter a relação muito tempo.
P/1 – Eu queria voltar mais um pouco, que você estava falando que lia muito, mas que você tinha sua tataravó, sua bisavó e sua vó, se elas contavam muitas histórias também.
R – Algumas. Acho que minha tataravó mais. Minha vó, não. Minha vó era bem fechadona com algumas coisas, assim. Mas histórias, propriamente, assim, do índio, não muita. Essa coisa de contação de história, mesmo, deitar do meu lado e ficar contando, acho que nenhuma delas. Agora, casos, acontecimentos e tal, minha tataravó falava um pouco mais.
P/2 – Você lembra de alguma que ela te contava?
R – Estou tentando puxar aqui pela memória se tem alguma mais específico, assim. Eu acho que o mais específico, assim, era de fato do sofrimento da minha família em Pernambuco, da vida difícil que se levava, mas de contação de história, não.
P/2 – E a sua irmã, como é que era a sua relação com ela?
R – Essa é uma coisa muito louca, assim.
P/2 – Porque ela viveu com vocês na casa. Vocês iam na mesma escola?
R – Tudo, mas desde muito pequena a gente sempre teve uma relação muito distante, mesmo. Eu não consigo explicar, emocionalmente falando, muito diferentes. E depois de um pouco mais velha, a gente até tentou corrigir algumas coisas dessa relação que a gente tinha e nunca deu certo. Porque depois de mais velha, a gente, na verdade, quando tentou fazer isso, a gente mais brigava do que se entendia. E quando criança eu tinha um ritmo muito distinto da minha irmã. Minha irmã sempre ficava muito no canto dela, só com as coisas dela e eu bagunçava a casa inteira, então com qualquer criança que eu encontrasse do outro lado da rua, eu já estava lá fazendo bagunça. Eu voltava toda machucada, não tinha uma vez que eu não saísse pra rua que eu não ia voltar machucada, porque eu aprontava de tudo que vocês puderem imaginar. Minha irmã não era essa pessoa. Minha irmã era mais quieta, mesmo. Mais quietinha, na dela e tal. Ela nunca foi a criança, acho nem de se envolver com o vínculo, mesmo, com as pessoas, assim: com a minha vó, com o meu pai, com a minha tataravó. Essa coisa de eu sentar com a minha tataravó, olho a olho, na mesa, ficar lá ajudando a comer a bolachinha dela, amassar a banana dela e tal, minha irmã não fazia. Ela não se envolvia, mesmo, emocionalmente. Depois de grande que eu acho que essas diferenças ficaram muito marcantes e muito do meu processo, na verdade, a minha irmã não apoiava. Era o contrário, assim. Ela ia muito na cabeça do meu pai. Meu pai falava: “Não vai fazer”. E também brigava muito com ele. Gênios muito parecidos, mas muito distintos também. E aí ela acabava sempre sendo muito mais cúmplice com ele do que com a irmã, no caso, comigo e aí a gente não dava liga, mesmo. Tanto é que é uma figura, quando eu falo, passa muito distante da minha vida emocional, mesmo, assim. Talvez possa ter ressentimentos? Sim. Porque acho que a gente espera de uma irmã é que ela apoie, que a gente possa ser unida, que a gente possa construir coisas juntas na vida e tal, mas não. Eu acho que isso reproduz, talvez, todo o processo familiar, mesmo, dessa família pequena. Eu não tenho essa experiência de ter uma família, mesmo, unida, ali, entendestes? Nunca tive, assim.
P/2 – Ela foi procurar sua mãe também, quando você foi?
R – Não. E essa foi, acho, que a maior surpresa, assim. Porque quem passou muito tempo dizendo que queria procurar a minha mãe foi ela. E eu nunca dizia nada a esse respeito. Eu não falava pra ninguém que eu queria procurar a minha mãe. Então, todo mundo também achava, inclusive meu pai, que eu não estava nem aí pra isso, simplesmente não queria, porque ele achava que eu não queria, porque eu não dizia que queria. E, quando eu fui procurar a minha mãe, eu descobri pela minha própria mãe, que a minha irmã nunca tinha ido atrás dela. Porque eu também não tenho relação com a minha irmã, há muitos anos. E a minha mãe falou pra mim: “Eu achava que era a Aline” – Aline é minha irmã mais velha – “que ia vir me procurar”. E eu acho que tinha, talvez do meu pai e talvez da minha mãe, de ambos, um afeto, uma afeição mais de vínculo com a minha irmã. Eu acho que é porque é a primeira filha. Tanto é que a minha mãe fala muito mais, pergunta muito mais, sempre, da minha irmã, do que ela perguntou pra mim. Então, toda vez que eu tinha que falar qualquer coisa na conversa lá com a minha mãe, sempre aparecia o nome da minha irmã. E aí eu dizia: ‘Não tenho mais relação com ela. Se a senhora quiser, a senhora vai ter que ir atrás dela, porque eu não tenho mais”. E teve uma certa insistência, mesmo, dela. E acho que o vínculo também que a minha irmã tem com meu pai, eu acho que é porque ela era a primeira, mesmo. E é isso. O que pode ser feito? Nada.
P/1 – Pagu, deixa eu te perguntar uma coisa que eu tenho perguntado: que memória que você tem do elemento do fogo na sua vida?
R – O fogo, quando você sabe usá-lo, te dá muita força. Só que você, primeiro, só descobre a força que ele pode te dar, quando você se queima com ele. Tem algumas coisas que a gente aprende a fazer que não é ninguém que lhe ensina, eu acho. Ninguém vivo. É a sua intuição, pra vocês entenderem, que vai lhe dizer. Então, sim, minha primeira relação com o fogo... no sentido do fogo concreto, você fala, né, foi tendo que fazer um trabalho espiritual. E aí você descobre que sim, que você pode aprender a usar o fogo, mas primeiro você precisa se queimar com ele, pra descobrir a força que ele tem. Depois que você aprende, aí é mais fácil.
P/1 – E como é que ele te ajudou no seu caminho?
R – Rapaz, eu acho que na minha força física... você está falando do fogo, fogo, né?
P/1 – É.
R – Na minha força física, mesmo. Porque é energia que você absorve. E, a hora que você absorve, vai te dar uma potencialidade muito grande, desde resistência física, até processos curativos internos e pra processos curativos também que você faz pra outras pessoas. Mas eu acho que o fogo é muito essencial, assim, mas não só, porque você precisa, na verdade, entender a força que cada elemento tem. Inclusive o vento. Isso é uma coisa que nasce com a gente, que é índio. Você descobre que está em você. Não é ninguém que lhe chega e lhe diz, você descobre que está em você. Porque quando você nasce índio, está, não tem como. Porque essa é a nossa relação fundamental com a natureza. Com tudo que a gente consegue realmente compreender dela, num processo que não é te ensinado, como você é ensinado a falar o português na escola. Eu acho que essa é a melhor forma que eu tenho pra explicar isso, porque isso foi sempre, desde sempre na minha vida: entender o tempo, entender o vento, entender a água, o fogo. É quase como se a gente tivesse uma propriedade elementar, mesmo.
P/1 – Você falou do vento e eu senti que você tem uma história forte com o vento também.
R – Também. (risos) É quem traz e quem leva o que a gente precisa. Tem coisas que você precisa que leve. Tem coisas que você precise que chegue. E você tem que saber pedir. E você tem que saber também qual é o lugar de cada coisa no mundo. Quando você sabe qual o lugar de cada coisa no mundo, você sabe o que pedir pra ele também.
P/1 – Eu estou vendo que você pediu pra abrir a sua história com os funi-o de novo.
R – Foi também.
P/1 – Como é que se encaminhou essa história? Porque hoje você mora na aldeia, né?
R – Eu fui buscando, pouco a pouco, pessoas que pudessem me dar maiores informações passadas do histórico da minha família. Pessoas que não exatamente eram da minha família. Tudo bem se eu cuspir um pouquinho?
P/1 – Claro!
R – Vou botar aqui no meio, que é mais fácil.
P/1 – Um dos propósitos da gente estar fazendo aqui essas entrevistas, também, é pra vocês, com a cultura e espiritualidade de vocês, estarem abençoando. Então, bem diferente das histórias que você passou, pra nós é uma honra você estar aqui presente e preservando os nossos costumes, realmente.
R – Muito obrigada! Que aí já vai fazendo a limpeza no lugar.
P/1 – E aí, voltando lá do vento, que te leva pra aldeia...
R – Eu fiz o seguinte: eu tentei achar essas duas primas que eu tinha, não consegui e aí eu reuni tudo que eu tinha em mãos, fui a primeira vez pra lá. Antes de ir eu peguei, em rede social mesmo, cacei lá na rede social, botei funi-o e falei: “O primeiro que aparecer, eu vou mandar mensagem, eu vou entrar em contato e vou ver o que acontece”. E já tinha ido algumas vezes pra Pernambuco, mas nunca tinha conseguido conversar, mesmo, direto, além da aldeia. Acho até que eu fiquei com um pouco de medo, só de simplesmente chegar e falar: “Então, né?” Aí eu achei o primeiro, mesmo, foi literalmente primeiro que apareceu. (risos) Eu mandei uma mensagem. Disse, expliquei: “Olha, estou há alguns anos fazendo esse processo, indo atrás, levantei tais documentos, tenho fotos da minha família, nomes, sobrenomes, datas e eu queria saber como eu faço pra chegar até vocês”. Perguntei se ele tinha conhecido meu pai. Porque eu sei que meu pai saiu de lá, sei que ele voltou algumas vezes, não sei o que ele foi fazer, não vou mentir. Algum dia talvez eu descubra. E eu quero saber como. Eu estava passando um processo espiritual, que era uma das etapas que eu precisava passar, estava com muita dificuldade de achar ajuda aqui em São Paulo, nas aldeias guaranis, mesmo, porque, como tem diferenças, o pajé muitas vezes não sabia como me auxiliar. Aí ele dizia: “Você tem que ir lá, porque senão a gente não consegue te ajudar aqui”. E eu também expliquei isso nessa liderança e falei: “Eu preciso ir praí, eu preciso saber se você pode me receber aí”. E ele falou que sim. Eu já estava juntando um dinheirinho há um tempo, pra poder fazer isso, passar alguns dias lá, com alguma tranquilidade de poder me virar, mesmo, porque eu ia sozinha, seja o que Deus quiser! Todas as vezes que eu fui, eu fui sozinha. Aí marquei com ele, mandei os nomes, mandei documentos e tal, pra ele e aí fui pra lá, aí me recebeu muito, muito, muito bem. Só que, antes de eu sair daqui, eu fui conversar com um pajé, fui pedir nele uma orientação, mesmo, sobre tudo isso. Uma orientação espiritual. Eu tinha a minha orientação espiritual, do que me diziam que eu tinha que fazer e tal, mas eu sempre acho importante, quando a gente conversa com um pajé, porque quando a gente tem que ajudar o outro, é mais fácil a gente ver o caminho pro outro, ouvir, o que o outro precisa fazer. Mas, quando é pra gente, é muito mais difícil, né, distinguir ali exatamente o que você tem que fazer naquela hora. Então, eu fui procurar orientação dele e ele disse: “Você tem que ir e, de preferência, você tem que ficar lá, porque o que vai acontecer com você no próximo período, você não vai aguentar passar aqui, porque você não vai ter quem consiga lhe ajudar”. E eu fiquei muito com isso na cabeça. Então eu fui, conheci a liderança, daí ela me apresentou outras pessoas lá que são parentes consanguíneos meus, certeza, mas não são os parentes da minha família extensa. Naquela ocasião eu até conheci um que acho que era, mesmo, um parente mais próximo, consanguíneo, porque quando ele perguntou quem era a minha família, eu disse: “São os Rodrigues e os Cordeiros. Tem Vasconcelos também, mas acho que o tronco que mais puxa, mesmo, são essas duas famílias”. Mostrei pra ele a árvore genealógica, nome de todo mundo, as fotos e aí ele falou pra mim: “Você é parente minha. Eu também sou um Rodrigues Cordeiro”. E aí sabe quando você olha assim e fala: “Nossa! Não tô viajando, não. É real isso aqui”. (risos) E aí eu fiquei lá dez dias conhecendo as pessoas, mesmo, dentro da aldeia, convivendo e vendo realmente que tudo que eu tinha aprendido na minha vida era funi-o. E aí, quando eu mostrei uma das fotos, pra essa liderança, ele olhou e falou: “Esse aqui é o cacique jovem”. E eu nem consigo lhe dizer o que aconteceu naquela hora, porque eu comecei a chorar tanto, porque você passa muito tempo com muita gente dizendo pra você que você não é o que você é. E tentando te fazer acreditar, né? Ou deixar de ser o que você é. E aí, quando ele falou: “Esse aqui é um time de futebol, né?” Eu falei: “Eu sei lá. Eu acho que é um time de futebol”. Ele falou: “É um time de futebol. O cacique jogava nesse time de futebol, quando ele ainda não era cacique”. E aí eu fiquei em choque. Ele falou: “Eu vou te levar hoje lá, pra você conhecer o cacique, mas talvez a gente não consiga conversar sobre as suas coisas, você talvez precise vir mais vezes aqui, até que a gente realmente consiga chegar em alguém mais perto. Mas eu vou lhe apresentar. Tem uma foto muito parecida com essa lá na casa dele”. E aí eu cheguei lá, já estava bem mais velho e realmente tinha uma foto do time de futebol muito parecida com aquela, porque acho que eles tiravam, né? E realmente era a pessoa, era o cacique. Pra todo mundo que eu mostro lá na aldeia, o pessoal já bate o olho e fala: “Esse aqui é tal pessoa”. O cacique faleceu no meio do ano passado, eu não tive a chance, mesmo, de conversar com ele profundamente, mas esse foi o primeiro contato e aí eu fiquei três anos indo e voltando de lá da aldeia. Deixei essa documentação na mão dessa liderança, aconteceram várias coisas nesses dias todos que eu fiquei lá e aí, antes de eu sair de lá, ele olhou pra mim na frente dos meninos lá todinhos e falou: “Você é funi-o, sim e não tem problema nenhum que você diga onde você for, que você é funi-o, porque você é”. Eu acho que, a partir dos documentos que eu dei, ele realmente já sabia, porque como é liderança, a liderança realmente conhece todas as famílias. Então eu acho que ele sabia quem eram os mais próximos meus, vivos, mesmo, lá dentro da aldeia. E aí eu fiquei indo e voltando, indo e voltando, até que realmente o que o pajé disse aqui, que eu não ia aguentar passar aqui, eu não estava mais, mesmo, aguentando, espiritualmente falando e aí eu decidi que, tanto eu tinha uma missão política de ir lá ajudar a fazer a demarcação da terra, quanto eu tinha que terminar meu processo e eu realmente não ia conseguir ajuda do pajé aqui, porque é outra etnia e eu tinha que estar lá pra isso e aí eu larguei tudo aqui e fui.
P/1 – E aí, como que foi chegar lá?
R – Muito difícil. Porque, mesmo tendo esse histórico e tal, eu ainda não consegui chegar até as minhas pessoas mais próximas, consanguíneas. E eu fui descobrindo várias coisas da minha família que estão pendentes lá e que eu acho que acabam gerando stress e problemas que eu não sei se eu dou conta de resolver ou se não querem que eu saiba e a verdade é que eu ainda fico tentando chegar na resposta pra essas coisas e eu ainda não consegui.
P/2 – Que pendências?
R – Que vão desde quando uma parte da minha família foi expulsa da aldeia, até problemas com a questão própria da terra, mesmo. De coisas que talvez fossem, pertencessem à minha família, mas eu acho que falar de pertencimento nesse sentido é muito difícil, porque quando se é índio, é o coletivo, né? Mas vamos dizer que legalmente seria dela. Informações que eu sei que tem gente lá que tem o conhecimento exatamente do que aconteceu na época lá do conflito e que foi com gente da minha família e que não me dizem. E que eu tenho os elementos, inclusive documentais, mas preciso concretamente que alguém chegue e diga. Eu acho que agora é que eu estou conseguindo chegar um pouco mais perto, com essa senhora que eu vou conhecer em junho agora, a hora que eu voltar pra lá. E aí, eu acho que a outra grande dificuldade, é de você realmente estabelecer vínculo, porque uma coisa é você gostar das pessoas e a outra é você ter vínculos com elas. E ainda mais em um momento que eu estava passando por uma preparação espiritual muito forte, que me exigia toda uma energia pra aquilo e que eu não conseguia dedicar pra construir, justamente, esses vínculos. Porque eu não conseguia, mesmo. Era muito pesado o processo de preparação e eu não conseguia. Eu acho até que, inclusive, eu às vezes brigava com algumas pessoas, de tão esgotada que eu estava. E aí eu acho que, eu, às vezes, não compreendia o que elas diziam pra mim, nem elas o que eu dizia pra elas, porque era um esgotamento tão grande e aí eu não consegui dedicar energias pra construção de vínculos mais profundos. E, ao mesmo tempo, todo mundo olhava pra mim e dizia assim: “Não sei quem meu conhece essas pessoas, mesmo. Tal pessoa conhece, mesmo. Eu fui lá olhar, é da época do conflito, mesmo, aqui”. Aí, quando eu ia continuar, o assunto não continuava.
P/1 – O que é esse conflito?
R – Teve, lá em 1903, mais ou menos, 1900 e pouco, até mais ou menos 1950, um conflito grande ali naquela região, com outra etnia indígena, com posseiros, mas também entre índios, dentro da mesma etnia. Esses conflitos todos geraram divisões históricas dentro do povo que não se corrigem do dia pra noite. E às vezes, talvez, seja muito doloroso falar deles. Porque gerou processo de expulsão, inclusive, de algumas famílias e uma dessas famílias é a minha. Não quer dizer que quem foi expulso estava errado, percebe? Então, quando você chega, talvez com uma herança consanguínea direta desse processo, não exatamente você vá ser bem visto. Eu não fui pra cobrar nenhum tipo de dívida. Mas eu fui atrás de quem eu sou. Em uma condição que eu não tenho relação, mais, com meu pai. Então, não é simples. Não é nada simples. Você, mesmo mostrando que você fala a língua, que você pertence àquilo, você construir os vínculos necessários com as pessoas. Então, um caminho extremamente solitário esse que eu estou fazendo. E eu estou cansada, porque eu só quero poder ser o que eu sou. Não é nada além disso, gente, no mundo. Acho que as pessoas têm que ter o direito, nesse mundo, de ser o que elas são. Independente se índio, se branco, se japonês. Sem ter que ficar brigando uma vida todinha pra isso. Mas por que a gente tem que ficar brigando pra gente ser o que a gente é? Porque o mundo diz o tempo todo que a gente não tem que ser índio. Eu podia ter feito a escolha mais fácil, que foi a que meu pai e minha mãe talvez fez e dizer: “À toa, deixa isso tudo pra trás”. Só que quando se é índio, se é índio. Você não está índio pra ninguém. Você é e ponto, porque você nasce índio. Você pode até fingir que você esqueceu que você é, mas não tem como. A gente tem algo maior no que a gente acredita, que é aquilo que pertence à nossa espiritualidade e que jamais vai deixar você simplesmente esquecer o que você é, sem nenhum tipo de - não dá nem pra dizer cobrança – memória permanente, porque concretamente, quando você se relaciona com o que está pra fora, quando você é índio, nunca é igual pra quem não é índio e a gente sabe que é. Que a gente sente como a gente sente, não é igual pra quem não é índio. E, mesmo que o de fora não saiba, exatamente, isso, ele sabe que, na relação, é diferente, sim. A questão é que a gente não precisa ser desigual. A gente pode ser o que a gente é. Então, eu só estou cansada disso: passar uma vida lutando pelo meu povo, porque é o meu povo, indígena, sem condições de nem saber o que aconteceu com a minha família. E com todo mundo dizendo pra mim que o caminho mais fácil era ter abandonado isso tudo. Eu estou com 33 anos de idade, eu vivo isso desde que eu sou criança. Eu busco resposta sobre todas essas coisas. Então, algum dia tem que ter algum tipo de desfecho.
P/2 – Quando você voltou... você mora numa aldeia agora, né?
R – Eu estou morando lá na aldeia.
P/2 – Desde quando?
R – Faz dois anos, já. Já vai completar.
P/2 - ____________ [2:16:50] morar lá onde é?
R – É lá mesmo, na aldeia funi-o, em Águas Belas. A casa, lá, quase tudo, hoje, já é construção de alvenaria. Acho que a vida, de maneira geral, é difícil e é uma condição, talvez, do índio, mas é do nordeste também. É condição de seca. Eu dou aula lá numa escolinha, ganho cem reais por mês. Então, assim: se você tem despesa, por exemplo, pra comprar um gás, uma comida e tem que fazer isso tudo com cem reais, não dá. Então, não é simples, né, da perspectiva de vida material. E ainda mais agora, né, que quando entra período de seca, a água, lá, pra rua, chega todo dia. Pra aldeia, chega uma vez por semana e então prática é que você tem que estocar a água, mesmo, pra poder usar até quando ela volta a cair na torneira. Quando tem período de seca mais severa, a gente nem consegue estocar a água, porque ela não chega nem uma vez por semana. Você tem que comprar a água, se você quiser fazer qualquer coisa. Então, eu acho que o modo de vida realmente é difícil. Então, quando você tem essa relação com um parentesco mais próximo, as pessoas se revezam, se apoiam, se ajudam. Então, é mais fácil você sobreviver. Quando não existe isso, a gente acaba tendo que se virar mais por conta. E aí é muito mais difícil. E sem essas relações de vínculo, fica tudo mais complicado. E aí eu acho que, pra além disso, são várias questões políticas que perpassam, desde a demarcação da terra, até a gente poder, realmente, usufruir da água que vem das nascentes da nossa principal serra lá, que é a Serra do Comunaty, até conseguir rever esses processos históricos que nos trazem essas perspectivas subjetivas, mas que são processos que estão incluídos dentro de um cenário histórico, do que foi o genocídio da população indígena ali na região do nordeste. Porque esse conflito por terra todo ali, que se deu com meu povo, se deu também com as outras etnias, que estão ali em Pernambuco. Então, mediar essas coisas quando você está ali, no seu dia a dia, né, da vida pessoal, subjetiva e entender que não é um problema exclusivo seu, que não é uma questão só pessoal sua, mas que isso passa por um processo histórico maior, que acabou, infelizmente, afetando, no meu caso, a minha família, exige da gente também um nível de maturidade muito grande. A gente tem que ter, porque senão, a alternativa mais fácil é só ficar com raiva e falar: “Bom, então tá, realmente eu cansei disso tudo, chega, deu, não quero mais saber”. Acho que não é uma alternativa, pra mim, isso, porque eu acho que tenho uma compreensão de fato desses processos maiores, que estão pra além da Pagu indivíduo, sabe, da Pagu pessoa. Estão num plano histórico, mesmo.
P/1 – Você falou dessa coisa de processos maiores e só que, como você também é uma pessoa de bastante espiritualidade, estava contando de várias passagens difíceis, mas eu ia te perguntar qual foi o momento que você sentiu que tinha uma presença maior, que estava te ancorando?
R – A vida toda. Essa sempre foi uma questão pra mim. Eu só cheguei até aqui, viva, inclusive, porque sempre teve algo maior que me guiou, que olhou por mim e que me permitiu, sim, nunca ter desistido do que eu sou. E aí eu acho que eu tenho uma gratidão muito grande por esse maior. Porque acho que talvez de outro jeito, com essa vida material no sentido dos vivos, mesmo, né, desses anos todos que eu estou na luta, talvez eu não tivesse aguentado, se eu não tivesse um sentido maior na vida. Que eu acho que o primeiro é esse sentido espiritual, mas é o sentido também da fé que eu deposito na luta, mesmo. Eu deposito muita fé na luta e aí é a luta pelos povos indígenas, por demarcação de terra, mas é na luta em qualquer frente que seja, que eu puder me somar, porque eu sempre acreditei que a missão de um índio, no mundo, é a de transformação, é de ajudar a quem precisa. Eu sempre acreditei que é nosso dever como índio fazer parte desse processo de transformação e é por isso que eu sempre me coloquei em frente de várias lutas, inclusive e sobretudo do meu povo indígena. Mas desde mulheres, catadores, moradia, o que você imaginar, eu já abarquei.
P/1 – Esse processo dos catadores, eu acho que é importante falar.
R – Sim, porque uma das coisas é isso, assim: aqui na cidade de São Paulo eu sempre fui uma pessoa muito de ir pra esses espaços institucionais da política, pra apresentar proposta concreta, assim. Então, durante muitos anos, eu ajudava a construir projetos de lei. Então, ajudei a construir projeto de lei aqui pra mulheres, projeto de lei pra moradia. Eu ficava lá brigando. Alguém, às vezes, escutava...
P/2 – Na Câmara?
R – Na Câmara, essencialmente. Na Assembleia também, mas menos, assim, porque eu acho que, como tem essa coisa local, mesmo, uma coisa de uma necessidade mais próxima, é mais fácil dialogar na Câmara. E uma dessas foi justamente com catadores, que eu ajudei a construir uma proposta de projeto de lei, aí fiz relação com uma catadora, mais próxima, mesmo e aí o projeto ainda não foi aprovado, mas a comunidade peruana também, que é indígena, a gente tem dois projetos aqui, na cidade de São Paulo, que a gente construiu, um deles foi aprovado agora, esse ano. Mas aí, quando estava lá na aldeia, foi em novembro do ano passado, essa catadora me ligou e falou: “Como você já construiu com a gente, tem conhecimento da causa e tal, eu queria saber se você não quer vir pra São Paulo em janeiro, esse ano, né e ajudar a gente a construir um projeto aqui de capacitação para os catadores individuais. Vai acontecer, são alguns meses, termina agora o meio de maio, queria saber se você topa vir como educadora, pra fazer essa capacitação”. E eu falei: “Com certeza”. Aí organizei, fechei lá a minha casinha em dezembro, está tudo lá, naquele poeirão e vim pra cá dia oito de janeiro e estou aqui até agora, tocando esse projeto, em maio termina, aí eu volto pra aldeia. Estou com perspectiva de, em julho, estar aqui de volta, porque aí eu quero pegar o que tiver de trabalho pra fazer, pra ir me virando aqui em São Paulo, até eu conseguir, no final do ano, prestar vestibular de novo, que eu quero agora estudar Direito, pra ver se eu consigo ampliar um pouco o meu conhecimento e ajudar mais na construção aí na luta por demarcação de terras porque, de fato, exige muito conhecimento jurídico e muitas vezes é melhor que a gente, que é índio, esteja lá na frente, defendendo esses casos e fazendo essa relação com o Judiciário, do que quem não é índio. Embora eu entenda, sim e respeite, mesmo, todo o apoio que vários advogados dão nessa causa, mas eu acho que a gente tem que assumir também a frente desses processos. Eu quero ver se eu volto e faço vestibular pra Direito e aí vou permanecer meio nesse lá e cá, indo e voltando, indo e voltando da aldeia, porque minha coisas, concretamente, meu endereço fixo, concretamente, está lá, mesmo que eu venha prestar vestibular, eu não tenho condições de simplesmente voltar tudo pra cá, mudar tudo pra cá, então eu acho que vai ficar um pouco assim.
P/1 – E como foi pra você contar a sua história aqui, hoje, um pouco dela?
R – Eu não vou mentir: um pouco difícil, assim, porque eu muito pouco falo desses processos. É muito comum que as pessoas só me vejam mesmo no espaço da luta e tal, da atuação. Dividir minhas coisas pessoais é uma coisa que eu faço muito pouco, talvez por falta de oportunidade, mas muitas vezes porque eu realmente acho que as pessoas não vão ter escuta pra o que eu tenho pra dizer da minha vida nesse sentido. Então, eu acabo também não falando muito, assim. E porque traz dores, assim, né, pensar esses processos todos, porque concretamente eu, assim, emocionalmente, estou muito desgastada disso tudo nesses últimos anos e aí eu acho que uma forma também de eu fugir desse desgaste é, muitas vezes, não falar, assim. Então foi difícil, mas acho que foi muito importante ver que tem um espaço em tudo que eu faço pra conhecer pessoas que escutem com esse cuidado maior, porque eu também já fui muito julgada, nesse processo todo, assim. Julgada das piores formas, né? Por pessoas que não conhecem a minha trajetória. E dói, dói muito você ser julgado depois de tantos anos de luta. Eu sei quantas vezes eu abri mão de estar descansando pra estar em qualquer lugar fazendo luta. Eu sei quantas vezes eu não consegui ter comida pra botar na mesa, mas estava lá fazendo luta. E é verdade: eu, muitas vezes, não tive comida pra botar na minha mesa, eu não tinha pra quem pedir. (choro) E você ouvir julgamentos, coisas que as pessoas falam ao seu respeito sem conhecer a sua tradição, a sua luta, a sua história familiar, não é simples. Só que a gente também tem que ter a generosidade de entender porque elas fazem isso. Porque eu também, muitas vezes, não disse o que foi a minha vida até aqui. Então, é importante, sim, poder estar falando um pouco disso tudo aqui.
P/1 – Queria perguntar que a gente está nesse espaço de escuta, com os indígenas, pra entender, que a gente, aqui, trabalha com memória há muitos, queria saber como você, como indígena e funi-o, entende o que é a memória e como, pra você, deve ser feita essa preservação de memória?
R – Eu acho memória uma coisa fundamental. Até porque eu acho que, como eu passei muito tempo atrás de respostas, elas exigiam justamente que eu tivesse um mínimo de registro das coisas. Então, memória é fundamental, ainda mais pra gente, que vem de uma tradição de oralidade, que a gente sabe que, quando um mais velho morre, muita coisa se perde junto com a morte do mais velho, né? Porque não tem um registro mais cuidadoso, assim e acho até que uma das coisas que eu sempre conversei muito lá com meu povo, era a necessidade da gente conseguir registrar mais as coisas que a gente faz, que a gente sabe, porque em algum momento isso vai ser necessário pra os mais jovens, pra quem vem depois da gente, né? Então, eu acho, sempre achei, memória uma coisa fundamental e acho que é quando a gente tem a memória, seja ela escrita, a que a gente carrega aqui dentro, a da oralidade, qualquer tipo de memória, permite não só a gente trazer essa luz pra o que passou, mas a permanência daquilo que é importante e o conhecimento também daquilo que não pode mais acontecer. Então, ter memória sobre o povo indígena, entender um pouco de qual é a nossa dor, todo esse processo histórico, né, seja de um ponto de partida a Pagu como pessoa ou o Ailton Krenak, que é uma grande liderança, ou Valdelice Veron, que realmente são pessoas que estão ali num registro da história mais central, é poder também fazer ouvir pra outras pessoas que não dá mais pra gente, enquanto indígena, viver da forma que a gente está vivendo: sem garantia de poder ser o que a gente é e que essas coisas que aconteceram durante séculos não podem continuar se repetindo. Então, nem que seja um pouquinho, né, da minha trajetória, se ela puder contribuir um pouquinho com essa memória toda lá dessas grandes lideranças aí na luta, eu acho que a gente já está cumprindo um pouco o papel da importância que essa memória tem.
P/1 – Gratidão.
P/2 – Obrigada!
R – Obrigada, gente! Gratidão.
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