Projeto: Vidas em Costura - Moda, Legado e Empreendedorismo
Entrevista de Beatriz Morales Barroso
Entrevistada por Luiza Gallo e Grazielle Pellicel
São Paulo, 4 de junho de 2023
Código da entrevista: VDC_HV012
Transcrita por Selma Paiva
Revisada por Grazielle Pellicel
(00:30) P1 – Bia, primeiro eu quero te agradecer demais por estar aqui com a gente, por nos receber na sua casa e por ‘topar’ dividir um pouco da sua história. Pra gente começar, eu queria que você se apresentasse, dizendo seu nome completo, a data e o local do seu nascimento.
R1 – Tá. Eu também agradeço a todos vocês por estarem aqui, por querer compartilhar minha vida, mas eu vou falar, talvez, um pouquinho de ‘portunhol’. (risos) Então, eu sou Beatriz Morales Barroso, eu nasci na cidade - estado, como fala aqui - [de] Oruro, na Bolívia, no país Bolívia e eu sou imigrante, já aqui, moro [há] quase trinta anos. Eu vim pra cá no fim do ano [de] 1993, então pra cá já passou rápido o tempo. Eu tenho quatro irmãos, dois homens, duas mulheres, mas três já são falecidos, só as duas mulheres que ficamos: minha irmã, que está lá, ela é advogada lá na Bolívia, em Oruro, ainda mora lá. Eu tenho só ela mais perto [de] família, tenho sobrinhos, tudo isso. E a família de meu esposo, meu marido, que é Daniel, tem mais irmãos lá, eles também são, assim, só homens. Minha sogra, o padrasto dele também, sogro, moram lá, então está tudo, quase, lá. Está muito bom. E é isso a parte da minha família. Então, posso continuar?
(02:25) P1 – Vou te fazer uma pergunta: te contaram como foi o dia do seu nascimento? Você sabe?
R1 - Minha mãe me contou, quando já tinha um pouquinho de razão, conhecimento, que nasci em casa, com uma parteira e a parteira era minha própria avó, porque ela também era parteira, mesmo, do lugar, tudo isso. Ela trabalhava com isso. Então, eu nasci meio-dia e quinze no dia, em casa. E foi, assim, no bairro que a gente...
Continuar leituraProjeto: Vidas em Costura - Moda, Legado e Empreendedorismo
Entrevista de Beatriz Morales Barroso
Entrevistada por Luiza Gallo e Grazielle Pellicel
São Paulo, 4 de junho de 2023
Código da entrevista: VDC_HV012
Transcrita por Selma Paiva
Revisada por Grazielle Pellicel
(00:30) P1 – Bia, primeiro eu quero te agradecer demais por estar aqui com a gente, por nos receber na sua casa e por ‘topar’ dividir um pouco da sua história. Pra gente começar, eu queria que você se apresentasse, dizendo seu nome completo, a data e o local do seu nascimento.
R1 – Tá. Eu também agradeço a todos vocês por estarem aqui, por querer compartilhar minha vida, mas eu vou falar, talvez, um pouquinho de ‘portunhol’. (risos) Então, eu sou Beatriz Morales Barroso, eu nasci na cidade - estado, como fala aqui - [de] Oruro, na Bolívia, no país Bolívia e eu sou imigrante, já aqui, moro [há] quase trinta anos. Eu vim pra cá no fim do ano [de] 1993, então pra cá já passou rápido o tempo. Eu tenho quatro irmãos, dois homens, duas mulheres, mas três já são falecidos, só as duas mulheres que ficamos: minha irmã, que está lá, ela é advogada lá na Bolívia, em Oruro, ainda mora lá. Eu tenho só ela mais perto [de] família, tenho sobrinhos, tudo isso. E a família de meu esposo, meu marido, que é Daniel, tem mais irmãos lá, eles também são, assim, só homens. Minha sogra, o padrasto dele também, sogro, moram lá, então está tudo, quase, lá. Está muito bom. E é isso a parte da minha família. Então, posso continuar?
(02:25) P1 – Vou te fazer uma pergunta: te contaram como foi o dia do seu nascimento? Você sabe?
R1 - Minha mãe me contou, quando já tinha um pouquinho de razão, conhecimento, que nasci em casa, com uma parteira e a parteira era minha própria avó, porque ela também era parteira, mesmo, do lugar, tudo isso. Ela trabalhava com isso. Então, eu nasci meio-dia e quinze no dia, em casa. E foi, assim, no bairro que a gente morava, foi no bairro da… a rua é (Iguimane?), na zona norte também de lá da cidade de Oruro, do estado e eu nasci lá, cresci lá até [os] nove anos. Eu fui adotada pela minha avó materna e meu padrasto-avô, que era o segundo marido da minha avó. Então, foram eles que me criaram, me adotaram. Minha mãe sempre estava viajando, ela era comerciante, vendia sultana, que chama lá as cascas do café, e lá era como um chá. Então era a distribuidora de lá. Ela vendia nos povos, ela viajava muito nos povos. Então, eu quase morei sempre com meus avós. Minha avó materna era de Potosí, de outro estado. Meu avô paterno, padrasto, era de Cochabamba, um povo que era indígena também, eram de fazenda e era desse princípio, meu avô. Então, minha avó materna falava os dois, aymara e quéchua. Eram indígenas. E meu avô paterno falava mais quéchua, porque era de Cochabamba, mais no centro, no vale, [como] chamam aqui, então eles falavam mais quéchua. Em Potosí também [se] fala quéchua, só que também era aymara quando moravam em La Paz, então eram os dois [idiomas] que minha avó falava. Quando eu ia lá em La Paz, ou algum lugar que se encontrava com alguém que falava aymara, ela então falava. Mas quéchua, eu ouvi meus avós falarem de criança, eu cresci escutando-os, mais quéchua. Por quê? Porque ele era de Cochabamba, então falava mais assim. Eles nunca estudaram, nunca foram na escola, então era tudo quéchua as falas deles. E alguma coisinha eles aprenderam, pra ‘se virar’ na capital, ou no estado. Então começaram a falar isso e aí eu cresci e aprendi quéchua, ficou comigo, só que aqui eu não pratiquei muito. Eu comecei, já, alguns anos, aqui, a praticar, porque também, por causa dos meus artesanatos e tudo isso mais, eu divulgo também, um pouquinho. Então, foi assim: minha avó materna trabalhava assim, com parto, fazia seu dinheirinho, ela ganhava e também era vidente, ela via coca, lia coca, porque os indígenas... as folhas de coca... e também os naipes, aquele baralho que falam aqui, ela fazia. Também tinha um negócio assim, que acho que era de platina, um pratinho que derretia, então ela falava: “Você coloca um pedaço no fogo, a lenha”. A pessoa que tinha que ver. Então, colocava e fazia uma deformação, saía essas coisas e falava o que ia passar com a pessoa, todas essas coisas. Era mais ou menos assim. No café também, ela lia. No cigarro também. Era tudo assim. E ela preparava as coas, as mesas que falam ali, no ritual, pra ritual, porque cada mês, os doze meses do ano, cada primeiro de cada mês eles preparavam a coa. Quem sabe eu mando umas fotos, depois? Aí ela fazia isso, trabalhava isso, porque as pessoas a chamavam, era esperta nisso, então ela preparava, fazia oferendas pra Pacha Mama, pra Mama Killa. Mama Killa é a deusa, a lua, né? O Tata Inti é o Padre Sol. Então, tudo em quéchua. E Pacha Mama é a Mãe Terra, a Madre Tierra. Então, eu cresci com ela e ela falava assim: “Me traz aquilo, me passa”, então comprava tudo que ela... e ela também aguava. Aguar, em quéchua, é tecer, ela fazia colchas, artesanato com lã, então ela fazia, assim, à mão. Ela construía seus próprios instrumentos pra fazer. Ela fazia dos ossos. E pra cortar a lã ela cortava com aquela lata da sardinha, fazia um negócio assim, era tudo assim, artesanal. Então, fazia com isso, seus instrumentos artesanais. Então, a lã também, a gente, eu me lembro com ela, o processo que fazia era com as folhas coloridas, ela fazia ferver e, então, com essa água, ela tingia as cores, fazia. Então, eu cresci assim, vendo-a mais forte pra mim. Minha mãe era comerciante, então quase não via, só uma vez por mês ela chegava, ficava um pouco e depois ela ia e também tinha já outro parceiro, ela mais morava em La Paz e ela também falava quéchua e aymara. Então, foi assim minha vida e quando tinha já meus nove a dez anos, ela morreu. Por quê? Porque o marido dela, o meu avô... o parceiro dela era assim: que ele foi na Guerra do Chaco, porque naquela época, em 1900... acho que era 35, alguma coisa assim, ele foi por três anos, ele ficou preso, então o amigo da minha avó falou pra minha avó que ele morreu na guerra, então ela colocou aquele luto, aquela roupa preta, fazia missa, todas aquelas coisas pensando que ele morreu, mas ela já tinha outro parceiro, já estava grávida da minha tia-avó. Então aí, que aconteceu? Apareceu, depois de três anos, o meu avô (risos) e, claro, era a casa dele também, que construíram, aí chegou e viu que estava com outro parceiro e ele, como veio da guerra, estava com outra ‘cabeça’, violento, tudo isso, e o tirou, jogou fora. E a vida dela também foi difícil. Então, ele batia, era muito violento, com aquela coisa na cabeça, da guerra, tudo isso ela conviveu. Então, com tanta pancada que tinha, aquela época que ela morreu, tinha tumor na cabeça da minha avó e ela gritava, chorava. Aquela época, meu avô não tinha aquela condição pros bons médicos, só eram aquelas ervas, ela mesma fazia seus tratamentos, ela também curava, era vidente também e curava as pessoas, mas não tinha pra ela curar alguém. Então foi isso. E pra mim foi traumático, porque muito pequena eu fiquei e meu avô também trabalhava, ele também foi na guerra, ele também contava algumas coisas que ele passou, o meu padrasto-avô contava que também sofreu muito na guerra, ele só falava disso, às vezes era transtornado, aí fiquei com ele. E ele me levava no trabalho, eu ficava com ele, às vezes não tinha quem fizesse uma comidinha pra mim e ele cozinhava, às vezes, quando ele podia. Estava mais abandonada, vamos falar. Eu ficava em casa sozinha, saía na rua pra brincar com as crianças e com Daniel também, de criança, a gente brincava, tudo isso. Então, como não tinha uma mãe materna, quem cuidasse, eu ficava na rua até noite, eu dormia na rua e alguém, a vizinha me levava pra casa, pra dormir na casa dela, porque às vezes meu avô ia passear, sei lá, ia beber, alguma coisa, com os amigos, então eu estava abandonada. Às vezes ele também esquecia. Então, eu cresci assim, nessa coisa. Aí depois alguém avisou pros meus irmãos mais velhos, que eles moravam em La Paz, estavam trabalhando lá, tinham família, tudo, então alguém falou que eu estava abandonada, que era mulher, alguma coisa ia passar e não sei o que. E também nos estudos, eu não rendia. Por quê? Porque antigamente era com tinta, tinha que fazer, com pluma e tinta, a gente tinha que escrever, na escola, e pra mim era difícil. Às vezes eu estava fazendo e ficava manchada a folha, então tinha que de novo fazer e aí deixava, eu não fazia, então eu perdi também as aulas e era assim, tudo meio turvada minha vida de criança. Então, meus irmãos me levaram pra lá, pra La Paz. Eu morei com meu irmão do meio e aí já era outra coisa, porque meu avô paterno, que era meu pai, que me adotou, me dava, talvez, aquele carinho que era natural: “O que você quer?”, me levava pra passear, tirar na praça as fotos, aquelas fotos antigas, que metia a mão. Era diferente. Então, sempre era assim: me levava no parque, às vezes no ombro, era bem carinhoso. Então, eu perdi isso, porque pra mim foi traumático quando eu fui lá no meu irmão, ele não tinha isso, porque eles me falaram assim: “Aqui não tem pai, não tem isso, você tem que fazer as coisas pra comer, isso e aquilo, e pronto, acabou” e eu chorava. Às vezes não tinha o que comer, eles não me davam... minha cunhada era um pouquinho… que não gostava, não sei, de mim, talvez, eles se esqueciam, incluso, da comida. Eu chorava de fome. Às vezes eu catava pedacinhos duros, de pãozinho duro e comia escondida, dormindo assim, de fome. Então era assim: eu cuidava das crianças, dos meus sobrinhos. Não tinha água na época, tínhamos que comprar água em La Paz, era muito assim, também em Oruro foi assim. Aquela época era muito difícil. Às vezes na Cochabamba também. Ainda tem que comprar nos lugares longe. Então, como eu era os mandados de tudo, eu ia, pra comprar. Tinha que sair cinco horas da manhã pra fazer fila, porque eram todas as crianças, a maioria eram as crianças. Aí um pouquinho, brincávamos. Era assim. Então, esse que a gente comprava água era pra fazer a comida, pra coisa e a gente tinha umas bacias assim, bem grandonas, eram de ferro, pesadas, aí a gente recebia da chuva, tudo que chegava da chuva era aí, então essa era pra lavar a roupa, pra fazer as coisas diferentes. Então, era pra nós, água, como se fosse ouro, então era valioso. E a gente não tinha banheiro, tínhamos que pagar, ir pra outro lugar, porque a água comprava, pra banheiro, então temos que pagar. Era assim, muito precárias as coisas na minha época e a gente tinha que lavar a roupa grande, os cobertores, tudo isso, tínhamos que ir no rio. Então, pra mim era felicidade, porque aí aproveitava de brincar, tudo, a gente ia, porque lá tem uns rios grandes também, então a gente ia lá. Os rios grandes, tudo, a gente ia lá, então pra mim era muito bom ficar lá e a gente jogava bolinha e essas coisas de criança, então eu cresci assim. Claro que lá meu irmão falou assim: “Você, agora, tem que estudar. Aqui, se você me traz as notas boas, tudo bem, senão você apanha” e eu apanhava bastante, aí eu fui lá. É que, na verdade, meus pais adotivos, como nunca estudaram, eles não tinham noção de como era o estudo. Eles falavam que eu estava pequena, ainda, mas eu estava grande, os colegas já estavam indo na escola e já sabiam, então de repente eles me colocam quando eu tinha oito anos, eu entrei. De repente, pra mim, foi traumático e eu era a mais grandona e não sabia de nada e os meninos já sabiam, então era tudo chacota, eles faziam _____. E antigamente os professores dividiam: esse lado era quem sabe melhor, no meio era quem mais ou menos e esse lado eram os três, eu me lembro, os mais ‘burrinhos’ e eu estava lá. Então, era assim: a professora nos levava pra frente, pra ficar com ‘orelhas de burro’, assim, expostos, lá e os meninos chacota, tudo isso. Então, era uma humilhação pra nós e eu chorava, eu não gostava de estudar, porque eu não sabia e não havia quem orientasse pra mim, não era porque eu... então, foi muito difícil pra mim e aí, depois disso, meu irmão falou: “Aqui você tem que estudar, ali você fazia tudo que você bem entendia, agora não”. Então, apanhava. E aí, na ‘marra’, eu fui estudando e depois já tirei boas notas. E, antigamente, era pelos sobrenomes que eles... porque era muito assim, marginalizados pelos apellidos. A gente fala apellido, o sobrenome. Então, éramos assim: eles escolhiam, você Morales, isso e isso, todo mundo na escola era pelos sobrenomes que chamavam. Então, também, se você se destacava: “Morales, você vai fazer poesia, dançar, ______, não sei o quê”. Era por nota, porque boas notas. Era isso, senão não dava. Então, ele me colocou, estava na escola de freiras, foi alegria, então era bem... tinha que aprender a rezar, era tudo bem certinho. Bom, foi assim. Eu cresci lá mais ou menos, mas aí eu estava com meu irmão, quando eles brigavam com minha cunhada, tudo isso, às vezes alguma coisa, às vezes o sapato não aguentava, acho que eles deviam ter comprado muito barato, sei lá, às vezes rasgava rápido e eles brigavam, então falava: “Você vai agora morar com sua tia”. Então, sempre estava em um lugar, em outro. Eu não entendia, ele só falava assim: “Pega suas coisas e vamos”. E já estava em outro lugar. Aí ficava um mês, dois meses, de novo voltava e vai. Era assim, sabe? Aquela migratória (risos) de sempre. Então, eu ajudava, me acostumei a ajudar, porque como eles me estão dando um prato de comida, eu tinha que fazer todas as coisas que eles mandavam. Então, era assim, conturbado e eu crescendo. Então, morava minha mãe lá, com meu padrasto, em La Paz, eu ia visitar de vez em quando. Às vezes ficava dormindo, alguma coisa.
(24:12) P1 – Bia, você tem alguma recordação de algum momento com a sua mãe?
R1 - Muito pouco. No final, antes de morrer, porque eu cuidei dela. (risos) Foi assim. (choro) Perdão. Bom, eu ia visitar a minha mãe, (choro) mas meu padrasto quis me abusar. Essa parte é ruim. Mas só tentou. Aí eu gritei e os vizinhos escutaram, aí meu padrasto se assustou, porque minha mãe foi pra comprar, porque eu fiquei esse dia com eles, eu fui visitar e às vezes eu ficava, pra dormir, então aí os vizinhos falaram: “Como?”. E gritaram e tudo, a polícia, tudo isso, mas minha mãe voltou com ele, defendeu mais o marido. Então ela sabia. (choro) Depois sempre foi assim, sabe, conturbada a minha vida. Aí eu estudei mais ou menos até a oitava série, lá, depois, eu já estava quase pré-adolescente, eu chorava de meu pai adotivo, [meu avô], porque estava acostumada, ele sempre me cuidou bem, tudo, eu tinha boas recordações dele, então eu queria ficar com ele. Eu ia nas férias da escola visitar, no Oruro, e eu queria ficar. Aí quando eu já fui crescendo, eu não quis mais voltar pra La Paz, eu falei: “Eu vou cuidar de meu pai, porque ele me criou, então eu vou cuidar. (choro) Eu vou ficar aqui”. Eu não quis voltar mais lá. E meus irmãos falaram: “Não, você tem que ir lá”, “Não quero mais”. (choro) E eu fiquei com ele, eu cuidei dele e ele me falou assim: “Filha, eu tenho dinheiro, está no banco, pra você, quando um dia você se casar, tem bastante dinheiro lá. Eu estou deixando mais de vinte mil e se você quer estudar, vai estudar. Eu não quero que ninguém humilhe você”. Tudo bem. O que aconteceu? Aí ele, como já estava mais doente, falou assim: “Por que a gente não chama sua mãe? Aí ela vai cozinhar. Eu vou propor, condicionar pra ela que, como você ainda é menor” - não tem aquela condição pra eu receber o patrimônio todo dele, a herança, tudo isso – “então eu vou deixar nas mãos da sua mãe e sua mãe vai entregar pra você”. Tudo bem. Como eu morava com meu padrasto, tudo isso, ele propôs, fez a proposta pra ir no Oruro e ele falou, como tinha a casa grande e tudo, então, espaço e ele alugava também alguns quartos pra outras pessoas, então ele falou: “Você vem pra cá, ao lado de sua filha”, “Mas eu tenho meu marido”, “Então vem com seu marido, eu vou dar quarto pra vocês, não vão pagar aluguel, tudo, você vai cozinhar pra mim, pra sua filha, sua filha vai estudar, tudo bem? Agora, se você quer trazer outro filho, filha também, tudo bem”. Aí minha irmã também veio. Então, tudo certo. Aí eles ficaram assim: “Está bom”, “Quanto você quer? Eu vou pagar, se você quiser, pra você vir pra cá”, “Está bom”. Então, meu padrasto combinou: “Está bom, eu venho pra cá”. E aí, na casa, deram um quarto grande, tinha espaço, então minha mãe já cozinhava algumas vezes, assim e tudo. Aí já começamos a conviver um pouquinho. Eu estudava todo dia, nas freiras, na Jesus Maria de Alegria, sempre. Então, meus irmãos me colocaram lá, justamente pra não ter tempo de nada. Eles falaram depois pra mim, pra não paquerar, (risos) sei lá, essas coisas. Então, eu não tinha tempo. Era tudo assim: estudo, estudo, chegava em casa pra comer, mas ainda estava estudando, porque eram várias: Relações Humanas, Psicologia, Religião, Física, Química, Matemática, (risos) Inglês já estavam muito avançados, porque não tinha, como agora, indígena, quéchua, isso não. Só em casa, algumas. E éramos, assim, escolhidas pelas pessoas, porque era muito preconceito pra indígena, porque eles eram bem marginalizados antigamente, aquelas mais de pollera, de saia. Então, eles, pelo sobrenome, também eram marginalizados, muita xenofobia, toda aquela coisa. Então, sempre era assim. Às vezes... minha irmã, por exemplo, pra entrar na faculdade, mentiu que a mãe era uma professora. Mentiu pra entrar. Então, pra que as meninas também a aceitem, porque senão elas faziam assim. Então, era assim: vivíamos de hipocrisia, mentira, por causa de tudo isso, porque filhas de mães de pollera, [não queriam] nem saber. Então, as professoras também faziam isso, aquela coisa também seguia isso. Na época era muito difícil. E também a política estava difícil, era mais militar, então sempre tinha aquelas brigas na política com militar, com obreiros de ‘mineria’, dos minérios, porque lá tem bastante minério. No Potosí tinha bastante ouro, os espanhóis vieram pra lá, pegaram quase tudo. Ainda tem sobra, prata, estanho, até agora tem ainda, então sempre vieram pra explorar a gente e aí foi misturando-se e nós também. Por exemplo: o meu, filha adotiva, é Morales Barroso. Barroso é da minha avó materna e Morales adotivo, mas o original meu é Beatriz Valverde Luna Piçazo. Então, Piçazo é de Espanha. Valverde também é da Espanha. Então, foi porque antigamente abusavam também dos indígenas, exploravam, traziam pra ‘mineria’, pra eles trabalharem, da África, eles migraram, por isso afro boliviano tem lá. Eles não aguentavam, porque no frio, trabalhar, de quente pra frio, não aguentavam, então por isso que tinha que levar pra quente, nas fazendas, pra eles trabalharem. E as indígenas da Bolívia, levavam pra Espanha, pra Europa. Era assim, sabe? Aquela coisa muito assim. Então, é isso: eu cresci em todas essas coisas, vendo aquela coisa, só violência. Às vezes meu... aí eu via a violência que estava minha mãe. Meu padrasto bebia muito. Trabalhava um mês e bebia o outro mês. Então, essa bebedeira, e batia muito na minha mãe e fazia todas essas coisas e eu assustada e adolescente, estava naquela coisa de processo de mudança, tudo. E minha mãe, quando eu era pequena, sempre falava pra ela: “Por que você não gosta de mim?”. Eu falei uma vez, em quéchua, e ela me falou assim: “Porque você é mulher”. Porque antigamente as mulheres eram mais... quando nascia mulher: “Não, como mulher?”, não queria saber. Se era homem, era comemorado. “Então, você é mulher, você vai sofrer igual eu, por isso que eu não gosto”. Então, quando isso aí [aconteceu], eu lembrei e estava nesse processo de adolescência, eu queria ser homem, cortei o cabelo, não queria ser mulher, não queria vestido, mas era forçada a ir na escola, porque elas controlavam - as freiras, na porta - tudo. Tinha o sapato bem brilhando, as unhas bem cortadinhas, bem penteada, nada solto e tinha que ir de saia. Eram todas mulheres, só mulheres. Então, era muito exigido, as freiras. Então, minha mãe, como era de pollera, nunca ia nas reuniões, porque nunca avisava, por causa que vão ver minha mãe, que é de pollera e eles não vão gostar de nós e nas notas eles vão colocar... a gente tinha medo. “Não, minha mãe mora em outro lugar” e assim íamos. As amigas também. Pra ter amigas também, tinha que ser. Então, era assim. E eu crescia, queria ser menino, eu apertava... uma vez era... claro, na época, posso falar, (risos) meus seios eram grandes, então eu tive... antigamente não tinha sutiã, eu não sabia usar, mas aí o ‘cara’ veio assim, de frente, porque também estava assim e ele pegou nos seios e falou: “Que ricas tetas tem”, (risos) mais ou menos assim. Então, eu me traumatizei. Eu corri à minha casa, chorei bastante e então veio [um] complexo pior ainda, eu comecei a enfaixar e colocava roupas, assim, folgadas, ponchos, como era frio lá. Então eu não queria saber, era pior. Então, queria ser homem. Minha irmã falou: “O que é isso? Você é mulher, como pode?”, “Não, não quero”. E também não conseguia falar ‘não quero’, porque também era respeito aos maiores, porque sempre a disciplina era assim: o meu pai, por exemplo, nos fazia sentar no meio. Era homem no meio, na direita era mulher, a mãe e na esquerda o mais velho, o filho e assim sucessivamente e a gente tinha que respeitar a hierarquia deles. Então, era assim, essas coisas...
(37:29) P1 – Você é a caçula?
R1 – Eu sou a caçula. Então, as freiras também eram assim: o homem era a cabeça, o corpo era a mãe e os membros eram os filhos. Então, tinha que ir de acordo a isso. Não podia você falar nada, mesmo que você quisesse, tinha que fazer amém. Era isso. Então, eu sempre cresci sem essas coisas e depois as freiras eram muito rígidas. Se você atrasava cinco minutos, não entrava mais. Dois minutos, não entrava mais. Mesmo chorando, não entrava. Então, aí que eu aprendi a falar, sempre tinha aquele negócio de roda de conversa, fazia isso, então era assim. Tínhamos na Química também, era tanto prática e tanto estudo assim e o caderno também bem... ele avaliava o caderno bem forradinho, certinho. Tinha que apresentar, porque era ponto também, tudo era ponto. As faltas, se você participava. Então, isso me ajudou até agora, também, mas por uma parte tudo bem, tudo certo. E as mães iam dormir, pra que seus filhos entrassem lá. Então, eu não podia perder, tinha biblioteca, tinha tudo lá, tinha piscina. Eram espanholas essas freiras, a diretora era espanhola, todas espanholas, então elas traziam de lá todas as novidades. Patins, aquela época começou, elas traziam primeiro pra dar: “Eu trouxe pras minhas filhas”, elas falavam assim, em espanhol: “Yo traigo iso a mis hijas”. As freiras, assim. Então, elas não gostavam que as meninas falassem de namorados. Alguma coisa aqui do colégio, ao redor, não pode. “Dois quarteirões pra lá, não quero saber de nada”. Então, éramos todas vigiadas. Então, era assim. E foi assim a vida de Oruro. Eu voltei com meu pai, eu não quis mais voltar em La Paz. Eu fiquei e meu pai falou assim: “Você vai estudar no Anchieta”. Anchieta era bem conhecida de Oruro, como Oruro é pequeno, então era bem conhecido esse lugar, era datilografia. Todo mundo queria entrar lá e era único e bem pago, tinha que pagar, então ele falou: “Eu vou pagar pra você estudar isso”. Então, eu entrei lá no Anchieta e depois, aí a minha irmã também, meu avô custeou, porque ele tinha bastante dinheiro. Como ele era da guerra, recebia. Também ele trabalhou no petróleo, no Yacimientos Petrolíferos Fiscales (YPF), de petróleo, então tinha bom dinheiro. O único que sustentava todo mundo. (risos) Os netos também, ele tinha: “Vô” e ele xingava, pra dar uns centavos: “Vocês são vagabundos, que não sei o que, porque vocês não trabalham, ainda eu que tenho que dar pra vocês”. Eles escutavam calados, mas depois dava, sabe? Era assim: o coração ‘falava mais alto’. Então, é isso. Assim foi indo minha vida. E também tem carnaval em Oruro e também coisas boas. Carnaval de Oruro é conhecido, agora já é um patrimônio cultural, patrimônio intangível da humanidade, então agora está mais ainda conhecido por todo mundo. Eu também participava de algumas danças também, alguma coisa, já quando fui mais velha e foi assim a minha [vida] lá no Oruro. Depois conheci meu parceiro, no Oruro...
(42:19) P1 – Antes disso, que outras tradições tinham na sua cidade?
R1 – Tradições, tem mitos que, por exemplo, eles acreditam mais antigamente, antes de Cristo, tudo isso, tinha as pragas que entraram na cidade, as quatro pragas das formigas, que chamam aqui, a víbora também, depois o sapo, que entrou também e o condor mágico. Então, foi assim que entraram na cidade e tinha a (Kiusta?), que era uma deusa, que agora ela é [a] Virgen [del Socavón], (também conhecida como Virgem da Candelária) que representa… É aquela Virgem que eu mostrei na foto. Ela que é mãe dos mineiros. Porque lá, nos mineiros é o diabo e na terra, em cima… nos fundos da ‘mineria’, eles adoram o diabo. Diablo que eles chamam. E da terra já, saindo de lá, dos fundos, eles têm fé na Igreja Católica, da Virgem, que trouxeram também os espanhóis, tudo isso. Foi essa mistura. Então, quando entram nas profundezas, pra tirar ‘mineria’, tudo, minério, eles sempre adoram o diabo. Eles fazem seu ritual, dança, cigarro, bebida, tudo, eles também bebem, tudo, pra que não tenha... porque às vezes saíam doidos de lá das profundezas, pra que nada aconteça, porque às vezes, quando não tinha essa fé deles, eles acreditavam que alguma coisa vai acontecer, então vai explodir alguma coisa, vai sair alguma coisa errada do trabalho, então nas profundezas era muito calor. Meu sogro trabalhou, alguns parentes também que eu tenho também trabalharam. Minha avó era (pallire?), aquelas mulheres dos mineiros no Potosí, no Oruro tinha ‘mineria’. São aquelas pessoas que os restos da ‘mineria’ eles escolhem, juntam e vão vendendo os restinhos. Então, ela era (pallire?), que [se] chama [assim] em quéchua. Então, era isso. E até agora também tem ainda mineiros que vivem. É uma tristeza, uma dor também. Eles sofrem muito. E a coca é o sustento deles. Minha vó... eu também colhi coca. Claro que aqui de vez em quando. Faço também homenagem a ela, ritual, essas coisas. Então, vamos indo. Aí...
(45:46) P1 – Bia, posso só te interromper?
R1 – Pode.
(45:50) P1 – Vou voltar um pouco.
R1 – Pode.
(45:54) P1 – Que recordação... tem um dia marcante, uma lembrança muito gostosa com a sua vó, que você carrega?
R1 – Sabe, quando era Natal, sempre Natal, eu gostava. Por quê? Porque os dois velhinhos eram bem... tinham uma energia, gostavam de dançar e falavam, faziam umas músicas, cantavam, minha vó, com charango. Fazia assim e eu dançava com eles. E que tenho com minha avó ele fazia buñuelos, pastéis, aqueles de massa, no fogão, porque não tinha... depois que apareceu a ______ e todas essas coisas com querosene, mas aí ela acordava quatro horas da manhã, ela preparava a massa à noite, depois pra crescer. Depois eu olhava essas coisas e pra mim era uma felicidade. Aí amanhecia, quatro horas da manhã ela já acordava e já ela fazia gostosos. E meu avô, como ele trabalhava no Yacimientos, a gente pegava a (pomperia?), [que são] as cestas básicas, que davam de tudo, só que descontavam deles e aí chegava brinquedos de outros lugares, não era de Bolívia, era de outros países, que chegavam pra eles, pra empresa. Então, ele pegava pra mim uma boneca, um negócio, então ele falava: “Papai Noel vai chegar”. Ele se chamava Manuel e era aniversário 1º de janeiro, então a festa pra ele, ele preparava, falava: “Vamos fazer uma comilona hoje”. Falava pra mulher, pra minha avó: “Minha cozinheira, você vai fazer um prato gostoso pra mim”. Então, ele fazia sempre assim, que gostava de comer, de amigos. De vez em quando, chamava alguém, amigos, pra contar da guerra e todo mundo já sabia (risos) o que vai contar, mas aí ele atendia bem: “Faz um prato gostoso, tem que atender bem os amigos, porque os amigos só vêm visitar, pelo menos ______ de nós e tem que atender”. Por isso que quando alguém ficava na noite ele tirava o melhor cobertor, o melhor tudo, os pratos também. O melhor era guardadinho, pra aquela visita, bem assim. Ele não estudou nada, mas ele tinha essa coisa. Então, ele tinha jogos pros amigos: “Agora vamos brincar de (zaiola?)”. Era um negócio assim, que ele mesmo fez, com uma tampinha, um buraquinho e uma fita assim, uma linha que ele colocava, então eles jogavam com moedas, eles contavam os passos, não sei quantos passos, mas eles tinham que acertar o buraco, aí era quem ganhava, não sei o que, eles tinham as suas coisas. Depois o sapo, era um negócio de metal, tinha bastante buraco assim, quadradinhos, bem grandona, e no meio tinha um sapo. Então, quem acertava no sapo era também uma coisa assim, comemorava e era um jogo.
(50:07) P1 – Você via tudo isso?
R1 – Então, eu cresci assim, vendo tudo isso. Então, aí, no Natal eu gostava e ele falava assim: “Filha, tem que falar pra Papai Noel o que você quer ganhar e tem que colocar tudo na janela, todas as coisas velhas que você não gosta. Aí o Papai Noel vai vir”, “E por que ele não aparece?”, eu queria vê-lo. “Não, filha, ele não aparece, porque também tem que ir pra outros lugares”. Que nada! (risos) Era ele que comprava as coisas. E era bonito vê-los, minha mãe fazendo as coisas, montando tudo e eu dormindo, porque eu sonhando no dia seguinte, desesperada, como toda criança. Na cama, ele [me] fazia acordar: “Filha, acorda, hoje é seu dia”. E na charola tinha uma bandeja, aí trazia chocolate com leite, depois tudo que fez minha vó, na cama, eles me atendiam na cama. Tinha esse privilégio ainda deles. Nossa, e depois aparecia tudo: “Aqui está a sua roupa, pode vestir, pode pegar”. Felicidade, né? Era aquela coisa. Essa é a lembrança boa que eu tenho, sempre eram assim, um bom casal, vamos dizer, porque o velhinho falava: “Minha cozinheira, você coloca aquela roupa bem bonita, vamos comer, vamos a la chicheria”. Chicheria era “beber um pouquinho e comer”, né? Então, era assim e eu os acompanhava. Depois, quando ela morreu, ele também ficou em tristeza. Já sozinho, também já aquela coisa, não foi mais aquela coisa. Então, ele também já estava mais velhinho, com aquele bastão, então eu cuidava dele, eu levava, porque já não enxergava bem, pra cobrar o dinheiro dele também e recebia bom dinheiro. Era assim, pacotes de moedas bem empacotadinhas. A empresa dava bem. Então, aí, depois ele dava discurso, eu ficava de vergonha, porque já na rua, chegando: “Vocês aqui são vagabundos, não sei o quê”. Tinha um poço na casa dele, então se tiravam, as pessoas, água pra construir as suas outras casas. Então, ele: “Eu dou água pra vocês e ainda vocês são uns malcriados, não sabem me saudar, me dar um oi, nada, vocês são assim, como pode?”. Quando estava um pouquinho bêbado: “Pai, por favor”. Pra mim era sacrilégio. Aí...
(53:24) P1 – Acho que a Grazi quer fazer uma pergunta.
(53:26) P2 – Não, queria saber: eles tinham costume de cantar, tocar?
R1 – Sim, tinha. Dançar, cantar em quéchua. Meu pai também tocava. Sempre eu cresci também assim, com música. Claro que [em] algumas comemorações eles tiravam amigos, juntavam e tocavam e aquela coisa. Então, eu sempre estava nisso. Em carnavais, por exemplo, também, ele _____, fazia a _____ da casa, aí também eles tocavam, cantavam. E aquela época estava Luzmila Carpio, as músicas dela estavam em quéchua. Ama Sua, Ama Llulla, Ama Qhella é [sobre] não ser ladrão, não ser mentiroso, dos incas. São códigos dos incas: não ser ladrão, não roubar, não matar, então, não mentir. Eram essas coisas, mas acho que mentiam mais que qualquer... todo mundo. Era isso. Então, eles cantavam de tudo. Tinha violão, charango, às vezes indígena, criollo. Música criolla é com charango e [é] do estado, da cidade. E do campo, do altiplano é música indígena. É diferente. Zampoña, percussão e sopro. Então, sempre era dança, tudo isso. Então, tinha boas coisas, mas no final eu não gostava muito, porque, também, bêbado sempre acaba, às vezes bem... às vezes não, era assim.
(55:33) P3 – Eu queria saber se a senhora lembra alguma música que a senhora possa cantar pra gente, só pra gente saber do que...
R1 – Tá bom. Esses meus avós que me adotaram juntos.
(55:59) P1 – Essas boas recordações que você tem é com seu avô-padrasto?
R1 – Isso.
(56:04) P2 – É o que estava morando com a sua mãe quando o outro voltou?
R1 – Isso. Não. Quando o verdadeiro pai-avô era violento, voltou da guerra, tudo. Depois ele morreu. Aí, quando ele morreu, ficou viúva, tudo isso, aí conheceu meu avô-padrasto, que era muito bom, acho que se deram bem os dois e ele dava uma vida boa pra minha vó, graças a Deus, e ele cuidou até o último. Ele levou, inclusive, à La Paz, pra fazer tratamento com médicos bons. Ele, eu acho que gostava muito da minha avó e era muito boa gente. Por isso que eu sou Bia Manu. Eu sou Bia, aqui, conhecida por Bia e Manu por homenagem a ele.
(57:11) P1 – De Manuel.
R1 – É.
(57:14) P1 - E o nome da sua vó?
R1 – Fortunata. Sempre, em minhas recordações, estão eles, só que não tenho fotos deles. Você viu como é! (risos) Quando eu fui querendo resgatar as fotos deles, não tinha mais.
(57:36) P1 – Está guardado aqui.
R1 – Isso, só na minha mente. Então, eles foram muito uma base principal pra mim e pro meu futuro também, porque depois começou tudo conturbado, não foi muito bom, mas é isso. Então, vamos assim, que ele estava perguntando se alguma coisa eu cantava, eu sei uma música, por isso que tudo isso que marcou na minha vida...
[Pausa]
R1 - Então, tudo que eu estou fazendo agora, estamos fazendo é lembrando os meus avós, a minha família e também o meu país. Então, eles cantavam assim, em aymara e quéchua. Então, é assim:
(58:46) a (59:15) – CANTO BOLIVIANO.
Essa música e a gente toca assim: (59:22) a (59:54) – MÚSICA BOLIVIANA TOCADA NA FLAUTA.
Mais ou menos assim, só que a gente é par. Por exemplo: eu posso dar a ele o maior e esse menor, a guia é o menor, a ira e essa é arca, então o menor que conduz, começa, tudo isso. Então, a gente é como se estivéssemos falando na música. Então, essa música que eu toquei sozinha sai mais forte assim, entre dois uma fala. É isso. (risos)
(01:00:31) P1 – Que lindo!
R1 – Esse sopro se chama zampoña no meu país e no Chile é lakita. Eu toco também com a minha diretora, que é lakita, é do Chile. É diferente. É de PVC também, mais moderno, mais diferente.
(01:00:51) P2 – Bia, uma curiosidade: como é que vocês se vestiam na Bolívia? Vocês se vestiam tipo as cholitas, ou não?
R1 – Claro! Aqui tenho bastante coisa, não sei se vocês querem que eu mostre. Ou depois, não sei.
(01:01:04) P3 – Pode ser depois.
R1 – Depois. Tem, sim, a pollera, sombreiro, a faixa na cintura das cholitas. Há cholitas indígena e da cidade, aquelas chiques também, com botas, botinas, porque os espanhóis, quando vieram já colocaram outros tecidos, mais finos. Era de ouro, porque antigamente o ouro estava... aquela época, então colocavam pérolas, com negócio tudo ouro, ouro aqui, ouro a todo lado, os dentes. Então, era assim. E os indígenas eram mais simples, pelo frio, então manta. Então, eu tenho algumas coisas que posso mostrar e também mandar fotos, talvez. Então, eram assim nossas danças, em quéchua também. Esse daqui que eu cantei, foi aymara. Em quéchua é Ama Sua, Ama Llulla, Ama Qhella de Luzmila Carpio. É bonito também. Vou lhes mandar um video _____ isso. Então, é isso e também os rituais que a gente faz, graças a minha avó, tudo que eu lembro, tudo que está aqui. Eu faço também essas terapias que me ajudam agora, eu gostaria, eu queria estudar fazendo terapias naturais, lembrando essas coisas, colocar em prática. Só que eu não tenho essa oportunidade ainda. Estou querendo pegar no virtual, pra estudar, talvez, não sei, mas eu faço massagens, coisas assim, com conhecidos, terapêuticos, alguma coisa que eu sei, as ervas que têm aqui, porque também é o selo da coca nessas coisas, eu também mastigo, tem os mineiros todo dia. Minha sogra, meu sogro até agora eles sem isso não vivem, sem coca, porque graças a isso eles estão bem conscientes, fortes, o médico falou que não estão doentes de nada, nem desvios, nada, nada, só os pezinhos que não conseguem caminhar rápido, só isso. Depois eles estão bem. O médico falou que é graças a coca, que tem muita coisa. Até agora eles fazem já medicamentos com essa coca, depois cremes, tem muita coisa. Pastilhas até, balas, tem também, pra garganta, tudo isso. Então, a coca também é outra história, muita coisa. Tem os indígenas que sempre... é um patrimônio também, deles, a coca. Depois eu posso falar também das ervas que têm ali, bastante, são naturais. Até agora, esse ano, que eu fiquei na pandemia, ainda eu vi as ervas, então eu fiz. Minha sogra estava em um lugar, eu comprava e fazia curativos pra minha sogra, cuidando dos meus sogros. Eu dou banhos de pé, como sauna, tipo sauna, com essas ervas. Eu faço, coloco muitas ervas, faço ferver, então eu coloco um negócio, uma bacia e aí uma tábua e eles têm que estar tudo peladinhos, a pessoa e coloco os pés aí. Então, tem que tampar com cobertor e não pode entrar nada, então eles têm que transpirar lá, como ali é frio, então eu já deixo... minha avó fazia isso, então eu estou fazendo isso. Então, eu deixo na cama, já, o lenço branco, que com isso tem que enrolar a pessoa, pra ela dormir, atender as clientes minhas. Então, quando já está morno, eu dou banho com essas ervas todas e faz bem, aspira, então faz bem, transpira, tudo, tira tudo isso. Então, no dia seguinte eles falam que ficam bem leves, como se tirasse alguma coisa assim. Então, é isso: eu fiz isso, minha avó fazia essas ervas, eu tenho essa lembrança boa também, que me deixou, as comidinhas dela também, tem muitas comidas. Então, só que era da cidade, do estado de Potosí, as potosínas são assim, que gostam muito ardidas e tem um negócio ardido, que é natural. Algumas pessoas fazem pratos picantes. Então, ela colocava e ainda fazia (diarruá?), aquele tempero também picante (de lo coto?), que tem lá, com aquelas ervinhas bem gostosas, aromáticas, então sempre acompanhava. Então, eu chorava, quando era pequena. Ela queria que eu comesse, era muito picante e ainda ela gostava que o prato ficasse bem limpinho, nada de sobra, nem um arroz. Então, eu lambia. (risos) Aí, se não comia, ela colocava mais ___, mais picante. Então, era também assim, (risos) tinha essas coisas. E ela gostava que eu sentasse no couro das ovelhas, que ela tirava o couro, ela tirava a lã, ela (puscava?). Tinha um negócio de (puscar?). Primeiro ela fazia o processo, cortava a lã do couro das ovelhas, tirava a lã, então ela (puscava?). Tinha que ficar assim, como esse daí, então enrolava, enrolava. Eu também sei, esse daí. Então fazia de novo, outra vez. Era assim. E eu que era a que fazia a bolona de lã. Então, era isso, assim: todo dia ela fazia, quando tinha tempo, distração, era uma terapia. E minha mãe, quando ia visitar, gostava de fazer crochê, ela fazia trabalhos de crochê pras igrejas, aquelas coisas à mão, de hilo e de lã. Nossa, era bonito! Nomes, ela colocava. Eu trouxe ainda algumas coisas que eu peguei dela. Então, era isso, essas coisas que eu olhava. E também me chamava sempre atenção, isso. Eu que tirei mais essa parte, digamos, de ser a caçula, que eu tenho esse privilégio e minha irmã gostava mais de estudar, porque morou mais com a família do pai. Como os três irmãos são de um só pai e uma só mãe e eu já sou de outro pai. Então, foi isso. E como eu fui adotada, tudo isso, a gente não tinha aquele convívio muito desde pequena. Por isso, pra mim, foi traumático ir morar com eles, tudo, aquela outra vida. Então, foi isso. E Oruro também tem muitas coisas boas, as comidas, a culinária. Agora, por exemplo, já entraram os indígenas no [governo do] estado, na cidade, então já tem a nata, o carnaval de puros indígenas, entra as lhamitas bem enfeitadas, os animais, os touros entram bem enfeitados, bem lindos, o desfile. E aí fazem sua demonstração, todo tipo de instrumento. Nossa, são pequenos os ‘caras’, mas os instrumentos são grandes. (risos) É uma coisa, assim, incrível. Eles mostram a roupa, todo ano eles bordam. Não sei se eles bordaram. Agora é valorizado, antigamente não era, era muito ‘pisoteado’. Eu me lembro quando era pequena como eles judiavam dos indígenas, o estado. Eles faziam: “Mamãe, me dá um centavinho”, “Leva isso pra mim”, carregava e não pagava. Eles davam cinco centavos. Eram bem humilhados, sabe? Então, agora, os filhos que nasceram, se levantaram, o povo se levantou, indígena se levantou agora, é outro, por isso que é essa disputa. Agora é sempre uma disputa política, então é isso. Quantas mortes! Antigamente era com os mineiros, pela ‘mineria’. Os mineiros com os militares, antes. Agora é indígena, mineiros e direita e esquerda _____, sempre aquela coisa.
(01:11:23) P1 – Bia, você ia contar pra gente sobre seu parceiro de Oruro.
R1 – Isso. Meu parceiro, eu conheci, foi... não sei se posso chegar a isso... eu estava estudando, já no segundo colegial, quase acabando, porque lá é até quarto, faltava mais dois pra eu sair, então meu irmão sempre fazia artesanato e, como morava lá em La Paz, então ele trazia mercadoria pra eu vender nas aracitas, que chamam o (calvário?) lá, no Oruro. Ele comprou um lugarzinho, então como não tinha alguém pra vender, sempre eu era pra tudo que eles precisavam. Então, eu vendia só domingo que lá tem, até agora tem. Então, tinha. Aí o que acontece é que como eu estudava nas freiras, tinha meninos que sempre paqueravam, isso e aquilo e eu não queria, minhas amigas também falavam e eu queria estudar, não queria. Como tinha aquela mente de ser menino, tudo isso, nem estava aí. Eu queria, sempre era boa pra estudar, porque não sei, me deu assim, então minha amiga, às vezes, o trabalho que fazia, falava: “Ai, eu gosto de tal, isso e aquilo, vamos fazer o trabalho”. Eu queria fazer mais o trabalho, que escutar essas coisas. Então, aí, o que acontece? As amigas acho que se ensinaram, porque como tinha, sempre tem: “Você, porque estuda nas freiras, é assim”, de outras turmas, sempre tem aquela coisa: críticas, tudo isso. “Você é monja, não sei o quê”, monja é freira e eu sempre era calada. Quando pediam pra falar, era forçada a falar, era sempre tímida. Então, eu acho que eles viam isso também. E aí eu conheci as amigas, só que ‘oi, oi’, só isso, não tínhamos fala. E um dia desses, quando eu estava subindo pra minha casa, eram do bairro, ela me fala, uma das meninas do bairro: “Morales, você não sai de casa, não vai pra nenhum lugar, por que não vai dançar, isso e aquilo ____?”, “Não, não deixam, senão me batem. Os meus irmãos vão saber e vão me bater. E também estudo todo dia, não tenho tempo”, “Você é burra, deve ser assim porque não faz isso, aquilo”, aquelas coisas das amigas. Pronto. Aí passou e um dia desses apareceu aquela menina, ela me viu, porque não sabia que eu estava vendendo lá, ninguém sabia nada: “Você está aqui? Você vende aqui?”. Era mais ou menos duas horas da tarde. Ela se chamava Blanca. Aí olha assim e falou: “Agora será que a gente pode ir dançar?”, “Não posso”, “Mas você pode deixar [as coisas em algum lugar]. Onde você deixa? Eu ajudo. Vamos dançar. Estou com meu irmão, está lá na frente”. Eu vi de longe, estava assim um rapaz. “Está meu irmão”. E minha mãe trouxe comidinha pra mim, marmita. Então, eu comi, olhava pra ela e olhava pra minha mãe. Estava assim, sabe? Também queria, também não queria. Estava nisso. Mas falou e ela fazendo assim, senha [com gestos], né? E minha mãe falou: “Parece que vai chover, vamos embora”. Talvez, não sei, adivinhou, alguma coisa. “Não, mãe, vou ficar ainda um pouquinho mais. Quem sabe eu vendo alguma coisa?”. Fiquei, ela foi embora e a amiga falou: “Vamos agora, eles vão deixar. Só vai ser até seis horas e pronto. Vamos lá, eu conheço, não sei o que, também”. Eu fui, e pra quê? Primeiro, eles me levaram a um lugar que tinha conhecido, era uma quitanda, que chama aqui, uma pequena quitanda assim, uma lojinha, aí eu entrei, eles já conheciam o pessoal lá, eles pediram: “Você quer um suco?”, “Sim, sim”, então eu bebi o suco. Quando eu estava indo já pra ir, estava assim, ia escurecendo, dava tontura, não sei, parece que estou passando mal, não sei, eu não me dava conta. Acho que eles colocaram alguma coisa. Depois já soube. E quando eu cheguei na ‘balada’, eu vi assim as luzes que eu não sabia onde estava, estava tudo assim e não lembro mais, só lembro quando eu acordei de manhã, (risos) já assim do lado do irmão dela e, assim, foi isso. Claro, eu tomei susto, estava com medo, por meus irmãos, por tudo, que eu vou apanhar, eu já não queria voltar pra casa e ele falou assim: “Eu vou falar com seu pai, com seus irmãos. Eu vou fazer, não se preocupe”, tentando acalmar. E a irmã, a Blanca. O outro já foi no trabalho e ela falando assim pra mim: “Vamos a outro estado, a outra cidade, à Santa Cruz, vamos?”, “Nunca saí daqui”, “Vamos lá, vamos embora. Ali tem trabalho, ali você vai ganhar e ter seu dinheiro, não sei o que, mas não avisa pro meu irmão, não fala nada pro meu irmão”. Assim. Mas eu não conhecia o rapaz. Então, era assim. E ela falou: “Eu vou conseguir as passagens, tudo. Tem um ‘cara’ que vai pagar tudo”. E na época era proibido menor de idade [viajar], porque estava menor ainda, então era tudo controlado, os lugares. Então aí ela falou, outro rapaz me deixou num cantinho, numa esquina, numa rua e eles estavam falando, mas olhavam pra mim, falando e olhavam pra mim, aí ele falou: “Ele vai ser o ‘cara’ que vai nos levar, porque ele é maior, mais velho. Ele vai comprar as passagens, então vamos indo. Ele vai resolver tudo, vamos indo na caminhonete primeiro, depois vamos assim, assim, assim”. E foi assim. Então, quando a gente já estava saindo com as malas, porque o ‘cara’, o irmão, não sabia de nada, porque ela falava: “Não avisa nada pra ele, porque minha mãe vai me matar, fazer, não querer como, não fala pra ele, que minha mãe é muito má, que não sei o quê” e colocando medo também. Então, aí, no meio-dia, a gente estava indo, o ‘cara’ estava levando as malas... a mala, uma mala nossa e ela estava assim, quando de repente escutamos uma voz de trás: “Blanca!”, gritando e era ele, o irmão dela. “Meu irmão!”. E me puxou e fomos correndo e o outro também correndo e tinha uma porta aberta e entrou e fechou a porta e, claro, a pessoa… era qualquer casa aberta e então fechou a porta: “Senhora, por favor, meu irmão me vai pegar, eu estou ______”. Contou outra história. Ela era já espertinha (risos) pra tudo e eu calada, de susto. Tudo bem. Aí depois ela olhou se estava e já não estava mais, então a gente continuou indo pra tranca. Era um lugar onde os caminhões saíam de viagem pra Cochabamba e Oruro. Chegamos aí e estava o ‘cara’ todo com a mala e aí apareceu o irmão dela. Então, os ‘caras’ se conheciam. Aí falaram assim: “Eu vou conversar com ela”. Aí a Blanca chorou: “Não, a mãe não vai gostar disso que você quer, como você quer levá-la e também vai ter problemas, ela é menor, que não sei o quê. Por que você não vê melhor lá? A gente se encontra lá em Santa Cruz, eu vou levá-la, isso e aquilo, “Eu vou perguntar a ela se ela quer ir mesmo”. E ele me perguntou: “Você quer ir mesmo lá?”. Eu pensando em tudo e falei: “Sim, quero ir”, “Então, tá bom, você vai. Eu vou falar no meu trabalho, vou deixar [dele], vou ir pra lá pra ficar com você, eu quero ficar com você”. Assim. Tudo bem. O outro ‘cara’ falou: “Você vai cuidar delas, por favor, isso, aquilo outro”. Então, a gente foi, se aventurou, chegou, o ‘cara’ nos levou a uma casa que era de parentes deles, dormiu aí de noite, tudo. Depois, na Santa Cruz, [pegamos] outro caminhão e aí quase a gente se acidentou, porque na Ibéria é um lugar bem alto e o caminhão era tudo sempre com aquela névoa assim, então pra nós irmos no barranco ele desviou e foi assim, então as pessoas: “Ahhh”, todo mundo. E como nós éramos novas, pulamos pra trás, porque estávamos atrás e foi (risos) aquela aventura. Bom, tudo isso passou, a gente chegou lá e não tínhamos [nada] pra comer. Ele foi vender, o ‘cara’ foi vender no bairro aqueles rolos, lá na Bolívia, a roupa, não sei o que, mas ele ‘se virou’ e nos levou depois pra casa do irmão dele. Aí ele falou que a gente se encontrou por acaso, no caminho, e por isso que não tem onde ir, porque estamos procurando parente, não sei o quê. Outra história. E, bom, a gente ficou lá. Então, aí o que aconteceu? A Blanca, como sempre, (risos) a amiga falou: “Você quer trabalhar?”, “Quero, claro que quero, porque além do que eu vou viver, todas essas coisas”. Ela já sabia fumar, era uma menina extrovertida, tudo.
(01:24:12) P1 – Seus pais não estavam sabendo de nada?
R1 – De nada. Mas já sabiam que eu desapareci e então já estavam procurando na (dirme?) dos menores, já colocaram no jornal a minha foto, tudo. Meus irmãos já aquela coisa, por que sabe como eu vim? Escondida no assento e tinha um cobertor que eles colocaram, então eu estava lá embaixo. Eu passei assim e eles pagaram dinheiro pro motorista, tudo. Eu era menor, então era assim, escondido. Então foi assim. Então, aí a cunhada dele, do Carlos Fernando, ele falou pra ela: “Ela quer trabalhar, então vamos procurar”. Como eu não tinha... nunca trabalhei na minha vida, nunca saí de casa, tudo, então pra mim era qualquer coisa assim. “Você pode cuidar de nenê, de babá?”, “Tá bom” - eu falei – “qualquer coisa”. Mas estava um cartaz nas fotos, na fotografia, tudo, era um chileno, o marido, e acho que era um estúdio de fotografia e aí estava um cartaz que se precisa [de] uma menina pra cuidar de um tiquinho, uma criança. Então, tudo bem. Quinze dias e só isso. “Tá bom”, “Nós vamos ver, não sei o quê”. Eu não sabia, não conhecia o estado, a cidade, nunca fui, nunca saí. Tudo bem. Eles me deixaram lá e nunca mais voltaram. Não tinha telefone, na época, não tinha nada. Simplesmente desapareceram, não vieram mais pra me procurar. E eu chorava. A minha dona não me pagava, então continuei, e tinha uma cozinheira que trabalhava lá também e ela que falou assim: “Você quer sair? Vamos sair”, “Eu não conheço [a região]”, “Então vamos sair comigo, vamos ao terminal, quem sabe aparece alguém, parente seu”. Íamos a cada quinze dias no terminal. Foi assim um ano e meio, por aí.
(01:26:50) P1 – Quantos anos você tinha?
R1 – Mais ou menos, eu tinha dezessete, dezoito anos. Aí eu saía assim. Eu tinha pena, não sabia [de] nada que estava acontecendo, meu avô já morreu, tudo aconteceu esse ano e eu não estava sabendo, depois eu soube. Aí quando, de repente, eu estava assim olhando, porque eram três pistas o terminal antigo, agora já não é mais terminal, eu estava assim, com ela, conversando, olhando, quando de repente eu vejo aquele rapaz que nos trouxe, com o cabelão assim, estava na moda aquele cabelo afro e então, claro, eu me desesperei: é Carlos Fernando! Não falei nada pra ela, comecei a correr, desci as escadas, comecei: “Carlos” e o outro caminhava rápido e eu desesperada: “Carlos” e um momento desse ele virou e, claro, se assustou e eu fui abraçá-lo, porque estava em desespero. E aí ele falou: “De onde apareces?”. Porque a Blanca falou pra ele que eu tinha ido embora pra Oruro, que eu não estava mais lá. Ela fez toda (risos) essa história. Não sei. Eu acho que essa menina deve ter... tudo bem, mas foi, depois, minha cunhada. (risos) E aí, o que acontece? Então eu fui com ele e, claro, eu contei pra ele que estava assim, assim, assim. “Como? Te pagam? Estão pagando?”, “Não sei nada, nem quanto me vão pagar, nada”, “Então, eu vou...” – como ele era já mais velho, ele me tirou de lá e me falou: “Vamos pra onde eu vivo, já não vai [mais] passar [por] isso”, mas ele estava com segundas intenções e ele foi o pai do meu primeiro filho. Eu morei lá em Santa Cruz, só que não estava sabendo ainda da minha família, tampouco o conhecia. Então, aí eu trabalhei de cozinheira, ajudante de cozinha em um mercado aberto, tipo o Municipal. De repente, um dia desses, aparece um rapaz bem bonito, de olhos verdes e fala: “Você é Beatriz?”, “Sim, eu sou”. E ele fala: “Aqui é uma carta de sua mãe, você tem uma carta da sua mãe”. Nossa, pra mim uhhhhh: “Sim”. Deixei de fazer as coisas. “Mas calma, depois falamos, que hora sai? Depois falamos, eu volto e a gente fala depois. Pode trabalhar”, “Tá bom”. Estava doida. E o ‘cara’ veio, falou, me deu essa carta, me entregou a carta e me falou que mandou um dinheiro no banco, que só ele poderia pegar. Uhhhhh, estava doida da vida. Por fim, ele disse: “Não, eles te perdoam, eles estão assim”. Tudo bem, mas tudo mentira. Tudo bem, aí eu fui falando e fui pra minha casa, porque já estava morando com o que ia ser pai, ainda não estava grávida, estava com ele, aí ele falou assim... eu contei pra ele, normal: “Apareceu”, “Quem é? E como sabe? E não sei o quê. Não, eu não vou trabalhar amanhã, vamos comigo”, “Tá bom”. E eles se conheciam também, porque Oruro é pequeno. Aí que foi o errado o plano deles, de meu irmão e deles, que estava pra me levar pra mim, mas ainda não estava sabendo. Aí, o que acontece? Eles já não nos deixaram mais ficar juntos. O amigo levou pra outro ônibus, estava em outro lugar e eu estava desse lado e ele falou: “Por que _____ outras histórias”. Eles falaram como se conheciam. A gente chegou no banco, tínhamos que fazer fila, era pequeno o banco do ____, que chamava, né? Banco (Del Beni?). Então, aí ainda estavam falando pra não deixar ficar junto com meu parceiro, que era, na época. Então, quando eu vi abrir, como era pequeno, a porta se abriu e aquele barulho tzzzzzzzzz, eu virei: meu irmão. Eu tinha medo do meu irmão, meu irmão todo preto, com um boné, ele era meio carecão, ele me chamando assim e eu ia, (risos) fui caladinha assim e os outros estavam conversando, eu fui, saí e já estava o táxi com a porta aberta e falou meu irmão: “Entra, entra, entra rápido”. Aí, nossa, tudo, ele se deu conta, o outro e correu pra mim e me pegou, era aquela luta: “Não vai entrar”.
(01:33:01) P1 – O Carlos?
R1 – É, Carlos. Aí entrou comigo: “Por que assim?”. Aí que eu soube que eu tinha família, que esse ‘cara’ que me deu… estava monitorando, estudando as redondezas e o plano que estavam fazendo, meu irmão, pra me levar. Então, eles já estavam sabendo tudo que estava acontecendo comigo e falou: “Ela não pode se casar, como assim?”. Então, nos levou à casa e aí soube que ele era meu primo, aquele rapaz bonito, tudo, eram primos de terceiro, tudo, aí me apresentou: “Eu sou seu primo assim, assim”, me contou. Então aí o Carlos falou... chorou, falou: “Não, eu gosto dela, eu me acostumei, que é isso que eu quero. Não, não, não. Como assim? Que eu ia pedir a mão lá em Oruro. Não, já tenho passagem, uma carta branca”, “Ela é menor ainda, não pode responder e tu, se queres algo, vai aprender a falar. Você vai pra lá, pra falar com todo mundo”.
(01:34:29) P1 – Seu irmão?
R1 – Eu fui, já, ele ficou. Depois de um mês, meu irmão me levou no hospital [pra ver se eu] estava grávida, ninguém meteu o dedo pra mim, (risos) o médico meteu e pra mim era frustrante tudo isso, sabe, aquela coisa, passei por tudo isso, era muita humilhação. Então, chorando, eu, e aí não estava grávida: “Tudo bem, agora você vai estudar”. Tem que estudar, tem que voltar como antes. Aí, depois de um mês, o ‘cara’ aparece, o Carlos, com toda a família, que eu não conhecia: mãe, pai, todo mundo e falou que ele queria casar, não sei o quê. Então, eu também... eles falaram assim... viram que a casa do meu pai adotivo era grande, depois já me falaram que era interesse, então tudo isso, eles que viessem, os maiores. Como eu não podiam dar alguma coisa, ou falar por mim, que eu não queria, eles concordaram com as datas, tudo já...
(01:35:50) P1 – Você não queria?
R1 – Não queria, porque somente aquela vez que apareceu pra mim era um desespero que eu estava precisando, por isso que eu me apeguei a ele e ele aproveitou isso também, então era uma coisa assim, doida. Então meu irmão, todo mundo já ficou [perguntando] na data pra casar, então fui viver com ele. Então, fui morar com ele, com a família. Ele, a vida de sempre, como solteiro, ia namorar. Eu estava de empregada lá, porque minha mãe sempre falava: “Você é mulher, como mulher você não vai ficar mal comigo, faladeira: ‘Ah, sua filha é assim?’ Você tem que ser assim: na outra casa, tem que cozinhar, oferecer, ser boa, auxiliar a todo mundo”. Então, sempre colocaram na minha cabeça isso, porque era mulher, tudo. Aí o outro era relaxado, não trabalhava, aí eu já percebi... trabalhava lá na Santa Cruz. Por quê? Porque era imigrante, não tinha nada. Na casa ia _____ outro... e vai namorar, sexta-feira saía, ele vinha segunda-feira, às vezes não, ele tocava bateria, não sei o que, de rock, então era assim. Então, aquela coisa. Então, eu estava magrinha, aí nasceu meu filho mais velho e minha sogra falava assim: “Você me trouxe isso, nada mais? Como assim?”. Porque ela tinha olhos verdes, eles eram mais orentes (originados de Oruro): “Nós somos orentes, isso e aquilo. Você é hija de chola, que vais _____?”. Aquelas humilhações, sabe, escutando. Então eu me aguentava, eu era empregada, mesmo. Fazia tudo: passava as roupas deles, tudo.
(01:38:16) P1 – Isso em Oruro?
R1 – Oruro, tudo em Oruro, na casa deles. E aí minha irmã, como já estava estudando advocacia, já estava fazendo os primeiros [períodos], assim, um dia desses eu fui pro almoço, visitar minha mãe, também, eles, e olharam pra mim, eu estava grávida, mas magra, magrinha, bem _____, e tinha um espelho no guarda-roupa: “Vem, vem, vem, vem, olha pra você, em que estado você está. Você não se olha? Não tem espelho lá? Você está magrinha. E essa criança? Você não trabalha, não estuda, o que você está fazendo, do que vocês vivem? E o outro também está namorando [com outra]”. Como Oruro é pequeno, eles viam, eu acho que o marido dela olhava, via todas essas coisas, contava pra ela. “Você está assim, desse jeito. Como você pensa criar esse filho que vai ter? O pai não trabalha, a mãe não trabalha. O que isso? Você pensa em morar tudo, assim, na família deles? O quê?”. Eu ficava calada: “Mas ele não quer que eu trabalhe”, então era sempre assim.
(01:39:43) P1 – Essa é a gravidez do segundo filho? Do primeiro?
R1 – Não, do primeiro, isso. E aí, quando nasceu, justo no dia do aniversário da avó do pai do Carlos. Da mãe. E nasceu loirinho, bonitinho, bem carecãozinho, aí ela falou: “Esse é meu sangue, meu presente, sangue azul”. (risos) Sabe, aquela coisa. E ela também não gostava das filhas mulheres. Agora, os homens tinham tudo, podiam fazer qualquer coisa, não falava nada, não fazia nenhuma coisa. Então, era assim. E aí nasceu meu filho, eles se apropriaram do meu filho e eu era a empregada. Falavam: “Não pode dar o peito. Eu vou dar mamadeira, porque [você] tem que trabalhar” e eu fui trabalhar, trabalhava pra fazer as coisas. E era assim. Então, eu mandava do meu trabalho, açúcar, essas coisas, porque eu não saía do meu trabalho toda semana, então mandava leite, essas coisas, pro meu filho e era assim. Então quando eu ia, ele estava mais apegado a eles, a criança, meu filho. Era meio assim. Então eu passei muita coisa. (choro) Então, foi crescendo assim, pelo menos até dois, três anos, depois minha irmã falou assim: “Isso não é vida pra você, tem que se separar, porque (choro) você não decidiu”, já estava grávida de outro. Daí eu tinha muita (pena?) na gravidez e ele não aguentou, morreu, estava [com] muita coisa. Foi assim. Então, me separei dele e não queriam soltar da criança, porque estava mais apegado também a eles e eles tinham mais condições, então tiraram, eles me cortaram tudo, eles não queriam saber mais de mim. E foi assim. Aí passou isso, já, tempo, tudo, minha mãe já teve derrame, deu derrame, eu estava trabalhando e estudando, sempre queria estudar, (risos) de qualquer jeito. Trabalhando no trânsito, nas ‘recaldações’, trabalhei com militares também, só que eu trabalhei de civil, militar era o Coronel _____, com ele trabalhei. Então aí, nas ‘recaldações’, eles faziam as fichas dos carros, tudo, do trânsito. Então eu trabalhei lá e à noite eu ia estudar, pra acabar o colegial. Como se fosse supletivo. Eu fiz um ano, porque faltavam dois anos, eu deixei, aí eu estudei, acabei...
(01:43:36) P1 – Quantos anos?
R1 – Já [tinha] dezenove anos, por aí. Então aí foi e de repente minha mãe, meu padrasto deixou, porque bebia muito e a história daquele meu avô que deixou a herança pra mim, tudo, cadê? Meu padrasto levou minha mãe até o Peru, tirou tudo do banco, o dinheiro, ficamos sem nada. E tinha filhos com outra mulher, comprou carro, moto, tudo pros filhos e na bancarrota, eu soube quando tinha mais ou menos quinze, dezesseis anos que aconteceu isso. Enganaram a minha mãe, porque ela não sabia ler, nem escrever e a fizeram assinar um papel que ela recebeu e deram cem dólares, só cem, (risos) que guardou. Quando a gente estava [fazendo] alguma coisa, limpando uma mala, de repente encontramos, minha irmã encontrou e falou: “O que é isso?”. Aí a gente leu que fizeram uma ‘jogada pesada’ pra ela, tudo foi ‘pro ralo’. Então, aí começou também a pobreza. Aí não tínhamos isso, meu pai que nos mantinha, morreu, quando voltei já estava também morto, eu nem vi como ele chamava por mim e eu não estava, nesse dia. Então, foi assim: como ele era benemérito de Chaco, da guerra, bem condecorado, tinha as medalhas, tudo, eles falaram que fizeram uma homenagem bem bonita pra ele. Ele sempre, no trabalho, era... ele podia beber, qualquer coisa, porque ele era bem pontual no trabalho. Ele me ensinou isso, ser bem assim, bem ‘assado’, tudo e não pegar as coisas dos outros. Alguma coisa, deixava dinheiro, algo, ele entregava, então sempre era conhecido [por isso]. E na época davam aqueles diplomas, aquelas coisas de bom comportamento, dos que trabalhavam, era bem aquela coisa diferente, não é como agora e tudo isso. Ele era bem reconhecido. Então, as festas... ele não falava bem o espanhol, mas ele era bem-vestido, com aquele chapéu antigo, tudo de gravata, tudo, ele ia, levava pra mim os churrascos que faziam nas comemorações, nas festas dele. Então, essas lembranças boas que eu tenho dele, tudo bem melhor. E aí, passando, minha mãe ficou com derrame, o médico falou pra mim: “Queres ver tua mãe viva ainda?”, “Sim, quero, porque não convivi muito com ela, quero, eu vou cuidar”, “Então está bom, mas não pode estar aqui, em Oruro, porque aqui é frio e pode passar alguma coisa com ela. Então, você que tem que fazer? Ir na Cochabamba, no vale, que é mais quentinho, como aqui”. Então eu deixei meu trabalho no trânsito e meu estudo pela minha mãe e então eu falei: “Eu vou”. Então aí estava com a criança, eu falei: “Eu vou levar” e ele não quis. Então, eu o roubei, eu fui com ele, com meu loirinho, ele era bem loirinho mesmo. (risos)
(01:47:57) P1 – Qual é o nome dele?
R1 – Jazmany. Colocaram porque o avô era chileno e o tataravô era das Arábias, árabe. Ele sabia falar árabe. O pai chileno sabia, cantava, inclusive, então colocou Jazmany, Hassan, Abdul, essas coisas, e meu outro filho é Abdul. Então, assim: o ‘cara’ era de olhos azuis e a mulher era de olhos verdes. Por isso que eu sofri muito preconceito também com eles, pra eles não era nada. Então, assim...
(01:48:44) P1 – Você o pegou?
R1 – O peguei. Eu fui com minha mãe de trem, mas ele descobriu, de novo ele me chegou com enganos, me falou: “Não, agora sim, você tem razão, isso e aquilo”. De novo, eu voltei, só que aí apanhei, porque falou pra mim: “Você é boa pra sair, esses pés”. Nossa, meus pés! “E sua mãe, você trouxe”. Todo mundo me machucou, bateu. Estava toda arrebentada. Aí pronto, assim, passou isso, aí dava mais um tempo e minha mãe sozinha...
(01:49:43) P1 – Você não cuidou dela?
R1 – Não cuidei, mas depois eu voltei também, porque ele já foi trabalhar de segurança de ‘mineria’, era um lugar bem frio. E aí meu outro filho morreu, Abdul era o nome dele, por causa que também estava tudo preocupada, ele não aguentou, deu… coração, assim. E aí, o que aconteceu? De novo… ele já me humilhava mais, porque eu já saí, tudo isso, levei o filho, falou e depois ele voltou sem vergonha. Ele trazia, já, as mulheres pra casa. Então, uma das namoradas, eu fui abrir um dia desses e falou: “Chama Carlos”. Eles também, assim, dando ordens: “Chama Carlos, quero vê-lo, meu amor”, “Mas como assim? Eu sou sua esposa, sua mulher”. Começou a rir ‘hahaha’: “Você? Ele te quer só pra empregada, nada mais. A mim me quer, porque quando um homem te quer, te leva ao cinema, me leva pra comer, compra coisas pra mim, faz tudo por mim. E você não é nada”. Então, (risos) chorei. Aí, quando ela foi embora, eu pensei, porque ela que falou, então toda noite pensei e falei: “Ela tem razão. O que eu estou fazendo aqui?”. Porque minha família falou: “Você voltou com ele, então não queremos mais saber de você. Se você voltar pra casa, não te vamos abrir a porta”. Então, não tinha ninguém, estava sozinha. Aí apanhei de novo, eu fugi de novo pra Cochabamba, onde minha mãe [estava]. Aí, sim, eu cuidei, mas eu deixei o meu filho lá. Eu tive que fugir, porque não tinha como e eu falei: “Onde vou levá-lo também?”. Então, foi assim. Então, minha mãe já estava assim, deu derrame, estava caminhando assim. A casa era muito no alto e pra levar pra fazer fisioterapia tinha que ir mais ou menos cinco quarteirões pra baixo, pra pegar o táxi. Então, contratava os homens, os carregadores, que chamavam, e como ela era gordona, pesada, era maior que nós. Eu saí ao meu pai, eu acho. (risos) Então, levava assim, dava jeito. Eu não trabalhei já em casa, nem nada, _______ eu já vendia verdura, fruta, essas coisas. O mercadinho que tinha perto, eu vendia lá. Então, e, ao mesmo tempo, cuidava da minha mãe, mas a gente não tinha luz, pouca água também, como sempre, era precário, tinha que pegar nas nascentes, daí era outra coisa. No rio, como sempre. Então, aí deu de novo outro derrame em minha mãe, eu acho que era preocupação também. Ela gostava, assim, alguma coisa, que ela aprendeu a ler por si só. Ela também começou a ler nas revistas. Antigamente não tinha televisão, não tinha nada, era tudo revista, as historinhas de antes eram na revista, tudo, jornal, essas coisas. Então, ela gostava de ver as novelas, mas [era apenas] alguma coisa que entendia, às vezes. Então estava _______ e eu acabei dormindo. Aí, quando de repente eu faço assim, aquele movimento, senti assim, assim, assim, quando eu olhei, eu me assustei, porque minha mãe estava assim na cama e a boca toda torta, toda assim. Me assustei, ela se ‘fez’ tudo, até no banho, todas as roupas, toda aquela coisa. Então, eu coloquei um lenço, comecei a limpar e tudo, aí não aguentou, então, ali, aquela história de levar no hospital, levei, era no quilômetro cinco e tinha que contornar toda a cidade, o estado e era muita ‘prata’ e eu ganhava bem pouco, então eu fazia sacrifício. Aí depois eu ia a pé até... era assim, pela cidade, então eu ‘cortava caminho’, eu comecei perguntando e cheguei lá, então todo dia ia trabalhar. Então aí, nessa época, eu estava também com essa coisa de falta, como sempre, e aí eu fui ao Centro, estava na praça, descansando, pensando, porque falei: “Até quando tudo isso?” e de repente um ‘cara’ se aproxima e faz assim: PÁ, PÁ e PÁ e TCHA, como se estivesse marchando e PÁ e eu, como estava assim, levantei minha cara e era o irmão da Blanca. Você lembra da história do começo? (risos) Então, ele: “Nossa, eu sei que tem seus filhos, eu queria saber da sua boca, até agora eu não sei nada o que aconteceu, porque minha irmã falou isso”, falou pra ele que eu já estava com um ‘cara’ naquela época. Falou outras coisas, pra ele não ir [atrás de mim]. Então, depois eu já soube, depois de anos. Aí ele falou: “Eu quero conversar contigo. Podemos? Posso te convidar [para] um suco?”. Então aí eu comecei a contar, ele também falou assim: “Eu sei tudo, que você tem seus filhos todos e como _____, não sei o quê”. Aí esclarecemos muita coisa. E aí eu contei também que estava assim, minha mãe está doente agora e aí começou, ele me ajudou, começou a ajudar, ele também, comigo. Então eu ______, sabe, aquela volta. Minha história (risos) é bem assim. Não sei como falar, que palavra colocar. Então, ele me ajudava pra minha mãe tomar banho, porque ele tinha mais força e também me ajudou com dinheiro, essas coisas, remédio, porque não tinha na caixa, era muito caro...
(01:57:42) P1 – Mas isso era uma outra cidade?
R1 – Em Cochabamba, quando eu fugi. Aí não soube mais do outro ‘cara’, porque ele já tinha outro relacionamento, já depois eu soube que tinha filhos, tudo isso. Então, foi isso. E aí a gente foi morar pra La Paz, aí nasceu o Brayam, outro filho dele. Morava em La Paz, ele nasceu em La Paz, então vivemos muito tempo lá, com ele, só que ele tinha mania já, era bebedeira também, muita bebedeira. Então, eu não queria passar mais isso. A Blanca, como sempre, estava sempre com as coisas e sempre interpondo nas nossas coisas. Então, decidimos [nos] separar. Aí fiquei com Brayam sozinha e o Jazmany estava com a família. Quando ele tinha onze, doze anos, eu acho, ele perguntava por mim: “Quero saber da minha mãe”, então aí que a gente se conheceu, nos encontramos.
(01:59:15) P1 – Como foi?
R1 – Foi lindo. Acho que ele escapou da escola. Eu acho que ele averiguou onde [que eu] estava. E ele: “_____ minha mãe!”. (risos) Assim. Então, eu queria ir visitar, eles não deixavam, sempre falavam que ele não estava, viajou. Eles sempre faziam de tudo pra eu não ficar com ele. Já quando ficou velho, claro, ninguém segurou, ele veio pra me ver, tudo isso. Então, assim, aconteceram todas essas coisas na minha vida, nasceu o Brayam, me separei também do pai do Brayam e ficou lá. Então, como eu estava lá, sozinha, na época eu estava trabalhando, sempre [no] artesanato, que me chamava atenção, eu fazia (el chulos?), tecia e colocava os negocinhos tudo à mão, então ganhava por peça, quanto mais fazia, mais eles pagavam. Então eu fazia isso pra uma loja de artesanato e de repente tinha uma colega também, uma amiga que falou assim: “Eu tenho um primo que está no Brasil, ele leva pessoas lá e precisa ______. Vai! Aqui você sofre muito, tudo. Até quando [isso]? Você tem que sair disso. Isso não é vida pra você”, “Mas e meu filho, Brayam, como vou deixá-lo?”, ele tinha seis anos na época. “Eu falo com sua irmã, sua irmã pode pegar um pouquinho”. A minha mãe já morreu, tudo, e falei assim: “Então eu vou falar primeiro com minha irmã, se ela vai querer” e minha irmã aceitou rápido: “Tudo bem, pode deixar, só que você vai assinar um documento” - como Cássia já era advogada, (risos) já era assim - “onde tem que me mandar cada mês dinheiro, você me manda dinheiro, me manda os cem dólares”, porque cem dólares eles me ofereceram cá e pra mim era dinheiro isso, na época. Então, aí decidi vir, em uma semana já estava aqui, porque o ‘cara’ era esperto em fazer documentação, ele tirou, eu acho que tinha conhecido, não sei o que, em trem, naquela época era em trem, não era aquela coisa, então cheguei cá numa casa de uns colegas, que eles me levaram, me trouxeram, aí me levaram...
(02:02:25) P1 – Como foi essa viagem? Você estava nervosa, esperando alguma coisa?
R1 – É, estava, porque sempre, na minha mente, falava assim: “Os ricos que vão em outro país”. Na minha mente, sempre era isso: o que tinha dinheiro ia pra outro país, nunca... então, pra mim era um presente, eu vou pagar... mas eles falaram: “Vai pagar com seu trabalho”, “Não importa, pra mim está tudo bem”. Então, eu aceitei. Eles, inclusive, trouxeram contrabando, era umas garrafas de whisky e colocavam aqui: “E você vai falar que é seu”. Quem sabe alguma coisa podia acontecer, também. Estava passando risco. Claro que na época eu não sabia. E aí cheguei aqui, o ‘cara’ me levou, depois de uma semana, onde tinha que trabalhar. Era um boliviano também, que era de dinheiro, que era comerciante. Na época, a casa era bem luxuosa, tinha piscina, tinha tudo, só que aí eu fazia comida primeiro, tinha uma brasileira faxineira e outra boliviana, que vinha lavar a roupa. Tinha bastante empregados lá, que faziam, só que eu estava fixa lá, só que o ‘cara’ era só, então ele meio que queria mexer comigo, assim, e quando eu dava algo: “Me dá um suco”, ele tentava, sabe? E aquele medo.
(02:04:43) P1 – Bia, em que bairro você foi, chegou, ficou, quando você veio? Você sabe?
R1 – Vila Matilde. Aí, depois eu fui [pra] Vila Guilherme. Acho que na Vila Matilde o ‘cara’ era um pouquinho assim, era boliviano, às vezes, quando bebia, era assim, confuso, porque seus filhos eram já adultos, só que quando seu pai... eles tinham, acho... na praia também tinham sua casa, casa de praia, tudo isso, eles iam pra lá, às vezes, e faziam umas festas e quebravam tudo e não sei o que e depois falavam assim pra mim: “Você não viu nada, não sabe nada. Meu pai não tem que saber”. Tudo bem. Se o pai fazia festonas, levava mulheres, tudo: “Você não viu nada, não sabe nada, não fala pros meus filhos”. (risos) Era assim, aquela coisa. E uma vez eu já não gostei, porque ele também já estava muito assim, eu já estava percebendo, eu fechava... claro, ele me deu chave do meu quarto, só que eu falava: “Talvez ele tenha outra chave”, tinha medo que ele entrasse, não dormia bem, então eu tinha um armário, eu levava até a porta, pra encostar, assim. E aí foi passando, eu fiquei três meses, aí um dia o que aconteceu? Trouxeram umas mulheres lindas, eram de olhos azuis, umas bonitonas, aquelas mulheronas, pareciam umas princesas, mas eram todos bolivianos, os amigos, aquela farra e eu cozinhei pra eles um prato, tudo, eu fiz aquilo luxuoso. Era cozinheira, então tinha que atender. Aí eles beberam, foram... fizeram churrasco depois, de tarde, e levaram a mulherada na piscina, aí estavam bebendo nos carros, aquela coisa. Tinha uma mais bonita, de olhos bem bonitos mesmo, parecia uma Barbie. Eu me lembro dela, porque eu tenho pena até agora. O que aconteceu? Claro, eu estava vendo, porque também eu levava as coisas que eles pediam. Acho que alguma coisa deram também pra ela e eu me lembrei daquela coisa e levaram pra um quarto e saía um, saía outro, entrava outro, aquela coisa e eu não sabia o que fazer, estava impotente, sem saber o que fazer, então aí eu pensei: “Nossa, esse ‘cara’... eu não posso ficar aqui. Tudo de novo? Por quê? Por que eu tenho que passar isso?”. Então foi assim, triste e chegou sua irmã, tinha uma irmã, o ‘cara’, e aquela gritaria: “O que é isso? Por que assim? Não sei o quê”. E quem pagou os pratos foi ela, porque ela estava dopada, eu acho, puxou o cabelo: “Você é uma puta, não sei o quê”. A puxou, bateu nela. Em vez de xingar o homem. Era boliviana também. Então, eu fiquei sem saber o que fazer. Foi uma coisa bem forte pra mim. Então, os ‘caras’ sumiram, todo mundo sumiu, deixaram tudo sujo, tudo assim e nada, estava dormindo. “Não, o que é isso que os meninos meteram aqui, na casa uma puta, não sei o quê”. Nossa, foi forte. Aí, o que aconteceu? Fiquei pensando, já não queria ficar, então eu falei e o ‘cara’, um dia: “Me leva ao ‘cara’ que me trouxe”. Eu queria ir na casa do ‘cara’ que me trouxe, que era amigo da minha colega, que me trouxe lá da Bolívia. Eu queria ir na casa, não sabia como. Também eu chamava por telefone, ninguém me atendia. Um dia eu chamei, por acaso, na loja, sua filha: “Por que está chamando? Tem gravador, tem tudo. É perigoso! Você não pode ligar, não pode fazer nada. Como assim? _______” e não consegui. Então, era assim: aquele medo de novo. E aí, então, um dia, ele sumiu, um fim de semana não veio, não estava lá ninguém, seus filhos também, então eu ficava sozinha, mais as faxineiras, tinha uma brasileira que cantava. Acho que com ela estava, porque eu via que eles entravam juntos no quarto, assim. Então, ela me perguntava: “Como se diz isso?”. Queria, assim, coisas, saber de mim, como se diz em espanhol, não sei o que e tudo isso. Então, aí o ‘cara’ apareceu de manhã, uma segunda-feira e falou assim: “Faz uma comida pra mim, que eu gosto do (zinhão?)”. O que é _____? É uma sopinha de (zinhão?). “Tá bom”, eu fiz. “Me traz uma cerveja”. Ele mandava. Então, aí ele já queria me agarrar e como eu estava na cozinha, eu peguei a faca, aí: “Para, para! Você estava sendo obediente e agora você está sendo assim?”. Começou a rir e falou assim: “______. Que problema você tem? Você já tem filho, tudo. Por que [você é] assim? Você veio aqui…”, aquelas coisas. Isso que me deixou... ele saiu, deu uma risada e falou: “__________”. Então, eu falei com aquela mulher que estava grávida, ela fazia faxina, lavava roupa, _____ negócios, limpava algumas coisas. Não era brasileira, era boliviana. Ela vinha a cada quinze dias. Então, eu falei com ela: “Eu estou com essa coisa, por favor, não fala pra ele, mas eu não quero ficar aqui, quero sair. Por favor, me leva pra outro lugar, não quero estar aqui”, “Tá bom. Só que você não fala que eu... eu vou colocar no lixo algumas coisas e daí vamos nos comunicar”, mas não deu tempo, porque já o ‘cara’ me ameaçou e falei: “Não, eu vou sair, mesmo que tenha câmeras, tudo e tal”. Eu, brava, saí pela porta, deixei. Aí eu também pensei: “Agora eles vão falar que eu roubei alguma coisa”. Também tinha isso. Eu me arrisquei. Eu saí, cheguei na Vila Guilherme, ainda não sabia onde estava, eu estava chorando e aí uma brasileira falou: “Por que está chorando?”, em português. Não entendia muito ainda, também, cheguei e ela chamou alguém pra me entender, porque: “Eu conheço uma espanhola, ela vai te entender”. Aí ela me falou: “Por que está chorando?”, em espanhol. E ela é da Espanha mesmo, porque estava casada com um italiano. Ela me levou e ela falou: “Eu conheço seus patrícios. Você tem um monte [de gente] aqui, eu vou levar”. Eu contei pra ela: “E agora?”, “Não podem fazer nada, como vai ter culpa? Nós vamos te ajudar”. Eu fiquei duas noites dormindo lá e depois me apresentaram outros colegas, os patrícios, aí fui ficando assim e depois já me vi costurando, porque costurava, fazia faxina, tudo, mas eles não me pagavam. Aí o ‘cara’ que me trouxe, também não recebi. Minha irmã estava esperando o dinheiro todo mês, mas nunca chegava e minha irmã falou: “O que aconteceu? Não sei o quê”. Não dava notícia. Perguntava pro ‘cara’ e falava: “Não sei, eu levei no trabalho, não sei nada”. Foi assim. Então, aí também não pagavam cesta básica, [estavam se] aproveitando também de mim. Sei lá, sabe, uma coisa assim! Parecia que eu contava minha história de fraqueza, tudo, parece que as pessoas pior se aproveitavam, parecia isso. Então, eu falei: “Não, eu já não vou contar mais. Tenho que estar forte, ser assim, vou fazer com que me paguem, vou ser forte. Porque lhes digo, quero ser boazinha, quero ser assim e passo tudo isso, não”. Então já comecei: “Tem que me pagar”, “Não, eu não vou te pagar _____ que escapou, você fugiu de outra casa, não sei o que, mas você tem problema”. E eles me davam _____: “Tá bom”. Eu fui com outros que trabalhavam lá e ele falou: “Vamos com coreano, coreano paga, ______ pagar”. Eu fui no coreano, no Brás, trabalhar. Eles pagavam pouquinho, mas eu aprendi lá, trabalhando. Faziam... nunca acabava a roupa, tinha um monte: entrava, saindo e entrando, saindo e entrando. Nossa, e tinha um monte de gente que trabalhava. Em cada máquina - eu estava na máquina -, tinha uma ajudante, na outra… estava assim. Então, eles marcavam na lousa tudo que saía. E tinha uma cozinheira pra boliviano e uma pra brasileiro. E tinha...
(02:16:56) P1 – Você já sabia costurar?
R1 - Aí eu aprendi mais com a outra senhora que não me pagou, mas o básico eu já sabia, mais, mexer. E aí que comecei a costurar. Aí eu queria chegar na casa desse senhor que me trouxe, claro, porque ele estava sabendo do meu filho e eu queria saber também, não sabia como. Então, só me lembrava “174M zona norte”, só isso, estava na minha cabeça e falava: “Esse M é zona sul”, eu falava pra eles. Então aí um desses me falou: “Deve ser Jardim não sei o que, Tucuruvi”, “Não sei, na verdade, mas por acaso iremos. Talvez vá me lembrar, recordar bem. Vamos?”, e desse jeito. Era isso mesmo. Eu me lembrei. “É aqui, mas não sei”. Parece que passávamos esse… eu cheguei, mas o ‘cara’ falou assim pra mim, o ‘cara’ que me trouxe, era um senhor, já, maior e falou assim: “Você tem problemas?”, “Ele não me pagou. Eu queria que me pague assim, assim”, “Eu vou falar”, mas também era outro aproveitador. Ele não me deixou falar com ele, nada, só me trazia recado, me deixava em um lugar e falava que ele vai falar. Ele tirou dinheiro dele e tirou também de mim. Era assim, aquela coisa. E meus documentos, ele não me devolveu, passaporte, nada, até o dia de hoje, como se eu entrasse depois, porque eu aqui cheguei em 1993, no final, e está com 1998, por aí, meu visto, tudo, depois, porque ele não queria devolver, sempre falava que estava na Bolívia, não sei, se perdeu, não sei o que, sempre aquelas coisas e nunca me deu, até que ele já morreu também. E era isso. Então, minha imigração foi assim, um pouquinho... no começo. Depois já aí o Daniel apareceu, meu salva-vidas, sempre eu fico com um salva-vidas, mas parece (risos) que me leva a isso, então eu o vi e me levou uma amiga num aniversário e falou...
(02:20:05) P1 – Você continuava trabalhando no Brás?
R1 – Isso.
(02:20:08) P1 – Você continuou trabalhando? E onde você...
R1 – Isso. Depois, aqui no Tucuruvi, ele estava trabalhando em uma casa e essa filha que me trouxe o ‘cara’ que fez o negócio de me trazer, tudo, a filha dele me levou a um aniversário e aí estava ele, aí que eu vi. Aí eu falei: “Esse menino [vai] ir conosco?” (risos), porque ele estava magrinho, na época, ‘cara’ conhecida, porque não perdeu aquele... e aí: “Posso ir lá ver?”. Bom, ele tinha a namorada dele, brasileira, e ele tinha que casar com a brasileira, tudo. Ele me contava tudo. E ele que me levou num balé. Ele me convidava: “Vamos no balé? É Raza Índia”, “Não, eu venho de Bolívia, dançar isso, não”. Assim, porque também, lá ainda tinha preconceito essas danças, tudo. E ele: “Não, aqui não é, eles gostam. Vai saber, as brasileiras dançam, todas” e sempre: “Não, tenho que trabalhar”. E ele falou: “Então não quer vir trabalhar aqui?”, no vizinho, porque era casa grande, embaixo tinha outra oficina, outros que moravam, no meio tinha ele, que tinha oficina e no fundo era outra. Então, no fundo eles estavam precisando de alguém, aí falou: “Por que não vem? Estão precisando”. Então eu fui pra lá, porque já no coreano ia sair. Então, foi assim: a gente conversava, ele me contava da namorada, que vai casar, o que posso dar de presente, eu dava conselho, era assim, mas convidava também pra sair, mas eu não, sempre assim. Então, foi assim. De repente ele me falou com tanta insistência, eu fui no balé, só pra ver. Aí era no Glicério, teatro, tudo, eu gostei: “Nossa, pessoas diferentes, tudo. Nossa, que legal!”, “Está vendo? Eu sabia que tu ia gostar”. Tá bom. Então, já comecei a ir e aí ele já falou, de repente, que acabou com sua namorada, que não sei o que, porque ela morava em Suzano, eu acho. Então, aí começamos, ele se declarou, um pouquinho demorou e assim, tudo assim, começou, namoramos, fomos pra dança, ele me levava, então aí começaram as viagens também, pras danças, pra Santa Catarina, outra coisa. Aí, depois, nos juntamos, ele falou: “Por que não? Eu estou sozinho, não há quem me cozinhe, (risos) quem faça minha comidinha, tudo” e, bem, nós...
(02:23:35) P1 – Que ano foi?
R1 – Mais ou menos, a ver, agora estamos em 1995, começo de 1995. Não demorou muito, porque também tudo isso que aconteceu foi já rápido. Então, assim: desde essa época a gente mora, até agora e foi um bom caminho, ainda bem, porque ele também entendeu e também o aniversário é mais que tudo, talvez não tinha esse amor. Eu não conheci amor até agora, não sei como é querer amar, foi só as circunstâncias que me levavam, sabe? Então, ele também, sabe também, só que com ele foi diferente e ele me falou assim que era no dia primeiro de meu pai, Manuel e dele é dia três, então eu falei: “Nossa, quem sabe (risos) alguma coisa as divindades devem estar fazendo?”. E assim começou e com ele comecei a arte de dança, de tocar. Primeiro a dança. A gente, depois, como começou o nosso... as pessoas mesmas já notavam alguma coisa, não sei, eles nos juntavam, pra os dois dançarem, tudo: “Vocês dançam, par perfeito, então vocês vão dançar, tocar, ser a guia, não sei o quê”. Então, foi assim. E depois já fiquei grávida, ainda íamos... ele ainda estava, na gravidez, eu fiquei parada um pouco, mas eu acompanhava sempre, o Brayam também ia, o trouxe. Minha irmã ficou brava, falou: “Você...”. Contei, não acreditou e queria já dar Brayam pra adoção. Ele ia estar agora em Espanha, porque tinha quem adotasse, eram uns espanhóis. E o Brayam não estava sabendo. Ela levou pra um orfanato, minha irmã, falou que ela sentiu que ia morrer, que estava doente: “Tinha pena, pelo menos meus filhos têm o seu pai, mas eu pensei no Brayam, que você não apareceu e aí isso e aquilo. Sempre você teve uma vida difícil, então não dá, por isso que eu pensei no bem-estar do Brayam, pra seu futuro, então poderia estar com outros pais” e já estava tudo assim e ninguém me falava. Aí uma senhora veio, eu mandava encomenda pra Brayam, já mandava dinheiro, tudo, e não tinha celular ainda, tínhamos que ir a uma casa, pra ligar e falar. Então, era assim, ou aqueles telefones da rua também e era tudo com cartão, tarjetas que chamavam e foi assim. Então, minha irmã já se cansou e tudo bem, e uma senhora vem e me fala assim, amiga dela: “Sua irmã falou que não tem que falar nada pra você, mas eu tenho pena, não sei, mas eu vou falar, mas não fala que eu...”, “Mas como assim? O que é?”, “Sabe o que é? O Brayam vai à Espanha, porque outros papais vão adotar ele”, “O quê? Por que pra mim não me avisaram nada?”, “Sua irmã já decidiu, está falado. Está morando em um orfanato, está por Cochabamba, não sei, _______ muito, bem longe, é um povo pequeno”. Nossa, aí o Daniel falou, deu força: “Não, conseguiremos dinheiro e _____________, tragas o filho” e assim, mas eu já estava grávida, só que estava mais ou menos três meses, por aí. Aí eu fui, me lancei sozinha e não disse à minha irmã, nem nada, eu queria surpresa. Cheguei em um alojamento, um hotel, e depois eu fui e perguntei: “Cadê o Brayam?”, “O que está fazendo aqui?” Ela tomou susto. “Por que não me avisou?”, “Não há como, telefone, tudo”. Aí ela começou a chorar, falou que queria o bem-estar do Brayam. Agora ela fala pra ele e o Brayam não gosta. (risos) Ele tem [isso] assim, né? Aí ela falou, chorou, falou que estava no orfanato. “Mas por que você não me avisou?”, “Você sempre tem os problemas, é uma mamãe desse, de outro, nunca sendo responsável, que tu é, sua vida [tem] sido assim, ‘assado’, então eu pensei no bem-estar dele. Então, ele foi: “Então vamos, quero ir”, “_____ não sei se ele vai querer”, “Claro que tem que querer, eu sou sua mãe”. Aí me levou. Nossa. A gente não tinha... a estrada era bem pequena, uns caminhõezinhos que: “Nossa, onde levaram meu filho?” Era umas freiras, também. Ela sempre trabalhou com freiras. Então, aí cheguei e o Brayam estava na secretaria, aí: “Sua irmã me disse que tu era irresponsável”. As freiras, a diretora me falou tudo, que eu era péssima mãe, uma pessoa má. “Agora estou bem, eu tenho provas que vivo, vês? Eu tenho outro marido, _________”, “Vai ser a mesma coisa, amanhã outra vez se separa, outra vez vai ser assim, não sei o quê”. Aí eu: “Quero vê-lo”, “Mas acredito que ele não vai querer”. O trouxeram e ele estava de camisa branquinha, com botões e eu lembro com jeans e bem cortadinho o cabelo. Aí veio assim, com as mãos pra trás, seis a sete anos, sete anos aí: “Filho”, eu queria e ele só me olhou seco, sabe? Bem distante, aqueles olhinhos bem de tristeza, sabe? Eu percebi isso. “Filho, eu sou sua mãe, nós vamos sair”, o abracei e ele foi forçado, sabe? Tudo bem. Aí nos deram um quarto pra dormir, as freiras, e falaram que tinha boa atenção, isso, não sei o que, tudo maravilhoso. Depois, já, meu filho me contou que não era aquela coisa. Só por esse dia eles arrumaram, fizeram tudo. Então: “Posso dormir com meu filho hoje?” – falei – “Eu tenho pelo menos esse direito?”, “Ele não vai querer”, “Mas eu quero, essa noite, passar com ele. Pelo menos Deus deve estar sabendo que sou sua mãe, eu quero dormir com ele”. E elas falaram: “Tá bom”. Então, eu dormi. Minha irmã estava do outro lado e aí eu falei com ele: “Filho, vamos lá. A freira falou que depende de você. Você vai conhecer, vamos no zoológico, tem girafas gigantes, tem isso”. (risos) Aquela coisa. E assim, tudo. Ainda não falei que estava grávida, ninguém estava sabendo. Minha irmã era pior, porque ela é faladeira. Só que eu vomitava e minha irmã... “Não, estou mal, porque está me fazendo mal a estrada e tudo isso”. Não falava nada. Aí o meu filho: “Sim, mãe, eu quero ir”, “Ai, filho, tem apenas que decidir. Eu sei que vão te separar e vão te falar coisas, você tem que falar que sim, que você quer estar com sua mãe, comigo. Eu vou tirar você, senão vai pra outro lado, outros papais. Tu quer isso?”, “Não”, ele falou. “Tá bom”. Então, foi uma decisão. Aí, no dia seguinte, eles nos atenderam bem, aquela comilona, fizeram um prato especial, tudo e aí já conversaram com ele em separado, eu acho que ele falou que queria ficar com a mãe, aí depois falaram comigo: “É o seguinte...”...
(02:34:40) P3 – A senhora pode voltar um pouquinho? Seu irmão...
(02:34:44) P1 – Irmã.
R1 – Minha irmã estava em outro lugar, então... aí me chamaram, as freiras, sozinha, e Brayam também já falaram separado e então minha irmã falou que estava tudo mal, que como vai levar lá, é longe, que não pode, vocês têm que fazer qualquer coisa, que não vai com Brayam. “Mas você é filha de Deus” - a freira falou – “então eu queria saber de você, me conte como é, qual é a verdadeira _________, me fale como é”. Aí eu contei: “Foi assim, assim, assim, assim, por isso que decidi ir lá”. Também contei a verdade: “Me aconteceu coisas que eu não esperava, então é assim, assim. Por isso que eu não mandei dinheiro. Não é minha culpa. É isso. Agora eu estou mandando, estou fazendo”, “Mas ela nunca falou isso, então ela deve estar aproveitando esse dinheiro que você manda e não falou nada pra você?”, “Não, não sei nada, porque uma amiga me contou e por isso que eu estou aqui. Por favor, me ajuda”, “Isso não se faz”. Ficou mal, minha irmã. Então, aí elas me ajudaram, foram ao ______, porque tinha que pedir permissão pra trazer aqui, do pai, eu falei: “Não sei onde fica seu pai, anos que não o vejo, não sei o paradeiro dele, eu moro já tempos lá, então não vai dar”, “Então, eu vou ajudar você”. As freiras me ajudaram, pediram para o ________, eles deram papelada, tudo e assim eu trouxe o Brayam. Aí, no caminho, me falou: “Mamãe, eles nos fazem fazer... eu já sei fazer pãozinho, sei fazer tudo, as freiras nos fazem assim, todo mundo quer fugir de lá. Às vezes com água fria nós tomamos banho, fazemos isso, temos que rezar às cinco da manhã, temos que estar de pé”. _____, porque no caminho (risos) não tem o que fazer: “Tudo bem, filho, esquece tudo”. E eu o levei ao médico, dava as vacinas, os dentinhos dele estavam todos... sabe? E o médico: “Que mãe mais descuidada! Você se descuidou do filho! Olha como estão careados os dentes!”, falou. “Não estava com ele”, “Como não estava com ele?”, “Também não vou explicar”, Tudo bem, tudo certo”. E já minha barriguinha crescendo e o levando, e depois, pra ele aprender o português, porque eu queria que ele entrasse na escola, eu levei aqui, no Jardim Joamar, no norte, tinha aqueles ______ que formam... uniformizados, que chama aqui, não sei, bois, algo de bois. Eles marcham no Sete de Setembro.
(02:38:43) P1 – No Dia da Independência?
R1 – Isso.
(02:38:47) P1 – Não são soldados.
R1 – Não. São aqueles meninos...
(02:38:54) P1 - ...que se vestem...
R1 – Uniforme.
(02:38:56) P1 - Não são soldados.
R1 - Não sei. Tem também lá. Não sei, eu esqueci. Então, tinha isso e tinha um lugar assim pra família e aí eu falei: “Será que meu filho pode entrar? Ele sabe marchar bem”, porque ele marchava bem, porque lá na escola ensina tudo isso. “Tá bom. É verdade, mãe, seu filho marcha bem. Então vai ter um evento lá em Corinthians-Itaquera, de São Paulo, aquele estádio de São Paulo, que as crianças vão apresentar, vão marchar e eles vão acompanhar os que vão ser premiados”, desse negócio que a gente não se lembra. Não sei. Então, foi isso. E aí ela convidou, falando português. Depois eu tinha uma colega que era Irmã de Testemunhas de Jeová, então por causa que ele aprendesse também, eu coloquei, fiz tudo pra só aprender. Então, vinha pra casa pra dar lição pra ele e depois eu o coloquei na escola. Aí já o acompanhava. Ele também era estudioso, porque com as freiras, igual eu, também gostava. Só meu caçula que é diferente, (risos) no estudo não é muito assim. Então, ele já se destacou. Eu ajudava nas coisas todas. Daí nasceu meu filho, mas ainda estávamos com a música, com a cultura, viajando. Não era muito dinheiro, mas ganhávamos e também íamos conhecer diferentes lugares do Brasil. O Brasil é muito lindo, muito bonito, tem coisas belas. Fomos pra Paraty também, na ____, fomos à Ilhabela, diferentes lugares bonitos e então a gente foi assim e ainda em costura, também. Costura nunca deixamos.
(02:41:24) P1 – Queria te perguntar sobre o seu trabalho. Qual é a importância da costura na sua vida?
R1 – Muita coisa, porque está ligado à emoção, à forma de vida também, porque nós, de qualquer maneira, somos independentes e também nós sofremos, já, talvez, indo trabalhar em outros lugares, outras coisas, então é nosso próprio trabalho e também aprendemos com a costura a nos ‘virar’ de tudo. A costura é um caminho pra se abrir muitas portas. Até agora, por exemplo, fazemos, nunca nos falta dinheirinho, pelo menos pouquinho, alto, depende das coisas. Consertos, fazemos; alguma roupinha que manda fazer, fazemos. Artesanato também, fazemos tanto manual, quanto na máquina, faço. Então, nossas mãos, nossa mente, nosso corpo trabalham com nossa ferramenta, que é a máquina. E isso é muito importante pra nós. São um pouquinho antigos, (risos) mas porque agora outros já têm mais modernos, são digitais, tudo assim, mas muito companheiras as máquinas, pra fazer, pra não faltar o dinheiro do dia a dia, pra nossa comida, tudo. E até agora já criei meus filhos, meus netos. Quando tem aniversário, eu tenho presente, então tenho essa liberdade, aqui eu me sinto, nesse país eu adotei como meu segundo país, meu outro país ‘de coração’. Por quê? Porque aqui tem me aberto portas, pra mim. (risos) Então, aqui eu me reconstruí, me fortaleci como mulher, como mãe, como tudo, como uma pessoa e conheci bastante gente de ‘bom coração’, graças a Deus. Então os brasileiros, eu tenho que ‘tirar o chapéu’, (risos) porque o brasileiro é muito diferente. Talvez, acho que meu país está atrasado ainda. Talvez agora, com os meios de comunicação, um pouquinho, e _______, só porque tem, todavia, aquela coisa de marginal. Por exemplo, minha irmã, quando estava na pandemia, me fala assim: “O Daniel falou que tem que cuidar de você. Você não pode ir sozinha, não”. Ainda está assim, mas a filha dela falava: “Mãe, ela já tem netos, por que você está ainda com isso e aquilo?”. Porque tem que falar onde vai, porque, isso e aquilo. Tem ainda essas coisas lá. Talvez por isso, porque ainda é atrasado. Aqui já evoluiu muito, é outra visão, a mente das pessoas é outra coisa e eu também tive que me adaptar a isso. Então, é muito difícil que as pessoas entendessem lá. Então, quando eu vou lá, eu viro outra pessoa também, porque também tem que ser adequado ao que está. A vida me levou a isso. Talvez, pra mim, a vida é um teatro, porque você tem que fazer, improvisar um teatro social, porque você vê que na hora tem que mostrar outra coisa. Ou, dependendo do lugar, porque uma pessoa… por exemplo, eu estou aqui, com vocês, fazendo um teatro, atuando, com meu esposo, com meus filhos. Então, eu vejo dessa maneira, que a vida é assim. Então, tem que atuar. Dependendo de todos os encontros dos caminhos, como os ventos trazem. Então, os ventos nos trazem sempre assim: tem tormenta... estamos ligados à natureza, porque a natureza tem frio, calor, ventos, tormentas, tudo isso, então eu me identifico com isso, sou tudo isso, porque é passado tudo isso na minha vida, eu passei tudo isso, todas essas coisas da natureza. Então, me levou a um lugar, a outro lugar, eu sempre imigrei e depois eu descobri que meu pai verdadeiro é imigrante, eu já venho de família de imigrante. Meu avô era um militar, do meu pai, só que como antigamente os filhos estudavam, ele estudou no Dom Bosco, no Colégio Dom Bosco. Eles internavam lá. Melhor colégio. Claro que o pai pagava. Então, eu descobri, que queria saber a história do meu pai também. Então, eu fui pesquisando, sabendo que meu pai já foi na Argentina, veio pra cá também, ele era tratorista, trabalhava em fazenda. Então, aquela vez, quando eu tinha quinze a dezesseis anos, eu tinha a oportunidade de conhecer meu pai, só que minha mãe tinha tanto rancor de meu pai, que me falava isso: “Seu pai é isso, aquilo”, então eu fiquei com ódio dele também. Os homens, inclusive, eu odiava os homens, generalizava os homens e olha a natureza que me deu só homens também, meus filhos. Eu não posso falar isso. Agora eu falo de igualdade. Tudo a vida que te ensina, me ensinou muito, eu aprendi muito, muito. Então, todas essas coisas eu fui tirando e minha vida transformando algo de bom. Eu falava assim: eu queria fazer uma história da minha vida, porque eu acho que é muita história, mas eu tinha vergonha de contar do meu passado, mas também ________, que estou fazendo Humanismo, tudo isso, aí eu aprendi a não ter vergonha de meu passado, porque também me identifica com outras pessoas, que também tem piores coisas, tudo, assim e também tudo isso que eu passei, comecei a refletir faz oito, nove anos. Por quê? Por minha doença, porque estava mal, com aquela tremedeira que estava falando, neurológica e uma coisa me levou a outra coisa, aí estava piorando e a gente ia ensaiar, tudo bem, mas não era toda semana, era uma vez por mês e na semana era aquela rotina de levantar, café da manhã, trabalho, comida, todo dia. Então, também eu não estava... agora pelo menos tem pra olhar essa realidade, antigamente nada disso, só música e pronto. Então, eu fui a ______ de uma terapeuta japonesa. Minha sorte, dou graças às pessoas que cruzaram em mim. Aí a japonesa me falou assim: “Me conta seu histórico de vida, seus familiares, que doenças têm, tudo, como morreram, tudo. Você não quer entrar no Taissô, [que é] japonês? Meu país, minha nação faz isso, aquilo. Onde vives? Onde você mora?”, “Eu moro na zona norte, aqui na Mariquinha Viana. É zona norte ainda, Santana”, “Então venha. Também tem, todo lugar tem. Seria bom fazer terapia. E vou te mandar também a uma psicóloga, depois tem de família também, tudo isso. Você está precisando, porque essas coisas são da cabeça, porque você está querendo entrar num processo...”, aquela coisa que dá, sabe, de fechar, que falam.
(02:52:01) P3 – Depressão?
R1 – Depressão. Depressão forte. Estava entrando, isso. “E por isso que não está conseguindo controlar seus nervos. Então, você precisa sair disso. Tudo que está carregando, o peso das suas costas tem que tirar pra fora e por isso que eu vou mandar na psicóloga. A psicóloga vai escutar, você tem que falar tudo”, “Mas eu não sei falar português bem”, porque eu não saía da minha casa e os amigos, eram em espanhol, tudo. De vez em quando... o básico, eu sabia, entendia também, já. “Mas aí você vai aprender, também”, “Tá bom”. Aí me mandaram pra Casa Verde, que tinha uma família, na frente tinha de homens e esse lugar era de mulheres. Aí a primeira vez que eu entrei foi uma roda de conversa, então aí me falou, me apresentou a pessoa: “Ela é a primeira vez, assim, assim, tem também problemas psicológicos, tudo. Todos que estão aqui tem os seus problemas, estão aqui pra fazer terapia e pra se restabelecer e fortalecer dessa doença”, “Tá bom”. Então, aí falei: “Eu não sei falar português, como vou contar? E também tenho vergonha”, “Então escreve, mas não coloca seu nome. Você escreve, ou quer gravar e não fala seu nome, nós temos que escutar, mas tem que falar. Está pra isso aqui e a psicóloga também: “Então fala tudo que acontece, você pode falar espanhol, que seja, a mim não me interessa, o que quero é que você descarregue o que você tem” e aí assim começou. Então, aí cada um começou a relatar a sua vida: “Eu sou tal”, assim, assim, outros mataram, outros não sei o que, nossa! “Está vendo? De você não é nada. Tem piores coisas. Somos seres humanos, erramos, tudo. O que você gosta de fazer? Você gosta de cozinhar?”, “Cozinho, gosto de cozinhar. Eu já costuro mais à mão”; “Você gostaria de fazer alguma coisa?”. Eles me levaram numa oficina que tinha de tudo pra escolher. Tinha oficina pra fazer sucos. Pra fazer o que você quer aprender, bolos. “Tá bom, então”. Essas coisas eram terapia. Nós estávamos ali, com as pessoas, envolvendo. Nossa, aí começaram a falar também, depois: “Você gosta de dançar?”. “Eu gosto”. “Você gostaria de aprender samba, coisas diferentes da sua terra?”. “Gostaria”. Então, eles me encaminharam e foi indo assim. E a japonesa me levou àquela ginástica: “Você tem que fazer alongamento, porque você pode entrar, tem que soltar tudo. Tem que fazer exercícios físicos e por dentro também”. Assim, entrei nisso graças a essa japonesa. Ela se chama Marina Tokinawa, não esqueço. Então, é isso. E aí comecei a ir aí, já. e ele preocupado: “Você já não está trabalhando. Está indo, indo, indo”, mas era uma terapia. Aqui eu estou com o trabalho tudo assim, ele estava diferente. Pronto e já não fui, deixei de ir, mais ou menos três meses. Aí eu acho que também o pessoal já se preocupou e vieram pra casa, tocaram a campainha e ele saiu, sempre ele sai, então: “Aqui mora Beatriz?”, “Sim”, “Você, por favor, a chama. O que é dela?”, “Eu sou marido”, “Você é o marido? Pode ficar, mas a chama, por favor. Você também tem que escutar”. Aí eu saí, eram eles: “O que aconteceu, Bia?”, começaram a me chamar de Bia. “Não, é que aqui tem muito trabalho”, “Trabalho sempre vai ter. Você é o marido, tem que entender, ajudar. Ela está assim, assim. Ou você quer que aconteça alguma coisa? Você, como marido, tem que apoiar, isso assim”, “Tá bom”. Foi isso. Só que aí já foram dias alternados, de manhã. Agora só vou bem de manhã, às cinco horas da manhã eu acordo e sete e meia estou de volta, pra fazer café da manhã, depois oito, já entro a trabalhar. Foi uma rotina, já, que não deixei. Claro, às vezes falto também, nem todo dia é assim. Então, é isso. Depois aí já começaram a me falar assim: “Por que você não quer ir numa fazenda?”. Depois a gente se apresentou em dança, na prefeitura, isso, então foi assim, eu gostei, quem não vai gostar de muita coisa assim? (risos) E aí esqueci meus problemas, já vejo de outra forma, já não é aquele tormento, aquela coisa pesada, sabe? Porque antigamente também com ele, brigávamos, chegávamos a nos xingar, tudo. Agora, não, vemos com outra visão, porque às vezes a educação faz muito, porque era ignorância também, de qualquer jeito é ignorante, então agora eu consigo, quero ser mais, pra deixar pros meus netos. Quero me fortalecer mais, ser outra pessoa, não aquela pessoa que ________. Não sei, às vezes me dá até vergonha, mas são coisas que eu não decidi, apareceram pra mim. Então, são coisas que me deixaram e eu fui indo pro lado errado, tudo, caindo, levantando, sempre. Então, foi isso. E São Paulo é uma terra linda, grande, Brasil também [é] maravilhoso. Tem seus lados, como sempre, em todo lugar, é claro, mas sempre temos que, no possível, tirar todo o bom que tem. Também meu país é bonito, tudo. Agora já me interesso, porque quando eu estava lá eu não sabia de nada, nem que tinha uma coisa, outra coisa. Agora que estou aqui, eu já vou pesquisando, quero ir lá conhecer, tudo isso.
(03:00:07) P1 – Bia, posso te fazer uma pergunta? Queria, se você pudesse contar um pouquinho do seu trabalho, o que você faz, como é o seu dia a dia e também como foi esse processo. Antes você trabalhava pra outras pessoas, quais eram as condições desse trabalho e o que mudou? Hoje em dia, você é autônoma, você trabalha, você mesma escolhe. Como foi essa transformação?
R1 – Isso. Bom, no começo foi conturbado, tudo, eu cheguei, como falo, o que me fortaleceu foi sempre o Daniel e eu agradeço a Deus por ser meu parceiro e ele me entender. Então, o trabalho com outras pessoas sempre era assim: te pagavam muito pouco, se aproveitavam. Com criança já trabalhei, mas não podia fazer nada, porque a criança, às vezes, é isso: “Você vai atender a criança, ou vai trabalhar?”. Aquela coisa que você não pode mexer, porque não eram meus. Tinha que cuidar. E às vezes alguma coisa que quebrava, o filho, tinha que pagar, descontava e saía sem dinheiro. Então, o Daniel falou assim: “Isso não é vida. Eu queria ficar contigo, meu filho não vai ficar assim, então vamos alugar uma casa”. Então, alugamos uma casa. Claro, foi sacrifício, mas...
(03:01:54) P1 – Você morava no trabalho? É isso?
R1 – Isso, no trabalho. Eu morava lá.
(03:01:58) P1 – E tinha hora certa, ou não?
R1 – Sim, tinha. A gente trabalhava desde cinco horas da manhã até uma hora da manhã, até acabar, porque eles te condicionavam [a] um trabalho assim: “Você tem que acabar isso” e também acelerava, porque era pouquinho. Em nossa mente, pra ganhar, pra tirar, nosso dia, tínhamos que ‘ralar’ bastante. Era assim. Hoje em dia já tem leis, tudo isso.
(03:02:31) P1 – Era por dia que vocês recebiam, ou por peça? Como que era?
R1 – Por peça. Elas traziam uma prenda, a gente tinha que armar por peça. Agora, se era overloquista, ganhava cinco centavos por peça. Na reta, ganhávamos por peça a dez, quinze centavos. Então, tínhamos... porque aí era descontada também a comida, não sei o que, então eram muitas coisas. Algumas pessoas... até agora ainda tem, mas já se foram mais longe, acho. Ainda tem escravos, escravizando e é ruim falar isso, mas é uma realidade que acontece em todo lugar. Então, é isso que nos fortalece. E ele falou: “Não, chega, temos que...”. A gente, primeiro, era nosso... um galpão, mas a gente tampou com aqueles nylons, como fala?
(03:03:51) P1 – Lona?
R1 – Lona. A gente... era terra. Aí um cantinho que eles nos deram era pouquinho pra pagar. Depois já a gente foi numa casa, mesmo. Já era pequeno, mas dava pra armar nosso... aí a gente, com sacrifício, fizemos nossas máquinas, foi muito sacrificado. Depois a gente queria ir pra outro lugar, era uma sexta-feira, estávamos levando nossas máquinas e o fiscal nos pegou e não tínhamos os... porque era de ‘segunda mão’ que a gente comprou, não tínhamos ______. Então, não foi também assim, fácil. Depois meu filho estava ficando doente, o Brayam, tinha asma e estava piorando, porque a casa era velhinha, como era barato e tinha, do lado, um mecânico, jogava fumaça, aquelas coisas fortes, então estava muito ruim, não dormia à noite, ele tossia muito, tinha crises. Então, eu levava ao médico e nada e xarope e isso e isso, nada, nada, nada. Aí a médica me falou: “Como você mora? Como você está?”. Eu falei a verdade, e falou: “Na casa velha tem muito ácaro, que não se vê assim de vista, só com microscópio e à noite eles gostam de entrar pela boca e entrar nos pulmões. Então, era bom que vocês dormissem na rua, que aí dentro, porque cuidado, se você quer bem ao seu filho. E como você limpa a sua casa?”. Eu comprava aqueles cheirinhos. Aqui tinha um caminhão que chegava, eu comprava detergente pra não sei o que, era de madeira o lugar, então fazia de tudo e era químico, então era alérgico, o Brayam, então tudo isso eu estava fazendo mal pra ele. Aí falou: “Nossa, tem que te mudar de casa”. Ainda não temos condições, porque estávamos pagando as máquinas, isso tudo, era difícil também pra nós, pra fortalecer-nos, mas mesmo assim a gente se fortaleceu e a gente se mudou pra Mooca, numa casa maior. Aí já não tínhamos coisas pra preencher, porque eram bem grandes os quartos, a gente comprou a prazo tudo, os móveis, então aí o Brayam já melhorou um pouco, mas só que a médica falou assim: “Veja, você tem que fazer exercícios de pulmão, o Brayam. Coloca na natação”, mas eu não tinha condições, era cobrado. Aí falei: “Não tem outra coisa pra ele fazer? Talvez uma coisa mais baratinha pra ele?”, “Então compra bexiga e vai soprar, fazer exercício”, “Tá bom”. Ela me ensinou. Aí, como estava no grupo, eu contei pra eles: “Mas soprar bexiga, melhor soprar isso”. (risos) A zampoña. E aí começou. Foi uma terapia e o sarou e até agora sopra...
(3:07:50) P1 – O instrumento?
R1 – O instrumento. Foi uma cura pra nós. A dança foi uma cura. Por isso que falo pra todo mundo que a dança, tudo que é de bom, faz nos... porque somos seres humanos, a gente, às vezes, não se dá conta. Eu não estava me dando conta que estava entrando no estresse. Parecia, pra mim, normal, que estava bem, que estava fazendo meu trabalho, vou juntar dinheiro pra outras coisas, tudo, mas você vai entrando nisso. Aqui embaixo também tem um rapaz, ele não gosta de sair muito, só por aqui, não se vive, nada pra ele... ele está já assim. Eu falo pra ele, mas ele não quer, então tem que querer também.
(03:08:45) P1 – E, Bia, como foi esse episódio que pegaram, fiscalizaram a máquina?
R1 – Vieram com moto e não sei: “Encosta, encosta”. Encostou e falou assim: “O que estão levando?”, “Máquina”. Eram quatro máquinas. “E os papéis fiscais, cadê, que compraram, se é de vocês, ou não?”, “Não temos, compramos de ‘segunda mão’”. Não quiseram escutar: “Então, vamos levar”.
(03:09:29) P1 – Onde foi isso?
R1 – Aqui no Jardim Joamar, na subida do cemitério, mais um pouquinho pra baixo, poque eu morava mais pra lá. E então levaram, falaram pro motorista levar e nós ficamos assim, parados aí, nos deixaram. Não sei se eram... talvez também pudesse ser roubo, não sei, nunca mais vimos. Nunca mais, também, reclamamos, porque meus documentos estavam demorando, a gente tinha medo de qualquer coisa, estávamos indocumentados, porque antigamente falava: “Qualquer coisa, pra fora, isso e aquilo”, aquele medo do imigrante, então foi isso. E depois a gente, com a costura, nos dá tudo. Pra nós é o nosso sustento de vida, nosso ar, nosso pulmão, nossa vida. Então, aqui que choramos, cantamos, fazemos de tudo e por isso que eu gosto da costura, porque eu não gostava da costura. Sabe por quê? Essa parte eu não contei, quando me levaram à La Paz aquela vez, quando morreu meu avô, tudo, meu irmão tinha um ateliê, uma oficina de costura, mas ao pedal, aquelas máquinas antigas e a motorzinho, um pouquinho assim. Só que como eu tinha que fazer tudo, até uma hora da manhã, ele me batia, que tinha que cortar. Eu estava assim, tinha que fazer. Não faziam a roupa, faziam carteiras e luvas de napa, aquele couro. Então era assim, por isso que eu não gostava, porque eu apanhava muito e falava: “Não, eu não quero passar igual aqui” (risos) e depois, como as coisas... por isso que eu falo, eu falava: “Não gosto de homens, que homens não sei o quê. Eu não gosto de costura, porque também passo tudo isso”, mas a vida me levou, que tem que entender isso, que é diferente, não pode ser só... um lugar é outra coisa; outro lugar é outra coisa. Então, meus filhos, por exemplo, eu não posso falar: “Ele é um sei lá”. Tem os netos também. Então, é isso: só entender, compreender e às vezes tenho colegas também que eu gosto de escutar histórias, porque também não tinha quem me escute minha história, porque tinha vergonha e agora eu escuto, ajudo essas pessoas, as mulheres. Às vezes me falam assim, pode chorar, tudo, aí eu dou conselho, falo que tem que ver do outro... por isso que eu quero, eu gosto dessas terapias. Tudo que eu aprendi, quero passar pra outras pessoas e também melhorar nesse sentido, e assim, porque às vezes a vida é curta, porque, de repente, já tenho mais de cinquenta anos, daqui a pouco sessenta, (risos) então o tempo, temos que aproveitar o tempo valioso que a gente tem.
(03:13:31) P1 – Quando você mudou de opinião em relação a costura?
R1 – Quando já morei com Daniel, porque Daniel gosta de costura. Ele sim, nossa! Eu falava pra ele: “Não gosto de costura, porque...” e ele não, ele tem paciência, faz isso e ele não estudou nada, mas ele ‘tira da cabeça’, me dá ideias também. Então, nesse sentido, agradeço a ele, ele também me fortaleceu, em todos os sentidos. Então, ele sabe fazer muita coisa, porque, ali, os homens, quando estudavam, tinham que aprender a marcenaria, eletricidade, o básico. As mulheres, cozinhar, fazer bolo e tudo. A gente entrava pra fazer prática e tinha que apresentar. Esse era o exame, a prova. Então, ele também, nesse sentido, a gente se entende no trabalho, nos entendemos em dança, tocamos também, em várias coisas, então a gente está bem até agora, graças a Deus.
(03:14:53) P1 – Então, vocês trabalham juntos? Ele também costura?
R1 – Juntos. Meu filho também, caçula, porque já saiu... ele tem um filho, que estava no Piauí, agora já vem. Eles se separaram. Brasileira. Ela mora... ai, não sei o nome, acho que é... não sei. E aí, então, ele, por exemplo, já foi trabalhar em outro lugar, tudo, e falou que não se acostumou, se acostuma mais com a... porque também a gente divide tudo por três, o que ganha, nós nos ajudamos, não falta ajuda, isso, alguma coisa, para, tudo divide assim, certinho. Então, também, pra ele convém, ele pode sustentar o filho também, pode fazer... agora, o meu outro filho, o Brayam, já vende roupa. Ele pega roupa e revende.
(03:16:02) P1 – Que vocês fazem, não?
R1 – Não. É de outro lugar, que ele compra e revende, na madrugada, no Brás. Ele está melhor, já tem carro, está ‘bem de vida’. Agora, meu outro filho tem também, em Corinthians-Itaquera, tenho dois netos, ele trabalha assim também, de costura, só que ele é só ‘galonerista’, galoneiro. Ele se especializou em um só. Então, ele trabalha isso lá.
(03:16:37) P1 – E aqui vocês fazem várias peças, vocês trabalham por encomenda? Como que é?
R1 – Às vezes eles trazem pessoas que me trazem pra fazer, por quantidade, às vezes por unidade. A gente não rechaça nada, se é bem pago. Se não... apesar que as pessoas falam que é mal pago, muito pouco, mas pelo menos a gente tem isso. Eu vou mostrar pra vocês também as jaquetinhas que eu faço, quem sabe eu vou costurar um pouquinho? Então, fazemos isso. Também fazemos aqueles vestidos, colocamos aguayo, esse daí é um material de tecido andino, de lã, aqui tem também, então são os bordados que eu faço, porque também meu marido sabe bordar, porque a família dele dança (na morenada?) e são, de família, bordadores, lá na Bolívia, em Oruro. Então, os primos, todo mundo sabe, ele também, de pequeno, trabalhava no bordado, que fazem aquelas roupas bem lindas, bordadas. Então, ele tem [o] sonho ainda de fazer isso, (risos) porque a gente tem sempre coisas que ficam atrás fazer de novo, tudo isso. E é isso nosso...
(03:18:16) P1 – E às vezes você cria, então, bolsas e depois você vende em feiras?
R1 – Isso. Às vezes não nas feiras, que alguém, a gente vai tocar em algum projeto, alguma coisa, eles convidam. Se é baratinho o lugar, eu pego e vou armar meu... se não, também às vezes eles falam: “É de graça, você pode colocar suas coisas, fazer”. Às vezes tem eventos de várias nacionalidades, Bolívia, então eu vou representar a Bolívia, às vezes comida, faço assim, mais ou menos, e a maioria eu vendo de boca a boca. Eles me fazem pedidos: “Faz isso pra mim”. Por exemplo: “A minha filha queria com aquele bordado aguayo, alguma coisa, você pode fazer?”, “Tá bom”. Então, vamos assim, fazendo esses trabalhinhos e, graças a Deus, não falta dinheirinho, por causa disso. Meu sonho é armar um ateliê, ter meu cantinho só disso e enfeitar tudo bonitinho e tirar foto, divulgar talvez, quem sabe? Eu estou aprendendo, eu também estou nessa caminhada, aprendendo pra fortalecer nesse sentido de artesanato também. Então, é isso, vamos indo. E meu esposo, pela mãe, quer ir sempre lá, na Bolívia, porque lá a família está muito forte. Então, também tem casa lá, ele fala: “Quem vai nos cuidar? Pelo menos ali vamos ter nosso cantinho, vamos estar velhinhos”. Então, é isso. Mas aí, não sei, vai demorar um pouquinho. (risos)
(03:20:22) P1 – E, Bia, dentro do seu trabalho, o que você mais gosta de fazer?
R1 – Eu gosto de fazer artesanato, mais mostrar minhas coisas que eu quero e, lembrando da minha avó, eu quero fazer essas roupas também. Eu coloco aqui golas também, de aguayo, fazendo figurino. Então, sempre estou fazendo. Eu gosto de crochê, como minha mãe também. Bordado eu sei fazer também, só que não estou praticando, porque não tenho tempo, mas eu faço. Mas algumas vezes a gente vai dando alguma oficina em algum lugar, talvez, no Centro Cultural, alguma coisa me chamam, então eu vou sempre em alguma coisa. Então, eu vou fazendo coisas. Agora, na festa junina também me chamaram pra Caucaia e talvez aí eu vou levar o artesanato e fazer alguma coisa, não sei ainda, mas eles já me falaram algum que eu tenho que falar. É isso, minha vida é essa. (risos)
(03:21:46) P1 – E quando você cria peças, normalmente estão ligadas à sua cultura, à sua tradição? É isso?
R1 – Isso. À minha cultura, mais que tudo, porque lá tem coisas bonitas, então é colorido. Então, aqui, no Brasil, eu vejo tudo colorido e depois, as bandeirinhas que eu faço, com aguayo, um tecido andino e a chita, que é brasileira, um casal perfeito, porque são meus dois adorados países, (risos) então eu estou tentando fazer isso também e expressar tudo, que a vida é um arco-íris, que tem tudo, baixos, então transformar toda a dor em uma coisa alegre, feliz. Então, é isso.
(03:22:56) P1 – E quais são... a gente está meio caminhando pro fim, queria saber quais são seus sonhos.
R1 - Meu sonho é ter esse ateliê, que as mulheres tenham essa fortaleza de se superar, porque pra tudo tem um caminho, uma saída. Então, às vezes as mulheres, especialmente as indígenas, nos submetemos a coisas que talvez, por medo, por ignorância, por não saber, ou talvez porque vem coisas assim, de repente, por todas essas coisas, a gente se fecha, mas meu sonho é que as mulheres unidas, que se unam, porque a união fortalece, faz força. Que abraçados vão sempre pelo bem. Que não sejam derrotados pelo mal, senão que seja pelo bem, porque o mal sempre quer ganhar, mas temos que esse mal se virar pra outro lado. Então, é isso, porque senão, como vamos viver? Porque Deus, nossos pais nos deram esse lindo presente de vida, eu agradeço à minha mãe, meu pai, que me deram essa vida, mesmo que eles não me criaram, que não conheço meu pai, só pela foto, mas também agradeço, porque também senão não estaria dando risada, pelo menos comendo aquela comidinha gostosa, não teria nada disso e também agradeço a Deus, que até agora as doenças também podemos superar, com tudo isso, porque às vezes estão na nossa cabeça, no nosso corpo e não conseguimos tirar e essa doença é um câncer, essas emoções vão... é uma dor que vai virando câncer. Então, nós temos que... às vezes um problema nós que fazemos uma ‘tempestade’. (risos) Não, temos que ver com ‘outros olhos’, que os problemas são pra resolver, não pra piorar. Então, temos que saber, porque num desses dias, se não for hoje que você não vai ter solução, em algum momento vai ter uma saída, um caminho. Então, porque nós, às vezes, nos prendemos a coisas, a mágoas, a isso, por que isso. A mulher, pior ainda. Então, nos prendemos a isso e isso vira câncer, doença e a gente não consegue sair, mas eu acho que tem que dissolver isso e nos curar, também nos conhecer. As pessoas, não nos conhecemos. Por exemplo, eu sabia dos outros, menos de mim. Na minha ignorância, antigamente, era assim. Agora já consigo perceber, saber porquê estou assim, porque me dói a cabeça, porquê isso, então já consigo eu me autoconstruir, autocurar, tudo isso. Então, pra mim, é isso: conhecer-se. Às vezes a gente não sabe o que existe na nossa cabeça. Às vezes nem olha nossas mãos. Quando quebra, aí sim: “Nossa, minha mãe está doendo, está isso”. Então, a gente se esquece muito e pensa que o médico vai dar solução, na última hora pensa: “O médico tem culpa, isso”. Nós que não cuidamos do nosso organismo, não nos alimentamos bem, também não vemos nossa natureza, temos que cuidar, porque nossa natureza também é junto conosco, eles que nos dão tudo isso: calor, frio, tudo. Ela sempre está cuidando, a mãe natureza, de nós, então eu acho que sempre temos que agradecer a tudo isso que a vida nos dá. Então, tudo temos que ver com ‘outros olhos’. E eu gostaria isso, que as pessoas, aos poucos, eu sei que vai ser difícil, mas passar às pessoas, às crianças e que cada um faça sua parte de cuidar da natureza, como eu aprendi também com os japoneses: tem um lixo aí jogado, eles vão pegar, vão catar e jogam nos seus _____ de problemas, se eles estão bem vestidos ou não, pode ser de gravata, eles não fazem problema. Porque às vezes a gente fala assim: “Eu estou pagando meu imposto”. Pelo menos a porta tem que limpar um pouquinho, mesmo que seja velhinho. Então, a gente tem que mudar essa visão, não esperar dos outros, que os milagres acontecem, mas nós temos que fazer que aconteçam os milagres. Então, temos que ver isso e tudo é lindo, a chuva é linda, tudo é maravilhoso, porque sempre estamos nos queixando: “Que está chovendo, que está fazendo calor”, mas não é assim. Então, agradecer, e nós que temos que cuidar, porque também estão acontecendo coisas aqui, na nossa natureza também, enquanto a política é igual, porque nossa cabeça é ‘dura’, (risos) que não queremos entender as coisas. Então, tudo isso. Eu acho que as mulheres também têm que se conhecer, conhecer também a se aprender e sair isso de dentro o que está ______. Às vezes nos fechamos, tapamos os olhos e pensamos que só ao nosso redor tem que estar aí, aí, aí e só isso, mas não vemos os outros horizontes, que aí pode estar a saída pra tudo e eu queria que as pessoas... é isso que eu passo, pelo menos às outras pessoas que conheço. Claro que tem pessoas que às vezes falam negativo, aí eu falo, dou um abraço. (risos) Então, é isso: temos que a vida continuar, do jeito que é e bom que temos que nos alimentar também bem, que às vezes essas coisas também fazem... tudo, porque se a gente, desde que nascesse, fizesse as coisas certas, eu acho que o ser humano também viveria mais tempo, mais de cem anos, sei lá. Que nós que condenamos nosso corpo, que não sabemos cuidar. Então, aí que às vezes gera todos esses conflitos psicológicos, com nosso... tudo. Até tem morte também. Nossa! Então, é isso. (risos)
(03:31:52) P1 – Bia, eu queria te agradecer por essa aula sobre a vida, ‘de coração’ e quero, pra finalizar, te perguntar como foi, pra você, dividir um pouco da sua história? Eu sei que a gente teria mais um milhão de horas pra conversar (risos) e eu sei que você tem realmente muito mais história pra contar, mas como foi poder dividir com a gente um pouquinho da sua vida, como foi essa experiência?
R1 – Eu estou cumprindo um dos meus sonhos, de contar minha história. Eu queria, sempre pensava assim: eu queria escrever, deixar minha história escrevendo, eu escrevo, tenho folhas escritas e que alguém pegasse essa história e fizesse uma novela, sei lá. (risos) Eu queria isso. E agora, pra mim é um privilégio estar compartilhando, e essa oportunidade, porque eu estou ‘abraçando’, estou maravilhada, agradeço vocês por me escutarem, minha história. É claro que falta muitas coisas ainda, mas também é isso e agradeço, eu que estou muito agradecida, por isso que eu quis aqui, na minha casa, pra me sentir à vontade, tudo isso. Então, por isso que eu falei ‘sim’ (risos) na hora, porque nem pensei e também agradeço cada um de vocês, que vocês estão aqui, pacientemente, me escutando. Tomara que seja pro bem.
(03:33:50) P1 – Sim.
R1 – E é isso. E graças a cada um de vocês!
(03:33:56) P1 – Obrigada nós, ‘de coração’, mesmo.
R1 – Isso. Agora vou mostrar as roupas, as costuras, as coisas, a prática.
(03:34:04) P1 – Eba! Tá bom. Combinado.
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