Me chamo Harry D. Castro. Mas, ó, esse “D.” aí é só charme mesmo. Nasci em Salvador, mas não cresci lá. Salvador me viu só no berço, porque meus pais, vindos do Piauí, estavam de passagem. Foram ajudar uma tia, ficaram um tempo e voltaram pra São Paulo antes que eu aprendesse a andar. Mas meu umbigo está lá, fincado na Bahia. Todo janeiro, eu volto. É promessa com a minha história.
Cresci nos fundos de um açougue, no Planalto Paulista, bairro “de classe média”, como dizem. Só que classe média é quem tem casa própria, né? A gente tinha um quartinho, banheiro coletivo com os funcionários e muita dignidade. Meu pai, açougueiro. Minha mãe, servente. Eu, filho único, criado nesse microcosmo de concreto e carne crua.
Ali, entre os cheiros fortes e os sonhos miúdos, conheci a dança. A escola pública foi meu palco e minha plateia. Em 1998, com 10 anos, dancei axé numa apresentação. Me aplaudiram como se eu fosse o Carlinhos Brown do bairro. A sala inteira vibrou. Ganhei medalha. Ali entendi que a arte podia ser abrigo. Em 2000, vesti uma túnica e virei Mago Merlin numa peça sobre o Rei Arthur. Não fui o galã, fui o “esquisito da sala”. Mas roubei a cena. Meu talento estava no encantamento, não na espada.
Com 13 anos, num daqueles desvios da vida, entrei pra igreja evangélica. Não por culpa mas por música. Reencontrei uma vizinha que me levou pra Igreja Batista. Ela me deu aulas de piano, e meu pai, com esforço, bancou aulas de teclado. Só que a vida também toca outras músicas, e precisei trabalhar. Call center, boletos, salário mínimo. Viver de arte? Isso viria mais tarde, aos 26, quando retomei o que era meu.
No meio disso tudo, conheci o Terça Afro. Um coletivo nascido do amor de meninas pretas por outras crianças pretas. Um espaço que virou roda, que virou resistência. Fui como convidado, fiquei como parte da engrenagem. Me tornei gestor cultural, mediador, fazedor de pontes. Sou aquele que liga,...
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Me chamo Harry D. Castro. Mas, ó, esse “D.” aí é só charme mesmo. Nasci em Salvador, mas não cresci lá. Salvador me viu só no berço, porque meus pais, vindos do Piauí, estavam de passagem. Foram ajudar uma tia, ficaram um tempo e voltaram pra São Paulo antes que eu aprendesse a andar. Mas meu umbigo está lá, fincado na Bahia. Todo janeiro, eu volto. É promessa com a minha história.
Cresci nos fundos de um açougue, no Planalto Paulista, bairro “de classe média”, como dizem. Só que classe média é quem tem casa própria, né? A gente tinha um quartinho, banheiro coletivo com os funcionários e muita dignidade. Meu pai, açougueiro. Minha mãe, servente. Eu, filho único, criado nesse microcosmo de concreto e carne crua.
Ali, entre os cheiros fortes e os sonhos miúdos, conheci a dança. A escola pública foi meu palco e minha plateia. Em 1998, com 10 anos, dancei axé numa apresentação. Me aplaudiram como se eu fosse o Carlinhos Brown do bairro. A sala inteira vibrou. Ganhei medalha. Ali entendi que a arte podia ser abrigo. Em 2000, vesti uma túnica e virei Mago Merlin numa peça sobre o Rei Arthur. Não fui o galã, fui o “esquisito da sala”. Mas roubei a cena. Meu talento estava no encantamento, não na espada.
Com 13 anos, num daqueles desvios da vida, entrei pra igreja evangélica. Não por culpa mas por música. Reencontrei uma vizinha que me levou pra Igreja Batista. Ela me deu aulas de piano, e meu pai, com esforço, bancou aulas de teclado. Só que a vida também toca outras músicas, e precisei trabalhar. Call center, boletos, salário mínimo. Viver de arte? Isso viria mais tarde, aos 26, quando retomei o que era meu.
No meio disso tudo, conheci o Terça Afro. Um coletivo nascido do amor de meninas pretas por outras crianças pretas. Um espaço que virou roda, que virou resistência. Fui como convidado, fiquei como parte da engrenagem. Me tornei gestor cultural, mediador, fazedor de pontes. Sou aquele que liga, manda e-mail, negocia cachê ou camaradagem. Gosto disso. Gosto de estar no bastidor e, quando preciso, na frente também.
O Terça Afro é mais que projeto. É cura. Lá, ouvi pessoas negras falarem sobre Exu, acessibilidade, dinheiro, samba, Egito, amor, dor, ancestralidade. Lá, aprendi que a gente transforma com escuta. Que não é só sobre dar voz, mas sobre construir espaço pra que essa voz ecoe.
Vi o Terça Afro crescer, sofrer, ser ignorado por não ser "influencer". Já ganhamos editais — VAI, Fomento à Periferia, Culturas Negras — e já enfrentamos a dureza de sermos esquecidos. Mas resistimos. Porque, quando a roda gira, ela faz história. Teve uma vez que trouxemos o T-Caçula, sambista e sociólogo. Falou da história do samba de São Paulo como quem desenha o mapa do Brasil preto. Aquele dia, entendi que o samba que me formou tem ciência, tem tese, tem chão. Dias depois, Seu Carlão do Peruche, um dos cardeais do samba paulistano, sentou-se conosco. Foi ancestralidade em carne viva. E eu ali, entre os dois, entendi que minha voz precisava continuar.
Também teve Joelzito Araújo, cineasta, autor de A Negação do Brasil. Vi aquele homem no Terça e me emocionei. Porque foi ele quem me mostrou, ainda jovem, que a TV podia negar uma nação inteira e que, por isso, a gente precisava produzir nossas próprias imagens.
Sigo no Terça Afro porque acredito. Porque já vi menino levantar a cabeça depois de uma roda. Já vi amiga se entender negra ali, entre palavras que doem e curam. Já vi pessoa com deficiência dizer: “aqui me ouvem, aqui me olham”.
Se você me perguntar quem eu sou, eu te digo: sou um menino que cresceu entre cortes de carne e cortes na alma, e que descobriu na arte uma forma de não sangrar sozinho. Sou Harry, aquele que dança, escreve, canta, acolhe, media, insiste. E, se hoje eu conto minha história, é porque aprendi que cada lembrança pode ser semente. E eu sigo plantando. Porque, mesmo quando não tem luz, mesmo quando o projeto quase para, eu lembro: o mundo precisa da nossa roda.
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