RIBEIRÃO DOCE – MEMÓRIAS
ODISSEIA MINEIRA
Capitulo - I
Meu nascimento ocorreu em 29/07/1942, no município de Alto Rio Doce - MG, na centenária sede Fazenda Ribeirão Doce, demolida na década de 50. Eu, Tacílio Benedito de Araújo e meus irmãos Tanísio Benedito de Araújo (1.944) e Tanúncio Benedito de Araújo (1945) os últimos descendentes do patriarca Antônio Benedito de Araújo (1795-1875) que nasceram na Casa Grande, o primogênito Tarcísio Benedito de Araújo (1940-2020), nasceu em na cidade de Mercês - MG, na casa da vovó Maria (Maria Antônia de Castro), mãe de minha mãe. Meu pai Antônio Benedito de Araújo (Ninico Quitute) (1899-1960), natural do Município de Alto Rio Doce - MG e minha mãe Tereza de Jesus Araújo (dona Terezinha-1922-2016) natural da cidade de Mercês - MG, ainda moravam conosco na fazenda a vovó Colina (Marcolina de Oliveira Campos), avó de meu pai e seu filho caçula Abílio Campos, minha avó dona Quitute (Maria de Oliveira Campos) mãe de meu pai, vivia na cidade de Alto Rio Doce, na casa de sua filha caçula tia Vitinha, na Rua do Buraco.
Eu tinha mais uma avó, a vovó Mutuca, parteira que atendeu minha mãe no meu nascimento e eu a respeitava como respeitava as outras avós de sangue, tomava bença e beijava sua mão e gostava de levar os mantimentos que o papai lhe mandava como leite, fubá, arroz, feijão, rapadura, café, etc., sempre que ela pedia e deles necessitava. Ela morava em um rancho coberto de sapé e piso de terra batida, era idosa e todos cuidavam dela, era a avó parteira da maioria das pessoas da comunidade, foi e única parteira que conheci na roça. Quando a vovó Colina casou o pai dela a presenteou com um casal de crianças escravos e a vovó Mutuca foi a menina. A vovó Mutuca na década de 40 já devia ter mais de 80 anos, o papai nasceu em 1899 e era neto da vovó Colina, uma idade para poucos na época, andava se apoiando em uma bengala e sempre me recebia bem em seu rancho...
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ODISSEIA MINEIRA
Capitulo - I
Meu nascimento ocorreu em 29/07/1942, no município de Alto Rio Doce - MG, na centenária sede Fazenda Ribeirão Doce, demolida na década de 50. Eu, Tacílio Benedito de Araújo e meus irmãos Tanísio Benedito de Araújo (1.944) e Tanúncio Benedito de Araújo (1945) os últimos descendentes do patriarca Antônio Benedito de Araújo (1795-1875) que nasceram na Casa Grande, o primogênito Tarcísio Benedito de Araújo (1940-2020), nasceu em na cidade de Mercês - MG, na casa da vovó Maria (Maria Antônia de Castro), mãe de minha mãe. Meu pai Antônio Benedito de Araújo (Ninico Quitute) (1899-1960), natural do Município de Alto Rio Doce - MG e minha mãe Tereza de Jesus Araújo (dona Terezinha-1922-2016) natural da cidade de Mercês - MG, ainda moravam conosco na fazenda a vovó Colina (Marcolina de Oliveira Campos), avó de meu pai e seu filho caçula Abílio Campos, minha avó dona Quitute (Maria de Oliveira Campos) mãe de meu pai, vivia na cidade de Alto Rio Doce, na casa de sua filha caçula tia Vitinha, na Rua do Buraco.
Eu tinha mais uma avó, a vovó Mutuca, parteira que atendeu minha mãe no meu nascimento e eu a respeitava como respeitava as outras avós de sangue, tomava bença e beijava sua mão e gostava de levar os mantimentos que o papai lhe mandava como leite, fubá, arroz, feijão, rapadura, café, etc., sempre que ela pedia e deles necessitava. Ela morava em um rancho coberto de sapé e piso de terra batida, era idosa e todos cuidavam dela, era a avó parteira da maioria das pessoas da comunidade, foi e única parteira que conheci na roça. Quando a vovó Colina casou o pai dela a presenteou com um casal de crianças escravos e a vovó Mutuca foi a menina. A vovó Mutuca na década de 40 já devia ter mais de 80 anos, o papai nasceu em 1899 e era neto da vovó Colina, uma idade para poucos na época, andava se apoiando em uma bengala e sempre me recebia bem em seu rancho e não me deixava sair sem merendar, enquanto ela preparava o angu doce ou torrava o fubá eu passava cana na engenhoca para o café, ela me dava uma cuia com café com leite e farinha ou angu, sentava comigo e batíamos papo enquanto eu merendava, quando eu saia ela mandava lembrança para meus pais e para a vovó Colina.
Escutei uma conversa entre as duas sentadas nos degraus de pedra da porta da frente da casa grande sobre uma escrava de nome Chica, eu brincava no terreiro gramado perto delas. O negociante de escravos havia chegado na fazenda e quando a vovó Colina chegou na cozinha a Chica lhe falou para dizer ao vovô que ela queria ser vendida, na fazenda ela não ficava mais, se não fosse vendida ia matar alguém para ser presa. A vovó conversou com o vovô e ele concordou em vendê-la, como a Chica tinha um filho pequeno a vovó foi na cozinha e comentou com ela que o vovô ia vender os dois para não separar a mãe do filho, ela ficou uma fera e disse que queria ser vendida entre outras coisas para se livrar do negrinho. Em outro papo elas mencionaram um irmão do vovô que tinha vindo de Portugal de nome Francisco, ele ficou uns tempos na fazenda, mas teve que ser enviado de volta a Portugal porque estava mexendo com as escravas e os negros planejavam mata-lo.
Às tardes, a octogenária vovó Colina com seus passos curtos e incertos, com a temperatura mais amena gostava de dar pequenas caminhadas pelas proximidades da casa grande, costumava ir até na estrada estadual e era acompanhada por um dos meninos da casa. Eu não tinha paciência para andar com ela, com o tempo ela chamava o “bonitinho” (Tanísio) para acompanha-la e de mãos dadas saiam andando vagarosamente pelas proximidades, eu costumava curtir a cara do Tanísio chamando-o de “bonitinho”, mas gozar a cara dele não era brincadeira, ele era um ótimo atirador de pedras e nunca foi de aturar desaforos e além do mais se ele não a acompanhasse podia sobrar para mim, assim eu maneirava nestas gozações. Eu até gostava de ver e admirava as caminhadas deles, minha bisavó miúda e magra, com seu vestido escuro com a barra tocando o chão, com seu coque elegante que combinava com sua figura de mãos dadas com o Tanísio caminhando vagarosamente pareciam uma linda pintura. A vovó Colina sempre gostou muito do Tanísio e sempre o protegia e gozar a cara dele na presença dela nem pensar, ela não permitia e a paciência dele para com ela era admirável, ela gostava de sentar no banco da varanda e ele sempre sentava a seu lado e ficavam de mãos datas batendo papo descontraidamente por longos períodos. Ela era uma mulher admirável, idosa e muito viva, de ótima memoria, eu devia ter tido mais paciência com ela, tenho certeza que ela teria dividido comigo muitas recordações de sua longa vida.
A porteira de acesso à sede ficava em frente ao marco do km 6 da estrada estadual cascalhada entre Alto Rio Doce e Barbacena, após ultrapassar esta porteira havia outra porteira a uns 100 metros para acesso ao pátio gramado da Casa Grande. Á direita do pátio ficava o potreiro e logo após a porteira do lado esquerdo ficava o chiqueiro, a primeira baia era do enorme cachaço piau e ele era uma fera, atacava todos que entravam em sua baia, eu gostava de ficar observando, vendo-o batendo queixo e babando pra todo lado, bastava sentir o cheiro de uma porca por perto, a seguinte era a ceva de engorda e se estendia até debaixo do paiol, onde os capados deitavam depois de alimentados, em seguida ficava o paiol e ao lado ficava a coberta do Carro de boi e do carroção e suas tralhas. Atrás e do lado direito do chiqueiro ficava a manga onde os porcos solteiros magros e os leitões perambulavam livres. Do lado direito do pátio, ficava a outra porteira dava acesso aos fundos da casa e ao engenho.
A casa grande tinha duas portas, a porta principal em sua frente, cujo acesso de dava por uns degraus de pedra, ao lado dos degraus havia um limpa pés de ferro fundido. Após ultrapassar a porta havia um cômodo onde eram guardadas as arreatas e tralhas dos cargueiros e dos cavalos e a direita uma escada para acesso à varanda. No cume da escada, já na varanda ficava o sino e o parapeito de madeira trabalhada, no final da varanda havia duas portas, a frontal no final da varanda dava acesso ao escritório do papai e a do fundo da varanda, a esquerda dava acesso à sala de visitas. A segunda porta de entrada era a mais usada, ficava na lateral da casa e dava acesso à sala de jantar, e a um corredor que levava à cozinha, havia uns degraus de pedra do lado de fora e mais um limpa pés em sua base, após ultrapassar a porta havia um cômodo à esquerda no porão, dentro deste cômodo ficava o balaio de cinza para filtrar a agua e apurar a diquada de cinza para fabricação do sabão preto e uma grande panela de ferro de três pés assentada, que tanto servia para fritar toucinho e a carne como para a fabricação do sabão.
No porão principal cujo acesso se dava por uma porta debaixo da varanda ficavam os caixotões onde eram armazenados os mantimentos para o uso diário da casa e as sementes reservadas para o uso e o plantio, em um canto havia um latão gerador de acetileno enferrujado, cujo gás fora usado para iluminação da casa, em seus cômodos principais ainda haviam os bicos espelhados para iluminação noturna, como os canos eram de chumbo estavam corroídos pelos ratos, com vários buracos, na minha época usávamos para a iluminação noturna lamparinas a querosene. Havia também uma centrifuga manual para separar o soro e o creme do leite, que também não passava de sucata. Debaixo da cozinha ficava o forno a lenha, pouco usado, só era aceso em ocasiões especiais e onde ao lado, no curral, havia um coxo inteiriço de um troco madeira, que servia para aparar a lavagem oriunda da pia da cozinha, as vacas adoravam a lavagem, era escutarem o barulho da lavagem caído que imediatamente iam até o cocho.
A água potável chegava perto da casa por um córrego que desaguava por uma bica existente a esquerda da casa, o córrego tinha início em uma mina d’agua no sopé da montanha do outro lado da estrada cascalhada, cujo cume era arborizado, nesta mesma mina tinha início a um córrego que abastecia um brejo que ia até a estrada de rodagem cascalhada, onde o córrego atravessava o aterro da estrada por uma galeria de cimento. A água da bica caia em um poço forrado por pedras e servia abastecer a casa e para lavar roupas. Depois a água descia para uma horta cercada por mandacaru onde eram cultivadas verduras e legumes usados por todos moradores da propriedade. Usando o desnível e a gravidade haviam poços no entorno dos canteiros das hortaliças e legumes que eram usados para regar as plantações com uma cuia, sempre às tardes, na boca das noites. No paiol eram armazenadas as espigas de milho e dos restolhos, os sacos de milho debulhado, o café em coco e o pilado, o fubá grosso, as rapaduras e os quintos e engradados de cachaça. No paiol ainda havia uma balança rudimentar de madeira com pesos de pedra, o tronco de ferro para pear escravos, a quarta de madeira e o debulhador manual de milho.
Fui batizado e crismado na fé católica na Matriz de São José, pelo padre José Pinto, um negro alto e imponente, culto e muito respeitado em toda região, onde em 1949 fiz a minha primeira comunhão então com sete anos, foi uma festa para todos da família, para mim nem tanto, na confissão o Padre Zé Pinto, após me ouvir pacientemente rezar em voz alta a Ave Maria, o Padre Nosso e o Credo, me aconselhou a obedecer a meus pais e que desobedecer era pecado, a partir da minha primeira comunhão eu tinha que ser obediente e comportado, que Deus e meu anjo da guarda iam tomar conta de mim dia e noite e saberiam se eu pecasse fazendo artes e desobediências escondido de meus pais. Estes conselhos foram um balde d’agua fria em minha alegria com minha primeira comunhão, eu não via como seguir estes conselhos, passei a me ver condenado queimando no fogo do inferno. Para a mãezinha, uma mulher virtuosa, católica fervorosa, tudo era pecado, sua principal missão era nos salvar das tentações e nos conduzir ao reino de Deus, tudo que eu e meus irmãos gostávamos ela via como pecado, ouvíamos calados sua ladainha diária, mas era só nos afastarmos das de suas vistas para fazermos o que nos dava na telha.
Na década de 40 o papai foi sócio do tio Nelson Moreira, marido da tia Regina irmã de minha mãe, em um açougue na Rua das Flores, em Barbacena, a função do papai era comprar os porcos e bois para o comercio e a função do tio Nelson era atender à freguesia. Tenho poucas recordações desta época, um dia andando pela Rua 15 na frente do papai e do tio Nelson este falou que eu andava pisando certo e o papai comentou que nisto eu o tinha puxado, esta comparação me deu orgulho, ou quando matavam um capado e o sapecavam com álcool, o papai me protegia me tirando de perto do fogo me levando para um local mais alto. Nos fundos do açougue passava um córrego e em sua margem havia uns cômodos onde os dois dormiam, recordo do papai sentado na cama com uma toalha na mão espantando os pernilongos para me proteger. Os capados o papai ia comprando e juntando na fazenda, quando tinha uma carga ele chamava o Bazinho Furtado, proprietário de um caminhão Chevrolet, ele namorava a Aparecida, filha do tio Abílio, algumas vezes o papai me levava com ele nestas viagens. Os capados adquiridos, após combinado o valor da arroba (15 kg), eram pesados depois de derrubados e colocados na padiola com as pernas para cima, após a pesagem eram colocados na carroceria do caminhão. Terminada a pesagem comprador e vendedor se reuniam para fazerem as contas. Primeiro era descontado o peso da padiola e separadas as pesagens com porcos acima de 100 kg e as de menos, isto porque havia o desconto da tara da barrigada, de 20 kg para os porcos abaixo de 100 kg, para os acima a tara era de 20%.
O retireiro e carreiro da fazenda era o seu Cicero, negro alto e simpático, assim que o dia amanhecia iniciava os trabalhos tirando o leite das vacas, primeiro pegava o bezerro no cercado e o deixava dar uma rápida mamada em cada teta da mãe, para a vaca soltar o leite, depois o amarrava pelo pescoço na pata dianteira da vaca e usando um banquinho e um balde entre as pernas esgotava o leite de três tetas da vaca, a 4ª não era completamente esgotada, era a do bezerro. Ele foi trabalhar em São Paulo para ganhar salário e ficou fora por um período, seu filho mais velho Jorge ficou em seu lugar. No dia que ele retornou a minha mãe me avisou que ele estava no curral sai correndo e fui me encontrar com ele, ele estava sentado tirando leite, corri até ele e o abracei, fiquei em pé matando as saudades, observando e admirando ele trabalhar. Quando ele acabou de esgotar a vaca, foi até seu embornal, abriu um pacotinho e pegou um anelzinho dourado e o colocou em meu dedo falando que tinha sentido saudades de mim. Fiquei encantado com o anelzinho, esta gentileza dele me emocionou e foi um dos presentes que recebi que mais tocou meu coração.
As tarefas diárias para os meninos começavam cedo, no início devido a pouca idade, os serviços eram simples como apartar os bezerros e tocar as vacas para o pasto, com mais idade levar o leite no ponto de coleta do caminhão na carrocinha, tratar dos capados, jogar espigas de milho na manga para os porcos magros, abastecer o moinho e tratar das galinhas, etc. Com a idade as obrigações diárias foram aumentando e complicando, debulhar o milho, separando os sabugos macios para serem usados como papel higiênico, manter abastecido o moinho de fubá, peneirar o fubá do olho para o preparo do angu, cubu, farinha, broas e pau-a-pique, tratar dos porcos, candiar os bois na lida diária com o carro ou na aração, moer cana, cozinhar inhame para tratar dos capados, pilar arroz e café, aguar toda tarde a horta. Levar diariamente o leite no cargueiro até a fábrica de laticínios, nesta tarefa eu levava um pau para escorar uma lata enquanto a outra era descarregada devido a minha idade e meu tamanho, também gostava de ir ao laticínio por que era comum o pescoço do queijo cavalo quebrar, o pedaço quebrado o encarregado às vezes me dava. O pior trabalho era o de candieiro, tanto com o carro de bois como na aração. Usava-se o carro de boi para o transporte da colheita de milho, de arroz e de feijão, da cana para o engenho na safra e para a lenha do uso diário. O problema de candiar era que não havia estradas dentro da fazenda, eram mais caminhos que serpenteavam muito e como o carro era puxado por quatro juntas de bois e tinha que andar sempre na trilha, eu tinha que levar a junta da guia sempre fora das trilhas, de um lado ou do outro do caminho, andando quase sempre em terreno sujo, com o carreiro gritando instruções e com os bois da guia bufando nas minhas costas eu tinha que ficar velhaco, foi um dos trabalhos mais difíceis que enfrentei em minha vida. O que mais me contrariava e me deixava enfezado nesta época era o fato de que eu gostava de ajudar nas lidas da fazenda, procurava agradar a meus pais, mas recebia como recompensa uma comparação com o irmão caçula do papai, o tio Geraldo, um homem sem muita iniciativa, um típico trabalhador braçal e isto me incomodava para valer, porque quanto mais eu me esforçava mais que eu era comparado a ele. Então quando a mãezinha dizia que eu tinha sorte em ter irmãos como o Tarcísio e o Tanísio, inteligentes e estudiosos, que eles teriam um futuro brilhante e não me deixariam na mão, eu me revoltava com esta fala dela, ela me considerar burro e inútil me deixava revoltado.
Na roça só meus pais andavam calcados, a meninada e os camaradas andavam descalços e o traje das crianças era rudimentar, para as meninas um vestido de chita até o meio das canelas, os meninos usavam um casquete de pano feito em casa, vestiam camisa de algodão e calça curta que ia até as canelas de brim ou carne seca, com suspensório do mesmo pano bem costurado na calça, o item mais importante da calça era o único bolso na parte de trás, nele eram carregados o pião e a barquinha e as bolas de gude, a atiradeira era carregada nas mãos ou no pescoço. Apenas meus pais usavam trajes normais, todas as avós e senhoras velhas usavam cabelo em coque e vestido compridos ou saias compridas até o chão, eu pensava que minha mãe ao ficar velha também ia usar coque, vestido e saia comprida.
As novenas eram uma tradição na roça e ocorriam nas casas dos habitantes das proximidades, as mulheres com os filhos se reunião e eram Credos, Salve Rainhas, Padres Nossos e Ave Marias que não acabavam nunca, o final da novena era programado para terminar num final de semana. Na novena na casa da tia Conceição, mulher do tio Geraldo Quitute, irmão caçula de meu pai, terminou em um sábado, a reza foi pela manhã, foi uma festa, enquanto as mulheres preparavam o ajantarado, a meninada se esbaldava, era todo tipo de brincadeiras, quando saiu o almoço estávamos todos esfomeados. Os pratos da criançada foram preparados pelas mães, arroz, tutu, macarronada e frango ou pernil. Haviam sido colocadas duas taboas encostadas na parede da casa para servir de mesa e outra mais baixa para servir de assento, prato abastecido fomos alegremente para a mesa improvisada, sentamos e atacamos a boia. Acontece que a mulher que fizera a macarronada tinha caprichado na pimenta malagueta, não sei se por maldade ou distração, mas a garotada quando colocou macarrão na boca o ardume foi violento e deixou todos vermelhos e com o nariz escorrendo, começaram a chupar o ar para dentro e para fora violentamente, com a boca em funil, para aliviar o ardume. Como a fome estava brava, logo descobrimos que o ardume vinha do macarrão, limpamos o restante da boia do prato. A tia Conceição apareceu para ver como estava a garotada e notou que todos tinham limpado os pratos, só tinha sobrado o macarrão, ela me perguntou se eu não gostava de macarronada, respondi que de macarrão eu gostava, mas macarronada com fogo que queimava minha boca eu detestava.
O papai além da Fazenda possuía um sitio na localidade denominada Chacrinha, entre Alto Rio Doce e o distrito de São Caetano do Xopotó, onde nasceu o padre Zé Pinto, neste terreno morava um compadre dele e nas colheitas fui algumas vezes até este sitio com o seu Cicero candiando o carroção buscar milho e feijão, na estrada estadual cascalhada era proibido o transito de carro de boi, íamos em um dia e voltávamos no outro, devido à distância, mas a estrada facilitava meu trabalho, eu podia às vezes pegar carona no carroção. Um dia o afilhado do papai, filho do compadre dele da Chacrinha, apareceu na fazenda e contou para o papai que tinha matado um cara, o papai conversou com ele e como tinha uma carga de porcos para despachar, ele dormiu na fazenda e no outro dia o papai conversou com o Bazinho, entregou uma importância em dinheiro ao afilhado e ele foi para Barbacena no caminhão, o Bazinho se comprometeu em arrumar carona em um caminhão para ele ir para o Paraná, nunca mais vi ou ouvi falar neste afilhado do papai.
Eu estava brincando no gramado na frente da fazenda e o papai chegou na varanda e me mandou buscar o Guarani no pasto. O Guarani era um cavalo grande e pedrês, estava velho e aposentado, o papai costumava mandar arria-lo para dar umas voltas nele pelas proximidades da fazenda. Neste dia depois do Tiota arria-lo, o papai montou, me chamou e me pegando pelo braço me colocou na garupa, saímos pela frente da fazenda, atravessamos a estrada, passamos pela casa da Almerinda e debaixo de uma arvore, no pé do morro da mina d’agua estava uma vaca recém-parida e seu bezerro. O papai me colocou no chão e falou que ia afastar a vaca, eu tinha que pegar o bezerro e trazer para ele e habilmente usando o Guarani afastou a vaca e gritou para eu ir pegar o bezerro, quando a vaca me viu pegando o bezerro veio disparada bufando pra cima de mim, larguei o bezerro no chão e rapidamente subi na arvore em cujo pé a vaca ficou nervosa bufando furiosa. O papai ficou bravo comigo, disse que eu segurando o bezerro a vaca não me atacaria para não machucar sua cria, separou a vaca do bezerro novamente e me mandou pega-lo, mas foi só eu encostar no bezerro que ela veio novamente para cima de mim, larguei novamente o bezerro e corri para a proteção da arvore. O papai voltou, me xingou para valer desta vez, desceu do cavalo e me mandou montar no guarani e separar a vaca do bezerro, afastei a vaca manobrando a Guarani, o papai foi até o bezerro e o pegou, quando a vaca viu correu até ele furiosa, ele ficou de frente para ela com o bezerro no colo, a vaca bufou furiosa, abaixava e levantava a cabeça eu achando que de uma hora para a outra ela ia pegar o papai, fiquei com o coração na mão, mas a vaca foi se acalmando e quando o papai voltou para o cavalo ela o seguiu já calma. O papai me mandou passar para a garupa, me deu o bezerro, montou e voltamos para a fazenda com a vaca nos seguindo sem problema. Este fato deixou claro para mim que uma mãe faz de tudo para defender seu filho e minha mãe costumava comentar que toda mãe cuidava de seus filhos, seja uma vaca, uma égua, uma galinha ou uma cadela, as mães sempre defendiam seus filhos com unhas e dentes. Às vezes, despois de me dar uma boa surra ela fazia este comentário, eu não me importava e aceitava o castigo, o que me deixava furioso é que eu não era filho de uma vaca, uma égua, uma galinha ou de uma cadela, eu era filho dela e ela não me defendia, me espancava e nunca vi uma cria dos animais da fazenda espancada por suas mães, era isto que me deixava revoltado.
A fazenda além do leite e recria de gado, engorda de porco, milho, arroz, café e feijão também produzia rapadura e cachaça na seca. A cana era cortada, limpa e transportada no carro de bois até o engenho onde era moída e processada. Nesta época o trabalho do candieiro era diário e alternado entre eu o Tarcísio, dependendo da hora da escola. A primeira tarefa era buscar os bois no pasto, para o carreiro colocar as cangas nas quatro juntas e preparar o carro para o trabalho, eu adorava escutar a toada do carro, íamos até o canavial carregar as canas, depois era levar o carro até o engenho onde o mesmo era basculhado e a cana já caia ao lado da moenda. Candiar o carro de boi no canavial era complicado, a cana era cortada com facão próximo ao solo, tinha que ser deixada uma gema para rebrota e o corte do facão deixava uma haste afiada como navalha de uns 5 centímetros no chão, era pisar nesta haste e ferir feio a sola do pé, descalço eu tinha que ter cuidado onde pisava na hora de manobrar o carro vazio, ele tinha que ser carregado pronto para sair do canavial e um carro com 4 juntas de boi era de difícil de manobrar, dependia muito da habilidade do candieiro na guia dos bois, este serviço não era brincadeira. O engenho foi construído em uma encosta e tinha três pisos, a água para girar o moinho e a roda d’agua era captada acima de uma cachoeira no ribeirão e era conduzida por um córrego, passava primeiro pelo moinho e depois chegava na roda d’agua na parte mais alta do engenho.
Da saída da moenda, a garapa era canalizada por uma calha de taboa para a dorna de fermentação, no piso inferior, no caso da fabricação de cachaça, ou para a tacha de cobre, no piso térreo, no caso de seu destino ser rapadura, era neste piso que também ficavam o monjolo, o alambique e o parol para armazenamento da cachaça, era tudo pratico no centenário engenho. Quando a cana estava sendo moída, eu pegava um pedaço de bagaço e interrompia com ele a calha, a garapa enchia a calha, então era só meter a boca e o nariz na calha e chupar a garapa, era a forma mais fácil de beber garapa, nariz boca, a cara toda ficava melada e tinha que ser bem lavada antes de voltar para casa, senão era surra certa. Após o transporte suficiente de cana para o dia, o carro era levado para sua coberta, e os bois após serem soltos, iam diretamente para frente do paiol onde ficavam perfilados à espera dos restolhos. Era bonito de se ver, cada um tinha seu lugar, eu pegava um balaio, enchia de restolhos e ia colocando as espigas na boca dos bois, eu adorava esta parte do trabalho diário.
O alambiqueiro era o tio Abílio, ele verificava o grau da garapa fermentada antes começar a destilação da cachaça que era armazenada no parol. A cachaça da fazenda tinha a marca registrada AGUARDENTE SARACURA, parte da produção era engarrafada e selada (o selo era o imposto), as garrafas eram colocadas em engradados, que eram armazenados no paiol, mas a maior quantidade era vendida em quintos de madeira de 100 litros. Na destilação eram produzidos três tipos de destilados, a cabeça, o coração e a calda ou água fraca, a água fraca era alambicada novamente adicionada na garapa em fermentação, a cabeça e o coração eram a cachaça propriamente dita que era armazenada inicialmente no parol de madeira, posteriormente era transferida para garrafas e quintos de madeira, com capacidade para 100 litros de aguardente.
Para a produção de rapadura, a grande tacha de cobre assentada era cheia de garapa até o nível e depois, na fervura, com uma concha de cabo longo, era iniciada a retirada das impurezas que flutuavam na garapa aquecida e na fervura a concha também servia para mexer a garapa e o melado fervendo e retirar a borra (espuma) e mexendo o melado até dar o ponto, então o melado fervendo era passado para o cocho de madeira onde era batido com uma pá de madeira até engrossar, esfriar e dar ponto, então a rapadura era enformada e ficava pronta para a venda. A Cachaça era comercializada em quintos de madeira de 100 litros e as rapaduras em cargas de 64 rapaduras. Com a garapa virando melado, eu pegava um sarrafo, uma cuia com água fria e enfiava o sarrafo no melado e deixava escorrer na cuia, era a forma mais fácil de fazer balas de puxa-puxa, um delicia. O bagaço da cana moída era queimado com a lenha para aquecer o alambique ou na fornalha da tacha na fabricação da rapadura.
Na época da capina do milho, os serviços tinham inicio as 07 horas, após o café da manhã. A rotina na cozinha era alterada já que tinha que ser preparado o almoço para os camaradas da capina, o primeiro a ficar pronto era o angu, que era esfriado forrando uma gamela grande para servir para fixar as vasilhas com os demais alimentos como o arroz, feijão, verduras e legumes e carnes colocadas na gamela ou gamelas, dependendo do número de camaradas trabalhando no eito no dia. Preparado o almoço e carregada a gamela com os alimentos, as conchas, os pratos e as colheres eram colocadas em um balaio, com a gamela na cabeça e o balaio na mão a cozinheira se dirigia é roça onde estavam os camaradas e servia a boia.
Vi vários camaradas na roça com cicatriz de abscesso dental no lado do queixo, os dentes dos camaradas rurais na década de 40 eram maus cuidados, cariados e ter dor de dente era que comum. Conheci o Sr. Cicero Brandão, marido da dona Celina, prima do papai, a profissão do Cicero era dentista pratico, ele ia a determinada fazenda, montava seu equipamento de dentista e atendia a todos habitantes das proximidades. Usava bomba manual para secar o dente com ar aquecido em uma vela e bomba manual de borracha para jogar água nos dentes, seringa de aplicar anestesia, alicate para arrancar dente e uma cadeira de madeira de dentista, broca a pedal para tratamento de caries, aparelho para esterilizar seringas e demais ferramentas. O principal trabalho do sr. Cicero era extrair dentes e confeccionar dentaduras, tratamento dentário com broca e obturação eram esporádicos. As dentaduras eram confeccionadas para os banguelas de visitas anteriores do pratico ou de algum colega seu, os que ficaram banguelas nesta visita só poderiam ter dentadura na visita do pratico em data posterior.
O seu Gorgulho chegou à fazenda num carro de praça preto, ele trabalhava na contabilidade no Banco do Brasil em Barbacena e viera para fazer o cadastro da propriedade, o papai estava tirando um empréstimo no banco. Ele anotou as benfeitorias, gado, porcos e plantações, etc., andou a cavalo por todo canto, à tarde, na hora que terminou sua inspeção da propriedade, eu brincava no pátio gramado na frente da casa e o papai me chamou e me mandou ir ao paiol buscar uma garrafa da cachaça selada para dar de presente para ele, era usual agradar as visitas na roça, nenhuma visita saia com as mãos abanando. Na ocasião ainda havia dois engradados de pinga cheios no paiol, examinei nas garrafas e estavam todas vazias, informei ao papai e ele foi até os engradados e confirmou, então mandou que eu colhesse frutas para o visitante.
Á tardinha eu brincava no chão da varanda e o papai estava em pé no parapeito com o tio Abílio ao seu lado, debaixo do sino preparando um cigarro de palha, o papai não pitava, o tio Abílio sim, lembro que ele com a palha já alisada atrás da orelha, desfiava o fumo com o dedão na palma da mão e falou para o papai que sabia o porquê das garrafas de pinga estarem vazias. O papai prestou atenção nele à espera da explicação e ele comentou que na certa tinham sido os gambás que tinham bebido a pinga, O papai ficou certo tempo sem falar nada observando a estrada que passava a uns 200 metros da varanda, eu gostava de vê-lo observando à estrada, quando algum cavaleiro ou pedestre passava por ela o papai levanta seu chapéu e o cavaleiro ou o pedestre fazia o mesmo, era a forma que tinham de se cumprimentarem à distância. O papai virou e disse para ele no dia seguinte colocar no paiol armadilhas para pegar os gambas, mas que não era para matar os bichos, gambá na roça tinha a fama de adorar pinga e ficar embriagado. O tio Abílio perguntou por que não era para matar os animais, o papai continuou olhando a estrada e depois virou e falou que primeiro queria conhecer estes gambas que pegavam as garrafas, tiravam as tampas delas, bebiam a pinga e depois recolocavam a tampa e colocavam novamente garrafa vazia no engradado, no meu canto no chão entendi que não havia gamba nenhum, tinha sido o próprio tio Abílio quem tinha enxugado as garrafas.
Quando o papai e o tio Nelson desfizeram a sociedade em Barbacena, o tio Nelson voltou para Mercês e abriu um armazém de secos e molhados, o papai trouxe para a fazenda o cavalo trotão de nome Pirata e a charrete, que usavam para fazer as entregas do açougue. Logo aprendi atrelar o Pirata na charrete e a andar com ela pela estrada sempre que podia e nos domingos passamos a ir de charrete para a cidade assistir à missa dominical, ocasião que eu tomava as rédeas e assumia o controle. O Pirata, além de puxar a carroça, também era usado como cavalo de carga e era comum levar nele o leite diariamente na fábrica de laticínios. Em uma curva da estrada havia a venda do Gabriel do lado de dentro da curva e quem levava o leite sempre parava na venda, na ida e na volta para bater um papo e ficar sabendo das novidades.
Era domingo e fomos eu, minha mãe e os dois irmãos menores Tanísio e Tanúncio na charrete para assistir à missa na cidade, o Pirata gostava de andar em um trote rápido e a mãezinha me recomendou que andasse mais devagar, para mim quanto mais rápido melhor e não diminuí a marcha, ao chegar à curva da venda, o Pirata, conforme estava acostumado, mudou de rumo e entrou abruptamente na direção da venda, a charrete capotou, eu minha mãe e meus irmãos fomos arremessados longe. Quando eu vi o estrago que tinha feito botei sebo nas canelas e os fregueses da venda saíram correndo atrás de mim, eu achando que queriam me pegar para me levarem para minha mãe me dar uma surra e eles achando que eu podia estar machucado, queriam me socorrer. Quando me pegaram e levaram até a venda e viram que eu não estava machucado o alivio foi geral, desta vez acabei não sendo espancado, o único prejuízo com este episódio foi um dos varais da charrete que se partiu e teve que ser substituído pelo tio Dário.
Em de 1946 houve um trágico acidente em Alto Rio Doce que recordo até hoje, apesar de minha pouca idade, um avião da Panair do Brasil caiu no morro dos marimbondos, na fazenda dos Vieiras, no distrito de Abreus e todos morreram, passageiros e tripulantes. Só se falava deste acidente, quando os caminhões, indo para Barbacena, passaram pela estrada na frente da fazenda com os corpos dos mortos eu assisti empoleirado no parapeito da varanda, vi também a fuselagem do avião passar em vários caminhões. Não demorou as histórias sobre o acidente começaram a circular e a venda do Gabriel era o lugar certo para ouvi-las. Cada um que aparecia contava sua versão, recordo de uma em que o matuto afirmava de pés juntos que o fazendeiro tinha enchido todas latas de leite da Fazenda com o dinheiro e joias dos passageiros e enterrado as latas de boca para baixo, que ele tinha ficado podre de rico com a fortuna enterrada e um outro afirmou que uma mãe quando viu que o avião ia cair, abriu a janela do avião e jogou a filha pequena por ela, na esperança de a salvar, o pessoal da fazenda a tinha achado em um pasto morta. Para a caipirada quem viajava de avião era milionário, e na venda do Gabriel também ouvi o relato de que quando o primeiro avião voou pela região foi um Deus nos acuda, todos acreditaram que o fim do mundo era iminente, a crença era a de que no fim dos tempos Jesus ia retornar e quando uma cruz passou voando e roncando pelo céu só podia ser o preludio do fim do mundo.
O Padre Zé Pinto conseguiu com Dom Helvécio, arcebispo de Mariana, padres auxiliares para a celebração da semana santa na cidade. Minha mãe ficou encantada quando soube da novidade, tanto fez que o papai arrumou pensão para ela na casa de dona Vita Marinho, perto da igreja. Na véspera da Semana Santa fomos de carro de boi para a cidade, não recordo bem desta viagem, mas acho que o carro além da matula para toda semana, levou também colchoes, lembro que na casa de Dona Vita dormíamos em colchões no chão de um quarto. Recordo que a viagem da fazenda até a cidade foi demorada, o carro foi através de estradas marginais, seu trânsito era proibido na estrada estadual, tenho a nítida recordação do Sr. Cicero, de pé, no cabeçalho do carro gritando com os bois, eu sentia seu cheiro e o achava agradável.
Em outra oportunidade, na véspera do natal, ficamos também na casa de Dona Vita, na frente da casa existia a Casa Falco, loja do Geraldo Falco, casado com Dona Zélia, colega de minha mãe de Mercês, ela também tinha 4 filhos, uma menina e 3 meninos. Sempre que podia eu atravessava a rua e ia brincar com os filhos dela. Adilson, o mais velho, já trabalhava na loja, nesta época eu ainda acreditava no Papai Noel, o Adilson me explicou que Papai Noel não existia, que os pais é que compravam os presentes para darem aos filhos. Fiquei observando os casais entrarem na loja e escolherem os brinquedos que eram embalados para presentes, acabei acreditando no Adilson. Chegando na casa de Dona Vita contei para o Tanísio e o Tanúncio minha descoberta e deixei para lá, não me incomodei mais com este assunto. Mas um deles, contou para a mãezinha o que eu tinha contado para eles, ela ficou uma fera, me deu a maior bronca e me acusou de tirar a inocência de meus irmãos menores e disse que como castigo eu nunca mais ia ganhar presentes, e ela cumpriu sua palavra, nunca mais ganhei presentes, seja no natal, seja em meus aniversários.
O tio Rubens casado com a tia Dora, irmã do papai, era engenheiro e comunista atuante, acredito ele de fato acreditava na utopia de que que o comunismo era a solução, havia participado da coluna Prestes e deixou na fazenda seu fuzil, munição, aparelho teodolito de topografia e uma sombrinha grande. Morava em Barbacena, era professor na Escola Agrícola e quando a polícia estava atrás dele, ele ia para a fazenda se esconder. Certa vez ele chegou e a vovó Maria, mãe da mãezinha e católica fervorosa estava na casa nos visitando, os dois sentavam na varanda e ficavam conversando animadamente por horas. Em outra ocasião apareceram na estrada dois soldados a pé, andando na direção da fazenda, o tio Rubens saiu pelos fundos e foi para a casa do tio Abílio, que ficava em uma clareira, dentro de um capoeirão do outro lado do ribeirão. Os soldados chegaram e o papai os recebeu na varanda, eles avisaram que tinham ordem de prender o Tio Rubens e se o papai sabia dele, o papai falou que não, mas que como eles estavam cumprindo ordem podiam procurar à vontade, eles deram uma volta na fazenda, conversaram com os camaradas, entraram no paiol e falaram com o papai que não tinham visto nem rastro dele e que já iam voltar para a cidade e informar o delegado, o papai falou que ainda não era hora de voltarem, primeiro tinham que tomar um café com ele, os levou para a cozinha e a Almerinda serviu leite com angu e café com cubu para eles, depois da merenda pegaram suas armas, despediram do papai e voltaram para a cidade.
Ajudei na construção do rancho em que a Almerinda e o Antônio moravam. Primeiro o tio Dário com a ajuda dos demais camaradas do mutirão, construiu com madeiras roliças, ripas de embaúbas, bambus e cipós o engaiolamento das paredes de pau-a-pique. Depois fizeram um barreiro no chão do terreiro onde colocaram uma terra especial liguenta e capim picado, jogavam água e o pisoteio começou, eu era bem novo e para mim o pisoteio do barro era uma brincadeira, depois do barro bem pisoteado com o capim, as paredes foram barreadas, um dos camaradas fazia uma bola de barro com a mão e jogava na parede gradeada, do outro lado outro camarada aparava o barro com sua mão e assim em pouco tempo as paredes do rancho estavam concluídas depois o telhado já ripado foi coberto com feixes de sapé. Construído o rancho, abriram um córrego para levar água da mina no pé do morro até uma bica construída nas proximidades do rancho, plantaram uma touceira de cana, enterraram um grosso tronco roliço no chão e sobre ele o tio Dário construiu uma engenhoca rudimentar de paus roliços para moer a cana.
No dia do casamento da Almerinda com o Antônio fomos todos a pé para a cidade, após o padre Zé Pinto celebrar a cerimônia, a comitiva voltou para a fazenda, com o Antônio montado a cavalo com a Almerinda na garupa, foi um retorno festivo com todos cantando desafios, calangos e músicas caipiras, a festa foi no terreiro do lado de fora do rancho, doces, broas, quitutes e café com leite para a meninada e as mulheres, leitoa assada, farofa, tutu e pinga à vontade para os homens, a cantoria dos calangos e a sanfona foram até a madrugada. Com a chegada da noite a garotada começou a desabar, estenderam várias esteiras de bananeira dentro do rancho e à medida que os meninos apagavam eram colocados sobre elas.
A fazenda mais próxima era da tia Vina, tia do papai e meia irmã da vovó Colina, era viúva de Feliciano Campos filho da vovó Colina e a sede da fazenda era do mesmo lado da estrada da nossa casa, pouco para frente do acesso a fazenda dela havia um trilho para tropas no sentido contrário, e neste caminho se ia até a cidade de Mercês, ainda dentro das terras da fazenda da tia Vina morava seu filho Momoso, minha mãe costumava nos levar até a casa dele, era amiga de sua mulher, ele tinha vários filhos, mas eu só recordo de uma filha dele de nome Edite, baixa e linda e simpática. Ao voltarmos da casa do Momoso, após uma visita, depois da porteira do Joao Pinto, a mãezinha viu um clarão atrás da fazenda e achou que a casa estava pegando fogo, deu o alarme e disparou a correr apavorada, eu era pequeno e também fiquei tão apavorado que não conseguia acompanhar sua corrida, minhas pernas fraquejaram e eu não tinha uma nítida consciência do que realmente estava acontecendo, quando chegamos nos fundos da casa era um camarada de nome Tiota, meio andarilho sem pouso certo, quando aparecia ficava em um quarto no porão da fazenda, como não tinha ninguém em casa quando ele chegou tinha acendido um fogo no terreiro para se aquecer.
O Momoso era uma figura, nunca o vi sem paletó e gravata, eu gostava dele, andava sempre a pé com seu terno escuro abotoado na frente e levando um guarda-chuva nas mãos que também servia com bengala, tinha um defeito nas vistas que piscavam ininterruptamente e enxergava pouco motivo pelo qual tinha pavor cachorros, sempre que visitava o papai, parava na porteira do gramado frontal à espera de escutar os latidos dos cachorros, quando não escutava nada, entrava e ia a passos rápidos até o interior da porta de acesso principal. Em uma de suas visitas eu brincava na frente do porão da casa, debaixo da varanda e observei o Momoso parado do lado de fora da porteira a escuta, quando ele abriu a porteira e entrou com seus passos rápidos e já no meio do pátio, eu não resisti e lati imitando um cachorro, ele correu como um raio de volta à porteira e ficou empoleirado nela e começou a gritar pelo papai. Quando o papai chegou perguntou por que ele tinha subido na porteira, ele falou que estava fugindo dos cachorros que tinham latido, o papai olhou em volta e me viu debaixo da varanda e entendeu tudo, chamou a mãezinha e contou minha estripulia, ela buscou a correia e me deu merecida surra, eu gostava do Momoso.
Quando faleceu uma cunhada do Momoso, minha mãe foi imediatamente para sua casa e nos levou, quando chegamos encontramos todos numa choradeira geral, a falecida estava deitada sobre uma mesa e eu não quis nem olhar a cara dela, mas o que mais me impressionou foram seus pés descalços e desbotados. Não demorou o tio Dário chegou, trouxeram umas taboas e ele começou a construir o caixão, o barulho do serrote e as batidas do martelo me deixaram arrepiado, sai da sala e fui para o terreiro, era a primeira morte que eu via e escutar o serrote, as batidas do martelo e o choro, a rezas e ladainha das mulheres em volta do cadáver era deprimente, á tarde o caixão já estava quase pronto, o tio Dário já estava trabalhado com a plaina nele quando a mãezinha saiu da sala, nos serviu um lanche, nos levou para casa e voltou, nesta noite custei a dormir, tinha encarado a morte pela primeira vez.
No final da década de 40 a vovó Maria, viúva e mãe de 14 filhos, 13 vivos, ainda mantinha sua casa em Mercês e nas férias de fim de ano a família se reunia na casa dela e nas das tias que moravam na cidade, para a garotada era uma festa, enturmavam e aprontavam adoidados e as surras na garotada, meninos e meninas, eram diárias e habituais, era tudo uma festa e eu adorava. Para ir da Fazenda até Mercês havia duas formas, de ônibus até Barbacena, dormir na casa da tia Olivia, irmã da mãezinha. e no dia seguinte de ônibus até Santos Dumont onde pegávamos o trem piranguita, que em bitola estreita ia até Mercês, eram praticamente dois dias para chegar, o outro modo era a cavalo, a comitiva saia da Fazenda bem cedo e mais ou menos às 2 horas da tarde já estávamos na casa da vovó, aí tudo era festa, tenho saudades daquela época, do saco de biscoito atrás da porta, das brincadeiras, das broas e dos doces, sinto falta até dos castigos, do tabuleiro de pirulitos de puxa-puxa que nunca soltavam o papel de seda, do sorvete de raspadinha de vários sabores (raspava a barra de gelo e colocava no copo com groselha), belas recordações de um outro universo que esta extinto e não volta nunca mais e que só ainda existe em minhas memorias.
Minha vida e a de meus irmãos na fazenda era bem programada por minha mãe, levantar cedo, lavar o rosto e escovar os dentes, ir para a cozinha para a merenda da manhã, que consistia em prato esmaltado de mingau de fubá, o fubá era colocado em uma panela de pedra com gordura, alho socado e sal para torrar, torrado o fubá era colocada na panela a água fervendo, depois de bem mexido, engrossado e eliminados os caroços estava pronto para ser servido. Na merenda ainda tinha café com leite e farinha de milho, leite com angu ou com um pedaço de cubu, pau-a-pique, etc. Para o café havia dois bules de cores diferentes, a água era fervida adoçada com rapadura em uma chaleira de ferro fundido na primeira trempe e o coador de pano com armação de arame na boca era colocado no mancebo já abastecido com o café moído, o primeiro bule era cheio com o café preto e forte para os adultos, o outro bule era cheio com a água fraca para as crianças. Este era o início do dia, depois de alimentados eu e meus irmãos estávamos proibidos de voltar para o interior da casa e nos quartos nem pensar, a circulação só fora de casa, apenas a sala de jantar e a cozinha estavam liberadas.
O almoço era às 10 horas e no café da manhã e no da tarde era a hora que minha mãe colocava o cubu preparado de véspera na mesa, mas as vezes recebíamos visitas e a mãezinha lhes servia um lanche e a rotina era quebrada, então para complementar os lanches ela nos servia cuscuz preparado no vapor em uma panela de pedra furada própria ou nos servia farinha de milho ou angu com café com leite, conforme nossas preferencias. Às vezes ela cozinhava batatinha ou mandioca que nos servia no lugar do cubu, eu até gostava destas quebras de rotina. O fogão a lenha funcionava muito bem, sua trempe de ferro fundido era reduzida, a única dificuldade com ele era acender pela manhã, para facilitar esta tarefa o fogão foi construído foi construído a uns 50 centímetros da parede, esta pequena área era preenchida com lenha, o calor emitido pelo fogão a secava rapidamente, mesmo ela tendo sido estocada verde, e sobre esta lenha tinha sempre um balaio com palha de milho seca para facilitar o início do fogo pela manhã.
As tarefas diárias para os meninos mais velhos eram variadas, apalpar as galinhas para não soltar as prontas para botar, se fosse matar frango ele tinha que ser separado antes de abrir a porta do galinheiro e soltar as galinhas, soltos era um Deus nos acuda para pega-los. Tratar dos porcos, debulhar milho, ir ao moinho ver se ele estava abastecido, separar o fubá do olho e peneirar, esvaziar o caixote do moinho, levar o leite no ponto, etc., cumpridas estas obrigações estávamos livres para andarmos por onde quiséssemos aprontar o que nos desse na telha, voltar para a casa só quando desse fome ou na hora do almoço. Só as galinhas d’angola eram diferentes, dormiam no galinheiro ou empoleiradas nas goiabeiras e só botavam no mato, quando uma desgarrava do bando eu a seguia despistando, depois que ela voltava para o bando eu dava uma busca onde ela tinha estado até encontrar o ninho comunitário delas, voltava pegava uma concha de madeira e uma cuia e colhia os ovos. Elas botavam em camadas e iam cobrindo seus ovos com capim e folhas, se eu recolhesse os ovos com a mão, deixava meu cheiro e elas mudavam o ninho de lugar, a colher de pau era para evitar isto, não recolhia os da camada inicial e procurava deixar o ninho da melhor forma possível para ela não desconfiar de minha presença. Os ovos das galinhas d’angola não eram quebrados direto na frigideira, eram quebrados em uma caneca ou coité para ver se estavam gorados, só depois eram fritos.
Toda boca da noite a mãezinha pegava uma cuia, colocava nela milho debulhado, ia andando pelo terreiro fazendo barulho balançando a cuia com milho e cantando ti ti ti ti ti, jogando porções de milho no chão, as galinhas e patos se juntavam em seu redor, ela abria a porta do galinheiro e jogava milho dentro, com todas confinadas ela fechava o galinheiro, no seu interior haviam os ninhos em balaios onde elas botavam e vários poleiros onde dormiam. Toda vez que uma galinha ficava choca ela era separada até o choco passar, quando escolhia uma para chocar arrumava para ela um balaio bem forrado com capim fora do galinheiro e escolhia os ovos para serem chocados, pegava ovo por ovo e os marcava com carvão, eu a via fazer estas marcas e achava que era alguma mandinga dela para os ovos não gorarem, só depois entendi que as marcas eram para ficar sabendo se alguma outra galinha havia botado no balaio, então era só recolher os ovos que não estavam marcados com carvão.
A mãezinha começou a sentir falta de galinhas, elas começaram a desaparecer misteriosamente, ela passou a conta-las diariamente antes de abrir a porta do galinheiro e elas continuavam diminuindo. Descendo até o engenho, atravessando a pinguela sobre o rio, indo no caminho à direita, passando por um trecho de mata fechada, numa clareira no meio da capoeira, ficava a casa do tio Abílio, há muitos anos ele não morava mais nela, nela morava um camarada da fazenda chamado Belino, sua mulher Maria, e suas 4 filhas, Maria Rosa, Teodora, Tereza e Gení. Eu não ia muito neste trecho da fazenda, apenas quando as vagens dos dois pés de angás que existiam na borda da mata acima da casa amadureciam eu passava pela casa do Belino quase todos os dias a caminho dos angazeiros. O dia estava escaldante e ao passar pela casa eu pedi para a Maria uma caneca d’agua, ela me serviu e eu vi que a água estava cheia de bichinhos, mostrei para ela e ela disse que os bichinhos eram da água mesmo, que a água estava boa, que era assim mesmo. Em casa a mãezinha só nos dava água filtrada, dizia que a água sem filtrar era contaminada e podia fazer mal, depois da explicação da Maria nunca mais bebi água na casa do Belino. A mãezinha ficou sabendo de minhas andanças por perto da casa do tio Abílio e me questionou a este respeito, contei para ela dos angazeiros e ela resolveu me acompanhar, ela também gostava das vagens. No retorno paramos com a Maria e ela e a mãezinha conversavam animadamente quando minha mãe ficou seria de repente, notei a mudança na atitude dela, mas fiquei na minha, repentinamente ela levantou e começou a cantar tititititi, quase todas as galinhas do terreiro a rodearam como faziam no terreiro da fazenda, estava esclarecido o mistério do desaparecimento das galinhas.
À tarde, diariamente antes do jantar era aquecida água no fogão e em uma bacia galvanizada a água era amornada e nossas cabeças, braços e pés eram lavados com sabão preto, depois era liberada nossa entrada na casa e nos quartos, mas aí a coisa era invertida, nem pensar em sair para o terreiro novamente. Nos sábados era dia da limpeza geral na casa e dia do banho semanal da garotada em uma bacia grande galvanizada, os quatro irmãos tomavam banho e a ordem dos banhos podia ser invertida, começando do mais novo ou do mais velho, todos eram banhados na mesma água, eu como filho número 2 e o Tanísio número 3, éramos os prejudicados, nunca éramos os primeiros a tomar banho. Era nesta hora que a mãezinha aproveitava para procurar por carrapatos em nossos corpos, o local preferido dos mesmos eram as partes com dobras na pele e os genitais e após os quatro tomarem banho, a mãezinha sentava na pedra inteiriça do solar da porta de entrada da escada da sala de jantar e tinha início o arremate do banho, ela colocava um por um no colo e cortava as unhas e os cabelos se tivesse necessidade, procurava por bichos de pés e com um pente-fino por piolhos e lêndeas em nossas cabeças, não adiantava chiar, as vezes passar o pente-fino doía o couro cabeludo, todos eram examinados minuciosamente. Se ela encontrasse alguma batata nos pés, calcanhar ou entre os dedos, com uma agulha tirava o bicho arredado a pele com cuidado para ele não estourar, com bicho na ponta da agulha ela o queimava no fogo da lamparina, depois para higienização com o pé da agulha tirava cera do ouvido e colocava no buraco de onde o bicho havia sido retirado.
Certo dia eu estava sentado na escada de pedras, no degrau do solar da porta de entrada da escada para a sala de jantar e observava uma galinha e seus pintinhos ciscando tranquilamente no terreiro à cata de sementes e insetos, quando a galinha se agitou e cantou alto, os pintinhos rapidamente correram para debaixo dela, olhei para o céu e vi um gavião carijó pega-pinto passar rasante. Logo que o gavião sumiu os pintinhos saíram e a galinha voltou a ciscar. A dona Nana e dona Lourdes tinham ensinado no Grupo Escolar que o que diferenciava os homens dos outros animais era que o homem raciocinava, pensava e se comunicava com a fala, o resto dos animais tinham apenas o instinto. Continuei observando a galinha e os pintinhos e pensei que elas nunca tinham morado na roça, assim elas não tinham como ver que a galinha ao ver o gavião aproximando tinha chamado os pintinhos na língua das galinhas para ficarem protegidos debaixo dela. Continuei observando e repentinamente uma enorme aranha caranguejeira cabeluda saiu disparada de debaixo do primeiro degrau da escada, pegou um pintinho e voltou com ele disparada para sua toca, o problema foi que a boca da toca era estreita e o pintinho não passou por ela, ficou do lado de fora piando angustiado. A mãe quando viu seu pintinho levado pela aranha fez um escândalo danado e todas as galinhas do terreiro vieram em seu socorro. Imediatamente correram para onde o pintinho estava entalado e começaram a bicar a aranha pela fenda, não demorou e o pintinho estava solto e as galinhas se acalmaram. O pintinho libertado não conseguiu andar, ficou deitado na base da escada, eu o peguei e o levei até a mãezinha, depois de explicar o que eu vira, ela pegou o pinto, com a perna quase decepada e o colocou em um coité com leite na esperança do leite cortar o veneno da aranha, mas o pintinho acabou morrendo.
Com sete anos a mãezinha me matriculou no Grupo Escolar Raul Soares, a única escola da cidade, antes de fazer minha matricula ela conversou com a Almerinda para matricular seu filho Zé Alfredo comigo, falou que ele ia servir de companhia para mim na ida e na volta da escola e quanto ao material escolar explicou que o que ela comprasse para mim comprava para o Zé Alfredo também, ela não ia ter um tostão de despesa, ela ficou de dar uma resposta após falar com o Antônio, no outro dia ela falou para a mãezinha que era perda de tempo o Zé Alfredo entrar na escola, que o que ele precisava aprender ele já estava aprendendo na fazenda. Fiquei decepcionado com a proibição do Antônio, o Grupo Escolar Raul Soares, onde minha mãe me matriculou ficava na cidade, a mais de uma légua de distância da fazenda, eu estava com 07 anos, tinha medo de tudo e para chegar na hora das aulas no Grupo tina que sair de casa às 05 horas da manhã e andando a pé para à escola tinha que passar por uma mata, tudo isto me matava de medo e minha esperança era a companhia do Zé Alfredo. Com a negativa do Antônio vi minha esperança ir por água abaixo, eu estava fodido, lascado. Minha primeira professora foi a dona Nana filha da dona Vita Marinho, moça bonita, baixinha, jovem, agradável e para mim mulher mais linda do mundo, foi minha primeira paixão, eu a adorava e queria aprender para deixa-la feliz, tive um bom início escolar com ela, passei a gostar de aprender, ela só foi minha professora por um ano, mas deixou em mim marcas que me seguem até hoje. Nos demais 3 anos do primário minha professora foi Dona Lurdes Lacerda uma mulher enérgica, mulher do único advogado da cidade, ela tinha duas lindas filhas na classe, mas ela não era a Dona Nana e isto fazia diferença para mim, apesar dela me tratar muito bem eu não gostava dos métodos dela e até formar no Grupo fui levando e sendo levado, mas mesmo assim ela sempre me tratou muito bem e a única foto que tenho com minha turma no grupo foi ela que me presenteou anos depois.
O grupo fornecia merenda para os alunos pobres e os do meio rural, era quase sempre uma sopa com arroz, feijão, carne desfiada ou moída, verduras e legumes, muito bem temperada, era encorpada e saborosa, uma delícia, eu adorava a hora da merenda. Às vezes, dona Maria Nunes, diretora do Grupo mandava bilhetes ao papai pedindo ajuda para a merenda dos alunos, eu gostava de levar estes bilhetes porque quando o papai mandava os alimentos eu podia ir a cavalo, geralmente na anca do animal, atrás do arreio, eram colocados dois sacos, um de cada lado. Na época o fato de minha ida a pé para a escola era incompreensível, me deixava revoltado, mas nos dias em que eu ia a cavalo o animal voltava exausto, todo suado, espumando pela boca. Uma coisa da qual o papai não abria mão era tratar bem todos os animais da fazenda, animal algum era maltratado, o papai, quando a vaca que deu o leite que nos criou ficou velha e deitou de fraqueza, mandava levar para ela diariamente água e alimentação até a sua morte, meu pai era assim. Todas as vezes em que eu ou algum da turma ia a cavalo para a escola todos colegas se beneficiavam, os que não conseguiam garupa iam arrastados segurando o rabo do cavalo, o pobre animal além de carregar vários meninos ainda tinha que puxar os demais, nos morros a coisa ficava pesada para o pobre coitado. Para ir até o Grupo e chegar antes das 7 horas eu tinha que andar a pé mais de uma légua (6 KM) até a entrada da cidade e mais um bom pedaço para chegar ao grupo no alto de um morro centro, saia de casa as 5 horas da manhã, íamos eu e dois irmãos que moravam mais longe que eu, Jair e Didi Barraca e quando eles não apareciam eu iniciava a jornada só, morrendo de medo e no caminho haviam outros meninos que iam se juntando. Entrando na cidade, até chegar ao Grupo tinha que subir a rua do buraco e subir a rua do meio ou a escada. Todo dia minha mãe preparava um pedaço de Cubu para minha merenda, quando eu ia só no escuro ia andando e distribuindo o cubu da merenda com os cachorros até o sol raiar. Tanto no inverno, como no verão a ida e o retorno da escola eram problemáticos, qualquer atrito com os colegas era briga certa e o pau rolava solto, mas no verão era pior, o sol quente do meio dia queimava os pés descalços, eu e os colegas sofríamos com o calor e o frio na estrada encascalhada. Lembro-me do cobrador do ônibus o Elton e do Zé Bidico seu proprietário e motorista, certo dia eu voltava só da escola e estava armando um pé d’agua daqueles, nuvens escuras e assustadoras iam escurecendo o céu para os lados da cidade de Desterro do Melo, quando o ônibus apareceu na estrada eu fiz sinal para ele parar, amarrei a cara e pedi ao Zé Bidico uma carona e avisei que não tinha dinheiro, ele não falou nada, mas me mandou entrar, cheguei na fazenda na hora que desabou o diluvio. O interessante é que depois deste dia quando eu voltava só da escola e o ônibus não estava cheio o Zé Bidico parava e me mandava entrar.
Na década de 40 eram poucos os veículos que transitavam pela estrada, geralmente uns poucos ônibus e alguns veículos de cargas, os automóveis eram raros e a situação acabava se complicando quando algum cavaleiro montando cavalo que nunca tinha visto um veículo motorizado e quando este se aproximava, não sei se era pelo cheiro, barulho ou a simples visão de algo ameaçador, o animal ficava apavorado e descontrolado, seu instinto era de fugir disparado, como o cavaleiro o impedia ele começava a pular, corcovear e vi muitos cavaleiros derrubados no leito da estrada. Puxado pelo labresto e apanhando o animal apavorado tremia dos pés à cabeça, bufando cheirava o veículo e a muito custo passava por sua lateral. Os motoristas quando viam a reação destes animais, encostavam próximo da margem, desligavam o veículo e esperavam o cavalo e cavaleiro passarem para depois religar o motor e reiniciar a viagem. A garotada quando ia para a escola também temiam os caminhões cobra (caminhões tanque para transporte de combustíveis), acreditávamos que os motoristas destes veículos gostavam de atropelar meninos e como estes caminhões faziam apenas uma entrega e não voltava mais, a morte do menino ficava por isto mesmo. Assim quando víamos se aproximando um caminhão cobra, nossa reação era atravessar a cerca e esconder o mato, só voltávamos e com o coração nas mãos depois do caminhão desaparecer na estrada.
CAPITULO II
No Grupo todos os alunos tinham que anotar a lápis no caderno os exercícios e os deveres de casa, o caderno era carregado em um embornal a tiracolo e nas aulas sentávamos em cadeiras para dois alunos, menino com menino e menina com menina, a carteira tinha uma armação de ferro fundido, como tampa uma taboa inclinada e outra menor por baixo para ser colocada a merenda o embornal e demais objetos, o assento era fixo e na parte mais alta da tampa havia no meio um buraco nivelado para o tinteiro de vidro e o mata-borrão, e nos dois lados deste buraco uma depressão para cada aluno colocar a pena para escrita a tinta e o lápis. O lápis era de uso diário, já a escrita com a tinta era esporádica, servia apenas de treinamento para a assinatura do aluno. Perto do quadro negro havia uma carteira virada de frente para a classe, nela eram sentados os alunos quando castigados pela professora e o castigo mais humilhante para os meninos e as meninas era quando eram colocados sentados juntos. Não existia no Grupo local para recreio, o recreio para o lanche e o intervalo entre as aulas era dentro da sala de aula mesmo. Apenas os alunos necessitados e os da zona rural, para os quais era servida a merenda saiam da sala e iam até a cozinha para merendar. Quando voltávamos do grupo às vezes encontrávamos com um cortejo fúnebre com os cadáveres sendo carregados em uma rede presa em uma vara, estes encontros davam medo então nos escondíamos nas margens até o cortejo passar, na estrada novamente pegávamos três punhados de terra e jogávamos sobre os ombros para o defunto ir em paz. Nestes cortejos, era voz comum que o defunto ficava mais pesado ao passar em frente de uma venda onde ele costumava beber pinga, então colocavam o defunto na margem da estrada e iam até a venda beber umas pingas em sua homenagem. Na entrada da cidade havia o córrego lava-pés onde se encontravam com um funcionário da prefeitura já a espera do cortejo com um caixão fornecido gratuitamente pela prefeitura.
Era só atravessar o arame das margens da estrada para encontrar pés de maracujás carregados, bastava abrir os frutos maduros e se deliciar com sua poupa deliciosa, era comum a garotada se aliviar nas margens da estrada e nestas horas eram disseminadas as sementes dos maracujás. No verão, na volta da escola, a turma era maior, tinham meninas e meninos e era uma farra, à medida que nos afastávamos da cidade, a turma ia diminuindo, depois da entrada para o Mundo Velho os meninos remanescentes corriam para chegar mais rápido na ponte de concreto sobre o Ribeirão Doce, nas proximidades da casa do tio Geraldo Quitute, logo abaixo da ponte tinha um remanso ideal para tomar um refrescante banho, era uma farra, os meninos pelados gostavam de se exibir para as meninas quando elas passavam pela estrada, que mais recatadas passavam do lado oposto da estrada.
Eu tinha como companhia certa para ir e voltar do Grupo Escolar por todo o percurso, dois irmãos que moravam perto da Fazenda Velha da tia Zezé, quando o Jair e o Didi chegavam na porteira e eu ainda não havia saído de casa, gritavam por mim e esperavam. Eu gostava da companhia deles e eles gostavam da minha, mas isto não impedia os desentendimentos e nossas brigas eram habituais, em qualquer desavença o pau comia solto. Eu sempre apanhava quando eram os dois contra mim ou se era o Jair, ele era o mais velho dos três, mas o Didi era da minha idade e contra ele eu tinha chances e o resultado das brigas neste caso era sempre incerto. Cansado de levar a pior contra o dois bolei um plano sinistro, na fazenda era habitual os quintos serem desmontados, assim havia muitos pedaços dos aros de metal enferrujando nos cantos do engenho. Debaixo da varanda havia assentada uma pedra de amolar as ferramentas da fazenda, já desgastada pelo tempo, usada para afiar facas, foices, enxadas e os machados. Peguei um aro e parti um pedaço razoável, sempre que podia sentava na pedra e trabalhava no pequeno pedaço de aro tirando dele a ferrugem, o afiando e dando ao mesmo o formato de uma pequena faca. Depois de dias, fiquei satisfeito, peguei embira e enrolei fazendo um cabo para a rustica faquinha, fiquei orgulhoso de meu trabalho, havia construído uma bela arma e passei a andar com ela escondida na cintura. Na primeira desavença com os irmãos os ameacei com minha faca, não recordo qual deles, acho que foi o Jair, o mais agressivo, ele não acreditou nas ameaças e partiu para cima de mim, enfiei a ponta da faca em sua perna, ele chorou um pouco, a agressividade cessou e fomos e voltamos em paz da escola. Á tardinha vi a mãe do Jair chegando o carregando pela mão na fazenda e não desconfiei de nada, fui ao encontro deles e notei que a mãe dele estava diferente e o Jair arredio, quando ela encontrou com minha mãe se cumprimentaram ela foi logo dizendo que em brigas de meninos ela não se metia, achava que meninos brigarem era normal, mas que desta vez ela tinha que vir avisar minha mãe que eu tinha dado uma facada na perna do Jair e que uma facada não era brincadeira. A mãezinha ficou uma fera, me pegou e me deu uma das surras mais violentas que sofri, tive que buscar minha faca que tanto trabalho me dera e a entreguei para ela e pensei que estava tudo resolvido, engano meu, a mãe do Jair pediu emprestada para minha mãe a correia, pegou o Jair pelo braço e deu uma senhora sova nele, enquanto o surrava dizia para ele deixar de ser safado, ela o sorrindo de satisfação na hora que eu apanhava. Após as surras em mim e no Jair, as duas foram para a cozinha colocar o papo em dia e eu e o Jair fomos para o gramado na frente da casa brincar, de início meu sem jeito, mas em pouco tempo estava tudo normal.
Diariamente um dos filhos do tio Geraldo, o Tim ou o Zé Quita, ia no retiro da fazenda pegar uma latinha com leite e levava para a vovó Quitute na cidade. Eu sempre me encontrava como eles no meu retorno das aulas, quando eu ia na cidade fora da hora das aulas a vezes que ia na companhia de um deles, quando chagávamos nas proximidades da casa do tio Dario, nos separávamos, um ia na frente e o outro o seguia de longe, se a vovó Quitute nos visse andando juntos a barra pesava. A vovó sempre me tratou muito bem, mostrava interesse em mim e no pelo meu andamento escolar, mas tratava os filhos do tio Geraldo com casca e tudo, sem nenhuma consideração, de início esta reação da vovó Quitute foi incompreensível para mim, eu gostava de meus primos e nos dávamos muito bem. Só com mais idade fiquei sabendo que o tio Geraldo tinha casado com a tia Conceição contra a vontade dela. Quando a vovó ficou sabendo que o tio Geraldo estava de casamento marcado com a tia Conceição e que a data estava quase chegando, foi a Barbacena e pediu ao tio Rubens para ir a Alto Rio Doce impedir o casamento de qualquer jeito, mas quando o tio Rubens chegou já tinha acontecido o casamento. O fato é que a vovó nunca gostou da tia Conceição e descontava sua raiva em seus filhos.
Tia Dora irmã do papai e mulher do tio Rubens, morava em Barbacena, com ela morava sua irmã a tia Zita. O ônibus da tarde que fazia a linha Barbacena Alto Rio Doce, parou ao lado da porteira, buzinou e quando o cobrador me viu na varanda deixou um objeto na porteira e seguiu viagem, fui lá e encontrei uma carta, a levei para o papai. Ele a leu falou para a mãezinha se preparar porque no outro dia iam para Barbacena no primeiro ônibus, a tia Dora avisava na carta que a tia Zita estava muito doente. Ficamos em casa, a vovó Colina e o tio Abílio, eu e o Tarcísio, os dois irmãos menores, foram com eles. Ficaram fora mais de uma semana, a tia Zita piorou, foi internada e acabou morrendo, só voltaram depois de seu enterro. Eu e o Tarcísio ficamos sem supervisão nestes dias, depois de cumprirmos nossas tarefas estávamos livres e aproveitamos para aprontarmos. Andávamos até as fazendas vizinhas e enturmamos com os garotos da vizinhança, foi uma festa e o tio Abílio nos ajudava e parecia estar se divertindo tanto quanto nós dois. O Tarcísio pegou duas cabacinhas com o pescoço proeminente e com a ajuda do tio Abílio e embira fizeram uma boia para natação, eu e o Tarcísio não sabíamos nadar, ele logo se adaptou e da pinguela perto do engenho pulava no rio e nadava para cima e para baixo, parecia fácil, mas quando entrei no ribeirão com a boia improvisada não tive confiança necessária para me soltar, assim quando me falavam para não ter medo que eu não ia afundar e me jogavam na água, eu agarrava nas canavieiras e não largava, o Tarcísio e o tio Abílio riam às gargalhadas. Quando a brincadeira terminava o Tarcísio deixava a boia junto com as formas de rapadura no engenho. O papai e a mãezinha voltaram tristes, cabisbaixos devido à morte da tia Zita. Passados uns dias a mãezinha me pegou e ao Tarcísio e sem conversa e sem aviso e deu uma senhora surra em cada um. Só dias depois ficamos sabendo dos motivos da surra, o tio Abílio, passada a tristeza do luto, tinha contado tintim por tintim todas nossas estripulias na ausência deles, tinha até levado a mãezinha até o engenho e mostrado para ela a boia de cabaças.
O papai tinha um amigo que às vezes aparecia na fazenda, ficava em casa por uns dias, e ele e o papai batiam longos papos, um dia ele despediu de meus pais e me acompanhou cedo em minha ida para a escola, andávamos calados quando me lembrei de uma brincadeira comum entre a meninada nestas caminhadas, então perguntei para ele qual era sua idade e ele respondeu 60 anos e eu comentei rindo “da idade de minha égua velha fedorenta”, continuamos andando calados por certo tempo, pouco depois ele parou e falou que ia voltar até a fazenda porque tinha esquecido algo nela. Fui até ao grupo, assisti às aulas normalmente e quando voltei para casa estavam todos na varanda, não desconfiei de nada e fui até a varanda, só comecei a desconfiar quando a mãezinha veio em minha direção com as mãos para traz, me pegou pelo braço e me deu uma surra com a correia, falando que eu tinha que aprender a respeitar os mais velhos. Quando fiz a brincadeira da égua velha com o seu Teófilo, ele achou que era uma falta de respeito, voltou para a fazenda e falou para minha mãe, o desfecho de minha brincadeira foi meu lombo cheio de vergões, nestas ocasiões eu tinha que evitar que ela desse correiadas nas próprias pernas, quando isto ocorria eu apanhava dobrado.
O filho caçula da vovó Colina era o tio Augusto, ele era o oposto do tio Abílio, o tio Abílio era baixo, era um homem pequeno, já o tio Augusto era um homem alto, tinha curso superior e residia em Belo Horizonte. Era dono de um terreno entre a propriedade do tio Geraldo e a propriedade do Luiz Dias, onde construiu uma confortável casa e de vez em quando aparecia e ficava uns dias e ia em nossa casa para visitar a vovó Colina, sua mãe, não sei a razão, mas eu sempre me sentia constrangido em sua presença. Seu filho Coralino, recém casado com uma moça linda chamada Eliete passou uma temporada com ela na casa do tio Augusto. Imediatamente a Eliete e a mãezinha se tornaram amigas e as visitas dela em nossa casa eram frequentes. a mãezinha também a visitava em sua casa com frequência. Em uma tarde estávamos na casa dela e ela me perguntou se eu podia fazer um favor para ela, eu me coloquei à sua disposição para o que ela quisesse, antes de nosso retorno para a fazenda ela me deu um bilhete e dinheiro, falou que era só entregar o bilhete na farmácia e trazer a encomenda para ela. No dia seguinte após as aulas passei na farmácia do seu Levindo Barbosa e era um filho dele que estava atendendo, entreguei para ele o bilhete, ele me entregou a encomenda e perguntou se a encomenda era para mim e eu respondi que sim, me perguntou se era a primeira vez que eu usava, respondi que já usava há muito tempo, eu não tinha ideia que a encomenda era coisa de mulher, paguei, sai e voltei para fazenda. No dia seguinte vários meninos começaram e me gozar por causa do que eu tinha dito na farmácia, eu não compreendia os motivos pelos quais eles estavam me gozando, reagia na saída da escola, eram brigas diárias até que a gozação parou. A mãezinha arrumou uma filha do Belino para ajudar a Eliete na casa, através dela eu fiquei sabendo que a casa era um luxo, o Coralino e sua esposa tomavam banho todo dia, que na casa tinha um cômodo com banheira, chuveiro e um vaso onde faziam suas necessidades, o que mais me impressionou foi ela falar que a água do chuveiro já saia morna e que na cozinha tinha uma torneira de onde saia água quente para lavar as vasilhas. Na primeira visita que fizemos ao casal eu estava morrendo de curiosidade para explorar toda a casa para ver se o que eu ficara sabendo era verdade, mas se eu agisse especulando a casa era surra na certa, então fiquei perto de minha mãe. Como era a primeiras vez que visitávamos a casa, a Eliete levou a mãezinha para conhecer a residência, eu fui na colado nelas, passamos pelas salas de visita e de jantar, pelos quartos e no banheiro, foi a primeira vez que vi um chuveiro e um vaso sanitário com descarga, ela explicou que os dois registros do chuveiro serviam para misturar agua fria e quente para ficar no gosto de quem ia tomar banho, faltava ela explicar de onde vinha a agua quente, voltamos para a cozinha e ela mostrou para minha mãe a serpentina dentro do fogão uma caixa d’agua quase no teto em cima do fogão e explicou que enquanto o fogão estava aceso preparando a comida os canos dentro do fogão levavam a agua quente até a caixa, que a agua chegava a ferver na caixa, embora eu não tivesse entendido tudo cem por cento por enquanto minha curiosidade estava satisfeita. Depois desta primeira visita o Coralino sempre que podia e seu trabalho em Belo Horizonte lhe dava folga, ele era proprietário de um laboratório, aparecia e passava dias na casa, em uma ocasião ele chegou com um cavalo de raça, de um tamanho que eu nunca tinha visto, era uma beleza de cavalo, recordo que no pátio gramado da fazenda ele demonstrou para o papai o cavalo trotando e empinando, eu nunca tinha visto cavalo empinar com o cavaleiro montado.
Haviam na fazenda uma égua e um cavalo amadrinhados, aonde o Pirata ia a Boneca o seguia, perambulando pelos pastos da fazenda costumava encontrar os dois pastando, eu procurava um cipó flexível e fazia com ele um barbicacho e colocava no Pirata, pegava o Tanúncio e colocava em pelo sobre a Boneca e ele agarrava em sua crina, o Tanísio não gostava o correr riscos e nunca me acompanhou nestas ocasiões, montava em pelo no Pirata saiamos passeando sem destino. Andando da porteira da entrada da fazenda na direção de Barbacena havia um aterro na estrada sobre um córrego canalizado e no topo da elevação havia a estrada para a Fazenda do João Pinto, era neste pasto que a Boneca e o Pirata costumavam ficar e para passar na lateral do aterro tinha que deitar sobre o pescoço do animal para evitar o galho de uma arvore que tinha crescido nesta lateral, bem sobre a galeria por onde passava o córrego que vinha do lado do rancho da Almerinda, apressei a trote no Pirata, deitei em seu pescoço para passar sob o galho, o Tanúncio viu as filhas do João Pinto andando na estrada e ficou olhando para traz abanando a mão para chamar a atenção delas e esqueceu o galho que o pegou pelo pescoço e o jogou na saída da galeria, quando vi a cena meu coração veio até minha boca e pensei desta vez estou ferrado, vou apanhar até morrer, desmontei e corri até onde ele tinha caído, o encontrei sentado no córrego, segurando o ombro direito e chorando, o tirei do córrego e para meu alivio me pareceu bem, havia apenas deslocado o ombro direito, eu dei uma puxada em seu braço para recolocar seu ombro no lugar, ele deu um grito com a dor do puxão ficou chorando. Neste dia o tio Joãozinho chegou e encontramos com ele e a mãezinha conversando na sala de jantar, fui até eles, tomei bença e beijei sua mão, na vez do Tanúncio, ele usou sua mão esquerda, e foi avisado que tinha que ser com a mão direta, ele até que se saiu bem, falou que usava a mão esquerda porque era canhoto, quando o tio Joãozinho pegou sua mão direita e puxou, ele deu um grito de dor. Moral da estória tive que explicar, tim-tim por tim-tim todo o ocorrido e eu levei aquela surra.
A Boneca era um animal dócil, calma e não recordo dela agindo agressivamente, seu trote era uma andadura suave, já o Pirata era um cavalo explosivo, trotão e irrequieto, a boneca só tinha uma mania, se encontrasse um trilho ou um córrego, de repente e sem aviso, ela dava uma arrancada e pulava sobre o obstáculo. Quando a primaiada se juntava na fazenda costumávamos andar em pelo nos cavalos, eram meia dúzia de meninos em cada cavalo, ficávamos a passear e a brincar, certo dia andávamos sem destino, e lembrei-me desta mania da boneca e dirigi o percurso para atravessar um trilho, quando a Boneca deu sua habitual arrancada e pulou sobre o trilho, não ficou um menino em seu lombo, desci do Pirata preocupado para socorrê-los, mas nenhum tinha se machucado, quando voltamos para a fazenda eles contaram nossa aventura e todo mundo caiu às gargalhadas e não fui responsabilizado e nem surrado, se bem que eu fizera por merecer pelo menos uns bons sopapos. Quando, andado sem rumo pelos pastos da fazenda, estava longe de água e ficava com a boca seca procurava mamona seca a descascava e pegava sua amêndoa, dava uma mastigada, logo que minha boca enchia d’agua eu cuspia a amêndoa, eu sabia da sua propriedade laxante. Andávamos, eu e meus primos pela fazenda, longe de água e peguei uma mamona, tirei sua amêndoa e coloquei na boca e um dos primos me perguntou o que era aquilo e eu falei que era amendoim e continuei a caminhar. Quando voltamos para a casa dois primos começaram a vomitar e a ter diarreia, a coisa foi ficando feia e minha mãe quis saber o que tinham comido para chegar a esta situação, quando ficou sabendo que eu tinha dado a eles amendoim e como não havia plantação de amendoim na fazenda, ela me questionou que amendoim era aquele e eu expliquei que era mamona seca, que eu tinha falado que era amendoim de brincadeira, que nem tinha passado por minha cabeça que eles iam comer as amêndoas. Arrumaram um carro e levaram os primos afetados para o hospital em Barbacena. Desta vez a surra que levei deixou minhas costas em brasa.
Atrás do paiol, ao lado da manga dos porcos e já perto do brejo havia duas arvores próximas, uma grande e outra menor, a copa da menor chegava a tocar no tronco da maior. O tronco da arvore maior era grosso e não dava para subir por ele, estávamos perambulando, eu, o Tanísio e o Tanúncio pelo pasto atrás do paiol, eu sentei em cima de um cupim e fiquei observando as duas arvores, estudei a possibilidade de subir até o topo da arvore maior começando a escalada pela menor, se galhos da arvore menor aguentassem meu peso eu poderia passar de uma arvore para a outra e continuar a escalada. Dito e feito levei os irmãos menores até a base das arvores e expliquei minhas intenções, imediatamente comecei a subir na arvore menor, subi até onde sua copa tocava na outra arvore, pelo galho que me pareceu o mais resistente fui deslizando, com o coração na mão até as proximidades do tronco da outra arvore temendo que ele não aguentasse meu peso, parei já perto do tronco e criei coragem e pulei para o outro tronco, parei até minha respiração normalizar e continuei até a copa arvore maior. Depois desta primeira vez sempre que podia repetia a escalada, até que um dia estando na copa da arvore maior me veio a ideia de incentivar o Tanísio para ele me seguir na escalada. Desci e sentei com eles, tentei convencer o Tanísio a me seguir, mas ele não foi na minha conversa. Fiquei com raiva e convidei ao Tanúncio e ele prontamente me seguiu deixando o Tanísio enfezado, para ele levar o Tanúncio era falta de juízo. Já no tronco da arvore maior incentivei o Tanúncio a ir deslizando pelo galho até que ele chegou ao meu alcance, o peguei pelo braço e ele se agarrou no trono subimos até sua copa. Do alto comecei a insultar o Tanísio e isso foi um erro, ao descer pela arvore maior o Tanísio enfezado com a gozação começou a me jogar pedras e esta reação dele me enfureceu, mas eu não tinha nada para atingi-lo. Então convenci o Tanúncio a descer primeiro, ele também estava amedrontado, mas concordou e com ele na minha frente e eu colado nele o Tanísio não tinha como me acertar e chegamos a salvo no chão.
Era sábado e eu tinha ido abastecer e ver se estava tudo certo no moinho e na volta, quando cheguei perto da porteira do lado esquerdo da casa escutei a mãezinha conversando com uma mulher, olhei entre as taboas e era minha professora primaria dona Lourdes e suas duas filhas que estavam chegando. Minha reação foi de pavor, tive certeza que a visita delas era para informar alguma estripulia minha, voltei para o engenho tentando adivinhar o que eu tinha aprontado desta vez. Sentei na pinguela pensativo quando vi, acima da pinguela, no trilho que o carro de boi havia deixado no leito do ribeirão uma bela traíra com o dorso fora d’agua tomando sol. Não pensei duas vezes, saí de fininho e fui até a fornalha do engenho, peguei o cacumbu de cabo longo que era usado para avivar as brasas e voltei de mansinho e agachado para a margem do rio. Fiquei observando a traíra enquanto me aproximava rastejando, vagarosamente para não a assustar, bem próximo da margem, cuidadosamente fui esticando vagarosamente o cacumbu na direção dela e de repente abaixei a enxada e a joguei fora do rio, foi um golpe certeiro, ela começou a pular para voltar para dentro d’agua e eu com cuidado evitando seus dentes, com as mãos e pés a joguei para longe do rio. Quebrei um galho, fiz uma fieira e coloquei nela a bela traíra que acabara de pescar.
Agora eu tinha dois problemas, além de dona Lourdes lá em casa o que ia fazer com a traíra, eu estava proibido terminantemente de pescar. Pensei e resolvi levar e dar o peixe para a Almerinda, subi pelo trilho até a estrada e andei até a porteira de acesso ao pasto onde ficava rancho dela. Sentado em um barranco do lado de dentro da porteira estava o Antônio o marido dela, ele me fez um sinal fui até ele e sentei ao seu lado e expliquei que estava levando a traíra para sua mulher, ele pegou a fieira, observou e ficou satisfeito com o que viu, mas disse para esperarmos os cachorros fazerem seu serviço primeiro. Entre a porteira onde estávamos e a casa da Almerinda tinha um brejo onde em sua parte mais estreita passava o caminho do carro de boi que fora aterrado com cascalho para evitar que o carro atolasse. Nós tínhamos três cães na fazenda, eu e o Antônio ficamos observando os cães caçarem e eles tinham uma tática bem inteligente, enquanto dois latiam e pulavam nas moitas dentro do brejo, um ficava de prontidão na estrada do carro correndo de um lado para o outro, quando um piriá atravessava a estrada o pegava firmemente com a boca, balançava a cabeça de um lado para o outro depois colocava a caça na estrada fora do brejo, observava se o piriá ficava inerte e depois voltava para sua posição na caçada.
Com os cachorros desanimando eu e o Antônio atravessamos o brejo, ao passarmos perto dos piriás no leito do caminho e o Antônio pegou quatro e os sangrou, comentei com ele porque não tinha pego todos, ele sorriu e me disse que estas caçadas eram habituais, que se ele pegasse todos eles desistiriam e o prejuízo seria dele também, ao nos aproximarmos do rancho, seu filho Zé Alfredo, nos recebeu alegremente, admirou os piriás com seu pai e a traíra que eu levava, entreguei o peixe para a Almerinda e ela colocou duas panelas no fogão, uma para ferver agua para pelar os piriás e outra para fazer angu doce. Enquanto a Almerinda preparava a merenda, fomos até o canteiro de cana, passamos duas canas na engenhoca e voltamos com a garapa para o café, eu e o Zé Alfredo ficamos à espera brincando no terreiro. Depois de nos servir a Almerinda comentou que a mãezinha tinha visitas e foi para a fazenda dar uma mão e eu e o Zé Alfredo ficamos perambulando pelas redondezas do rancho. O pequeno córrego do brejo tinha muitos lambaris pequenos e um dia estávamos pescando e havia um tronco deitado no chão acima do local da pescaria, como não tínhamos fieira os lambaris que pescávamos eram jogados acima do tronco, quando providenciamos uma fieira o fomos pegar os peixes atrás do tronco demos de cara com uma grande cobra que estava engolindo os peixes. Ficamos apavorados.
Resolvemos pescar, o Tarcísio pegou um cacumbu e começou a cavar a procura de minhocas do lado de fora do chiqueiro e o Tanísio ficou agachado ao lado observando atentamente a procura das minhocas, de repente ele viu uma e inclinou o corpo em um movimento rápido e levou a mão para pega-la, Tarcísio acertou a cabeça dele violentamente com a enxada. Eu estava próximo do chiqueiro, quando escutei o grito de dor do Tanísio, corri até onde ele estava estirado no chão com a cabeça ensanguentada, ficamos apavorados, pensei que ele estava morto e quando Tarcísio começou a andar chorando com ele no colo inanimado na direção da casa sai correndo passei pelo chiqueiro, debaixo do paiol e parei perto da porta da sala de jantar, ao lado de uma goiabeira e fiquei a espera do Tarciso chegar, observava com o coração na mão tentado pensar no que fazer, tinha certeza que o Tanísio estava morto. Quando o Tarcísio chegou com ele nos braços, a mãezinha o pegou e levou parra dentro de casa, ficamos parados nos degraus da escada da cozinha em choque sem qualquer iniciativa, estávamos paralisados. O pior foi quando a mãezinha voltou e perguntou o que tinha acontecido e o Tarcísio explicou, ela virou uma fera e deu nele a surra numa violência que eu jamais tinha visto. Ela mandou um camarada preparar a charrete e saiu com o Tanísio para ser socorrido pelo médico na cidade. Ficamos calados achando que ele ia morrer, até que a Almerinda nos mandou entrar e tirou a camisa do Tarcísio, que estava colada em suas costas cheia de sangue, esquentou água, colocou na bacia e acrescentou sal, sentou o Tarcísio nela e começou a passar água morna salgada com um pano em sua costa, ele continuava chorando. Só sentimos alivio depois que a mãezinha voltou da cidade com o Tanísio vivo, com um grande curativo na cabeça. Nós nunca mais falamos neste episódio, o Tarcísio nunca mais foi o mesmo, fiquei arrependido por ter ficado calado enquanto só o Tarcísio apanhava.
A lavoura de milho era capinada duas vezes, havia a 1ª e a 2ª capina, na 2ª capina uma parte da lavoura era deixada intacta na fazenda onde ia ser realizada a festa comunitária do termino da capina. Os camaradas das fazendas próximas se reuniram no pátio da casa e a farra tinha início, o coité com pinga corria solto, era servida uma merenda e depois de alimentados colocaram as enxadas nos ombros e saíam cantando na direção da lavoura, o guia puxava o canto fino e todos respondiam grosso, iam invertendo conforme o canto do guia. No eito a cantoria continuava, com o calor do sol, da pinga que tinham ingerido e da cantoria os camaradas começavam a sentir sede, o meu serviço e dos demais garotos era ir ao córrego e trazer a cabaça cheia d’agua a carregando pelo buraco em seu pescoço, era chegar e ir enchendo o coité para os camaradas beberem, esvaziada a cabaça era voltar para buscar mais água, parecia que a sede deles não tinha fim. Enquanto os homens estavam na roça, as mulheres estavam na sede preparando as comidas e bebidas, terminada a capina o retorno também era festivo e a cantoria continuava até a chegada no terreiro. Para a meninada e as mulheres eram servidos as quitandas e café com leite, para os adultos tinha leitoa já assada de véspera, frango, carne de porco de panela, tutu e arroz e pinga a vontade, a sanfona, os calangos, os desafios e as músicas caipiras animavam a festa que seguia até de madrugada, quando algum camarada ia embora procurava nas esteiras seus filhos dormindo antes de partirem.
O tio Totonho era operário em Juiz de Fora, ficou desempregado e foi morar na fazenda no final da década de 40, não havia outro pescador como ele, as tardes se não estivesse chovendo eu o acompanhava em suas pescarias, saiamos pelos fundos da casa, descíamos a estrada de carro de boi até o rio, passando atrás da horta e pelos fundos do engenho, atravessávamos a pinguela sobre o rio e subíamos pela margem oposta até chegar ao remanso acima da cachoeira e aonde chegava ao rio um pequeno córrego, local de sua preferência para pescar de traíras na agua parada no meio das canavieiras. Eu pegava uma vara fina e delgada, sentava na margem e começava a pescar, com minhoca lambaris e bocarras enquanto o tio preparava suas tralhas para a pescaria de traíras, como iscas ele usava os lambaris que eu pescava. Ele era paciente, iscado seu anzol ficava pacientemente movendo a vara para cima e para baixo circundando o remanso e este método não falhava, de uma hora para a outra a traíra dava o bote na isca e o tio a tirava abruptamente da água e se afastava da margem do rio, a boca da traíra é puro osso e ela costuma se soltar e voltar pulando para a água. Em uma pescaria a traíra se soltou e caiu no córrego, quase no rio, o tio Totonho agiu rápido, deitou no córrego e só levantou com a traíra nas mãos. A mãezinha costumava fritar peixe no almoço e um dia um espinho agarrou na garganta do Tarcísio coitado, foi um drama desalojar este espinho fizeram-no a engolir arroz frio, engolir o que aguentasse e tomasse bastante água para o arroz desalojar o espinho. Tudo em vão, até que a Almerinda chegou e resolveu o problema, fez o pobre de meu irmão engolir pedaços inteiro de angu duro e frio sem mastigar e em uma engolida destas o espinho foi levado pelo angu, foi um alivio geral, mas o Tarcísio aprendeu a lição e nunca mais comeu peixe com espinho na roça.
O pilão ficava logo depois da entrada da porta dos fundos, após o arroz venez ser pilado, era soprado em uma peneira e levado para a cozinha, depois do jantar a mãezinha preparava o cubu para o consumo no dia seguinte, após quebrar os ovos na gamela, colocava leite azedo e rapadura raspada e bicarbonato, batia a mistura com uma colher de pau até ela ficar homogênea, acrescentava o fubá e depois da mistura bem batida a colocava em uma panela de ferro untada, juntava brasas debaixo da primeira trempe, colocava brasas sobre uma lata, colocava a panela na trempe com a lata com brasa por cima e enquanto o cubu assava, colocava o arroz pilado sobre a mesa, sentávamos no entorno e começava a cata dos marinheiros, este trabalho era demorado, íamos puxando o arroz, os marinheiros eram separados e o arroz limpo colocado em uma lata, os marinheiros depois voltavam para o pilão. O café era colhido maduro manualmente, com os grãos eram puxadas as folhas no processo da derriça nos galhos, depois de soprado em uma peneira, ainda na lavoura, para descartar as folhas, era seco ao sol espalhado pelo terreiro limpo, onde era virado constantemente por um camarada para a seca ser igual, depois de seco era ensacado e armazenado no paiol para a venda e o consumo ainda em coco. Quando estava acabando o café em pó do consumo, o café em coco era pilado, depois de soprado e limpo era armazenado em sacos de linhagem no paiol, para depois ser vendido ou torrado em uma panela de ferro no fogão para o consumo. Neste dia, antes do início da torra, todas as janelas da cozinha eram fechadas para que a mulher da torra não estuporar. Colocada a panela com os grãos no fogo a mulher não podia parar de mexer os grãos com uma colher de pau, era um processo demorado, lento e quente, ela só parava quando o café estava na cor media, só então a panela era tirada do fogo e o café já torrado era esfriado e armazenado em uma lata. Para ser transformado em pó, um moedor de ferro fundido era fixado na mesa da cozinha e o café torrado era moído girando o disco de moagem com uma manivela manual e o pó de café agora pronto para ser escaldado era armazenado em uma lata.
Para o preparo do doce de goiabada cascão não podia usar faca de ferro para evitar o zinabre, era então confeccionadas facas de bambu que cortavam como navalha bastava bater com um facão na casca de bambu e tirar uma lasca, estas lascas eram afiadas, para evitarem-se acidentes, a parte mais grossa da lasca servia de cabo, nela era enrolada embira para evitar que ele ficasse escorregadia. Em seguida tinha que ser preparado o tacho de cobre que era lavado usando limão rosa, sal e bicarbonato, assim ele era bem areado até ficar brilhando. A goiaba madura que já tinha sido colhida ou catada no chão no entorno das goiabeiras, eram partidas ao meio com a faca de bambu para retirar suas sementes e os miolos que eram descartados, só eram usadas as cascas examinadas uma a uma, lavadas e retiradas delas as imperfeições e os furos dos bichos. Em seguida era colocar o tacho na trempe, colocar o açúcar, as cascas e mexer ininterruptamente até a massa dar ponto, aí era só despejar nas formas e esfriar, era um processo demorado, mas valia a pena, a goiabada cascão é um doce delicioso, sem igual.
Para a canjiquinha o processo tinha início com a escolha de um milho sadio e selecionado que era levado para o moinho, onde a pedra era levantada para quebrar o milho. Depois da moagem vinha a peneira para separar a canjiquinha do fubá grosso, com esta separação a primeira etapa estava concluída. Na cozinha era separada a quantidade que ia ser preparada para ser colocada de molho na água para separar as películas externas dos grãos do milho. Depois de bem húmida a massa obtida era colocada em uma peneira e esfregada dentro de uma bacia com água até a eliminação de todas as películas que flutuavam e depois a canjiquinha era cozida. Em outra panela era colocada a borra da gordura para dar gosto, o alho socado e a cebola picada, a costelinha ou pedaços de carne de porco separada da gordura de panela e depois era refogada a canjiquinha cozida, a couve rasgada e a cebolinha de cheiro eram os últimos temperos acrescentados. Para acompanhar a canjiquinha a mãezinha preparava angu e creme de feijão. O feijão era refogado em uma panela de pedra e socado com um soquete de pau antes de colocar a água fervendo, colocada a água em uma peneirinha o feijão era coado para separar as cascas que eram eliminadas, o creme obtido era delicioso. O angu era preparado sem tempero, na água já fervendo o fubá era colocado aos poucos e mexido até ficar cosido se soltando da panela, era colocado em um prato fundo esmaltado para esfriar, frio era colocado em uma taboa para ser cortado com uma faca e consumido. A mãezinha colocava em um prato fundo esmaltado um pedaço de angu frio, a canjiquinha e pedaços de carne ou de costelinha no meio do prato um pouco de creme de feijão, este sempre foi um de meus pratos preferidos.
No dia da matança de porco a Almerinda e minha mãe iniciavam o dia lavando e areando a panela de ferro grande assentada, preparando as mesas, gamelas e bacias necessárias. O sr. Cicero e o Antônio também chegavam cedo, amontoavam as palhas de milho no local da sangria, amolavam as facas, machado, machadinha e enxada, ferramentas que iam necessitar nos trabalhos. O capado já separado de véspera e deixado em jejum, era tocado até o terreiro onde ia ser sacrificado. Derrubado o porco o camarada que o imobilizava no chão com os joelhos levantava sua pata dianteira e o sangrava com uma facada no coração, ao retirar a faca, em uma bacia pequena já com um pouco de sal aparava o sangue que saia do ferimento, em pouco tempo ele morria e o camarada arrolhava o ferimento com sabugo para aproveitar o resto do sangue posteriormente. O capado era bem lavado tirando dele a sujeira do chiqueiro e depois era coberto com palha de milho e sapecado, enquanto a palha queimava um camarada ia pelando sua pele raspando com a enxada, os pés, orelhas e cabeça tinham que serem limpas com uma faca pequena. Deitavam então o porco com as pernas para cima, o escorando com pedras até ficar firme e com uma faca afiada o abriam com um corte iniciado no meio da papada que até o meio das pernas, com mais cuidado na barriga para o corte não furar as tripas. A abertura do peito era terminada com o machado separando as costelas no peito, aberto o porco primeiro eram retirados os miúdos e colocados em uma gamela, depois o resto do sangue era retirado com uma cuia e colocado na bacia, retiravam a barrigada e colocavam em uma gamela. Com o porco aberto por um dos camaradas abria seu peito segurando as pernas dianteiras e o outro com o machado, com cuidado para não cortar muito o lombo, ia cortando com cuidado os lados da espinha até tirar a suã inteira, que saia junto com a cabeça, o trabalho dos camaradas estava encerrado quando levavam para a cozinha e colocavam nas mesas as bandas do capado, agora era com as mulheres.
Elas separavam as carnes, cortavam o toucinho para torresmo em pedaços pequenos e iam jogando dentro da panela de ferro, o lombo era costurado enrolado, as carnes eram desossadas e as costelas já picadas também eram colocadas na panela fritando tudo junto já com sal. Então começava o serviço com a barrigada, as tripas eram separadas do redanho e bem lavadas, o sangue era temperado com sal, cebola e cebolinha e acrescido de redanho desfiado e embutido nas trupas grossas, depois era fervido em um tacho até ficar cozido. Partes dos miúdos já cozidos eram lavados e picados em pedaços pequenos, bem temperados eram recheio para o bucho que depois de cheio era fechado com agulha e linha e jogado na panela junto com o resto dos miúdos. A carne da barriga e dos pernis dianteiros era picada a mão e depois de temperadas eram embutidas nas tripas finas com a ajuda de um funil de bambu, cheias e amarradas com palha eram dependuradas em cima do fogão para serem defumadas e curadas. Terminada a fritura, a gordura era coada e colocada nas panelas de pedra usadas para este fim, as carnes eram as últimas a saírem da panela e eram colocadas na gordura das panelas de pedra já com gordura, uma para cada tipo de carne, por último era retirada a borra que era usada no preparo de verduras, legumes e canjiquinha e mingau de couve e colocada n panela de pedra da borra. Era comum sacrificar porcos caipira com brincos, estes brincos eram disputados por mim e meus irmãos, depois de pelado o camarada que ia abrir o capado tirava os dois brincos e nos dava depois de corta-los no meio para evitar confusão. Íamos para a cozinha e depois de colocar sal jogávamos os brincos nas brasas do fogão, depois era esperar ficarem tostado para consumi-los como torresmo. Os capados podiam ser abatidos na fazenda ou nos ranchos dos camaradas. Os camaradas escolhiam um marrão já castrado na manga e o levavam para engordar em casa a meia com meu pai. Quando o capado estava gordo e era abatido uma banda e a barrigada eram do camarada, a outra banda era de meu pai, este sistema funcionava perfeitamente e bem, a pobreza na roça era a regra, mas a alimentação era farta e garantida, na roça não corria dinheiro, avia pobreza, mas nunca vi miséria na alimentação, havia fartura para todos.
Na varanda da fazenda havia um banco de madeira comprido e, após o jantar, fui para a varanda e o Tio Totonho me colocou no colo, olhando a chuva caindo perguntei de onde a chuva vinha e ele me explicou que eram as nuvens que traziam a chuva. Que depois de despejarem toda a água, tinham que voltar até o mar para beber mais água. Que os relâmpagos e trovões eram as nuvens batendo umas nas outras. Que quando uma criscava na outra saia um raio e quando batiam de frente aí acontecia o trovão e se a batida fosse muito forte caia a tromba d’agua que destruía tudo onde caia. A explicação do raio e trovão entendi na hora, no meio rural, na minha infância, os camaradas usavam diariamente para acender o cigarro de palha e para fazer fogo um isqueiro rudimentar, um cilindro de latão ou mesmo de bambu, com uns trapos dentro, uma pequena chapa de ferro e uma pequena pedra de cristal. Para acender o isqueiro, era só criscar a chapa na pedra, perto da boca do isqueiro que quase imediatamente as faíscas incendiavam os trapos, então quando o Tio Totonho falou sobre os raios e trovões entendi o processo na hora, sem mistério, mas foi sua explicação sobre a tromba d’agua que me apavorou, ele falou que quando as nuvens batiam de frente, violentamente, elas podiam estourar, aí em vez de cair em gotas a água caia toda de uma vez, arrasando tudo por onde caia. A partir deste dia toda vez que tinha chuva com raio e trovão eu ficava apavorado esperando a tromba d’agua cair em cima da casa e arrasar tudo em meu redor.
No final da década de 1940 e a vovó Maria chegou à tarde no ônibus de Barbacena, no dia seguinte ela e o papai estavam conversando em uma janela do lado do retiro e observavam o tio Totonho destocando o brejo na vargem ao lado do rio com um enxadão preparando o terreno para o plantio de arroz. A vovó chamou o papai para dentro da casa e sentaram na sala de jantar, ela comentou que não via futuro para o tio Totonho na roça e pediu ao papai para ir a Barbacena e arrumar para ele um comercio de alguma coisa de alimentação e comentou que ninguém ia deixar nunca de se alimentar. Quando a vovó voltou para Barbacena o papai e o tio Totonho foram com ela. Em Barbacena o papai soube que o Sebastião Ventão e seu irmão Antônio Cara Seca estavam vendendo o Açougue Sulino na Rua Sete de Setembro. O papai, o tio Urias e o tio Totonho os procuraram e negociaram o açougue, de início, como o tio Totonho ia trabalhar no açougue o Ventão se comprometia a fornecer porco e boi. O tio Urias já era proprietário do Café Apolo em sociedade com os tios Assis e Maximino seus irmãos caçulas, como ele tinha tempo livre e já era proprietário de uma caminhonete Ford 29 os dois irmãos resolveram formar uma empresa denominada Irmãos Castro Ltda. para tocarem o açougue, com o capital de 50% para cada um, o tio Totonho trabalharia no comercio e o tio Urias ficou encarregado de comprar os suínos e bovinos para a comercialização.
O papai tinha viajado e estávamos todos jantando sentados na cozinha, chovia forte e de uma hora para outra deu um estrondo ensurdecedor na sala de jantar, e a cozinha ficou toda enfumaçada e com cheiro de enxofre, parecia que o mundo tinha acabado, achei que estávamos no inferno, ficamos todos em estado de choque sem saber o que tinha acontecido, minha mãe foi a primeira a reagir e começou a rezar. Um relâmpago tinha caído no portal do corredor que tinha início na sala de jantar que ficou espedaçado e as panelas de pedra que tinham a boca reforçada com arame quebraram todas. Quando o papai viajava o Jorge, filho de sô Cicero, dormia na fazenda e ele tomou frente nos examinando um por um para ver se estávamos todos bem. Esta noite foi a mais angustiante por que passei, recordo que minha mãe passou a noite trocando nossa roupa várias vezes, a angustia do choque do estrondo não nos deixava dormir e deu uma suadeira geral em mim e meus irmãos. No dia seguinte, no primeiro ônibus fomos para Barbacena e de lá fomos para a casa da vovó em Mercês. Chegando na casa da vovó a mãezinha dramatizou a queda do relampado de seu jeito posando de vítima, culpando o papai, a vovó escutou calada, ela sempre tomou suas decisões com sabedoria, não falou nada, parecia que ela tinha aceitado a situação e a vida continuou. Poucos dias depois o papai chegou com a tropa na casa da vovó, que o recebeu alegremente, a mãezinha ficou chocada com a presença dele e reclamou com a vovó que explicou que ela é que tinha chamado o papai para levar os filhos com ele, que tinham que voltar para a escola e se minha mãe queria largar meu pai ela aceitava a situação, mas culpar o papai pela queda de um relâmpago não estava certo. Para a vovó minha mãe podia largar o papai na hora que quisesse, mas era direito sagrado do pai criar os filhos, se ela queria ficar na casa dela tudo bem, mas os 4 filhos iam voltar pra casa com o pai, pouco depois voltamos todos para a fazenda.
A mãezinha católica devota era habitual ela nos reunir em seu quarto na boca da noite, depois do jantar para rezar o terço. Havia o quarto do casal e um quarto contiguo que era o nosso, dos meninos, além das portas de entrada para a sala de jantar, havia um vão de porta, sem batente, ligando os dois quartos. Em uma tarde caiu uma tempestade, eram raios e trovões assustadores, nestas horas a mãezinha invocava ajuda divina dizendo ‘valha-nos São Gerônimo e Santa Barbara Virgem’, eu não entendia muito porque ela usava esta reza, mas quando a tempestade apertava, eu por segurança, também pedia a proteção dos santos. Neste dia o jantar atrasou, quando saímos da cozinha, no corredor a mãezinha falou para o papai: ‘Ninico agora que tratamos do corpo, vamos para o quarto rezar o terço para tratar de nossas almas’, o papai virou para ela e disse: ‘meu corpo eu conheço, estou vendo-o aqui comigo, já minha alma eu não conheço, ela que se vire’, e foi para a varanda. Fomos para o quarto e a reza do Terço teve início com ela segurando a cruz do rosário na mão e puxando o Credo e todos rezamos, depois eram os Mistérios, os Padres Nossos e as Aves Marias. O Terço até que não demorava muito, mas as encomendações pareciam não ter fim, eram 3 Padre Nossos e três Ave Maria para a alma do compadre fulano de tal, aí tinha encomendação para parentes, amigos, conhecidos, doentes, etc., parecia as rezas não iam ter fim, quando éramos pequenos quando a reza terminava já estávamos todos ferrados no sono.
Às vezes no verão quando eu levava alguma encomenda para a vovó Quitute na casa da tia Vitinha, na Rua do Buraco ela me convidava para o almoço depois das aulas e eu só voltava para casa à tardinha, eu não gostava muito de ir à casa da tia Vitinha por que a vovó Quitute era muito exigente, examinava minuciosamente meus cadernos, ralhava comigo se estivessem sujos ou rasurados às vezes me dava umas boas cocadas na cabeça. Eu não gostava da atenção dela comigo, morava com a filha casada com o Tio Dário, que na época tinham 4 filhos, José Agenor, José Flavio, José Maria e Vera Lucia, a casa tinha um terreiro e um quintal enorme, com muitas arvores e eu e os primos brincávamos muito. Recordo que num canto do terreiro tinha o único pé de parreira que conheci em Alto Rio Doce, tinha uns cachinhos minguados que nunca se desenvolviam. O tio Dário era um carapina de mão cheia, muito habilidoso, em sua oficina havia um torno de madeira que ele usava com muita competência e habilidade. Com pedaços de sobra de caibros e sarrafos quando tinha tempo torneava piões perfeitos, que ele costumava me dar de presente, os melhores piões de minha infância foram presentes dele. Ele construiu um carrinho de guia que eu e meus primos adorávamos, era carregar o carrinho rua acima e descer desembestado, era uma aventura.
Voltando para casa a tarde passou por mim, perto da casa do tio Geraldo, um carro preto disparado, como o céu estava escurecendo, um pé d’água estava para cair, pensei que eles queriam subir a serra antes da chuva e também apressei o passo, depois de uma curva, vi que o carro tinha derrapado no cascalho e estava dependurado ao lado do “passa-um” com três mourões que levava a casa do sô Cicero. Quando cheguei perto vi que no carro de praça iam o motorista, um preto alto de nome Polidoro e 3 passageiros todos de ternos e chapéus. Quando vi a situação deles cheguei até o trilho e gritei chamado o sô Cicero, ele subiu e ao ver a situação do carro, me mandou levar os passageiros até a fazenda que ele ia buscar os bois para arrastar o carro de volta para a estrada. Os 3 passageiros eram o Bias Fortes, o Tancredo Neves e o Juscelino Kubitschek que voltavam de um comício na cidade de Alto Rio Doce. Caminhei com os 3 até a Fazenda, chamei o papai que os recebeu na varada e quando lhe falei nas providencias do sô Cicero ele me mandou ajuda-lo e ficou com os visitantes levando-os para a sala de visitas. Depois de guardar meu embornal, com meu material escolar em casa, saí para o terreiro para ajudar o sô Cicero, ele já tinha chegado com os bois, e ao atrelar as juntas já começava a chover, saímos para a estrada já debaixo d’agua. Fui candiando até o carro acidentado onde cheguei molhado como um pinto, o sô Cicero amarrou a corrente no para-choque do carro e os bois o arrastaram para a estrada, como o carro não pegava o arrastamos com os bois até o terreiro frontal da casa da Fazenda, onde chegamos ainda chovendo. Como já era tarde, todos pernoitaram na casa e só no outro dia conseguiram consertar o carro para seguirem viajem para Barbacena. A mãezinha já tinha chamado a Almerinda para ajudar, prepararam um jantar caprichado para os ilustres visitantes, eu nunca tinha visto um jantar tão caprichado na casa, a mãezinha tirou da cristaleira os jogos de pratos chiques de louça, os talheres de prata e as travessas de porcelana inglesa, dava gosto de se ver todos adultos nas cadeiras da sala de jantar, forrada pela melhor toalha da casa, conversando e jantando, nós os meninos jantamos como de costume na cozinha. Nestas eleições o Getúlio Vargas foi eleito presidente, Juscelino governador e o Tancredo deputado federal, com a vitória de Getúlio, Negrão de Lima foi nomeado Ministro da Justiça no lugar do Bias, e o Bias nomeado para a Caixa Econômica Federal a partir da posse do presidente Getúlio Vargas.
Deste meu nascimento eu tive sorte de ter sido criado em um mundo dominado pelas mulheres, eu nunca pensei em ser contra esta dominação feminina, para mim ela era natural e normal, era assim que as coisas tinham que ser, mulheres fortes constroem famílias unidas, fortes e estáveis. A vovó Maria era uma matriarca nata, seu marido era apenas o provedor, tropeiro estava sempre viajando, assim ela criou só os 13 filhos, todos construíram famílias estáveis e numerosas como a dela. O primeiro ditado que aprendi foi: “PÉ DE GALINHA NÃO MATA PINTO”, e seu significado era que uma mãe educa seu filho, o castiga quando necessário, dentro de certos limites e eu tinha exemplos em meu dia a dia, minha mãe me castigava diariamente, mas nunca quebrou nada e as vezes um pai castigava um colega e ele sempre aparecia com braços, dedos, dentes ou costelas quebradas, surra de pai sempre acabava em tragédia. O papai nunca levantou a mão para me castigar, nem mesmo reprovava as artes que eu fazia na sua presença, mas era um fato que ninguém em casa questionava a autoridade dele, quando ele falava todos obedeciam na hora.
Chegou a notícia do falecimento do Padre Zé Pinto, foi uma consternação geral, ele era uma unanimidade em toda região, um verdadeiro santo para todos habitantes do município. Depois chegou a notícia de que os habitantes do Distrito de São Caetano do Xopotó estavam na cidade para levar seu corpo para seu sepultamento no Distrito, já que ele tinha nascido lá. Esta notícia alastrou como pólvora, em pouco tempo saiu uma comitiva dos habitantes das redondezas, todos armados para evitarem que o cadáver do padre Zé Pinto fosse levado para São Caetano. O papai assim que recebeu a notícia, mandou selar seu cavalo, vestiu seu terno, colocou na cintura a garrucha do cabo carijó e uma faca, o chapéu de feltro na cabeça e seguiu com o pessoal para a cidade, dispostos a tudo para garantirem o sepultamento do padre considerado um santo na cidade de Alto Rio Doce, onde seu tumulo se encontra até hoje.
O maior desejo da mãezinha era de ter um filho padre, quando eu passei para o terceiro ano primário o Tarcísio completou o primário. Como a vovó Maria morava na cidade, ele fez o primeiro ano primário em Mercês, ficando na casa dela, o resto do primário ele estudou no Grupo de Alto Rio Doce, para prosseguir os estudos ele foi para o internato do Seminário de Borda do Campo no município de Antônio Carlos, mas no meio do ano um padre o levou de volta para a fazenda, ele havia apostado com outro menino e pulado na piscina do seminário fora da hora que o banho na piscina era permitido. Eu estava de férias do meio do ano quando o tio Urias chegou na fazenda na caminhonete ¾ DE SOTO, novinha com sua carroceria de madeira, uma beleza, conversou com o papai, explicou que tinha comprado a casa do tio Osvaldo na Boa Morte em Barbacena e que se o papai quisesse ele cedia a casa na rua 15 em que tinha morado até aquela data para o papai, que já tinha conversado com dona Onda Gomes e ela havia concordado em passar o aluguel da casa para ele, mas que o papai tinha que resolver na hora, pois no outro dia tinha que devolver a chave para dona Onda e que já tinha candidato pronto para alugar a casa. A mãezinha ficou encantada com a mudança para Barbacena, imediatamente começou a preparar o que achou necessário para nossa mudança imediata, à tardinha partimos, eu não sabia o que me reservava esta mudança, minha vida até aquele momento tinha girado no entorno da fazenda e de seus moradores, éramos uma comunidade reduzida, uma família, eu me sentia em casa com a vida que levava e gostava, partir para o desconhecido era tudo que eu não queria, embarquei na carroceria da caminhonete com o coração na mão, fiquei observando angustiado a casa até ela desparecer.
Na fazenda ficaram o papai e o Tarcísio, para Barbacena fomos eu, o Tanísio, o Tanúncio com a mãezinha, poucos meses depois o papai vendeu a propriedade para o Zequita, filho do Juquinha do Açude, que estava de casamento marcado com uma das filhas de dona Vita Marinho de nome Terezinha. Nas férias do fim do ano eu tinha terminado o 4º ano primário, no Grupo Pio XI em Barbacena e estava de malas prontas para ir para o Seminário Menor de Mariana, fui a Alto Rio Doce para informar a vovó Quitute de minha ida para o Seminário, me despedir e pedir sua benção. Eu já tinha notícia de que o Zequita havia demolido a Casa Grande da Fazenda, mas ouvir falar é uma coisa e ver o terreno sem a casa foi outra coisa, quando vi a realidade perdi um pedaço de mim, senti uma agonia profunda, foi como se o mundo tivesse acabado para mim, me deu vontade de chorar, a demolição da casa não afetou só a mim, nem eu e nem meus irmãos até hoje voltamos a atravessar a porteira de acesso ao local onde existiu a Casa Grande. Esta visita a vovó Quitute serviu também de despedida para mim, nunca mais a veria de novo, meses depois ela e sua neta Vera Lucia foram assistir à missa das 10 na Matriz e, quando a missa terminou, ela continuou ajoelhada imóvel, com o terço nas mãos, tinha falecido assistindo a missa.
Capitulo - III
Como o ensino em Alto Rio Doce era apenas o primário, em 1952, a família mudou para Barbacena, assim eu e meus irmãos podermos prosseguir os estudos depois do primário, nossa mudança ocorreu no meio do ano em que eu cursava a 4ª serie, para completar o último semestre do primário fui transferido do Grupo Escolar Raul Soares de Alto Rio Doce para o Grupo Escolar Pio XI de Barbacena, localizado ao lado da Matriz da Piedade, na rua Vigário Brito, onde me habituei bem com a minha nova professora dona Cacilda. Com a mudança minha vida virou de cabeça para baixo, de uma vida rural interiorana para a rua principal da cidade de Barbacena, tive que me habituar na marra, entrei em choque. Na roça eu só podia entrar na cozinha durante o dia, eu era livre, liberdade absoluta, foi mudar para Barbacena onde eu não podia mais sair de casa, eu agora era o caipira bobo da roça e se saísse para a rua podia ser atropelado.
Não levei muito tempo para resolver esta situação, a saída que encontrei foi a igreja, usei a religiosidade da mãezinha na fé católica para alcançar minha liberdade, logo que mudamos para Barbacena a dona Cacilda que seria minha professora estava dando um curso preparando meninos que queriam ser coroinha e eu entrei nele com as bênçãos da minha mãe, rapidamente sabia de cor e sorteado os ritos da igreja, as respostas em latim nas solenidades foi uma moleza, em pouco tempo eu era o coroinha de confiança do sacristão e de certa forma minha vida entrou aos trilhos, não era a mesma que eu levava na roça, mas dava para ir levando.
Era função do coroinha era ajudar na celebração das missas em latim e na hora comunhão segurar a patena para evitar que a hóstia ou resíduos caíssem no chão por acidente, balançar o turibulo para avivar as brasas para o incenso, tocar campainha na consagração, bater a matraca nas procissões e solenidades da semana santa, auxiliar o padre nas encomendações nos defuntos, tocar os sinos da torre d igreja, etc., eram várias as funções exercidas e eu as fazia com prazer, eu gostava de ajudar, ser coroinha foi motivo de orgulho para mim, o Conego Mario Quintão, pároco da Paroquia da Piedade de Barbacena na época, foi uma amizade que tive até sua morte, homem integro e de bom coração e conhecia a família da mãezinha desde sua infância na cidade do Pomba, próxima de Mercês. No mês de maio havia diariamente a cerimônia da coroação de Nossa Senhora, as meninas iam todas vestidas de anjo com asas, cada uma mais bonita que a outra, era linda a cerimônia, foi construída uma escada enfeitada que ia até o alto do altar mor e as meninas ficavam perfiladas nela, a que fosse coroar Nossa Senhora ficava no topo da escada. Minha função nestas solenidades era ficar balançando o turibulo, avivando as brasas, para entregar o turibulo ao padre com as brasas no ponto para incensar o altar. Certo dia eu balançava calmamente o turibulo, até que me veio a ideia de em vez de apenas balançar girar seu movimento em 360º, eu balançava e observava o cônego, quando ele ficava de costas, eu girava o turibulo, fiz isto várias vezes, a reza terminou sem novidades, mas quando cheguei em casa toda a família estava reunida à minha espera e a barra ficou pesada para mim, eu não sabia, mas tia Dora e tia Inhá, duas irmãs do papai, tinham vindo fazer uma visita e a mãezinha as tinha levado para assistirem a coroação, a mãezinha falou que quando eu girava o turibulo seu coração vinha até sua boca, ela imaginava o turibulo batendo em algum obstáculo e brasas voando por toda a igreja, levei a maior bronca e desta vez toda a família estava unida contra mim e com toda razão, a mais importante mudança para mim foi que depois de mudar para Barbacena eu nunca mais fui espancado, os sermões continuaram, mas sem violência física.
Com nossa mudança para Barbacena nossa família que havia perdido a vovó Colina e o tio Abílio, foi acrescida da vovó Maria, que havia fechado sua casa em Mercês e seus dois filhos Francisco de Assis Gabriel (tio Assis) e de Maximino Gabriel (tio Maximino) irmãos caçulas de minha mãe. Nesta época trabalhavam no Café em Pé, na entrada do Cine Apollo e eu e os dois dormíamos no mesmo quarto em camas patente com colchão de capim, eram um modelo para mim, eu os idolatrava, tinham tudo que eu queria, eram livres, podiam sair e voltar a seu bel prazer, foram de suma importância em minha adolescência.
Na roça fazíamos nossas necessidades diárias no lugar que desse vontade, era só procurar uma moita e agachar sem problemas e se fosse a noite era usado o penico, mas na casa em Barbacena tinha um banheiro, com banheira, chuveiro e vaso sanitário e até acostumarmos a usar o banheiro corretamente levou certo tempo. O primeiro atrito foi com o uso do vaso sanitário, ele tinha uma tampa e um assento, e para urinar esquecíamos de levantar o assento e ele ficava encharcado com urina, a mãezinha chamava nossa atenção, mas não foi fácil acostumar levantar o assento antes de urinar. Outra dificuldade foi fazer coco sentado, de cara eu ficava de aviãozinho em cima do vaso e manchava a borda, com o tempo e depois de muita ladainha da mãezinha aprendemos a usar corretamente o banheiro.
Na década de 50, havia dois cinemas na cidade de Barbacena, o Cine Teatro Apollo, na rua 15 e o Cine Teatro Brasil do lado esquerdo no final da Avenida Bias Forte, sentido centro. Ambos os cinemas tinham na frente da tela quadrada um local cercado reservado para os músicos que animavam as seções no tempo do cinema mudo. O programa de domingo da garotada era a matinê e a troca de gibis e figurinhas do lado de fora dos cinemas, recordo que a meia entrada na matinê era de 3,50 cruzeiros, assim toda semana eu tinha que ganhar no mínimo 10,50 cruzeiros para 3 ingressos, um para mim e dois para o Tanísio e o Tanúncio. O sacristão da Matriz da Piedade, propôs me pagar 1,00 cruzeiro por missa que eu o ajudasse, mas eu tinha que estar na igreja antes das 6 horas da manhã, hora que era celebrada a primeira missa do dia, esta hora era conveniente para mim, eu chegava e abria à igreja as seis horas, vestia a batina e ajudava a missa, depois era só atravessar a rua e entrar no grupo que se localizava do outro lado da rua. Fiz minhas contas e na semana eu tinha que ajudar no mínimo 11 missas para poder comprar os ingressos para a matinê e nosso trato funcionou bem por certo tempo, eu ajudava as missas das 6 e em outros horários, a semana toda e no sábado o sacristão fazia o pagamento, tudo ia às mil maravilhas até que em um sábado, quando eu e sacristão calculávamos o “quantum” de meu pagamento, minha mãe chegou e ao tomar conhecimento de meu trato com o sacristão acabou com meu negócio na hora, disse que estava toda feliz com minha fé, no meu sacrifício em levantar cedo para ajudar na igreja, para ela era uma questão de fé minha, mas eu tinha transformado a fé em dinheiro e proibiu o sacristão de me pagar, este episódio quase representou o termino de minha profissão como coroinha, continuei ajudando na igreja porque gostava mesmo, mas agora sem compromisso, havia o problema de sair de casa, eu não podia correr riscos e tinha o incentivo do sacristão que continuou a me remunerar escondido com CR$ 1,00 por missa ajudada.
No início da década de 50 a única forma de diversão na cidade era o cinema, nas matinês havia a cessão normal e após um seriado, tinha um seriado Durango Kid, um faroeste que a garotada adorava, quando tinha briga ou perseguição a cavalo a meninada batia os pés no chão, eu adorava esta brincadeira, até do lado de fora do cinema dava para escutar a barulhada dos pés no chão. No final do ano passou o filme que era a sensação do ano, O Maior Espetáculo da Terra, no sábado na primeira seção houve até tumulto na entrada do Cinema Apollo, eram tanta gente querendo entrar que a bilheteria, que era móvel, foi arrastada de um lado para o outro pela multidão. O Bar do tio Urias era na entrada do cinema, tivemos que escorar o balcão para mantê-lo no lugar, quem assistia ao filme saia deslumbrado, falando maravilhas sobre o filme. Devido ao sucesso de bilheteria o filme passou durante a semana e eu fiz de tudo para também o assistir. Pedi um adiantamento ao sacristão, comprei um ingresso e fui assistir ao filme escondido, a mãezinha achava que eu estava ajudando na igreja. Depois do filme eu estava conversando com uns colegas na frente do cinema contando as maravilhas do filme para os colegas com os olhos esbugalhados quando um amigo do tio Maximino chegou e me perguntou se minha mãe tinha me dado dinheiro para assistir ao filme, eu lhe disse que tinha ido ao cinema escondido dela, ele deu uma risada e disse que não tinha como assistir a um filme escondido, que de longe todos sabiam que eu tinha assistido a um filme porque meus olhos estavam brilhando. Isto foi um balde de água fria na minha empolgação com o filme, ao lado do cinema Apollo tinha o Restaurante Colonial, do seu Vicente Laguardia, despistei com o pessoal com que conversava e fui no restaurante olhar no espelho e vi que meus olhos estavam de fato brilhando e pensei estou ferrado se a mãezinha descobrir e me proibir de ajudar na igreja, já me via confinado dentro de casa. Lavei a cara e os olhos várias vezes com água fria, esperava um tempo e ia ver o resultado no espelho, mas nada que eu fizesse tirava o brilho de meus olhos. Fui para casa com o coração na mão, cheguei e não olhei ninguém nos olhos, peguei meu caderno, sentei na mesa de cabeça baixa e a mãezinha me perguntou o que eu estava fazendo, respondi que fazia os deveres de casa e ela não prestou mais atenção em mim.
Na frente de nossa casa na rua 15, em Barbacena, existia a farmácia do Sr. Eduardo Rezende (Pharmacia Santa Terezinha), eu era amigo de seu filho Luiz éramos da mesma idade, quando ele soube que eu estava procurando trabalho me informou que seu pai estava precisando de um menino para trabalhar na farmácia, conversei com o Sr. Eduardo e ele me mandou começar no dia seguinte depois das aulas. Fiquei entusiasmado e no dia seguinte lá estava eu, dei uma varrida na farmácia e quando parei no balcão o Olavo, um empregado antigo da farmácia, baixinho, me deu uma receita e me mandou separar os remédios e que após separar todos era só o chamar para conferir, pequei a receita e não sabia por onde começar, a farmácia era grande com várias prateleiras todas abarrotadas de remédios, fiquei sem rumo, comecei a procurar os remédios e notei que os outros empregados me observavam rindo, mas para não fazer feio continuei a procura igual uma barata tonta, chegou a hora do café da tarde eu não estava nem no meio da lista, minha mãe me chamou para o café, sai atravessei a rua e fui tomar o café em casa, após lanchar sai pelos fundos da casa e nunca mais voltei na farmácia, minha primeira experiência com um emprego tinha ido por agua abaixo antes mesmo de começar. Tempos depois encontrei como o Olavo e ele me perguntou porque eu não tinha voltado para a farmácia depois do lanche, expliquei meus motivos e ele comentou que tinha me dado a receita por brincadeira, sabia que eu não ia conseguir encontrar os medicamentos, me disse que eu devia ter voltado e explicou que os remédios não eram colocados nas prateleiras de forma aleatória não, que era só saber procurar que eu não teria problemas, mas eu já estava noutra.
Meu último semestre no grupo em Barbacena foi espetacular, no dia que minha mãe me levou ao grupo para efetivar minha transferência a Irmã Zoé, diretora do grupo, observou atentamente meu boletim escolar e tenho certeza de que não gostou do que viu, e com razão, falou para a mãezinha que no caso de transferência ela colocava o menino na série anterior, no meu caso era para me colocar na 3ª serie, mas como já estava para iniciar 2º semestre e ela não tinha vaga na 3ª serie ia me deixar cursar na 4ª serie mesmo. Estranhei no início os colegas e principalmente porque eu não podia lanchar na escola, o lanche era só para os meninos da roça ou os que tinham famílias necessitadas, para mim eu era um menino da roça, mas tive que acostumar com esta nova situação e também, a merenda fornecida pela escola não era de meu gosto, no grupo de Alto Rio Doce a merenda era muito bem preparada, eu adorava uma sopa de arroz, verduras e legumes preparada pelas cantineiras, nem minha mãe fazia igual, já em Barbacena a merenda era um mingau de fubá ralo e mal preparado, com gosto de sebo de boi e parcos pedaços de carne de vaca.
Já nos estudos houve uma transformação, foi da água para o vinho, de rapa do taxo em Alto Rio Doce, de um aluno medíocre, passei a aprender com facilidade, lá eu ia para a escola porque minha mãe obrigava, em Barbacena ela não precisava me chamar cedo, eu não perdia hora e tinha prazer em ir para as aulas, passei a aprender com facilidade quando formei no fim do ano fui o 2º colocado da classe. A explicação para este milagre foi dona Cacilda, uma mulher miúda, com óculos de aro grosso, solteirona e sorridente, feliz da vida, foi assim que a vi foi amor à primeira vista. Fiz amizade com uns colega de nome Pauliceia e José Lino, filhos de sô Orquides e de uma colega de minha mãe, com o Chiquinho do Zé Doceiro e sua irmã Isabel, com o Coimbra, que morava depois de minha casa na rua Visconde de Carandaí, íamos e voltávamos juntos do grupo, estas foram amizades que cultivei por anos.
Em Barbacena morávamos na rua 15, nº 101, esquina com a rua Pereira Teixeira e os tios Assis e Maximino trabalhavam na mesma rua 15, na entrada do Cinema Apollo, onde eram comercializados cafezinho em pé e lanhes, balas e bombons, era também a única sorveteria da cidade. Na década de 50 a energia elétrica da cidade era municipal e fornecida pela Usina de Ilhéus, no Rio das Mortes, durante o dia a energia elétrica era muito fraca, não dava para rodar as maquinas da sorveteria do Apollo. Haviam duas fábricas de tecido na cidade, a Ferreira Guimarães e a São José e ambas tinham suas próprias usinas elétricas, elas trabalhavam em dois turnos até as 22 horas, com as maquinas das fabricas paradas, a energia de ambas era desviada para a cidade. As maquinas e compressores da sorveteria começavam a funcionar a pleno vapor nesta hora. Para manter os sorvetes e picolés gelados o dia todo, a salmoura do tanque de resfriamento tinha que resfriar o máximo possível até as 6 horas da manhã quando as fabricas de tecido começavam a funcionar, o maquinário do Apollo era desligado e a salmoura congelante tinha que manter tudo frio o dia inteiro, sorvetes, picolés e refrigerantes. Era depois das 22 horas que os tios Assis ou o tio Maximino me chamavam para ajudar no bar, a primeira providencia que eu tinha que tomar no bar era acender o fogareiro a pressão de querosene para preparar a calda para a fabricação de picolés e sorvetes. Eram preparados dois tipos de calda, uma com leite e outra com água, a de leite era fervida, adoçada, encorpada com maizena e resfriada, depois era só acrescentar os sabores na hora de colocar na batedeira, a calda com sabores também servia para encher as formas de picolés. A batedeira para sorvetes ficava no centro do tanque da salmoura e nas laterais cabiam duas formas de picolés, cujos cabos só podiam ser colocados quando a calda já estivesse bem consistente. A calda para sorvetes e picolés de limão e abacaxi era preparada com água, suco Maguari e clara de ovos batidas em neve, para sorvete e picolés de creme, na calda depois de resfriada era acrescido gema de ovo crua batida para dar cor e sabor. Os sabores habituais eram coco, creme, chocolate, flocos, limão e abacaxi, era trabalho que demorava praticamente a noite toda, mas logo depois das caldas prontas eu ia para casa dormir, meu trabalho estava completo.
Havia dois frondosos pés de abacates nos fundos da casa em que morávamos, era um casarão e a proprietária dona Onda Gomes o dividiu em três moradias, ela morava no meio, a Dona Alice morava na primeira moradia e minha família morava na esquina da rua 15 com a rua Pereira Teixeira, mas o terreiro não tinha divisão, com meu fracasso em arrumar dinheiro como coroinha e na farmácia, bolei outro jeito de fazer algum dinheiro, subia nos abacateiros e pegava os abacates mais grandes e bonitos e os colocava no escuro, dentro dos caixotões de mantimento que tinham vindo da roça e foram colocados no porão da casa, para amadurecerem mais rápido, quando estavam no ponto eu os colocava em um balaio e saia batendo nas portas das casas e oferecendo os abacates, como eles não tinham machucados e estavam lindos e bem maduros até em casa que tinha abacateiro comparavam, meu negócio ia às mil maravilhas. Em um domingo à tarde eu estava com um irmão jogando futebol de botão no chão da sala e bateram na porta, era uma senhora que perguntou para minha mãe se era está a casa do menino que vendia abacates, minha mãe falou que não mas a dona me viu e falou “olha o menino ali”, levantei, atendi a mulher com minha mãe calada com a cara fechada, depois que eu fechei a porta começou o sermão, escutei calado quando ela me perguntou se a dona Onda sabia que eu estava vendendo os abacates eu expliquei que os abacates caiam dos abacateiros e viravam lixo, não valiam nada, então eu não tinha pedido. Ela me pegou pelas orelhas e a levei onde estavam os abacates, ele me obrigou coloca-los em um saco e bateu na porta dos fundos da casa da dona Onda, me obrigou a pedir desculpas a ela e a devolver todos abacates, dona Onda não queria os abacates e disse que não tinha problema algum eu vender alguns, mas minha mãe falou que como eu não havia pedido, eu estava errado, me deu uns bons puxões de orelhas, uns beliscões e outro meio de ganhar dinheiro meu foi por agua abaixo.
Meu pai gostava de ficar na janela, batendo papo com seus amigos que passavam e paravam para conversar, tinha um que era turco palestino e mulçumano de nome João Turco, era bom de papo e passava um tempão conversando com o papai e a vovó, ele tinha um sotaque árabe puxado, eu gostava de ver ele falando, ele tinha uma loja de confecção na rua 15 e um dia ele me ofereceu emprego na parte da tarde, depois das aulas, aceitei na hora e iniciei animado, meu serviço era manter a loja limpa e colocar nas embalagens e nas caixas as confecções que não eram vendidas. Ele tinha uma tática infalível para convencer os fregueses a comprar, se pediam um tipo de camisa ele descia da prateleira 10 camisas para a escolha, para cada freguês comprar uma peça de roupa o balcão ficava coalhado de caixas e roupas espalhadas, era aí que eu entrava, meu serviço era colocar as roupas nas embalagens, nas caixas e nas prateleiras, por segurança não contei para a vovó onde estava trabalhando. Certo dia cheguei em casa bem na hora que o João Turco conversava com a vovó e o papai, ele comentou com eles que eu estava me saindo muito bem no trabalho, comentou que eu era um menino muito vivo e curioso, que tinha interesse sobre a vida dele na Palestina, que fazia muitas perguntas a este respeito. A vovó ficou calada e entrou para dentro de casa, foi o João ir embora para a vovó decretar que o serviço na loja não era bom para mim, que eu muito novo e o João ia acabar fazendo minha cabeça e me convertendo para o islamismo, conclusão mais um trabalho defenestrado.
Conversando com um colega sobre minha procura de trabalho ele me falou que sabia de um trabalho na pedreira do Tonico da Pedreira, ele pagava por lata de brita quebrada, eu podia ir no dia e hora que quisesse, era encher a lata e receber. A pedreira ficava no final da rua Pereira Teixeira bem longe de minha casa que ficava em sua esquina no início da rua e a pedreira ficava no final da longa rua, chegar lá era uma boa caminhada, no princípio meu trabalho rendia pouco, era um trabalhão encher uma lata, mas com o tempo notei que as pedras tinham veias e se eu batesse de certa forma nas veias a pedra partia como se fosse de vidro, a partir daí eu era o menino com a maior produtividade da pedreira, o problema era a distância, mas quanto não tinha mais nada para fazer meu quebra galho era quebrar brita na pedreira.
O papai tinha um amigo chamado Sr. Paulo Nepomuceno, proprietário de uma loja de variedades e papelaria, localizada perto do Restaurante A BRASILEIRA denominada A MISCELÂNIA, na Praça dos Andradas entre outras atividades o Sr. Paulo Nepomuceno era o representante dos títulos SulAmérica que dava prêmios. Recordo no papai vestindo seu terno, colocando seu chapéu e indo para a Miscelânea, onde ele e o Sr. Paulo ficavam sentados nos fundos da loja conversando e dando gargalhadas por horas, ele tinha um filho de nome Itamar, meu colega que morreu novo servido a aeronáutica em um surto de meningite. Meu irmão Tarciso havia trabalhado de cobrador da SulAmérica para o Sr. Paulo e com sua saída, eu assumi seu lugar. Cada investidor tinha uma cartela com seu nome, eu chegava depois das aulas e o Sr. Paulo me entregava as cartelas para a cobrança do dia, havia investidores em todos os bairros da cidade, eu não importava em andar o dia inteiro para baixo e para cima pela cidade, mas tinha situações que me deixavam revoltado, como eu sair a pé para fazer o Bairro Grocotó, do outro lado da cidade e um investidor falar volta amanhã, estas situações foram demais para mim, em poucos dias pedi demissão, quebrar pedra para o Sr. Tonico da Pedreira rendia mais e não me deixava revoltado.
Nas aguas do final do ano de 1952 surgiu mais uma forma ganhar dinheiro, com as chuvas a grama enchia os espaços entre as pedras do calçamento com paralelepípedos e pedras poliédricas e era comum os carros não conseguirem subir nas ladeiras e ruas íngremes da cidade, se o pneu de tração deslizasse e esmagasse a grama, a rua virava um quiabo, para conseguir subir tinham que arrumar agua e lavar a rua e o pneu, para evitar estes problemas tinha um cara que maneta, sem uma mão, pagava meninos para capinarem a grama entre as pedras, como ferramenta eram usados uns ferros em forma de L, com a ponta curva em forma de chave de fenda, era fácil e eficiente usar a ferramenta e fazer a limpeza da grama entre as pedras, depois era só varrer a grama capinada que a rua ficava nova, fiz este serviço poucas vezes, quando o encontrei já estava próxima minha ida para o Seminário, mas dava para ganhar uns trocados e o pagamento saia na hora.
Outra forma de ganhar uns trocados era cortando lenha, na década de 50 todas as residências usavam o fogão a lenha e haviam dois tipos de fogão, o tradicional de alvenaria e o econômico de ferro fundido. A lenha fornecida era padronizada com o tamanho de 1 metro a acha, para os fogões de alvenaria era o tamanho ideal, mas para os fogões econômicos cada acha tinha que ser partida em três, a fornalha dele era pequena e não comportava achas de 1 metro. Foi aí que bolei uma forma de ganhar dinheiro, nas casas que eu sabia que o fogão usado era o econômico eu batia na porta e oferecia meus serviços para cortar a lenha para ser usada sem problema no fogão da casa. No início tive certa dificuldade, mas toda dona de casa que me contratou ficou satisfeita com meu serviço e em pouco tempo eu tinha uma ótima freguesia, eu não precisava mais bater nas portas das casas, as donas de casa é que me procuravam para cortar a lenha.
Outro serviço que rendia bem era encerar casas, a moda da época era usar vermelhão no piso e de fato o piso ficava lindo, mas manchava muito, era pisar nele que ficava manchado, para evitar isto era usada uma passadeira para o trânsito dentro da casa. Passar a cera no chão era fácil e rápido, a dificuldade era na hora de dar o brilho com o escovão, enquanto e escovão não estivesse correndo solto no piso o serviço não estava concluído. Tinha um advogado morador próximo de nossa casa, ele tinha dois filhos mais ou menos de minha idade, eu achava a mulher dele uma dama, bonita e elegante, ela parecia gostar de mim e toda semana ela me chamava para encerar a casa. Em um sábado eu tinha acabado de arrematar o serviço na sala de visitas e chamei a dona da casa para ver como tinha ficado, quando chegamos na sala de visitas o chão estava todo marcado com passos e um filho dela que ficou observado e rindo quando ela apontou para o piso manchado. Sem problemas peguei o escovão e esfreguei o chão até deixá-lo um brinco, a dona me pagou e sai sem dizer nada. O filho dela estudava no mesmo grupo que eu e na segunda feira, quando ele saiu após as aulas eu estava esperando por ele, dei nele a maior bronca, falei o que quis e o que não quis e ele escutou caladinho, no final falei que se ele contasse para a mãe a coisa não ia ficar só na conversa, eu ia acabar com ele na porrada.
Os sábados e domingos eram esperados ansiosamente, depois da 1ª seção do cinema o tio Urias ou o Tio Assis pegavam a caminhonete De Soto e passeavam com a primaiada na carroceria, era uma delícia ir e voltar circulando pela rua 15, praça dos macacos, jardim do globo, boa morte, rua do campo, etc., a gente ia mexendo com todos conhecidos por quem passávamos. Na carroceria iam os primos e as primas, dar carona só se fosse amigo da família, colega nem pensar, estes passeios além de serem uma delícia servia também pata tirar sarro dos amigos e colegas, davam prestigio. Na década de 50 as meias eram de tecido de algodão, depois da primeira lavada era colocar as meias e ela não ficavam direita, elas caiam e ficavam acumuladas sobre os sapatos, para mantê-las esticadas e no lugar a garotada filha de papai usava uma liga apoiada na barriga da perna, eu achava esta liga o fino da elegância e era um de meus sonhos usar uma. Na missa de domingo via as famílias na igreja, pais e filhos, estes com seu elegante terno de calças curtas e com as meias nos triques seguradas pelas ligas e ficava até babando. Um dia estava na Boa morte, na casa do tio Urias brincando com o Antônio Carlos, seu filho e a tia Suria chegou, chamou o Antônio e lhe entregou um par de ligas que tinha comprado para ele, ele não gostou, falou que não era aquela liga que tinha pedido, era outra e ficou irredutível, moral da história a tia Suria me deu de presente o par de ligas que ele não quis o depois comprou as que ele queria e eu fiquei mais que feliz com o inesperado presente.
Em um sábado, estávamos eu e dois colegas passeando na carroceria com o tio Assis e o Zé Doideira na cabina, eles pararam na praça do Rosário e ficaram um tempo conversando com duas moças animadamente, depois de um tempo vieram e pediram para nós descermos da carroceria, mas não descemos de jeito nenhum por mais que insistissem. Pareceu que tinham desistido, entraram com as duas moças na cabina da caminhonete e o passeio prosseguiu, fomos até o cangalheiro, na saída para Alto Rio Doce e paramos na venta do Nilton Borges, eles desceram e nos chamaram para fazer um lanche, descemos e cada um pegou um refrigerante, terminado os lanches estavam em pé do lado da caminhonete quando o tio Assis chegou, me chamou e disse que tinha esquecido o dinheiro na caminhonete e me pediu pra fazer o pagamento, esperar o troco e conferir, para não ser enrolado pelo Nilton, quando estávamos no balcão efetuando o pagamento escutamos a caminhonete sendo ligada e saindo, quase não acreditamos no que estava ocorrendo, o tio Assis e o Zé Doideira tinha nos pregado uma peça feia, estávamos agora a pé, no bairro mais distante do centro da cidade e quando pedi para o Nilton o troco ele falou que o tio Assis tinha mandado a quantia certa da despesa. Demoramos mais de duas horas para voltar para o centro da cidade, remoendo de raiva e só pensando em dar o troco.
No início do ano de 1953, como eu já estava com lugar reservado no Seminário Menor de Mariana (Seminário Menor Nossa Senhora da Boa Morte) um dos primeiros educandários de Minas fundado em 1750 para os meninos e para a educação das meninas em 1850 foi fundado o Colégio Providencia, do Seminário dava para ver o Providencia das meninas. Estudei e usei batina por 3 anos e foi onde adquiri os princípios morais e éticos que me guiam até hoje. Para ir de Barbacena para o Seminário em Mariana em 1953, como não haviam estradas asfaltadas, eu e meus colegas seminaristas de Barbacena e cidades circunvizinhas fomos no trem da Central do Brasil até o distrito de Miguel Burnier, onde dormimos nos vagões e no dia seguinte, bem cedo, seguimos de Maria Fumaça, em bitola estreita até a cidade de Mariana, a primeira capital de Minas Gerais. Havia uma ambivalência em minha relação ao Seminário, os estudos, os colegas, as aulas e o ambiente eram o que eu queria e adorava, mas, quanto a me tornar um sacerdote, um padre a coisa era outra, eu gostava de ser o que era, se me tornasse padre eu teria que ser o que minha mãe queria que eu fosse e isto era intragável para mim, a conclusão deste imbróglio foi resolvido nas férias do final do ano de 1955 o Padre Reitor do Seminário me deu uma carta para entregar a meus pais me dispensando do Seminário.
A vida no Seminário era boa, estudos o dia todo, pela manhã e à tarde, a noite todos se reuniam em um salão onde cada seminarista tinha sua carteira individual para fazer seus deveres escolares. O Seminário tinha uma ótima biblioteca, além de livros para ajudar nos deveres eu também pegava livros de história, contos, aventura, etc., nos 3 anos que fiquei no Seminário li boa parte dos livros da biblioteca, foi nesta época que peguei o habito da leitura e comecei a ler tudo que me caia nas mãos, continuo com este habito até hoje. Para laser havia pingue-pongue, bilhar, xadrez e futebol, me dei muito bem nos jogos individuais, já no futebol era outra coisa, além de não ser um craque, este negócio de dar a cara a tapa não era comigo, vira e mexe eu arrumava encrenca nas peladas, nunca fui de ser insultado e levar desaforo para casa. Haviam seminaristas que eram verdadeiros craques e brilhavam nas peladas, havia o campinho de peladas no pátio no seminário e, passando pelo tanque do reservatório de água para tocar o gerador elétrico do Seminário, indo até as proximidades da mata do Seminário havia o campo grande era onde eram jogadas as partidas do campeonato dos times dos seminaristas, havia ainda um terceiro campo, este oficial, no Seminário maior, onde eram jogadas as partidas mais importantes. Os padres organizavam um campeonato com vários times que jogavam nos fins de semana entre si no campo grande, os times tinham as denominações de times do cone sul (Argentina – Uruguai – Paraguai e Chile), eu fui escalado no Colo-Colo e todos alunos escolhiam os times para torcerem e as partidas eram ardorosamente disputadas com paixão, meu time era na verdade um saco de pancadas, perdia direto.
Durante os três anos que estudei no Seminário, a minha única forma de comunicação com minha casa eram esporádicas cartas que eu escrevia para minha mãe, a única visita que recebi neste período foi no 2º ano, do Messias, que na época era gerente das Casas Pernambucanas de Barbacena e irmão do Seminarista Aristides, ele tinha casado com a Ivone, filha do tio Sonô, irmão de meu pai. Ela era uma moça muito bonita, elegante e gentil, filha única, tinha 7 irmãos todos homens. Me chamaram para ir na recepção e lá estava minha prima e o Messias com o Aristides, foi quando tomei conhecimento da morte da mãe de meu pai, a vovó Quitute. Num domingo ela foi com sua neta Vera Lucia assistir à missa das 10 na Matriz de São José. A missa terminou e ela permaneceu ajoelhada, quando foram chama-la viram que ela estava morta, recordo que minha primeira reação quando soube da morte dela foi pensar “ela está no céu”. Esta foi a última vez que me encontrei com minha prima Ivone, ela morava atrás da loja Pernambucana na Rua 15, em Barbacena e na véspera do natal de 1956 ela foi para a Fazenda do Pai, o Tio Sonô no município de Alto Rio Doce, ela estava gravida do primeiro filho, ela e sua mãe, tia Aurea, estavam raspando figo para preparar doce para a ceia de natal ela avisou a mãe que estava cansada e que ia deitar para descansar um pouco, quando foram procura-la ela estava morta, o tio Sonô nunca se recuperou da morte de sua única filha.
O Seminário Menor era na realidade dividido em duas alas, a ala dos menores que chegavam após o termino do primário e que correspondia ao 1º grau ou ginasial e a ala dos maiores que correspondia ao 2º grau ou cientifico, não havia praticamente nenhuma comunicação entre as duas alas. A festividade mais esperada pelos menores era o dia de São Luiz Gonzaga em junho, protetor dos menores, eram dias de empolgação, seu dia era comemorado no fim da semana do dia 21 de junho. A comemoração desta data era precedida de várias atividades, todas realizadas com muita empolgação. O Seminário providenciava o corte de lenha para a fogueira, mas o mastro era providenciado pelos próprios seminaristas, saiamos em bando do Seminário e logo que chegávamos na mata do seminário selecionávamos uma arvore reta, bem alta e não muito grossa, para facilitar o transporte nos ombros da meninada da mata até o pátio do Seminário. Em 1954, eu já era veterano e quando chegamos na mata explorei as arvores da redondeza e encontrei uma colmeia de abelha sem ferrão, eu adorava seu mel, ralo e saboroso, só tinha um senão, o enxame era de abelhas que grudavam os cabelos. Tirei a batina e a camisa sem gola que usava debaixo, vesti novamente a batina e enrolei na cabeça a camisa para proteger meus cabelos e comecei a tirar os favos e a saborear a doçura do mel, quando meus colegas viram o que eu estava fazendo se aproximaram e eu reparti o mel com todos, mas a merda foi que eles não tinham protegido os cabelos, foi um Deus nos acuda, o único que tinha os cabelos protegidos era eu, para mim ver todos com cabelos infestados pelas abelhas foi motivo de satisfação intima. Derrubada a arvore seu tronco limpo de seus galhos era o início da festa, todos ajudavam a carregar o tronco e galhos, a garotada punha o tronco nos ombros e todos cantavam enquanto nos dirigíamos de volta para o Seminário.
Com o mastro já no pátio dos fundos do Seminário, nos dias seguinte começavam as providencias para montar a fogueira, a primeira providencia era furar um buraco para assentar o mastro, firmemente assentado o mastro, era iniciada a montagem da fogueira, a lenha era cortada em seu tamanho normal, assim com o piso bem alinhado eram gradeadas duas peças de lenha em um sentido, sobre estas mais duas peças em sentido contrários e a assim sucessivamente até o topo do mastro com vários metros de altura. À medida que a armação da fogueira ia subindo iam sendo colocados em seu interior galhos mais finos, folhas, sarrafos, etc., tudo para alimentar com mais rapidez o fogo. Nos dias que antecediam a festa eram providenciados sacos de batata doce, amendoim, pipoca e canjica doce. No final de semana da festa a animação era geral, logo que anoitecia era acendida a fogueira, a alegria alastrava, até o Arcebispo Dom Helvécio saia do palácio episcopal e comparecia acompanhado das meninas do Colégio Providencia, eram servidas as iguarias juninas a vontade, pé-de-moleque, canjica, pipoca e a batata doce, etc., neste dia não tinha hora para deitar, podíamos ficar acordados em torno da fogueira enquanto aguentasse. Neste dia eu não assei batata doce, com o calor intenso a batata nunca ficava assada direito, mas no dia seguinte, eu juntei borra da fogueira bem quente e enterrei nela várias batatas, Batatas doces bem assadas são uma delícia.
A presença das meninas normalistas do Colégio Providencia mexeu comigo, estavam lindas e charmosas em seus uniformes de camisa branca e saia azul plissada, para mim elas foram uma visão do paraíso, ficaram em um lado do pátio e nós do outro. A visão delas não saia de minha cabeça, sonhava acordado com elas, sentia angustia na barriga que refletiam em meus órgãos genitais que eu sempre que podia tocava e manipulava, até que de uma hora para outra senti minha primeira ejaculação e orgasmo. No princípio fiquei surpreso com a experiência, mas gostei e comecei a repeti-la com frequência.
No Seminário todo interno com o tempo podia escolher com liberdade um diretor espiritual, eu depois de certo tempo escolhi o padre Cruz, ele era um padre baixo e o mais velho do Seminário, não tinha qualquer função no educandário, minha escolha se deu devido a sua idade e quase não saia de seus aposentos. Conheci e convivi com quatro avós, as vovós Maria, materna, a Quitute, paterna, a Colina, bisavó paterna e a Mutuca, minha parteira e ex - escrava da vovó Colina, com elas sempre me dei bem e tinha confiança em todas, assim minha escolha do padre Cruz como orientador espiritual fez todo sentido. Devido a sua idade avançada ele não tinha função no Seminário , ficava em um pequeno apartamento, com um quarto, banheiro e um escritório, de início achei que ele estava encostado à espera da morte, mas ele trabalhava em um dicionário da língua portuguesa e dava assistência espiritual aos seminaristas que o procurassem. Me dei bem com ele e com o tempo passei a ajuda-lo nos trabalhos de seu dicionário, ficamos amigos e em minhas folgas, sempre que podia eu ia lhe auxiliar, para cada palavra havia uma ficha para anotações e sua origem, significados, grafia, etc., eu achava que o dicionário nunca ia ficar pronto.
Nos meus três anos no Seminário, fizemos 3 excursões que recordo até hoje, no cume do Pico do Itacolomy, na Mina de ouro de Passagem de Mariana e para uma partida de futebol no Colégio Arquidiocesano em Ouro Preto. A saída para o Pico do Itacolomy se deu bem cedo, é uma subida íngreme e sem uma trilha definida na época até seu cume, ele era cercado por pastagens para gado e o gado onde pasta, com o tempo cria trilhos horizontais nas laterais do morro e passar por estes trilhos é uma verdadeira corrida de obstáculos, foi um sacrifício chegar ao Pico. Logo no início da jornada começaram as dificuldades, não havia trilha e o capim estava molhado pelo orvalho, a barra de minha batina ficou encharcada, para minimizar os efeitos do capim molhado, puxei a barra da batina pelos bolsos e fiquei com as pernas livres para seguir subindo na direção do Pico. Chegamos ao Pico no meio da manhã, no cume da montanha haviam duas pedras, uma maior e inclinada e outra menor e as duas pedras eram ligadas por dois trilhos, vários colegas subiram na pedra menor, passaram pelos trilhos e alcançaram o cume da pedra maior, eu preferi a segurança do chão firme, do local onde eu estava dava para observar as cidades de Mariana e Ouro Preto.
A excursão para a Mina de Passagem de Mariana foi mais tranquila, o caminho era livre e chegamos na Mina sem problemas, descemos por carros em trilhos íngremes até encontrar água na parte mais funda da Mina enquanto e voltávamos um mineiro ia comentando sobre a história da Mina. O passeio estava programado com a Arquidiocese e todos que quiseram fizeram o passeio pela Mina. Mariana fica a duas léguas de Ouro Preto e para o jogo entre os dois colégios saímos cedo para Ouro Preto andando seguindo os trilhos ferroviários entre as duas cidades, só encontrei dificuldades nas pontes da estrada de ferro entre as cidades, elas foram construídas sobre precipícios e sobre a armação de concreto são colocados os dormentes e os trilhos, minha dificuldade era andar sobre os trilhos ou pular de dormente em dormente, esta etapa da caminhada foi um sacrifício para mim, mas chegamos ao Colégio Arquidiocesano antes da hora do almoço. Era um sábado e depois do almoço tivemos várias atrações culturais e brincadeiras até a hora do jogo. Terminada a partida não recordo do resultado, só tenho uma certeza, o time do Seminário foi o vencedor. O retorno para Mariana foi tranquilo, pegamos carona na Maria Fumaça em Ouro Preto e chegamos a Mariana tranquilamente.
Após entregar em casa a carta do reitor com minha dispensa do Seminário, a barra ficou pesada para mim por um certo tempo, mas logo passou e segui com minha vida, meu pai, homem de poucas palavras, me chamou e falou que já que eu não quis estudar era bom arrumar um trabalho. Nossa mudança para Barbacena resolveu um problema da vovó Maria, ela tinha acabado com sua casa em Mercês, como minha mãe era a filha mulher caçula dela, minha vó, que foi mãe de 14 filhos, e seus dois filhos mais novos solteiros foram morar conosco, este foi um fato muito importante em minha adolescência, tio Assis e tio Maximiano foram mais que tios para mim, foram dois irmãos mais velhos que Deus me deu e minha vó foi a mulher mais alegre, inteligente e sábia já que conheci e até hoje não encontrei uma substituta para ela, foi a única a me entender, me orientar e aconselhar em minha adolescência, foi meu porto seguro no mar efervescente de minha juventude, ela faleceu nos anos 60 e eu continuo sentindo falta dela até hoje.
Minha primeira experiência de trabalho, após sair do Seminário, foi na oficina de lanternagem e pintura do Lisandro, peguei no serviço cedo e o lanterneiro me deu um balde de água e lixas d’agua e me mandou lixar as portas de um carro que já estavam emaçadas, peguei firme e lixei uma porta até a hora do almoço, o lanterneiro ficou satisfeito com meu trabalho e falou que a porta estava ótima, serviço bem feito e que era para após o almoço eu fazer o mesmo com a outra porta. Foi eu chegar em casa e a vovó Maria me chamou e perguntou porque eu estava com a roupa suja de pó, expliquei para ela que tinha começado a trabalhar em uma oficina de pintura e que estava me saindo bem. Ela me pegou pelo braço, me levou na cozinha e fez um discurso para minha mãe, avisou que serviço em oficina de pintura não era trabalho para menino, que o cheiro e pó de tinta matavam, dava câncer, etc., conclusão voltei na oficina e falei o que havia ocorrido em casa para o Lisandro e para meu espanto ele concordou com ela.
No Seminário havia uma mesa de bilhar, nos meus três anos de internato fiquei bom neste jogo, bem diferente do jogo de sinuca, na sinuca o objetivo é encaçapar as bolas, no bilhar a estratégia é tocar nas 3 bolas, cada jogada é pensada preparando as bolas para as próximas jogadas, em Barbacena na praça dos Andradas, havia um salão de sinuca em cima do restaurante A Brasileira, o uso das mesas era pago por hora, comecei jogando por diversão partidas amistosas, quem perdesse pagava o tempo cobrado, em pouco tempo eu me adaptei no jogo e não demorei a passar a jogar a valer.
A mãezinha era contra qualquer jogo que para ela eram sinônimos de pecado, quando descobriu que eu e o Tarcísio estávamos frequentando o salão de sinuca passou a ir no salão nos buscar, depois de passar um sabão nos dois na frente de todos, nos levava para casa, com o tempo todos no salão vigiavam a rua e nos avisavam quando ela estava chegando, nos fundos do salão tinha um pequeno cômodo para guardar materiais limpeza e materiais usados como giz, rodelas de couro usadas na ponta dos tacos, cola, tacos danificados, materiais para limpeza, etc., e quando nos avisavam que ela estava chegando, escondíamos rapidamente neste cômodo, o interessante é que todos frequentadores do salão achavam esta situação normal, ela nos buscar e nós nos escondermos. Faziam brincadeiras com nossa situação, as vezes diziam “sua mãe está chegando” eu corria e escondia, quando voltava todos caiam na gargalhada, mas nunca senti que tivessem intenção preconceituosa contra a atitude de minha mãe ou a minha de esconder, eu achava que era uma forma de me dizerem que entendiam toda a situação, a de minha mãe em me buscar e a minha em esconder, posso estar errado, o que sinto é que aceitavam normalmente o que acontecia.
Haviam dois jogadores que sobressaiam nos jogos de sinuca, o Dimas e o Candinho e quando os dois viram que eu tinha futuro no jogo, passaram a me instruir em partidas amistosas nas malandragens do jogo, sempre que eu chegava e eles estavam sem parceiros para jogo a valer, me chamavam para partidas amistosas, com estes professores em pouco tempo passaram a me financiar nos jogos a valer. As partidas a valer mais comuns era a de vida, mata-mata e as partidas diretas, jogador x jogador. Quando eu ganhava eram generosos e dividiam o prêmio comigo. Eu fiquei satisfeito com esta arrumação, mas meu irmão Tarcísio e nosso amigo Vander Pinheiro deram um passo mais longe, logo começaram a jogar a valer por conta própria e se saiam muito bem, nunca mais tiveram problemas financeiros, não ganhavam muito como os profissionais, mas como eram estudantes com pouco tempo para se dedicar ao jogo o que ganhavam dava para levarem uma vida modesta, eu os admirava, mas como eu não estava estudando não tinha como ficar só no jogo, tinha que procurar trabalho para a mãezinha não pegar no meu pé.
Nesta época eu frequentava o campo do Olimpic na Boa Morte, treinava na lateral direita do juvenil, sabia de minhas limitações, mas até que eu era um marcador razoável, na época o Dr. Geraldo Xavier, da diretoria do Olimpic e proprietário da Casa de Saúde Xavier, uma clínica psiquiátrica, tinha um paciente de nome Heleno de Freitas, que fora famoso jogador de futebol no Botafogo carioca. Nos dias de treino do juvenil o Dr. Geraldo Xavier costumava chegar com o Heleno para que ele corresse com a garotada, todos sabiam da situação dele internado na clínica, às vezes ele ria de nossas mancadas em alguma jogada e de uma hora para a outra ficava irado com alguma jogada que não dava certo, ficava furioso e xingava o garoto que errara a jogada e isto era um problema para toda garotada. Sabíamos que o Heleno era maluco, só de sabermos deste pormenor todos já tinham medo dele e quando ele perdia o controle o medo dele era geral, eu até que achava que o entendia, ele era um perfeccionista, era um craque nato, inimigo da imperfeição, assim qualquer garoto que fizesse uma jogada estupida provocava a ira dele e ele, destemperado agredia verbalmente o garoto, mas nunca vi nele intenção de partir para as vias de fato.
Aos sábados ou domingos, principalmente quando o Sr. Candinho, pai da Aparecida mulher do Luizinho, meu primo, nos visitava, ele era muito amigo do papai, morava em Juiz de Fora e era cartomante, ele e o papai conversavam por horas, nestes dias à tarde costumavam se reunir na sala de nossa casa, na rua 15, com uns amigos para jogarem marimbo, um jogo de baralho e tinha um pintor de paredes, o Sr. Nelson, que não faltava, sua presença era constante e certo dia eu participava do jogo e o seu Nelson comentou que tinha pego uma empreitada com o Tio Totonho (Antônio de Castro Gabriel) para pintar sua casa na rua 7, e falou que no dia seguinte ia procurar mais um ajudante para ajudar nos serviços. Quando o jogo terminou eu conversei com ele já na rua e me ofereci para ser seu ajudante e na semana seguinte lá estava eu, bem cedo, a espera dele na porta da casa do tio Totonho. Após conversar com a tia Maria sobre as cores a serem usadas, nos dirigimos à Casa Santarosa para escolher os pacotes de pó de Xadrez e comprar óleo de linhaça, tiner e querosene para o preparo das tintas.
De volta à casa, o seu Nelson começou a preparar as tintas, era um mestre nestas misturas, de acordo com as cores preferidas da tia Maria ele preparava as cores e aplicava uma amostra nas paredes e portas. Depois de secas a tia Maria as observava e as vezes concordava e ou outras pedia para escurecer ou clarear as misturas. Após serem determinadas as cores e seus tons foram iniciados os trabalhos propriamente ditos, com uma espátula eu tinha que remover as pinturas antigas dos forros, janelas e das portas e depois lixa-las, enquanto eu fazia este serviço outro ajudante fazia o mesmo nas paredes removendo as caiações antigas, este preparo para a pintura durou dias. Meu serviço era complicado, após remover o que podia com a espátula, usava um maçarico de mão a querosene para aquecer a pintura antiga e remove-la usando a espátula. Era um trabalho estafante, tinha que trabalhar agachado, em pé e usando escada para as partes mais altas. Só após as portas, janelas e o forro estarem bem raspados com a espátula e o maçarico é que entrava a lixa e era aí que o trabalho ficava mais difícil, lixar portais, portas e forro além de incomodo era estafante. O forro então, em cima de escada era complicado, doíam os braços, o pescoço e dava caibras nas pernas, tinha hora que parecia que este trabalho não ia terminar nunca, o trabalho era uma verdadeira tortura. Enquanto eu e o outro ajudante fazíamos nosso trabalho o seu Nelson fazia os reparos na alvenaria, removia partes do reboque soltas e embuçava e rebocava novamente.
Só após terminar o preparo das portas, portais, forros e paredes foi que iniciamos as pinturas propriamente ditas. Eu achava que o trabalho pesado tinha acabado, ledo engano, continuei na pintura a óleo (portas, janelas e forro). A casa era antiga, com paredes de pau a pique e portas, janelas e forro de madeira ressecadas, eu molhava o pincel na tinta e pincelava, mas a madeira ressecada segurava o pincel e quem sofria era minha munheca, trocava o pincel de mão, mas nada aliviava a dor, foi um suplício, mas enfrentei o sofrimento sem esmorecer. Quando o serviço do dia terminava eu estava todo respingado de tinta, então usava querosene para remover os respingos da tinta pelo corpo. O pior serviço foi pintar o forro, além das taboas ressecadas tinha o incomodo de trabalhar em cima da escada, o esforço com o pincel que parecia colar nas taboas era estafante, o esforço foi tal que apareceu uma íngua no meu sovaco. Enfrentei todas vicissitudes sem reclamar até a conclusão dos trabalhos.
O tio Totonho (Antônio de Castro Gabriel) era sócio do tio Urias (Urias Barbosa de Castro) seu irmão no Açougue Sulino (Irmãos Castro Ltda.), localizado na rua Sete de Setembro a uns 50 metros da casa, nas folgas da pintura na casa eu ia para o açougue e do lado de fora do balcão sentava na escrivaninha, e sobre ela haviam vários escaninhos, um para cada letra do alfabeto, neles ficavam as cadernetas dos fregueses. O freguês comprava, o balconista anotava em sua caderneta e anotava em um borrador a venda efetuada. A tarde o tio Totonho anatava a compra nas cadernetas do açougue, nestas folgas eu pegava o borrador e comecei a fazer as anotações nas cadernetas. Com o termino do trabalho na pintura o tio Totonho me chamou para trabalhar no açougue á tarde para transcrever as anotações do borrador nas cadernetas, este foi meu primeiro serviço fixo. O açougue tinha 3 empregados, o açougueiro José Garcia e dois ajudantes, o Raul e o Luiz. Não havia água encanada, energia elétrica e nem geladeira no açougue em 1956. Era abatido 01 vaca e 01 capado diariamente, nos fins de semana eram abatidos mais animais dependendo das encomendas, preferencialmente á tarde. Os animais abatidos ficavam dependurados em trilhos no açougue a noite para escorrerem e serem comercializados já frios no dia seguinte.
Em pouco tempo eu além das anotações ajudava nas vendas no balcão pela manhã e não demorou aprendi a desossar. O telefone do Açougue a manivela era 419 e ficava na escrivaninha, você tinha que girar a manivela e esperar a telefonista atender, então você pedia para ela te ligar com o número desejado. Eu fazia as anotações nas cadernetas á tarde e anotava as encomendas dos fregueses em um borrador para o dia seguinte, as maiores encomendas geralmente era de Hotéis, Hospitais, Bares e Restaurantes. Havia dois tipos de entrega pela manhã, na carroça ou nos balaios, quando comecei a fazer entregas preferia o balaio nas costas, dava menos trabalho. O animal de tração da carroça era uma mula geniosa de nome Natureza, era um Deus nos acuda para conseguir pega-la pela manhã, se você não levasse uma cuia com uns pedaços de rapadura ela não deixava ninguém se aproximar dela, mas se você balançasse a cuia fazem barulho com os pedaços de rapadura ela vinha correndo até você. Ser carroceiro na época era complicado, tinha que tirar uma licença na delegacia, aliás esta Licença para Carroceiro foi o primeiro documento que tirei na vida. O serviço no açougue começava antes das 6 horas, tinha início com a desossa dos animais e a separação das encomendas, antes das 8 da manhã as encomendas já estavam a caminho, seja em balaios para os fregueses domésticos, seja na carroça para escolas, hospitais, bares e restaurantes, até a hora do almoço o movimento no balcão era bom, na parte da tarde o atendimento no balcão era esporádico, muito fraco, mas nesta hora haviam outros serviços a serem executado, como picar toucinho de barriga para a fabricação de mortadela, fabricar linguiça pura de porco e linguiça mista, levar o gado no matadouro para o abate, ir nas casas dos fregueses diários anotar seu pedido para o dia seguinte, trabalho era o que não faltava.
À tardinha, na boca da noite, separávamos os retalhos em pequenos montes sobre a mesa de desossa, nesta hora os donos dos botecos iam chegando para arrematar os retalhos, era a hora da queima, o que não fosse vendido no dia tinha que ser salgado e colocado em caixotes de madeira. Na hora da venda, se o freguês pedia 1 quilo de carne a gente perguntava: carne verde (fresca) ou carne salgada, haviam fregueses para os dois tipos de carne. Depois do trabalho de ajudante de pintor trabalhar no açougue era uma brincadeira, uma festa, os serviços tinham início antes das 06 horas, com a desossa e a separação das encomendas, cada um separava suas encomendas por ruas e regiões, depois era colocar o balaio nas costas e fazer as entregas, pingava freguês o dia inteiro, as brincadeiras eram frequentes e até o tio Totonho às vezes participava. Ao lado do açougue morava o seu Liberato, sério e fazendeiro, que tinha uma filha muito bonita e com um corpão para ninguém botar defeito, nos dias de sol ela e suas colegas costumavam ficar à vontade no terreiro, com as pernas no sol para pegar uma cor, havia uma rachadura no muro e dava para observa-las, qualquer barulho do nosso lado elas se recompunham, quando qualquer um monopolizava o buraco no muro era só fazer qualquer barulho que acabava com a festa na hora.
Depois do primeiro mês trabalhado o tio Totonho me pagou o mês trabalhado, meu primeiro salário foi CR$ 200,00 cruzeiros (01/4 + ou – do salário mínimo), eu nunca tinha ganhado tanto dinheiro de uma vez, fiquei apavorado e não sabia o que fazer com uma importância tão alta, passei a carregar meu dinheiro na meia com medo de ser roubado, depois de receber o segundo mês meus temores pioraram. Certo dia, depois do almoço, quando eu saia pela na porta da frente para retornar ao açougue, o papai me chamou e me falou para pedir ao Tio Totonho CR$ 300,00 cruzeiros emprestados para ele pagar ao sr. Ribeiro umas compras que tinha feito. Eu voltei para dentro de casa, tirei a quantia da meia, fui até ele e falei “eu não preciso pedir ao tio Tonho esta importância, eu tenho este dinheiro” e entreguei para ele, enquanto ele contava a mãezinha entrou na sala e perguntou que dinheiro era aquele e o papai contou, ela ficou agitada e falou “eu sabia que o Totonho ia colocar este menino perdido, enchendo ele de dinheiro, disse que ia conversar com o tio Totonho e falar para ele dar a ela meu pagamento a partir do próximo mês. Minha reação foi achar que eu tinha entrado em uma fria, devia ter ficado calado e pedido o empréstimo ao tio Totonho, mas o que estava feito não estava por fazer. Ela falar que ia receber meu pagamento me deixou revoltado, a solução para o problema encontrei no açougue mesmo, o Raul e o Luiz faziam vales adoidado, quando chegava no fim do mês eles não tinham mais nada a receber, na realidade era eles deviam a casa. A partir daquele dia sempre que eles faziam vale eu os acompanhava, quando a mãezinha, no fim do mês, foi receber meu salário o tio Totonho somou minha caderneta e perguntou para ela se ela ia pagar meu debito, eu estava devendo à casa, ela ralhou comigo, fez um sermão, mas depois deste dia nunca mais tocou no assunto. Passados uns dias que eu tinha entregue a importância ao papai, eu estava saindo de casa e o papai me chamou, agradeceu e me devolveu o dinheiro avisando para eu não falar com a mãezinha que ele tinha me devolvido o dinheiro, se ela ficasse sabendo ia encher o saco dele.
Nesta mesma época o papai e o tio Urias compraram em sociedade um caminhão FNM cara chata, com carroceria para carga seca, lembro que quando subi na cabine dele fiquei admirado, ele possuía duas alavancas no painel, cambio com alavanca no piso da boleia e buzina três cornetas a ar que era acionada por uma corrente localizada a esquerda do motorista, tinha um cheiro agradável de novo. Certo dia eu estava sentado na mesa almoçando com o papai e ele me falou que não estava satisfeito com a sociedade do caminhão com o tio Urias e falou que ia vender sua parte ou comprar a parte do tio Urias se eu quisesse assumir a responsabilidade de trabalhar com o caminhão. Quando ele fez esta proposta para mim, me pegou de surpresa eu perdi o rumo, quando me recuperei falei que ainda era menor de idade e que não sabia dirigir. Ele falou que estava ciente desta situação, mas com um bom motorista eu podia perfeitamente fazer o serviço e qualquer duvidas que eu tivesse era só o procurar que ele me ajudaria. Voltei para o açougue do tio Totonho nas nuvens, parecia que eu estava sonhando. Na boca da noite, quando cheguei em casa o papai estava sentado na sala, eu sentei ao seu lado e começamos a conversar, foi quando a mãezinha chegou, sentou e falou para o papai acusando-o de não ter juízo, querer soltar no mundo um menino, ainda pior com um caminhão, falou que eu não tinha maturidade para andar solto no mundo, fez o maior discurso contra a ideia do papai, resultado o papai vendeu sua parte para o tio Urias e meu sonho foi para o brejo.
Com o tempo passei almoçar na casa da tia Maria, evitava eu fosse a pé até a rua 15 e eu adorava a comida da tia Maria, nesta época trabalhava na casa como baba uma moça de nome Linda, filha do Zé Mico, dono da pensão da cidade de Piedade do Rio Grande, eu gostava de ir brincar com a Neuza, primeira filha do tio Totonho, garotinha linda, tinha um sorriso cativante, era uma graça, eu a adorava e ela estando comigo liberava a Linda para ajudar a tia Maria nas tarefas domesticas. Durante todo tempo que trabalhei no Açougue Sulino esta situação perdurou.
Quando comecei a trabalhar no açougue fiz minha matricula para estudar à noite no colégio do professor Plinio Alvarenga, largava o serviço às 06 horas, tinha que ir rápido para casa, tomar banho, fazer um lanche e chegar ao Colégio, que funcionava no Centro Espirita antes das 19 horas, hora em que tinham início às aulas, que terminavam depois das 22 horas. Voltava para casa para dormir e acordar a tempo de chegar no trabalho antes das 6 horas. Nosso quarto era dividido ao meio por uma meia-parede, tudo que ocorria em um quarto era ouvido no outro que era o quarto da vovó Maria, quando ela estava visitando outros filhos meus irmãos menores, Tanísio e Tanúncio dormiam na cama da vovó. Certa noite, cheguei, deitei e procurava dormir, quando a cama do outro lado começou a ranger, o barulho começou a me irritar, eu sabia que a vovó Maria estava viajando para Juiz de Fora e cheguei à conclusão que os dois pilantras de meus irmãos estavam aprontado alguma safadeza me impedindo de dormir, levantei para dar um susto nos dois malandros, subi numa escrivaninha encostada na parede, mesmo no escuro vi o tio Assis e o tio Maximino fazendo sinal para eu descer da escrivaninha, mas coloquei a cabeça do outro lado e falei bem alto “ vamos parar com esta pouca vergonha, eu vou levantar cedo e tenho que dormir.” Quando desci da escrivaninha os dois já estavam com as roupas na mão saindo do quarto de fininho, eu os segui, vestimos nossas roupas na sala calados e saímos para a rua e dormimos numa caminhonete fechada Chevrolet. Na rua me deram uma bronca daquelas, só faltou eles me darem uns sopapos, não eram os meninos que estavam no outro quarto, enquanto eu estava na aula, chegou uma irmã de meu pai e seu marido para nos visitar e a mãezinha os colocou na cama da vovó, parece que os dois estavam se divertindo e eu dei fim na alegre farra deles. Nossa ideia era só voltarmos para casa depois que os dois tivessem ido embora, mas logo na manhã do dia seguinte o tio Maximino me telefonou no açougue dizendo que eu tinha que ir almoçar em casa para ninguém desconfiar, falei para ele nem pensar nisto, mas ele insistiu e me avisou que meus tios tinham passado em frente do bar de manhã, de mala e cuia na direção da rodoviária, tinham se mandado, coitados eu tinha acabado com a festa deles.
Os estudos no colégio eram muito diferentes dos que eu estava acostumado no seminário, eu achava uma barbada, costumava sair após o termino das aulas e assistir o termino dos filmes no cine Apollo. O professor de português era Juventino Araújo, primo de meu pai e neste dia as duas últimas aulas eram de português, ele no início da primeira aula explicou para a turma que as aulas seriam consecutivas, sem intervalo, que os alunos teriam que fazer um exercício que ele daria nota, uma redação com tema livre. A caminho do colégio eu tinha passado no cine Apollo e estava passando um faroeste, se eu apressasse minha redação daria para eu assistir a segunda seção das 20,30, levantei a mão e perguntei para ele se quem entregasse a redação podia sair da sala, expliquei sobre a seção do cinema e ele falou que quem entregasse a redação estava liberado para sair e ir para a casa. Como o tema era livre eu dei o título de minha redação A FAZENDA e escrevi direto três folhas e levantei e coloquei minha redação sobre a mesa do professor, quando eu já estava com meu material nas mãos e ia saindo, ao passar em frente da mesa do professor ele me segurou pelo braço e chamou a atenção de todos alunos na sala e falou que eu era um mau exemplo, para assistir a um filme eu não estava nem ai para os estudos, me colocou abaixo dos cachorros pelo mau exemplo que eu estava dando, as palavras dele me irritaram e eu sai da sala cuspindo marimbondo, irado mas não falei nada.
Assisti ao faroeste e minha rotina continuou, despois do exercício, na aula seguinte de português o professor Juventino me chamou para a frente da sala e se desculpou comigo falado que tinha sido injusto e que eu não merecia a reprimenda dele, que a melhor redação da classe tinha sido a minha, a única ter nota 10 da sala, que a redação estava tão boa que ele não tinha tirado pontos por palavras escritas incorretamente, pegou a redação e leu na frente de todos e sobre o fato dele ler em público minha redação me deixou humilhado, aliás a leitura me deixou mais humilhado do que a reprimenda na aula anterior. Passados uns dias, o papai estava na janela e o professor Juventino parou para conversar com ele, aproveitou a oportunidade e entregou a ele minha redação me elogiando por eu ter escrito a melhor redação da classe, o papai chamou a mãezinha e ela ficou toda orgulhosa com os elogios do professor. Minha redação foi sobre minha infância na fazenda, sobre as pessoas com quem convivi, sobre os trabalhos que executava e na falta que eu sentia da vida que levava na roça, eram coisas intimas minhas, sentimentos e esperanças e tornar isto público me afetou pra valer, foi como me deixar nu em público. A mãezinha orgulhosa, guardou minha redação como uma relíquia e fazia questão de a ler para os parentes e amigos, nunca tinha me sentido tão vulnerável, pouco tempo depois acabei desistindo de estudar no Colégio Plinio Alvarenga e passei a me dedicar apenas ao trabalho.
O tio Maximino tinha uma ulcera no estomago e volta e meia ele ficava agachado com as mãos na barriga sofrendo dores. Por este motivo o papai só comprava arroz catete (japonês) que bem cosido virava papa, o tio Maximino achava que aliviava as dores que sentia e os Cr$ 300,00 cruzeiros que emprestei para o papai tinha como finalidade entre outros o paramento de 01 saco de arroz catete e outras compras efetuadas no armazém do Sr. Ribeiro. Mas as cólicas no estomago dele só pioravam e o Tio Assis o levou a Juiz de Fora para fazer exames e se possível operar a ulcera, ele foi operado e nunca mais sentiu dores no estomago. Aproveitando a oportunidade o Tio Assis fez uma consulta sobre seu estomago também, reclamava de queimação e azia constante, o diagnostico que recebeu foi terrível, estava com câncer no estomago inoperável. Dormíamos eu ele e o Tio Maximino no mesmo quarto desde que chegamos em Barbacena, antes de seu casamento ele havia alugado uma casa na Avenida Bias Fortes e na semana que ele trabalhava á noite no bar, eu ou um outro irmão dormíamos na casa dele para não deixar a tia Cleia só, ela logo ficou gravida de seu primeiro filho.
A doença dele afetou a todos na família, eu estava em casa num domingo, depois do almoço quando ele chegou me chamou para acompanhá-lo em um passeio numa Mercury 48 hidramática, duas portas, verde e conversível, eu tinha poucas oportunidades de andar neste carro de luxo, ele tinha pego emprestada uma espingarda de caça 28 na rua 7 com o tio Totonho, saímos de casa e passeamos por várias ruas e bairros da cidade até que a deixamos pelo Cangalheiro e seguimos pela estrada de Alto Rio Doce, na mata da prefeitura entramos à esquerda para indo para a fazenda alugada do Randolfe. Ele ia calado, pensativo, fiquei quieto para não atrapalhar seus pensamentos durante todo o percurso, só quando o carro parou, em frente à casa ele me pediu para buscar no pomar umas laranjas serra d’água bem maduras. Saí do carro e fui atender seu pedido, tirei a camisa-de-meia, a abri no chão e coloquei sobre ela as laranjas de melhor aspecto, as que eu achei mais maduras, segurei a apanha e levei até o carro pensando em como iria descascá-las, pois não havia levado canivete. Ele havia estacionado o carro no terreiro, ao lado do curral, debaixo de uma mangueira, na sombra e estava sentado na poltrona contraria à do motorista, sorriu para mim e me entregou seu canivete, segurei uma laranja bem firme com a mão esquerda e bem devagar comecei a descascá-la com os olhos dele fixos no que eu estava fazendo. Após tirar a casca grossa, delicadamente fui tirando o pano do resto da fruta, começando pelo local do umbigo da laranja. Quando terminei, enfiei o dedão entre os gomos e abri a laranja ao meio, ficando satisfeito com meu trabalho. Passei a laranja descascada a ele que levantou do banco e foi andando em direção à casa, minha atenção se voltou para as laranjas no chão e passei a chupá-las esquecendo de tudo em volta, só dando conta de sua presença quando ele voltou e sentou novamente no banco do carro em minha frente, cuja porta tinha continuado aberta. Senti culpa, fiquei envergonhado e comecei a descascar uma da forma como ele me pedira, mas ele disse que não queria mais laranja, que ia esperar eu terminar para darmos uma volta a pé pelo sítio. Logo que chupei a que tinha nas mãos, abri o porta-malas e coloquei as remanescentes no mesmo, sacudi e vesti a camiseta e sai para lavar as mãos, ao passar pela quina da casa notei os gomos da laranja que havia descascado para ele no chão, pelo visto ele os tinha partido ao meio e esfregado nos lábios, como nas vezes que eu o tinha visto passar algodão molhado nos lábios, nem mesmo as tinha mastigado. Eu sabia que seu câncer no duodeno estava piorando, ele já não se alimentava, sabia que ele estava morrendo à mingua por falta de alimentação, inclusive nem agua tomava mais, só quando lavava as mãos é que me dei conta que ele estava à morte e que tinha consciência deste fato, senti vontade de vomitar, senti náuseas, coloquei a cabeça debaixo da água fria que escorria pela bica até me sentir melhor e ter condições de voltar até sua presença e encará-lo sem receio dele desconfiar dos sentimentos que me atormentavam.
Saímos andando pelos trilhos das vacas, ele na frente e eu a certa distância a observar todos seus movimentos, de uma hora para outra eu sentia o peso do mundo em meus ombros, queria ajudar, sentia o quanto gostava dele, mas estava com as mãos amarradas, pois não podia fazer nada. Quando ele chegou próximo da divisa da mata, sentou sobre um cupim baixo e eu desci e sentei num tronco caído perto de uma mina d’água, que estava situada abaixo no pé de um barranco acima do leito do córrego que corria da mata. Estava sentado e sentia o olhar dele sobre mim e nem mexia o corpo, meu pensamento era só sobre o sofrimento dele, não sei quanto tempo fiquei imóvel, absorto em meus pensamentos, só retornei à realidade quando ele me chamou e perguntou se eu não estava escutando um barulho vindo da mata, fiquei atento e de fato ouvi e senti que algum animal estava bem perto do local em que estávamos. Levantei bem devagar, fui até onde ele estava sentado, disse-lhe para ficar imóvel e preparar a espingarda que eu ia ver se tocava o bicho na direção de onde ele estava. Subi devagar até a estrada por onde havíamos chegado, andei um trecho até achar um trilho que entrava na mata e que daria para chegar ao córrego em local acima de onde o animal fazia ruído. Entrei na mata andando de mansinho, andava pequenos trechos e parava para escutar, andava e parava, andava e parava, até que eu estava praticamente em cima do local dos barulhos, fiquei imóvel e esperei até poder ver uma paca grande e linda brincando na margem do riacho. Só então procurei me situar melhor e acabei vendo o tio Assis por entre a vegetação sentado no cupim olhando na direção em que eu estava parado com toda atenção, sem me ver entre a vegetação da mata. Assim que tomei conhecimento de toda a situação, achei que se fizesse bastante barulho a paca quando me visse e escutasse ia ficar apavorada e dispararia diretamente para a frente de meu tio, ia ser moleza levar a paca para casa, no dia seguinte a boia ia ser melhorado lá em casa. Em seguida arrumei um berreiro, pulava e balançava os galhos das árvores ao redor, parei quando vi que a paca tomou o maior susto de sua vida e disparou córrego abaixo. Logo que ela correu passei a observar meu tio, que levantou de arma em punho mirando para o córrego, eu podia ver a situação toda, quando ele se levantou a paca o viu e parou por uns segundos, esperei pelo estampido do disparo da arma que não veio, a paca correu, passou bem defronte dele e sumiu córrego abaixo, ele olhou para a mata procurou e não me viu, voltou-se calmamente e tornou a sentar sobre o cupim.
Dei a volta pelo trilho até a estrada, andando lentamente e matutando sobre o que eu tinha visto, sem saber ao certo o que ocorrera, até que lembrei da morte, então entendi que meu tio, já condenado nunca iria matar bicho algum, a caçada era só uma desculpa para ele poder sair de casa e viver alguns momentos livres sem pensar apenas em seu destino e meus olhos encheram de lagrimas ao compreender suas atitudes e meu amor e admiração por ele aumentaram. Voltei devagar, lutando contra minhas emoções, não queria que ele me visse chorando e, quando desci até onde ele estava não perguntei nada, mas ele se explicou dizendo que, ao ouvir o barulho tinha olhado para o local onde eu estava assustando a caça e quando a paca passou não teve tempo para levantar e usar a espingarda contra ela. Eu não disse nada, mas como minha boca estava seca com tudo que eu tinha visto e sentido, fui até o brejo na margem do córrego e apanhei, cortando com o canivete, uma folha de inhame, dobrei-a em forma de cumbuca, fui até uma mina na margem do córrego e a enchi de água, levantei e meti a cara dentro dela sorvendo vários goles até ficar satisfeito. Quando olhei o tio Assis ele não tirava os olhos de mim, me olhava fixamente, fiquei desconcertado na sua presença, sentia que tinha falhado, achei que estava agido de modo errado, foi quando ele me disse que daria tudo que tinha para poder tomar apenas um gole de água, com a mesma satisfação com que eu havia matado minha sede. Dias depois do nascimento de seu filho (Francisco Carlos Homem Gabriel) ele foi se tratar em Juiz de Fora e duas semanas depois voltou morto e seu velório foi na sala de visitas de nossa casa na rua 15, ele estava pele e osso, irreconhecível, ver ele naquela situação deplorável era muito triste, senti tanto sua morte que nem consegui chorar, era um aperto dentro do peito que as lagrimas não saiam, não tinha alívio, fiquei apavorado, olhava para ele no caixão e a única certeza que tinha é que eu também não passaria dos 28 anos a idade dele quando morreu, depois de sua morte, com o tempo perdi todos meus tios, um irmão, pai e mãe senti a morte de todos, mas a morte do tio Assis em 1958, aos 28 anos arrasou comigo, sinto seu martírio e sua morte até hoje.
Nesta época um intercambio constante entre o açougue na Rua Sete e a fabricação na Boa Morte, era comum eu pegar a Bicicleta do açougue e levar toucinho picado para fabricação de mortadela até a Boa Morte e retornar com embutidos para a rua sete, nestas andanças, no retorno eu costumava parar na sede social do Andaraí, que era localizada em frente a Telemig numa destas paradas eu fiquei assistindo um associado jogando uma partida de Xadrez, o cara era respeitado como o melhor jogador do clube, mas para mim que tinha saído do seminário a pouco tempo e lá era um habitual jogador de xadrez, vendo os movimentos dos jogadores os achei fracos, não eram pareô para mim, mas fiquei na minha. Um dia cheguei na sede e o tabuleiro estava sobre uma mesa, sentei e comecei a colocar as peças quando o jogador bamba do pedaço chegou, sentou e ficou me olhando armar a mesa. Com todas as peças no lugar eu levantei para desocupar a mesa e ele me perguntou se eu sabia jogar, eu respondi que sabia mover as peças e ele me chamou para jogar uma partida, voltei sentei e ele me mandou fazer o primeiro movimento, em pouco tempo e poucas jogadas dei cheque mate nele. Ele não se conformou em perder para um menino e me desafiou para outra partida, e dei nele outro cheque mate, nesta altura já estávamos rodeados de expectadores. Comecei a brincar com ele, limpava obstáculos para seu ataque e quando ele achava que eu estava encurralado, eu dava cheque mate e ele não entendia como esta reviravolta tinha acontecido, mas o fato era que eu estava em uma sinuca de bico, tinha de parar e voltar para o trabalho, mas não tinha como parar o jogo, o Sr. Silvio Quintão, presidente do Andaraí deve ter percebido minha angustia, pois aproximou da mesa e me perguntou “você é o garoto que trabalha no açougue do Totonho”, respondi que sim e ele me deu uma bronca, disse que era irresponsabilidade minha ir no clube na hora do trabalho, que estava na hora de voltar para o açougue, levantei de cabeça baixa, peguei a bicicleta e dei corda aliviado, agradecido ao sr. Silvio por ter me livrado de uma situação que eu queria sair do jogo e não via como.
O Açougue Sulino funcionava com o tio Totonho administrando as vendas no varejo e o Tio Urias atuando na compra dos bovinos e suínos e no abate. Coincidiram minha admissão no açougue e a expansão da empresa, que adaptou o pátio e o terreno do quintal da casa do tio Urias na Boa Morte para o abate de animais e fabricação de embutidos (galantina – mortadela, linguiça – salsicha – chouriço – etc.). No início os serviços eram divididos entre o Açougue e a Fabricação. O Açougue além de centralizar as vendas, também era onde no início eram embutidas as linguiças mistas e as puras de porco, também era onde era picado em cubos o toucinho para fabricação das mortadelas, galantinas e da Maria Rosa todos embutidos nas estufas na Boa Morte. Com esta expansão da empresa a conquista de consumidores foi outro salto que começou quando a empresa Irmãos Castro Ltda. venceu a concorrência para fornecimento de carnes para os Hospitais do Estado na cidade, o Colônia (masculino) e a Assistência (feminino). Só para os hospitais psiquiátricos do estado eram fornecidos mais de mil quilos de carnes por dia, com este movimento todo começaram os atritos entre os sócios que acabaram se separando. O movimento cresceu tanto que as instalações começaram a ficar pequenas e nesta época havia a Fábrica de Banha do Martoni no Pontilhão em declínio e o tio Urias acabou por aluga-la para tirar a fabricação e o abate da Boa Morte, local inadequado para estas atividades. O tio Totonho não concordava e a solução encontrada foi a extinção da sociedade, o Tio Totonho ficou com o Açougue na Rua Sete de Setembro e o tio Urias garantiu o fornecimento de porco e boi abatidos para ele no preço de mercado. O tio Urias mudou o abate e a fabricação dos embutidos da Boa Morte para a Fábrica de Banha no Pontilhão, localizada na rua Sena Madureira, 470, com nova denominação Barbosa e Cia Ltda., e eu e o Raul fomos trabalhar na nova empresa.
Capitulo III
No início nossa adaptação foi uma barra, da antiga Fábrica de Banha só ficou o Raul Martoni, filho do antigo dono, ele não era comunicativo e pouco ajudava, sem orientação e novos em um ambiente estranho, tivemos que aprender na marra, trabalhando, e a fábrica funcionou precariamente por meses, enquanto fomos nos adaptando e ela foi sendo equipada aos poucos, quando chegamos nela já havia instalado um motor no salão da entrada com uma transmissão aérea, ela rodava, através de polias e correias as máquinas de moer, a misturadora e a Kuter e trabalhar nestes equipamentos era difícil, em cada máquina haviam duas polias, uma livre. a outra era a da máquina, havia uma transmissão levava a correia de uma polia para a outra. As correias começavam a deslizar, passávamos breu, o jacaré rebentava e a correia soltava, era difícil o dia em que trabalhávamos o dia inteiro sem percalços. A máquina de encher embutidos era manual, instalada na cabeceira de uma mesa eram necessários dois trabalhadores para ela funcionar satisfatoriamente, dependendo da mercadoria a ser embutida ela podia funcionar com um só operador, mas era quase impossível o produto sair perfeito, o ideal eram dois, um para controlar o enchimento e o outro para rodar a manivela da máquina.
Depois de cimentado o salão de matança e instalados os trilhos aéreos, o primeiro equipamento montado foi um sarilho manual para elevação dos animais abatidos até os trilhos horizontais em carretilhas, depois foi construído um tanque para pelar porcos, cuja água era aquecida a vapor, foi construída uma câmara fria, a fábrica de gelo e as estufas. Com o tempo foram sendo adquiridos equipamentos mais potentes e com motores embutidos individuais, as maquinas de moer e a cutter, a de encher agora funcionava com ar comprimido de um compressor e podiam trabalhar nela dois homens, já que ela tinha dois funis, um de casa lado, por último foi adquirida uma serra elétrica para o salão de matança. A fábrica de gelo era essencial para a fabricação de mortadela e outros embutidos como salaminho, galantina e Maria Rosa, as carnes eram moídas no disco fino, depois a carne é refinada em na Cutter até se transformar em uma massa homogênea que ia sendo colocada em uma misturadeira, para a posterior inclusão do toucinho picado em cubos. A Cutter tinha a forma de uma bacia com a metade coberta por uma tampa de ferro com uma saliência para proteção das navalhas que iram triturando em alta velocidade a carne moída. Este atrito das navalhas com a carne moída gerava calor, para evitar este aquecimento era colocado gelo picado sobre a carne e como gelo é água a carne ia se transformando em uma massa mole fria, para dar o ponto para retirada a massa da Cutter ia sendo acrescentado fécula na massa até ela ficar firme e ser transferida para a misturadeira. O toucinho era picado em cubos a mão nas folgas, salgado e reservado dentro da câmara fria para ser utilizado conforme as necessidades da fabricação, só anos depois foi adquirida uma máquina para picar o toucinho em cubos, mas nos anos em que trabalhei na fábrica eu nunca ouvi falar na existência desta máquina.
A única mercadoria para a qual não existia safra e entressafra era a Maria Rosa, os demais embutidos na entressafra eram vendidos sem problemas, mas na safra acontecia de acumularem no depósito e mofavam, para evitar-se o mofo, neste caso, estes produtos logo que saiam da estufa tomavam um banho de parafina era a única providência tomada para evitar o mofo. No salão de entrada da fábrica inicialmente além das maquinas tocadas pela transmissão aérea através de correias, havia também uma mesa grande usada para colocar e embalar as mercadorias vendidas para os revendedores. Como vários fregueses começaram a procurar à tarde fígado bovino, miúdos de porco, dobradinha, mocotó e outros produtos, foi colocada sobre a mesa uma balança e começamos a atender estes fregueses, que em sua maioria eram donos de bares e botecos, com o andar da carruagem começaram as vendas para os demais fregueses. Como a matança de suínos ocorria pela manhã o tio Joãozinho estava folgado depois do almoço, logo atender a estes clientes passou a ser responsabilidade dele. Além do mais o tio Joãozinho era muito respeitado por todos os empregados da fábrica, e na saída deles do trabalho mostravam para ele o que carregavam nas marmitas e embornais.
No início dos trabalhos da fábrica o Hélio era o encarregado do enchimento das mortadelas, da Maria Rosa e do salaminho devido à sua estatura ele conseguia trabalhar sozinho e além de fazer o enchimento rodava a manivela da máquina de encher, enquanto principalmente eu e o João Molambo ficávamos com da amarração com barbante da mercadoria antes de ser levada para a estufa. Nas horas de folga eu pegava um sarrafo de madeira de uns 15 centímetros e ia enrolando nele o barbante, assim sempre tinha vários sarrafos abastecidos de barbante para serem usados na amarração. A maior dificuldade que tive foi na amarração da linguiça em gomos de lombo e nas bexigas de celofane de mortadelas. A linguiça de lombo tinha que ter os gomos padronizados e este era meu maior problema, no início achei que a padronização era impossível, mas com o tempo haviam fregueses que pediam gomos maiores e outros gomos menores era só me informar o tamanho ideal que necessitavam que eu fazia a amarração do tamanho informado, em pouco tempo eu dominava a técnica da amarração. Haviam dois tipos de forma enchimento para massa de mortadela, um era uma forma de arame com celofane e a outra era a bexiga de plástico e era está a mais difícil de amarrar. Na amarração das bexigas maiores, para o papel não arrebentar no pescoço o barbante passava pelo fundo da bexiga tinham que erem dados três laços em seu corpo antes de terminar a amarração no pescoço da bexiga, esta amarração tinha que ficar perfeita por que senão a bexiga estourava com o calor da estufa. A Maria Rosa tinha que ser amarrada em um tamanho padronizado antes de serem colocadas nos varais padronizados conforme a largura da estufa. A medida do tamanho era tirada no olho, e a amarração ia sendo feita de dois em dois nós e depois com uma faca o encarregado de abastecer os varais ia cortando e individualizando os gomos antes de coloca-los nos varais. Com o tempo estes serviços eram realizados sem problemas com cada um especializado numa determinada posição em cada faze do processo.
Haviam duas formas de comprar os bovinos e os suínos para o abate, eram comprados pelo tio Urias calculando no olho o valor dos animais ou eram adquiridos pelo valor da arroba (15kg-uma arroba), neste caso após o abate as carcaças eram pesadas e classificadas com gordas, enxutas ou magras em uma balança e está pesagem era complicada, geralmente nestas pesagens os quartos dos bois e as bandas de porco tinham que ser carregados pelo mesmo funcionário para facilitar a apuração do peso liquido dos animais. Este sistema prevaleceu até ser comprada uma balança aérea que funcionava nos trilhos, neste caso era só empurrar a carretilha com o animal abatido até o trilho da balança, pesar e o balanceiro anotar o peso e a classificação e assim sucessivamente, esta balança foi um grande avanço em nossos trabalhos. No açougue e no início dos trabalhos na fábrica o calçado usado era o tamanco de madeira, mantinha os pés quentes e secos, único senão do tamanco era nas entregas externas nos açougues e na lida com porcos e bois no chiqueiro e nos currais. A fábrica em seu interior era toda cimentada, mas seu entorno, chiqueiros e currais eram de terra batida, qualquer nebrina, com o pisoteio do gado, o seu piso virava um barreiro só. O local fora do interior da fábrica mais frequentado era a caldeira, na boca de sua fornalha ficava uma panela de ferro de três pés, bojuda e com alça, qualquer pedaço de carne colocado nela em pouco tempo estava pronto. Com o tempo surgiram as botas de borracha, quando elas foram fornecidas no lugar dos tamancos a mudança foi da água para o vinho, nosso conforto a partir daí foi outro, só tinha um senão, quando os pés suavam as botas ficavam desconfortáveis, a solução foi alvejar sacos vazios de farinha de trigo, fazer dois panos de cada saco, enrolar os panos nos pés antes de calçar as botas, problema resolvido.
Dois irmãos adolescentes ficavam sapeando na fábrica, Mauro e Mateus, ajudavam em tudo que pedíamos, fiquei amigo do Mauro e o coloquei como meu ajudante na desossa, menino inteligente, nunca vi ninguém com capacidade de aprender e com a facilidade dele, tudo para ele era fácil, em pouco tempo ele era meu braço direito. Só tinha um problema, como ele era muito jovem e franzino, não tinha como ele tirar os dianteiros e serrotes (traseiro sem a costela) da linha, assim se eu não estivesse por perto para colocar as peças na mesa, ele pedia a qualquer um que estivesse por perto, ele foi o garoto mais inteligente com quem já trabalhei. Certa segunda feira os irmãos chegaram na fábrica na maior fedentina, os dois perambulavam pela vizinhança da casa da avó que os criava, perto do matadouro municipal e acabaram caindo em uma fossa e atolaram na merda, dei uma broca nos dois e mandei eles se lavarem, eles juraram que tinha tomado banho, mas o mau cheiro dizia o contrário, esquentaram agua no tanque de pelar porco e os dois tomaram banho com bucha e sabão português, com todos assistindo, a gozação na cara deles foi generalizada, foi uma festa, mas depois de secos, continuaram fedendo, nem com bucha, agua e sabão a fedentina tinha sumido. Na fazenda Santa Terezinha, que o tio Urias tinha comprado há pouco do Adão Prego, teve início uma criação de galinhas, para isto foi construído um galpão comprido e foi plantado capim para as galinhas passearem e pastarem em duas áreas ligadas ao galpão. Criar galinha sem galo era novidade, não tínhamos notícias de qualquer criação deste tipo, tudo era novidade, chegaram os pintos de 01 dia, foram colocados no galpão, onde já estavam vários aquecedores a querosene, em pouco tempo a pintaiada se aglomerou no entorno dos aquecedores. Foram tratados com ração desde a hora que chegaram, muitos duvidavam que a criação fosse dar certo, criar pintos sem galinha choca para muitos era impossível e também tinha o fato de terem chegado logo após o nascimento, não tinha como separar os machos das gêmeas. Mas o empreendimento foi um sucesso, e os ovos produzidos eram colocados soltos em caixotes e depois vendidos nos açougues, em bares e restaurante. A caminhonete ia na fazenda e voltava com os caixotes cheios de ovo, quando a caminhonete parou na frente do Açougue Sulino na Rua Sete e foi colocado no chão uma dos caixotes cheio de ovos, os dois irmão Mauro e Mateus começaram a brincar na carroceria e na brincadeira o Mateus pulou para o chão e caiu em pé dentro da caixa com ovos, tentou sair para correr, limpar o beco, pisou na boca do caixote escorregou e caiu de quatro encima dos ovos, O Totonho Pinto gritou para ele ficar parado, imóvel, para tirar o peralta da caixa foram necessários dois camaradas e todos ficaram lambuzados e escorregadios com os ovos quebrados. Para aproveitar os ovos ainda inteiros levaram a caixa para os fundos do açougue e lavaram tudo, a caixa e ovo por ovo, para evitar colarem entre si, foi um trabalhão danado.
Estávamos, eu e o Raul, na mesa de desossa e ele me contou que tinha ido no puteiro da Tiana e ficado com uma mulher e me contou detalhadamente como tinha sido, conversa vai conversa vem falei que no sábado podíamos dar uma passada lá, ele me falou que nos fins de semana não dava, que a polícia não tinha hora de passar para fiscalizar se tinha menores no puteiro, que tinha que ser numa segunda ou terça-feira, dias fracos e sem polícia, como éramos menores a Tiana estaria ferrada se nos pegassem no flagra lá. Combinamos em guardar dinheiro e na primeira oportunidade iriamos, nosso chefe era o Luizinho, meu primo mais velho, um cara difícil e imprevisível, tinha dia que nos liberava cedo e dias que nos fazia trabalhar até tarde da noite. Na primeira segunda-feira que saímos na hora normal, fizemos hora no Bar do Grossi no pontilhão, logo depois do Posto Shell, pouco depois das 8 horas nos dirigimos para o puteiro da Tiana, na rua Bahia. Quando chegamos meio desconfiados, fomos recebidos na sala pela Tiana que gentilmente logo nos deixou à vontade, mas se negou a nos servir bebidas alcoólicas. Ainda não tinha putas na sala, sentamos em uma mesa e a Tiana nos serviu guaraná e ficou nos fazendo companhia. Logo apareceu a mulher do Raul com uma colega e ficamos batendo papo sem saber o que fazer até que as mulheres tomaram a iniciativa e nos levaram para os quartos. A que estava comigo me ajudou a tirar minha roupa, eu entrei sob a coberta, eu sentia vergonha e estava com frio, a mulher tirou sua roupa, colocou um roupão, pegou uma pequena bacia, saiu e voltou com ela cheia d`água, fez a higiene de suas partes intimas, até hoje recordo do barulho dela agachada sobre a bacia e do barulho chap chap chap na hora que ela se banhava, tirou o roupão e entrou debaixo da coberta comigo. Eu não sabia como proceder, quando ela levou a mão em meu saco, eu esfriei, em brigas com os colegas quem acertasse o saco do outro primeiro ganhava a briga, mas ela agiu delicadamente e me guiou com delicadeza e maestria, em pouco tempo eu era um cara feliz, satisfeito e orgulhoso.
A partir deste dia começou uma coceira no meu saco, no início era até gostoso, mas com seu aumento começou a incomodar cada vez mais, eu não tirava mais a mão do saco e tio Maximino notou e quis saber o que estava acontecendo comigo, com sua insistência acabei contando para ele que a coceira tinha começado depois de minha ida na zona na Tiana com o Raul, ele me levou até o escritório da fábrica, mandou que eu abaixasse as calças e olhou de bem perto minhas partes intimas e informou que eu estava infestado por chatos, que a mulher tinha me infectado, mas que era fácil extermina-los com neocid. No dia seguinte conversei com o Raul sobre o que o tio Maximino tinha falado e resolvemos agir, no escritório tinha uma bomba para inseticida e uma lata de detefon, na primeira oportunidade, quando o escritório estava vazio, entramos, fechamos a porta a chave, pegamos a bomba e a enchemos com detefon, tirei a calça e o Raul, usando a bomba, aspirou inseticida em todas minhas partes intimas, até no Butão, nas partes que encostadas na pele eu levantava para não escapar um milímetro sem inseticida. Logo que o Raul ficou satisfeito com seu trabalho, encostou a bomba e começamos a conversar, minha pele começou a esquentar, em pouco tempo parecia que meu saco e imediações estavam pegando fogo, onde o detefon tinha atingido estava em brasa, o Raul saiu, pegou o prato da balança e começou a abanar com ele para ver se aliviava o ardor, em pouco tempo o escritório estava lotado com todos empregados da fábrica, todos davam palpites, cada um tinha uma solução mas o ardor não diminuía, até que trouxeram a bacia de temperar o sangue para chouriço cheia de agua morna, eu sentei destro dela e comecei a lavar as partes contaminadas esfregando sabão de coco com delicadeza até que o ardor foi maneirando. Quando o tio Maximino chegou e tomou conhecimento de tudo me deu uma bronca, quando falei que era ele que tinha dado a ideia quase me deu umas porradas, e disse que tinha falado em neocid em pó, que era vendido em uma latinha e não em detefon liquido que era um veneno potente e que contaminava. O veneno era bravo mesmo, além de exterminar a chataiada, todas minhas partes intimas trocaram a pele, mas a lição foi aprendida, a partir deste episódio para qualquer mal sempre procurei ajuda profissional.
O Bahia era um cara calmo, responsável e era dele a obrigação da lida com o gado, buscava o gado comprado pelo tio Urias e os colocava na fazenda do Randolfe, na localidade denominada Pinheiro Grosso, na estrada de terra que ligava Barbacena a Alto Rio Doce, no entorno da mata da prefeitura e quando necessário buscava na Fazenda do Randolfe o gado para o abate na fábrica. Quando a lida lhe dava folga trabalhava como magarefe ou na desossa na fábrica, era um camarada habilidoso e muito respeitado pelos colegas. Tinha o Teófilo, irmão mais novo do Butina, seu trabalho era de magarefe, na salga dos couros e quebrando ossos e carregando a autoclave diariamente, era um trabalhador extrovertido e brincalhão, tinha pavor de baratas, o pessoal costumava caçar baratas que colocavam em sua roupa de trabalho só para verem a reação apavorada dele quando ia vestir sua roupa para trabalhar. O Butina, irmão mais velho do Teófilo, era uma figura, não trabalhava na fábrica, mas diariamente aparecia com seu balaio de taquara para pegar chouriço e dobradinha para revender. Em Barbacena havia funcionado um frigorifico industrial que estava desativado, onde o Butina trabalhara de marreteiro, era um crioulo extremamente forte, parrudo, mas boa gente, tinha umas brincadeiras bem estupidas para mim, suas mãos pareciam duas garras, doía quando ele apertava meu braço ou minha mão, eu evitava qualquer contato com ele, no mais me dava muito bem. Ele mesmo preparava a mercadoria que ia vender, tínhamos uma centrifuga elétrica para limpar os buchos de boi a vapor, ela girava com rapidez na sua base e o bucho aquecido pelo vapor que ia sendo limpo batendo nas saliências em sua lateral, quando o bucho estava limpo e era tirado da centrifuga já firme grosso pronto para industrialização ou comercialização. Antes da instalação da centrifuga os buchos eram limpos com cal virgem, eram colados em um tambor com água e cal virgem, despois de ficarem de molho por um certo tempo eram retirados do tambor e colocados em um tanque cheio d`água, então eram raspados até ficarem limpos, porem ficavam encardidos e moles, sem firmeza, já na centrifuga o vapor os encorpavam e saiam claros e firmes.
O tio Joãozinho, irmão de minha mãe era frequentador da fazenda de meu pai no município de Alto Rio Doce, namorou a tia Ester e acabou casando com ela. Logo após ele mudar para Barbacena, montou uma oficina de sapateiro na Rua Pereira Teixeira, debaixo de nossa casa, onde exerceu a função de sapateiro por certo tempo. Na década de 50, bois e porcos eram abatidos no Matadouro Municipal, e o sangue e as barrigadas dos porcos eram praticamente descartados. O tio Joãozinho combinou com o tio Urias e o tio Totonho a compra das barrigadas, que ele levava com o sangue para sua casa. Com o sangue ele passou a fabricar chouriço que era vendido no açougue, limpava as tripas, fritava o redanho e fornecia também ao açougue onde a banha derretida era vendida, as tripas serviam embutir linguiça pura de porco e mista. Com a separação da sociedade e o início dos trabalhos na fábrica na rua Sena Madureira, onde os porcos e bois passaram a serem abatidos ficou inviável o tio Joãozinho continuar a trabalhar com as barrigadas em sua casa, na fábrica foi fornecida uma sala para ele e ele passou a fazer o aproveitamento das barrigadas e do sangue na própria fábrica. O Butina pegava diariamente seu balaio de taquara com alça e o forrava bem para evitar vazamento de humidade, depois ele mesmo escolhia o chouriço, pesava, embalava e ia colocando no balaio. Pegava a parte mais suculenta da dobradinha, conhecida como veia do bucho, pesava 01 quilo, embalava e ia colocando no balaio. Balaio carregado acertava o valor da mercadoria, saia gritando pelas ruas ¨olha a dobradinha no capricho¨, ¨olha o chouriço¨, ele tinha uma freguesia fiel. O trato da fábrica com ele era o que não conseguisse vender podia devolver, não tenho recordação de qualquer devolução dele. Mais tarde ele retornava para recarregar seu balaio, mas então suas encomendas agora eram para botecos, bares e restaurantes e como fazíamos entregas na parte da tarde ele costumava ajudar nas entregas e aproveitava para fazer as entregar também de suas encomendas.
Na fábrica eram embutidas várias mercadorias, mortadela, linguiça pura de porco e mistas, galantina, salaminho e Maria Rosa. À medida que os produtos foram sendo diversificados começaram a encalhar, para aumentar as vendas duas vezes por semana, em uma furreca Ford 29, eu tendo o Renato como motorista, enchíamos a caminhonete com as mercadorias disponíveis e saiamos vendendo para bares, vendas e armazéns por toda cidade. A mercadoria que acabava primeiro era a Maria Rosa, esta mercadoria eu nem precisava oferecer, os comerciantes logo perguntavam ¨tem Maria Rosa¨, com o tempo eu passei a casar mercadorias, só vendia Maria Rosa se o comerciante comprasse outros tipos de mercadoria. Certo dia paramos no Cangalheiro para atender a venda do Nilton Borges, após o termino do atendimento voltamos para a furreca e por mais que o Renato tentasse ela não saia do lugar, indaguei dele o que estava acontecendo e ele me informou que as marchas da caminhonete não estavam encaixando. Logo formou um grupo de curiosos no entorno da furreca, o Nilton, que era motorista, tentou engatar as marchas sem sucesso. Do cangalheiro para o centro da cidade havia dois horários de ônibus, um pela manhã e o outro á tarde. Fiquei na caminhonete e o Renato foi buscar socorro, o ônibus passava em frente a fábrica para chegar ao centro. Na boca da noite chegaram na De Soto o tio Urias e o Totonho Pinto motorista da fábrica. O incrível foi o Totonho Pinto entrar na furreca, dar a partida no motor, encaixar a marcha e a furreca sair andando, até hoje não consigo entender o que aconteceu naquele dia. O tio Urias deu um esporro em mim e no Renato, quisemos explicar o que tinha acontecido, mas ele não quis nem ouvir o que tínhamos a dizer, estava uma fera.
Uma senhora de nome Gení tinha uma revenda de mercadorias em Belo Horizonte, ela certo dia apareceu na fábrica observou nossas mercadorias, viu a fabricação e combinou comprar uma boa quantidade toda semana, só tinha um porem, a mercadoria tinha que ser entregue em Belo Horizonte uma carga por semana. Em pouco tempo ela dobrou o pedido e a entrega passou a ser duas vezes por semana. A carga saia fabrica às 5 horas da manhã da segunda-feira e da quinta-feira, para chegar bem cedo em BH, nestes dias eu tinha que entrar no serviço as 2 horas da madrugada para efetuar a pesagem das mercadorias e o carregamento, preencher a nota fiscal e despachar a caminhonete F-350 com Totonho Pinto antes das 5 horas, eu praticamente passava a noite em claro. O magarefe de nome Juca e o ajudante do Bahia de nome Expedito nestes dias dormiam na fábrica e me ajudavam nestas ocasiões. Em uma segunda-feira eu estava preenchendo a nota fiscal e ouvi uma discussão acalorada fora do escritório, quando sai para entregar a nota ao Totonho Pinto e despachar a mercadoria o Expedito estava agachado segurando o braço direito esfaqueado e o Juca em pé perto dele com uma faca na mão. Dei uma bronca no Juca e pedi ao Totonho Pinto para me levar com o Expedito até a Maternidade. Dei sorte ao chegar na Maternidade pois a primeira pessoa que encontrei foi o Dr. Júlio, oficial medico da polícia militar e primo de meu pai, que havia acabado fazer um parto. Levamos o Expedito para a enfermaria e o Dr. Júlio limpou o corte, fez parar o sangramento e costurou a ferida da melhor forma possível e avisou ao Expedito que ele estava sem poder girar o braço, mas que com o tempo os movimentos do braço retornariam. Antes de saímos da Maternidade, o Dr. Júlio me levou até seu consultório e me falou que era sua obrigação comunicar o fato à polícia, mas se desse zebra ele ia dizer que eu tinha lhe dito que eu já tinha avisado a polícia e que era para que eu confirmasse sua história, falei para ele ficar tranquilo que eu confirmaria tudo.
O Claudinho também era egresso do Frigorifico, trabalhava de magarefe e as tripas das barrigadas bovinas e suínas eram de sua responsabilidade, ele fazia com muita competência o aproveitamento das tripas. Nas barrigadas existem dois tipos de tripas a tripa fina e a tripa grossa todas após trabalhadas são aproveitadas. A fina após viradas, rasqueadas, bem limpas e lavadas são salgadas e usadas para embutir linguiça, chouriço e Maria Rosa. A grossa após viradas e limpas são ferventadas e vendidas nos açougues e também aproveitada na fabricação da Maria Rosa. O preparo do mocotó de boi dava muito trabalho e paciência em sua limpeza, tinha que serem limpos um a um, é difícil tirar o casco do boi, mas após limpos e cortados em pedaços, são uma iguaria. A mulher do Claudinho era uma cozinheira de mão cheia, eles moravam em uma casa na praça da capela de São Sebastião e ela também cuidava de um boteco de duas portas de frente para a praça. O tio Joãozinho morava em uma casa ao lado da fábrica e ele e o Claudinho eram muito amigos. O Claudinho falou que ia pedir para sua mulher preparar um mocotó de boi caprichado e convidou o tio Joãozinho e em uma sexta-feira fomos o tio Joãozinho, eu e o Teófilo a noite para a casa do Claudinho, sentamos na sala e ficamos tomando cerveja e jogando conversa fora a espera enquanto a mulher do Claudinho preparava mesa, mesa servida passamos para a sala de jantar. Nas cabeceiras da mesa sentaram o Claudinho de um lado e sua mulher do outro que nos serviu toda orgulhosa, e tinha razão, pois tinha preparado um panelão com o mocotó com batata socada uma delícia, um creme de feijão preto e uma travessa de angu, tudo no maior capricho, eu nunca tinha comido nada tão saboroso. Na fábrica era usada pimenta vermelha na fabricação e tinha chegado uma remessa de uma pimenta malagueta miúda muito ardida e o Claudinho tinha levado um vidro dela e encheu o vidro de cachaça para a cura. O Teófilo era gente de casa e o tio Joãozinho pediu para ele trazer um copo d’agua, foi ele se levantar e ir para a cozinha para o tio Joãozinho pegar a garrafa de pimenta e colocar e mexer no prato do Teófilo uma generosa quantidade do caldo curtido da pimenta malagueta. Sentado o Teófilo colocou na boca uma colherada da batata do mocotó e perdeu até o folego, o crioulo empalideceu, seu nariz começou a escorrer e ele parou de comer, mas o tio Joãozinho ainda tinha um truque na manga, virou para a mulher do Claudinho e elogiou a efusivamente o preparo do mocotó, do feijão e do angu e comentou, casualmente, que o único que parecia não estar gostando da comida era o Teófilo, que quase não tocava no prato, o crioulo não tece outro jeito, teve que limpar o prato na marra.
No dia 04/09/1960 fui almoçar em casa, após o almoço o papai me falou que não estava passando bem e me mandou ir na praça de automóveis e chamar o Polidoro para leva-lo ao Hospital São Jose, então em funcionamento no Jardim do globo, busquei o Polidoro e acompanhei o papai até o hospital, depois dele internado, quando eu estava saindo para voltar ao trabalho, ele me chamou de volta e me pediu para dizer ao tio Abílio que queria conversar com ele. Desci para o Pontilhão e procurei o tio Abílio na casa da Aparecida sua filha, ela me falou que ele tinha saído com o Basinho, seu marido, falei para ela para avisar a seu pai que quando eu saísse do trabalho ia passar porque precisava conversar com ele. À tardinha voltei na casa da Aparecida e encontrei com o Basinho e o tio Abílio e dei a ele o recado do papai. Eles quiseram saber como o papai estava e eu informei o que sabia que ele tinha saído de casa andando e que fora para o hospital no carro do Polidoro, o Basinho falou que eu podia ficar descansado, que tinha que ir ao centro da cidade mais tarde e que levaria o tio Abílio para o centro com ele. Cheguei em casa, tomei banho, jantei e quando o tio Abílio chegou ao hospital eu já estava no quarto do papai. Logo que ele entrou, foi até ao lado da cama onde o papai estava no balão de oxigênio de chapéu na mão, falaram amenidades e o papai me chamou e pediu para me retirar do quarto e esperar do lado de fora que ele queria conversar com seu tio. Sai e sentei em uma cadeira no corredor perto da porta para evitar que eles fossem interrompidos. Quando o tio Abílio abriu a porta eu voltei para o quarto. Eu sentei perto do tio Abílio próximo à porta, ele estava de cabeça baixa, rodando o chapéu nas mãos chorando, quando o papai viu que eu olhava em sua direção, apontou para o tio Abílio e fez o gesto com o dedão em direção à boca com a mão informando que ele estava mamado, bêbado, este foi o último gesto de meu pai para mim. No dia seguinte, após almoçar em casa, ia em direção ao hospital e ao passar ao lado do monumento ao Bias Fortes, em frente ao Cine Palace, encontrei com o Tio Juquinha que me falou que o papai tinha acabado de falecer, voltei para casa com ele, chagamos e ele avisou minha mãe da morte do papai e mandou que eu ficasse com ela e voltou para o hospital para tomar providencias para o funeral. O velório foi na sala de casa na rua 15, o mesmo local do velório do tio Assis. Este favor eu sempre vou ficar devendo ao tio Juquinha, ele tomou todas providencias para o funeral, pagou todas as despesas e nunca apresentou a conta para receber, ele era assim, nunca agradeci a ele esta e outras gentilezas que ele fez para minha família. Posteriormente tomei conhecimento de que o Dr. Jaime, médico que atendeu ao papai, sabendo que ele era asmático, e como seus lábios estavam arroxeados, pensando que seu problema era cardíaco, receitou medicamentos para acelerar sua circulação, como o problema dele era renal, seus rins tinham parado de funcionar, a ureia em seu sangue não demorou a mata-lo.
Ass. Tacílio Benedito de Araújo.
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