O que te faz bem? Minha amiga, ao ouvir uma das suas músicas prediletas sendo acompanhada por mim num vídeo do youtube, perguntou: - Como você consegue tocar os instrumentos exatamente quando a música inicia? - Não sei como, apenas sinto. Sou amadora da percussão, que faz do ritmo uma brincadeira para os familiares e os amigos. É um hobby iniciado há algum tempo que não foi bem uma descoberta, mas sim, o desnudar de algo existente. Comparo a um olho d’água que sumiu após pisoteado anos e anos pela passagem da boiada. A partir do momento em que os animais não passam mais e a área degradada recupera-se pelo plantio de árvores nativas, a nascente brota em toda a plenitude, para ocupar novamente o seu devido lugar. Nasci exatamente na semana do Carnaval. Meu chorinho de neném “acompanhava” o som do batuque da rua. Cresci ouvindo músicas do rádio e toca disco. Achava sensacional ouvir o canto das cigarras enquanto brincava no quintal, rodopiando na ponta dos pés ou correndo. Durante a infância, alguns sons me causavam medo ou curiosidade. Lembro-me de que meu pai, durante a madrugada na virada para o Dia de Reis, aparecia na varanda lá de casa acompanhado por amigos, cantando ao ritmo do violão e pandeiro. Eu acordava assustada e tinha tanto medo que não me atrevia a olhar, mesmo gostando de escutar a cantoria. Nas semanas de Carnaval, a garotada da vizinhança brincava na rua com o boi bumbá. Só havia meninos no pequeno grupo, que improvisava a farra com um boneco que imitava um boi. O batuque era garantido por instrumentos feitos de lata. Eu os assistia de longe porque se estivesse muito próxima o boi poderia “me pegar”. Por volta dos dez anos de idade, eu morava ao lado de uma casa muito bonita e cercada por um muro alto. Um casal morava lá, eles não cumprimentavam os vizinhos. A senhora tocava o piano, era um encanto. Como eu desejava estar ao lado dela, só para ouvir bem de pertinho. Eu tinha um...
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O que te faz bem? Minha amiga, ao ouvir uma das suas músicas prediletas sendo acompanhada por mim num vídeo do youtube, perguntou: - Como você consegue tocar os instrumentos exatamente quando a música inicia? - Não sei como, apenas sinto. Sou amadora da percussão, que faz do ritmo uma brincadeira para os familiares e os amigos. É um hobby iniciado há algum tempo que não foi bem uma descoberta, mas sim, o desnudar de algo existente. Comparo a um olho d’água que sumiu após pisoteado anos e anos pela passagem da boiada. A partir do momento em que os animais não passam mais e a área degradada recupera-se pelo plantio de árvores nativas, a nascente brota em toda a plenitude, para ocupar novamente o seu devido lugar. Nasci exatamente na semana do Carnaval. Meu chorinho de neném “acompanhava” o som do batuque da rua. Cresci ouvindo músicas do rádio e toca disco. Achava sensacional ouvir o canto das cigarras enquanto brincava no quintal, rodopiando na ponta dos pés ou correndo. Durante a infância, alguns sons me causavam medo ou curiosidade. Lembro-me de que meu pai, durante a madrugada na virada para o Dia de Reis, aparecia na varanda lá de casa acompanhado por amigos, cantando ao ritmo do violão e pandeiro. Eu acordava assustada e tinha tanto medo que não me atrevia a olhar, mesmo gostando de escutar a cantoria. Nas semanas de Carnaval, a garotada da vizinhança brincava na rua com o boi bumbá. Só havia meninos no pequeno grupo, que improvisava a farra com um boneco que imitava um boi. O batuque era garantido por instrumentos feitos de lata. Eu os assistia de longe porque se estivesse muito próxima o boi poderia “me pegar”. Por volta dos dez anos de idade, eu morava ao lado de uma casa muito bonita e cercada por um muro alto. Um casal morava lá, eles não cumprimentavam os vizinhos. A senhora tocava o piano, era um encanto. Como eu desejava estar ao lado dela, só para ouvir bem de pertinho. Eu tinha um pianinho de brinquedo. Me distraia tocando as musiquinhas do pequeno manual, como se fosse uma partitura musical adaptada para crianças. Recordo-me de duas músicas, “O cravo brigou com a rosa” e “Parabéns para você”. Mas o que eu curtia mesmo era o improviso, quando conseguia tocar nas poucas teclas do pianinho um minúsculo trecho de alguma música que eu escutava das novelas ou do rádio. Os anos passaram, já adulta continuava a escutar músicas. O pianinho sumiu da minha vida fazia tempo. Experimentei algumas coisas para relaxar a tensão do trabalho em escritório. Pedi a uma amiga para me ensinar a fazer crochê, quebrei a agulha pelo mal jeito e impaciência. Inventei de frequentar aula de pintura, que me estressava mais ainda. Aula de ikebana não deu certo. Parti para aula de dança de salão com o marido e paramos. Frequentei aula de dança individual e meus joelhos não aguentaram. Fui forçada a parar devido à dor provocada pelo impacto dos pulos. Aos quarenta e três anos de idade comecei a matutar. Meu marido não curte dançar e meus joelhos não aguentam impacto. Gosto de música e de dança. Tem outra coisa que eu possa fazer que tenha música e ritmo? A resposta veio de imediato dentro da minha cabeça. - Vá na escola de música onde seu filho estuda. Então eu respondi para minha cabeça, parecia que eu conversava com alguém. - Ah, mas eu tenho que saber partitura, não entendo nada daquilo. Também não estou a fim de tocar violão ou guitarra. Parece muito difícil. Quero algo mais livre. – Vá tocar pandeiro. Aconteceu bem assim. Foi muito interessante aquele momento, não esqueço. Matriculei-me na escola de música logo após. Aprendi a tocar pandeiro, conga e caxixi. Me encontrei, é um namoro que dura há dez anos. Tenho alguns instrumentos de percussão. Pandeiro, conga, caxixi, pau de chuva, clave, carrilhão, bloco sonoro, afoxé, bongô, meia-lua, pin e moringa. Um dia, numa tarde de domingo, eu acompanhava com as congas uma música cantada pelo Tim Maia. “Chocolate”. Inspirada, tocava com gosto. Ao olhar pela janela do quarto transformado num pequeno estúdio, lá de cima vi uma moça passando com o carrinho que acomodava um bebê, acompanhada por uma senhora. Presumi que fosse a avó e que o bebê era o filho da moça. Elas não me viram. De repente a moça sorriu e começou a dançar animadamente. Do meu cantinho da música, ou seja, o recanto com árvores nativas, nascente d’água, pássaros, borboletas e cigarras, me senti feliz por ter proporcionado um minuto de alegria a alguém. O que te faz bem?
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