Projeto 30 Anos Alunorte
Entrevista de Odineide Valente Vieira
Entrevistada por Lígia Scalise
Barcarena, 9 de julho de 2025
Transcrita por Mônica Alves
00:00:20
P1 - Odineide, eu vou pedir para você começar falando seu nome completo, sua data de nascimento e a cidade onde você nasceu.
R: Eu sou Odineide Valente Vieira, hoje estou com 62 anos, nasci em 29 de maio de 1963. Nasci aqui em Itupanema. Barcarena, município de Barcarena.
00:00:44
P1 - Quando você nasceu, Neide, como foi o dia? Alguém te contou essa história?
R: Olha, a minha história é assim, a minha mãe contava que ela tinha uma pequena casinha, que até hoje os meus irmãos me encarnam, que a minha mãe me teve na beira de um poço, quando ela sentiu dor, deu tempo somente dela entrar na casa, e a parteira chegar e fazer o parto. Então, as minhas irmãs sempre falavam: “Ah, tu nasceste na beira do poço.” Porque a casinha era bem pertinho do poço. Então, eu nasci em uma casinha bem humilde, que meus pais eram muito, muito na época. E eu nasci aqui em Itupanema, numa casinha na beira do poço.
00:01:30
P1 - Foi parto natural?
R: Foi. Minha mãe teve 12 filhos, todos partos naturais.
00:01:35
P1 - E como os seus pais se conheceram?
R: O meu pai era pescador, porque antes daqui de ser urbano, era rural. Então, era pouca gente que morava aqui, todo mundo se conhecia. E meu pai era pescador e a minha mãe era trabalhadora rural. Então o meu pai quando conheceu a minha mãe, ela tinha 13 anos de idade.
00:02:00
P1 - E eles nasceram aqui também?
R: Nasceram aqui em Itupanema. Meus avós, a minha bisavó, a minha avó, minha mãe, todos nasceram em Itupanema.
00:02:11
p1 - Todos filhos de Barcarena?
R: Todos aqui, filhos de Itupanema, município de Barcarena. Então, o meu pai conheceu a minha mãe muito cedo e logo eles se juntaram, antes do casamento. Naquela época os pais tinham que casar mesmo. E um ano depois eles casaram. Aí nasceu minha primeira irmã, que é a...
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Entrevista de Odineide Valente Vieira
Entrevistada por Lígia Scalise
Barcarena, 9 de julho de 2025
Transcrita por Mônica Alves
00:00:20
P1 - Odineide, eu vou pedir para você começar falando seu nome completo, sua data de nascimento e a cidade onde você nasceu.
R: Eu sou Odineide Valente Vieira, hoje estou com 62 anos, nasci em 29 de maio de 1963. Nasci aqui em Itupanema. Barcarena, município de Barcarena.
00:00:44
P1 - Quando você nasceu, Neide, como foi o dia? Alguém te contou essa história?
R: Olha, a minha história é assim, a minha mãe contava que ela tinha uma pequena casinha, que até hoje os meus irmãos me encarnam, que a minha mãe me teve na beira de um poço, quando ela sentiu dor, deu tempo somente dela entrar na casa, e a parteira chegar e fazer o parto. Então, as minhas irmãs sempre falavam: “Ah, tu nasceste na beira do poço.” Porque a casinha era bem pertinho do poço. Então, eu nasci em uma casinha bem humilde, que meus pais eram muito, muito na época. E eu nasci aqui em Itupanema, numa casinha na beira do poço.
00:01:30
P1 - Foi parto natural?
R: Foi. Minha mãe teve 12 filhos, todos partos naturais.
00:01:35
P1 - E como os seus pais se conheceram?
R: O meu pai era pescador, porque antes daqui de ser urbano, era rural. Então, era pouca gente que morava aqui, todo mundo se conhecia. E meu pai era pescador e a minha mãe era trabalhadora rural. Então o meu pai quando conheceu a minha mãe, ela tinha 13 anos de idade.
00:02:00
P1 - E eles nasceram aqui também?
R: Nasceram aqui em Itupanema. Meus avós, a minha bisavó, a minha avó, minha mãe, todos nasceram em Itupanema.
00:02:11
p1 - Todos filhos de Barcarena?
R: Todos aqui, filhos de Itupanema, município de Barcarena. Então, o meu pai conheceu a minha mãe muito cedo e logo eles se juntaram, antes do casamento. Naquela época os pais tinham que casar mesmo. E um ano depois eles casaram. Aí nasceu minha primeira irmã, que é a mais velha, hoje ela está com 65 anos. E assim foi a nossa vida.
00:02:38
P1 - A sua mãe tinha 13 anos quando conheceu seu pai. E seu pai tinha quantos anos?
R: Meu pai era 12 anos mais velho que ela.
00:02:47
P1 - Se apaixonou?
R: Eu acredito que sim, para terem 12 filhos, foi uma paixão. Foi uma paixão. E depois disso, quando o meu irmão caçula tinha um ano de idade, a vida deles acabou, separaram, depois de uma idade, separaram mesmo. E meu pai era muito leigo e foi uma separação de não falar nunca mais com ela.
00:03:21
P1 - O que aconteceu, mulher?
R: Nunca mais falar com a minha mãe. Meu pai faleceu e não falava com a minha mãe. Minha mãe morreu esse ano, dia 15 de março deste ano. E meu pai morreu dia 09 de setembro de 2009.
00:03:37
P1 - E eles se conheceram, tiveram 12 filhos, você sabe do porquê que deram o nome de Odineide?
R: Por causa da minha mãe que era Olinda. As minhas irmãs são Odineia, Odineide, Odinete, Ocilene e Odilene. O meu pai era Raulino. O meu irmão é Rosinaldo, Rosinei, Ricardo e Rudinilson. E tem dois que morreram ainda antes de nascer.
00:04:08
P1 - Neide, você falou que seus pais eram humildes?
R: Muito.
00:04:11
p1 - Viviam do quê?
R: Meu pai pescava e minha mãe trabalhava na roça. E aqui, Itupanema, a comunidade era rural, tinha muitas frutas, muito cupuaçu, muita pupunha, bacuri, piquiá. Então, o nosso terreno aqui era muito grande e eles juntavam essas frutas todas e vendiam. Tinha barco que saía daqui de Itupanema e ia para Belém, que chamavam de Marreteiro na época. E eles compravam essas frutas, carvão, e levavam pro Ver-o-Peso de Belém. E quando eles vinham de Belém, eles já traziam o alimento, já vinha açúcar, já vinha café, porque aqui tinha um único comércio.
00:04:59
P1 - Tinha energia elétrica?
R: Não, não tinha. Ele se chamava Seu Benedito Lobato, que era o único comércio que tinha. A energia aqui era motor de luz, que a gente chamava, era um transformador. Aí eles ligavam às seis horas da tarde e desligavam às nove horas da noite. Era rapidinho aquilo, entendeu? Os postes na rua eram de esteio, com lâmpada incandescente. Aqui era pequeno, muito pequeno. Todo mundo se conhecia. A gente se conhecia, daquele vizinho: “Eu não tenho café na minha casa, mas meu vizinho tinha.” Então, eles me davam o café. “Ah, meu vizinho não tem farinha, mas eu tenho.” Aí eu dava para o meu vizinho. A gente tinha uma vivência em união.
00:05:49
P1 - Como que era a casa?
R: A nossa casa era uma casa de taipa, barro, né? E não tinha porta nem janela. Dormia tranquilamente e acordava.
00:06:00
P1 - Como assim não tinha porta nem janela?
R: Tinha porta e janela, só não tinha as folhas para fechar. Era apenas um pano colocado ali, porque não havia violência. Não tinha violência aqui. Todo mundo se conhecia, não havia violência. Hoje Deus me Livre.
00:06:18
P1 - Na época em que você nasceu, quem estava aqui era filho dessa terra?
R: Todos. Todos filhos de Itupanema, nascidos em Itupanema.
00:06:25
P1 - E pra brincar, o que você fazia?
R: Ah, brincadeira. A gente não tinha boneca na época, o que os meus pais arranjavam era só para alimentação mesmo. E a gente apanhava o açaí, tirava aquela boneca e a minha mãe fazia vestidinho e os cabelinhos da boneca do açaí. Era nossa brincadeira, brincar com pião, brincar de pular corda. Eram essas brincadeiras, muito sadias.
00:07:05
P1 - Então, as brincadeiras, vocês criavam as coisas, né?
R: A gente criava. Praia, ia pra praia todo mundo, brincar, tomar banho. E eram essas brincadeiras que nós tínhamos antigamente. Não tinha celular, não tinha televisão, não tinha nada.
00:07:23
P1 - Tinha rádio?
R: Tinha um rádio que era “desse tamanhão aqui”, tinha um botãozão. O meu pai tinha o maior ciúme daquele rádio, principalmente, porque ele escutava a Voz do Brasil. Um dia desses eu até perguntei, ainda existe essa Voz do Brasil? Porque o meu pai chegava naquele horário, 5 horas da tarde, “Ah, já vai começar a Voz do Brasil.” Então, o rádio era pra isso, para escutar as notícias através da Voz do Brasil.
00:07:58
P1 - Os seus pais estudaram?
Meu pai, não, meu pai era analfabeto. Assim, analfabeto de assinar simplesmente o nome dele, mas era bom de matemática, de cabeça. Muito bom de matemática. A minha mãe estudou até o, antigamente, quarto ano, né? E não estudou mais.
00:08:20
P1 - E aí um filho ia ajudando aquele outro?
R: Aí minha mãe saía pra roça, a minha irmã mais velha ficava com a gente em casa. Quando não ia todo mundo para a roça. Meu avô tinha o carrinho de mão, meu avô colocava todo mundo, “Bora pra roça.” E, gente, enquanto eles iam capinar roça, iam colher mandioca, milho, a gente ficava num barraco que ele construiu, meu avô construiu, a gente ficava brincando lá, brincando com barro, de fazer boneco, de fazer comida de barro. A gente ficava lá o dia inteiro, o dia inteiro na roça.
00:08:53
P1 - E como que era? Era bom, era ruim?
R: Olha, hoje eu digo que foram bons momentos das nossas vidas. Hoje as minhas filhas não têm o que eu tive, entendeu? A gente comia caça, comia peixe, camarão, meu pai vinha da praia com paneiro de camarão, tinha fruta à vontade. Hoje a gente quer comer um bacuri, tem que comprar, caro um bacuri. Então, ela não tem o que eu tive. E a gente não valorizava, né? O que nós tínhamos antigamente. Tinha liberdade. Você fazia festa com vitrola, que se chamava vitrola antigamente, aqueles discos de vinil, aqueles grandões. Eu acho que na década de 69, 70, antes da chegada da Albras, que a Albras chegou em média de 76 a 78, por aí. Aí já foi se revolucionando nessa época, na época em que o projeto Albrecht chegou. Que primeiro foi a Albras. Então, de lá pra cá, eu te digo, eu nasci em 1963, em 1968, 70, já estou lembrando do desenvolvimento que houve. Mas a minha infância aqui, com as minhas irmãs, foi muito boa.
00:10:29
P1 - Neide, eu já entendi que fome vocês não passavam, né?
R: Não. Nós não passávamos fome, porque minha mãe criava porco, tinha galinha, tinha pato. E a farinha a gente coletava da roça. E tinha uma casa de fazer farinha. Tinha tapioca, tinha tucupi, tinha muitas frutas. Então, fome, ninguém passava, não.
00:10:53
P1 - Faltava alguma coisa?
R: Sim, faltava o café, porque o café só comprava quando ia para Belém. O pão era difícil da gente comer, porque não tinha onde fazer pão. E era quando meu pai ia para Belém, que ele trazia rosca de lá. E isso tinha que guardar, porque todo mundo queria comer num dia só. Entendeu? Era difícil, né? “Ah, chegou uma bolacha aí.” Nossa, era uma festa. Quando eles iam para Belém, eles compravam um tecido, antigamente chamavam de chita, um tecido para fazer um vestido. Nossa, era uma festa. E a minha mãe mesmo cortava e a minha mãe fazia os vestidos de cinturinha baixa, todo de forro. Eu lembro, falo para as minhas filhas: “Vocês não usariam nunca o vestido daquele.” Hoje a moda já evoluiu, mas como a gente usava, não.
00:11:48
P1 - E aí, naquelas datas comemorativas da infância, aniversário, Natal, férias?
R: Não tinha. Para nós não tinha o Natal, não tinha o ano novo. No dia de Natal, estava todo mundo, cada um, na sua rede. A minha mãe ia dizer assim: “Olha, se vocês dormirem, o ano vai passar direto aí com vocês.” Mas como? Todo mundo dormia, porque não tinha nada, não tinha comemoração de nada. Me lembro que nos meus 15 anos, a minha mãe fez uma festa, fez um bolo “desse tamanhão”, “dessa altura”, salada de maionese com batata e legumes. Minha mãe fez nos meus 15 anos, eu me lembro disso. Com muito esforço, mas ela fez.
00:12:39
P1 - Você que pediu?
R: Não, ela quis fazer mesmo. Fui a única que teve aniversário de 15 anos, fui eu.
00:12:45
P1 - Por quê?
R: Não sei. Entre as seis irmãs, eu fui a única que teve uma festa de 15 anos. Não sei. Até hoje eu me pergunto, porque eu era muito chegada do meu pai, eu não me desgrudava do meu pai, sabe, eu amava o meu pai de uma forma assim, que as outras irmãs tinham ciúmes. Mas era um amor que eu tinha pelo meu pai. Tanto que, quando ele se separou da minha mãe, ele foi embora para outra cidade, a gente ia atrás dele, eu ia com as minhas irmãs atrás dele. E quando ele adoeceu mesmo, eu fui buscar ele para a minha casa e ele morreu na minha casa. Assim como a minha mãe também. Quando a minha mãe adoeceu, eu peguei ela e levei para a minha casa e a minha mãe morreu dentro da minha casa. Então, são coisas assim que na nossa vida, a gente não entende. A gente não entende.
00:13:58
P1 - Como que eles eram fisicamente?
R: O meu pai era moreno. O meu pai era morenão, igual um índio e tinha o cabelo liso. A minha mãe já era mais clara do que eu, cabelo todo ondulado. Minha mãe era bonita. A gente encarnava nela, a gente dizia: “Mamãe, não sei como a senhora olhou para o meu pai, moreno, feio, igual um índio.” Ela achava graça, “Ah, minha filha, a gente era obrigada a casar.” Os meus avós obrigaram ela a casar. A gente falava: “Então a senhora casou sem amor, não foi? “É, porque eu fiquei gestante e tive que casar.” E ela casou. Mas houve uma separação de muitos anos, depois de 12 filhos, meu irmão caçula com um ano de idade, eles se separaram.
00:14:52
P1 - Você nunca soube o porquê?
R: Ninguém nunca soube o porquê. Foi muito dolorido para nós, para mim, quando eles decidiram se separar mesmo, que ele pegou as coisas dele e: “Eu vou embora!”. E foi embora.
00:15:08
P1 - Você tinha quantos anos?
R: Eu já estava o quê? Eles se separaram, eu creio que foi em 80, 81, por aí. 1980 a 1981. Foi nessa data que eles se separaram.
00:15:24
P1 - Mas eles brigavam.
R: Na verdade, o meu pai era aquele homem, assim, violento, e ele maltratava a minha mãe. Então, isso, a minha mãe cansou, né? Minha mãe trabalhava muito na roça, fazia carvão, minha mãe ia para a praia com rede de pescar para poder trazer algo para os filhos menores, minha mãe subia em açaizeiro para apanhar açaí, ela mesma amassava o açaí. A gente assava peixe. É, assim, um passado que para ela foi muito dolorido, né? Mas as lembranças que a gente tem, para nós, foi uma vida boa.
00:16:12
P1 - Você falou que o seu pai era violento com a sua mãe. E com vocês, filhos?
R: Meu pai nunca me bateu. Meu pai nunca bateu em nenhuma de nós, das filhas. Nunca. Os filhos, porque eles eram bem menores, ou pequenos, ele nunca, mas com a minha mãe era muito violento.
00:16:32
P1 - Ele era brabo?
R: Era. Ignorante! Então, a gente até hoje, eles foram embora, partiram da terra, a gente nunca quis saber o motivo, né? A gente não sabe.
00:16:47
P1 - E sua mãe era amorosa?
R: Minha mãe era.
00:16:50
P1 - O que você lembra?
R: Ah, minha mãe era uma pessoa muito boa! Minha mãe era parteira. Minha mãe era a única parteira que tinha aqui, na época. E de noite, qualquer hora da noite, batiam lá em casa, vinham buscar ela para ir pegar o bebê, fazer parto de fulano. Não tinha hora, a minha mãe ia. Tem muitas, muitas, muitas crianças hoje, já velhas, né? Todos foram a minha mãe que fez o parto. A minha mãe trabalhava com muitas ervas, fazia a garrafada, fazia remédio caseiro, que na época era tão difícil, não tinha médico. Era a única parteira da comunidade, era ela. Não tinha hora para virem bater na porta de casa, a qualquer hora da noite, do dia, para ela fazer parto. E ela fez parto de muitas crianças. Muita mulher, muita mulher mesmo.
00:17:47
P1 - E onde que ela aprendia essas garrafadas?
R: Pois é, eu acho que foi um dom dela mesma. Ela fazia a garrafada, tinha mulher que não podia ter filhos, “Ah, não pode? Pera aí.” Ela ia fazer as garrafadas dela. E todo mundo conhecia a minha mãe. Ela puxava, “Fulano, torceu o pé na bola. Bora, levar para Dona Olinda.” E a mamãe puxava. Puxava a barriga, que na época não tinha médico. Aqui tinha, na sede do município, mas era muito raro. E todo mundo puxava a barriga, puxava o pé, tudo era a mamãe.
00:18:25
P1 - Ela não era de família tradicional indígena?
R: Não.
00:18:29
P1 - Nem quilombola?
R: Também não.
00:18:32
P1 - E de onde será que ela aprendeu esses saberes?
R: Ela aprendeu, ela sabia. E se você tivesse gestante, ela te olhasse, ela pegasse na tua barriga, “Olha, é uma menina.” Dificilmente a minha mãe errava. Dificilmente a minha mãe errava. Aí todo mundo sabia, “Olha, a Dona Olinda falou que é uma menina. Então é uma menina.”
00:18:55
P1 - Era uma espécie de curandeira?
R: Não sei te dizer o que a minha mãe tinha, esse dom dela, né? E a minha mãe era evangélica. Mas ela sabia. Ela puxava a barriga. Ela dizia: “Olha, teu filho está torto na tua barriga. É só uma puxada que vai botar ele para o lugar.” Aí a mulher já ficava várias vezes indo lá para ela ajeitar o neném, para encaixar direitinho. Se falar: “Quem era a Dona Olinda?". Talvez hoje, que hoje a comunidade do Itupanema cresceu muito, os antigos, a maioria já não estão mais, mas todo mundo sabia. Dizem: “Oh, hoje não tem mais Dona Olinda para puxar minha perna, puxar meu pé, não tem mais.” Mas a minha mãe era puxadeira. Chamavam ela de puxadeira.
00:19:48
P1 - E como você sentia que ela demonstrava amor por vocês?
R: Pelo que ela fazia, por nós, né? A minha mãe fazia de tudo para ajudar na alimentação dos filhos, para ver todo mundo bem, para que ninguém passasse nenhum tipo de necessidade, de nada. Então, a minha mãe era muito rígida conosco, não deixava a gente sair, tinha algumas festinhas por aí, “Não vai e acabou.” Entendeu? Então, nós nos criamos assim, todo mundo nessa rigidez dela. “Não vai, não vai!”. “Mãe queria ir ali.” “Não, e acabou!”. Ela era assim.
00:20:39
P1 - E como que você era como criança?
R: Muito chorona. A minha mãe dizia que eu chorava por tudo. Eu apanhava muito, porque eu era muito chorona. Eu creio que eu não era uma pessoa tão ruim. Comecei, para ajudar, comecei a trabalhar em casa de família também. Acho que em 78 eu já trabalhava em casa de família para ajudar. Aí eu tive que sair daqui para ir para Belém, trabalhar em Belém em casa de família e também estudar. E retornei definitivamente para cá em 81.
00:21:13
P1 - Quando você foi para Belém, foi para começar a estudar lá?
R: Trabalhar e estudar.
00:21:17
P1 - Aqui você estudou também?
R: Estudei, só que aqui tinha até a segunda série do Fundamental hoje, né? E eu tive que ir para Belém. A gente começava a estudar muito tarde. Hoje, não, uma criancinha com um ano já vai para a creche, três anos já está na creche, sete anos já está na escolinha. Não, não, na época, só entraram na escola com sete anos, oito anos de idade.
00:21:41
P1 - Você aprendeu a ler e escrever com quantos anos?
R: Eu creio que aprendi a ler com doze anos, por aí, porque era muito tarde a gente entrar na sala de aula. A minha primeira escolinha foi o Presidente Dutra, que era lá na praça, lá onde nós fomos, que eu mostrei aquela pracinha, era lá a escola Presidente Dutra. Hoje ela está construída para cá, uma escola grande, ensino médio, uma escola estadual. Hoje, muito é boa mesmo. Mas, antigamente não tinha oportunidade, por isso que muita gente não estudava, né, por esse motivo.
00:22:15
P1 - Neide, quando você era criança, você tinha algum sonho?
R: Não lembro.
00:22:20
P1 - Você queria ser alguma coisa? Aquela história, “Quando eu crescer, quero ser.”
R: Pois é. É uma coisa que eu não me recordo se eu tinha algum sonho, né? Não lembro. Eu sei que depois, em 1983, a minha avó morava aqui e eu já morava em Belém, trabalhava lá. Aí tinha um cartório aqui, de 1913, o cartório. Aí foi passando de cartorário para cartório. Quando foi em 79, o tabelião daqui morreu, e o cartório ficou vago. E eu morava em Belém. A minha avó mandou um telegrama: “Minha filha, o cartório está vago. Tem que fazer uma inscrição lá em Barcarena.” Sede, né? Que hoje a gente chama de sede. “Tu não quer?”. Eu disse: “Vó, não sei. Pra quê eu quero um cartório, minha avó? Por que eu quero um cartório aí em Itupanema?”. Aí foi, ela lá insistiu, insistiu, eu vim de Belém direto para Barcarena e me inscrevi, né? Aí no dia da prova, eu vim, fiz a prova, passou, acho que uma faixa de um ano, eu fui chamada no Fórum de Barcarena para assumir o cartório em Itupanema. Eu fiquei: “Meu Deus, o que eu vou fazer?”. Olha, peguei sem querer. “Pra quê que eu vou assumir um cartório lá?". Eu dizia assim: “No final do mundo?”. Porque a gente só chegava aqui de barco. Para vir de Belém pra cá, eram umas 05 horas de viagem, ou mais, de barquinho. Eu disse: “Não, eu não quero, vó.” Aí eu fui lá em Barcarena, a promotora, a doutora Roma Keiko, era uma japonesa, a juíza, ela me deu a portaria. Eu fiquei: “Meu Deus!”. Aí eu vim aqui ver o que era que tinha nesse cartório. Um bando de livro velho. Livros que a gente folheava, pessoas que nasceram em 1850, em 1900 e não sei o quê. Eu falei: “Meu Deus.” As letras, belíssimas, paleógrafo, parece que as letras eram desenhadas. Eu tive que assumir em 83. Aí eu tive que vir embora pra cá. Eu saí do cartório em 2018, agora. Eu saí porque chegaram os concursados, e com a nova lei só poderia ficar quem era o concursado. E a gente fez o concurso, mas ninguém passou. E em 2018 teve que entregar.
00:24:27
P1 - Antes da gente chegar no cartório, como que era pra você sair de casa, ir pra Belém, morar na casa dos outros?
R: A gente saía daqui de barco, tinha dois barcos. Era um barco que chamavam de Felina e Ana Lobato. Dois barcos que saíam daqui pra Belém. Aí nesse barco eles levavam fruta para vender, carvão, tudo para o Ver-o-Peso. E a gente ia neles. Às vezes sentada a noite inteira no lugarzinho, dividindo com carvão e fruta. Aí pegava essa marezona legal daqui pra Belém. Era muito arriscado, mas era a única maneira de a gente chegar em Belém. E a gente ia para Belém. Eu vinha aqui de seis em seis meses, porque não tinha como vir todo dia aqui. Tanto que, tinha a viagem uma vez na semana para Belém.
00:25:42
P1 - Quem decidiu que você ia para Belém estudar e trabalhar?
R: A minha mãe.
00:25:46
P1 - Você lembra desse dia?
R: Eu me lembro. Ela me entregou pra uma senhora, essa senhora vinha no interior procurar alguém pra ser babá da filha. E a minha mãe me entregou pra ela. Eu era bem jovem. Acho que foi em 1978 isso. E ela me levou.
00:26:08
P1 - Você queria?
R: Eu não aceitava ir pra casa de alguém que eu não conhecia, casa de estranho. E eu me lembro até hoje, o prédio era o edifício José Maria Marques em Belém. E lá eu fiquei como babá.
00:26:22
P1 - Você foi na marra?
R: Fiquei como babá durante dois anos na casa dela. Depois eu saí de lá e uma outra e ela já me entregou pra uma outra pessoa, pra trabalhar na casa de uma outra pessoa. Aí eu já estava acostumada a trabalhar na casa dos outros.
00:26:41
P1 - Mas você chegou pra falar pra sua mãe, “Não quero ir.”? Você brigou com a sua mãe?
R: Não tinha reclamação, “Tu vai e tu vai.” E a gente tinha que ir.
00:26:53
P1 - Você chorou?
R: Não conseguia. Todas as noites eu chorava. Durante o dia, porque eu trabalhava, tomava conta de um bebe, de uma menina de dois anos. Mas à noite aquele vazio era intenso. Não tinha como. E foi, fiquei por um ano lá e já fui acostumando. Aí já me acostumei.
00:27:14
P1 - Você tinha quantos anos?
R: Eu acho que eu estava com uma faixa de uns 14 anos.
00:27:19
P1 - Você conhecia Belém antes?
R: Não.
00:27:22
P1 - Como é que foi chegar numa cidade grande como Belém?
R: É isso que eu estou te falando, veio essa senhora...
00:27:27
P1 - Mas como é que foi a sensação de chegar lá?
R: Olha, foi uma novidade. Tu olhar no prédio, no décimo terceiro andar, tu olhar lá na janela do prédio, tu olhar, vê aquela cidade belíssima à noite, foi tudo novidade.
00:27:49
P1 - Mas não era tudo muito diferente?
R: Era. Sair daqui que não tinha nada e chegar numa cidade grande. Tudo diferente. Como falar assim: “Ah, é uma menina do mato. Olha, a babá da minha filha é uma menina do mato.” Isso para a gente era constrangedor. Ficava com vergonha, acanhada, mas...
00:28:12
P1 - Você tinha um quartinho?
R: Tinha um quarto de empregada. Um quarto de empregada. E as patroas antigamente eram muito rígidas, muito rígidas mesmo. Eu nunca cheguei a ser maltratada, mas eu cheguei a ver maltratarem outras pessoas que trabalhavam na mesma casa. Chegava o ponto da gente chorar, querer ir embora e não ter como. De ver o maltrato das patroas com outras meninas.
00:28:43
P1 - Essas patroas, elas tinham dinheiro?
R: Eram grã-finas, né. Uma delas era até advogada. Eu acho que ela já até morreu, essa advogada.
00:29:00
P1 - E você sabia cuidar de um neném?
R: Não. Eu fui aprender lá. Eu fui aprender lá, a cuidar de uma criança de dois anos. Tudo eu não podia. “Não pode fazer isso, não pode fazer aquilo. E não pode, não pode.” Era tudo ali nas regras.
00:29:20
P1 - Você tinha folga?
Não, não. Não tinha folga. E também o meu dinheiro, eu não recebia. Ela falava que mandava para a minha mãe. Quando eu cheguei aqui, eu vim saber que ela não mandava para a minha mãe. O que ela me dava eram roupas usadas dela, mandava diminuir, porque eu era bem magrinha. E eram essas roupas que a gente tinha.
00:29:45
P1 - Era roupa e comida?
R: Era roupa e comida. E eles diziam que mandava o dinheiro para a minha mãe, mas não mandava, não. E a gente trabalhava lá, além de se babar, a gente ajudava na casa, na limpeza da casa.
00:29:55
P1 - Você comia na mesa com eles?
Não.
00:30:00
P1 - Assistia TV?
R: Não. Nada disso. A gente comia na área de empregados, junto com os outros empregados. E era isso.
00:30:09
P1 - Você fez amizade?
R: A gente saía, porque quando eles saíam, tinha que levar a criança e a gente tinha que ir junto para tomar conta da criança. Não, amizade não tinha, amizade nenhuma, porque a gente descia para passear. Eu descia para passear com o bebê com uma outra senhora, ficava lá no pátio, embaixo, depois subia e pronto. Tinha medo do elevador, tinha medo de andar de elevador, mas tinha que ir de elevador, porque era o 15º andar, se eu não me engano.
00:30:43
P1 - Eu estou aqui imaginando que você saiu de Itupanema, de Barcarena, da beira do rio e foi para um prédio. Uma cidade cheia de carros.
R: Um prédio. Um prédio.
00:30:52
P1 - O que te dava medo?
R: Eu tinha medo, eu ficava imaginando: “Como eu vou sair daqui? Como é que eu vou embora daqui?”. Mas eu não tinha opção. Assim como a minha outra irmã mais velha também foi levada para trabalhar em Belém em casa de família. Foi eu e minha irmã. As outras não, ficaram aqui. Mas eu e minha irmã mais velha, nós tivemos que sair daqui para ir trabalhar em casa de família em Belém. Esse período todo que eu passei lá. Foi quando eu vim embora para assumir o cartório e foi quando eu conheci meu marido.
00:31:30
P1 - Mas lá você estudou também?
R: Estudei, pouco, mas estudei. Eu terminei o meu ensino médio lá em Belém. Mas assim, com muito esforço depois. Aí a gente foi trocando de casa, casa de família, foi trocando. Aí já trabalhei como diarista. Aí já melhorou, porque a gente já tinha mais tempo para estudar. Mas durante esse período como babá e trabalhava em casa de família, a gente não tinha oportunidade de estudar, porque elas não permitiam. Aí depois o tempo foi passando, já fui me acostumando na cidade grande, já fui fazendo amizade, a gente já foi tendo amizade, e daí a gente já saía, já trabalhava como, hoje a gente chama de diarista, mas não era diarista que a gente chamava. E passei a estudar. Aí foi quando eu concluí.
00:32:24
P1 - Quando você estava como diarista, você morava onde?
R: Na casa de amigas. A gente alugava a casa, três amigas e a gente morava.
00:32:35
P1 - Era melhor, né?
R: Era melhor. A gente saía para trabalhar, retornava, estudava. Aí foi melhorando a vida.
00:32:40
P1 - E aí você vinha passar o final de semana?
R: Vinha nos dias festivos aqui, que tinha a Festa da Nossa Senhora das Dores, que hoje é a padroeira daqui. Aí vinha barcos grandes de Belém, com o povo de Belém, a gente vinha junto para a festa. Amanhecia nas festas.
00:32:56
P1 - Como era a festa?
R: Nossa, era com aparelhagem grande. Na época tinha uma aparelhagem famosa que chamavam de Realengo. Essa aparelhagem vinha de Belém, no barcão também, era um navio grande que vinha. E a festa começava às seis horas da tarde e terminava no outro dia, às nove horas da manhã. E era muito bom.
00:33:15
P1 - O que você fazia?
R: A gente dançava muito. A minha mãe morava aqui, a minha avó. A gente aproveitava o que podia, porque depois que fosse embora, a vida mudava lá.
00:33:27
P1 - E você fazia o que com o seu dinheirinho?
R: Comprava roupa, ajudava a minha mãe, mandava para cá. A gente ia lá no Ver-o-Peso, tinha os barquinhos daqui para lá e a gente mandava. Eu mandava para a minha mãe, fazia a compra lá e mandava para a minha mãe. E a gente ajudava os menores que estavam aqui, os irmãos.
00:33:47
P1 - Enquanto você estava em Belém, a sua vontade era voltar?
R: Era. Tinha vontade de voltar, mas eu pensava que a gente ajudava a mamãe, com os menores, com os irmãos menores aqui. Aí isso, essa vontade de ajudar, fazia com que a gente permanecesse lá, permanecesse em Belém.
00:34:10
P1 - Lá você tinha alguma diversão? Você lembra de algum momento que era bom?
R: Não. A gente ia mais para a praça, Praça da República, Praça Batista Campo. Então a gente ia lanchar, tomar água de coco, mas não tinha muita amizade com diversões.
00:34:31
P1 - Nem namorado?
R: Nem namorado também. Meu namorado morava aqui. Fiquei noiva dele. Eu fiquei noiva dele nesse período…
00:34:43
P1 - Como é que vocês se conheceram?
R: Eu fiquei noiva em 79. Nós nos conhecemos desde criança aqui. Em 79, fiquei noiva dele. Ele aqui e eu lá. Ele se preparava para o casamento aqui, eu me preparava lá. Só que um mês antes do casamento, eu decidi que eu não queria me casar. “Não, não vou me casar.” Eu era nova, tinha uns 16 pra 17 anos. Disse: “Não, não vou me casar.” E eu fui-me embora para Belo Horizonte, sem ele saber.
00:35:19
P1 - Como assim?
R: Ele me jogou na justiça, eu paguei toda a despesa do casamento, de cartório, tudo. Eu fui responder na justiça.
00:35:29
P1 - Mas vocês se conheceram e ficaram namorando a distância?
R: Ficamos a distância. Eu namorava e me encontrava quando eu vinha aqui. Quando eu vinha aqui a gente se encontrava. De lá eu ia embora. E quando eu vinha de novo, a gente se encontrava. Ele não ia lá. A gente se conheceu na infância, desde menino.
00:35:45
P1 - Você gostava dele?
R: Eu gostava e não gostava. Se eu gostasse, eu tinha casado com ele.
00:35:55
P1 - Às vezes gostava, mas ainda estava cedo.
R: A família pressionando para casar, pressionando. Aí, em um mês eu disse: “Ah, agora eu não vou me casar. Pra que eu vou me casar? Estou tão jovem. Vou me casar para quê?”. Eu não tinha coragem de chegar aqui e falar para ele e a família dele ou para minha mãe que eu não queria me casar. E olha que eu já tinha tudo comprado, vestido de noiva, toda a festa estava pronta. Festa de interior, de casamento, antigamente, criava porco, criava galinha, criava pato, criava tudo. Eu disse: “Não. Eu vou embora.” E fui para Minas Gerais, sem a minha mãe saber, para Belo Horizonte. Ninguém sabia. Eu fui com a família para lá.
00:36:35
P1 - Você estava em Belém e achou uma família?
R: Tinha uma família que ia embora, eles iam visitar a parentela deles em Uberaba. E eu fui-me embora.
00:36:47
P1 - Foi como, de Belém para BH?
R: Aí nós fomos primeiro para Belo Horizonte, depois eles foram para Uberlândia.
00:36:56
P1 - De avião?
R: Não, eles foram de carro, essa família. Só que eles não sabiam que eu era noiva e nem sabiam o que eu estava fazendo. Fiquei um mês lá. Na véspera do casamento, eu desmanchei tudo. Não quis.
00:37:16
P1 - Você viu a salvação ali.
R: Eu vi a minha salvação. Eu não quis, não quis. Eu só mandei um telegrama desfazendo o casamento. Foi revoltante.
00:37:30
P1 - O que você falou no telegrama?
R: Eu falei no telegrama que eu estava desmanchando o casamento, que eu não queria mais me casar. Eu não queria mais me casar. Aí a confusão foi feita. Aí a família dele me jogou na justiça por causa das despesas que estavam prontas. E eu tive que pagar. Era muito dinheiro na época, mas eu paguei. Eu paguei e fui embora. Voltei para Belém, não quis ficar aqui não.
00:37:58
P1 - Você ficou quanto tempo em BH, Uberaba?
R: Em Uberaba eu fiquei só um mês. Aí eu respondi no fórum de Barcarena, né, que ele deu parte na polícia e foi para o fórum. Eu assumi a responsabilidade, eu paguei tudo o que eu tinha que pagar. E fiquei em Belém. Depois eu retornei.
00:38:22
P1 - Sua mãe ficou brava?
R: Oh, minha mãe queria me bater. Por isso que eu passei um bom tempo, passei quase um ano sem vir aqui, por causa desse negócio aí. Mas não era para casar. Aí já casei em 83, em 1983, quando eu conheci o meu marido, que faleceu ano passado.
00:38:46
P1 - Onde vocês se conheceram?
R: Nós nos conhecemos aqui, em Itupanema. Eu vim para o dia 02 de novembro, para a iluminação e eu conheci ele aqui dentro do cemitério. Aquele cemitério ali. Ele era amigo da minha irmã. Ele era maranhense. Eu cheguei e eu conheci ele lá. Minha irmã me apresentou ele lá. Aí a gente se encantou. Ele não era daqui, era maranhense. Ele estava em uma empresa já aqui. E ele morava em Belém. No final de semana a gente se encontrava em Belém. Aí casamos.
00:39:23
P1 - Como ele se chamava?
R: Chamava João Joel de Souza. Tivemos duas filhas.
00:39:29
P1 - Quando você se encontrou com ele, você se apaixonou, eu imagino. Você era virgem?
R: Era. Tinha 19 anos. Aí a gente casou, teve duas filhas e no ano passado ele nos deixou.
00:39:47
P1 - E o casamento, como é que foi?
R: Ah, foi uma vivência muito boa. Vivíamos há 42 anos juntos, marido e mulher. Claro, né, que todo casal tem os seus problemas, mas a gente viveu junto, nunca nos separamos, nunca. Hoje a minha filha mais velha tem 43 anos. Eu tenho uma com 38. Aí uma é enfermeira, a caçula, e a outra fez administração. Temos os nossos netos. Tivemos nossos netos. Tem um que está no Paraguai, faz medicina no Paraguai, tem 21 anos. Tem a outra que tem 22 que está aqui, é formada em técnico de enfermagem e está fazendo fisioterapia, daqui a dois anos ela se forma. Aí tem o outro, 16 anos, que trabalha na Dela Cruz, é filho do dono da Dela Cruz, uma barbearia aqui na vila. E tem dois pequenininhos, um de oito e um de quatro. São a minha alegria. Eles que preencheram a minha vida, que quando meu marido morreu, foi muito rápido, ele adoeceu na sexta, morreu na segunda, sem explicação. Foi um choque muito grande. Com três meses que ele morreu, minha mãe morreu. Hoje eu vivo um luto. Nós vivemos um luto que é difícil. Faz sete meses, mas é como se a gente vivesse ainda com ele dentro de casa. Foi um bom marido, um bom pai e um bom avô. E a nossa vida foi essa, aqui em Itupanema. Mas o meu passado, eu não esqueço da minha avó, que também trabalhava na roça. Se a minha avó estivesse viva, ela estaria com 112 anos. A minha avó trabalhava na roça, a gente ia com ela, criava muito pato, muita galinha. Quando ela vinha da roça, que a maré estava seca, ela botava todos os patinhos dentro do paneiro e a gente ia para a praia. Ela tirava a água dos poços, ficava só os camarõezinhos e soltava os patos lá. Minha avó era uma benção de Deus na nossa vida. Chamava de avó branca, porque ela era branquinha, era neta de portugueses. Ela, minha avó, meu avô também. E a nossa vida, antigamente, era uma vida muito boa aqui nessa comunidade. Vi o desenvolvimento dela desde o início. Aqui tinha duas ruas, a principal, à beira da praia, e uma que segue aqui. Não tinha mais nada aqui.
00:42:46
P1 - Tinha hospital?
R: Não, não tinha nada. O único hospital que tinha era lá em Barcarena 7. A gente tinha que ir a pé daqui. Hoje é Porto da Balsa, mas era São Francisco. A gente ia a pé daqui, por um caminhozinho, até chegar lá no São Francisco, para pegar uma canoinha de remo para chegar lá na sede do município que hoje é Barcarena, que chama de Barcarena 7. Só lá que tinha hospital. Não tinha hospital em outro canto. Adoecia aqui, ou ia para Belém, passava 05, 06 horas. Isso porque, quando a maré chegava lá em frente ao Belém, se a maré estivesse muito braba, tinha que esperar a maré acalmar para poder atravessar, porque os barcos eram pequenos. Então era uma dificuldade de saúde aqui. Hoje, não. “Ah, fulano morreu disso.” A gente sabe do que morreu. Antigamente, fulano morreu, “O que foi a causa da morte?”. “Natural.” “Ah, fulano estava com diarreia.” “Foi natural.” Fulano tinha câncer e ninguém sabia. “É natural.” Se você pegar o livro de óbitos de 80 para trás, todo mundo morreu com morte natural, ninguém tinha uma definição, um laudo, porque não tinha como ter.
00:44:06
P1 - Neide, quando você veio trabalhar no cartório, foi quando você casou com o João ou foi antes ou depois?
R: Foi depois. Foi em 83. Eu assumi o cartório dia 18 de agosto de 83 e eu conheci ele dia 02 de novembro de 83, meses depois. Tudo assim no mesmo ano.
00:44:35
P1 - E vocês se conheceram e casaram em quanto tempo?
R: Nós nos conhecemos, casamos em janeiro.
00:44:40
P1 - De novembro para janeiro?
R: Foi. Em janeiro nos casamos.
00:44:47
P1 - Contou para a mãe? “Vou casar. Agora é verdade.”
R: Nem contei, a gente casou em Belém. Nem contei.
00:44:52
P1 - Casou só no civil?
R: Só no civil.
00:44:54
P1 - Tinha certeza?
R: Tinha certeza.
00:44:58
P1 - Ele trabalhava com o quê?
R: Ele era topógrafo. Ele trabalhava aqui na Albras. Como topógrafo.
00:45:09
P1 - Ele ficou na Albras por muito tempo?
R: Ficou. Trabalhou muitos anos na Albras, muitos anos mesmo.
00:45:11
P1 - Ele gostava?
R: Era a profissão dele, né? Gostava. Aí depois, em 2008, ele saiu da Albras, aí viajava muito para fora, Maranhão, Bahia, Tocantins, Canaã dos Carajás, Parauapebas. Viajava muito. Ele já veio parar mesmo de viajar, eu acho, que em 2014, 2015, foi que ele já aquietou aqui, já não foi mais.
00:45:42
P1 - E vocês tiveram filhos rápido?
R: A minha filha nasceu em 2005.
00:45:50
P1 - Ah, então vocês se conheceram em 83?
R: Em 83. Não, a minha primeira filha nasceu em 85.
00:45:59
P1 - Pouquinho depois. E como é que foi esse começo de vida de vocês dois? Passavam dificuldades ou já estavam mais tranquilos?
R: Eu já trabalhava, né? Ele trabalhava também, já foi tranquilo. Moramos numa casa alugada. Em 1990 já compramos a nossa própria casa. E aí vivo até hoje no mesmo local onde nós compramos, é hoje a minha casa.
00:46:24
P1 - Como é que era Barcarena nessa época, antes da chegada das empresas? Porque eles chegaram em 95, né?
R: Em 95. Os prefeitos, na época, não olhavam pra nós, os olhos só eram lá em Barcarena, a sede. Tanto que nós aqui, a gente não tinha nada, não tinha nada. Vila do Conde, a gente chamava de Vila, né? Vila do Conde, até hoje se chama. Era mais desenvolvida do que aqui, um pouco. Foi em 85 que se abriu uma estrada e começou a entrar os ônibus, que a gente já saía daqui de ônibus, que na época era… deixa eu ver se eu lembro o nome da empresa de ônibus, (teve um corte na gravação) acorda no momento, que a gente já saía daqui para Barcarena de ônibus. Era uma estrada que varava quase pertinho do portão, dali do elevado da Hidros, seguia aqui direto e a saída dela é quase no elevado da Hidros hoje. Era lá. Aí já foi melhorando, assim, porque a gente já saía de carro daqui. Quando eu tive a primeira filha, eu senti dor aqui, aí já tinha o porto da Balsa, tinha uma rampa que atravessava, eu senti dor de madrugada e tive que ir pra Barcarena pra ter bebê lá no hospital. E chegou lá na rampa, a Balsa estava do outro lado. Foi um desespero! Eu já estava, bem dizer, tendo um bebê dentro do carro. Aí a Balsa atravessou. Quando eu cheguei lá no hospital, foi só chegar pra ter. Tive normal. Minha segunda não, que já teve complicação, já foi cesárea. Também encerrou.
00:48:13
P1 - Você não pensou na sua mãe como parteira?
R: Minha mãe nunca quis pegar nenhum filho das filhas. Ela não tinha coragem. Ela dizia: “Eu não tenho coragem de pegar nenhum filho de nenhuma filha.” E já pegou da neta. A minha sobrinha, deu dor nela. “Rápido!”. Eu entrei pra perguntar se ela estava com dor. Ela: “Me ajuda, me ajuda.” Quando eu vi o bebê nascendo, eu gritei: “Minha mãe, corre!”. Minha mãe com a mão suja de açaí, pegou meu sobrinho. Foi o único que ela pegou, da neta, foi o bisneto dela, já. Aí foi o último também. Depois minha mãe teve…
00:48:54
P1 - Como é que se chamam suas filhas?
R: Uma é Josilene, a outra é Josiane. Mas não fala esse nome, que elas não gostam. É Josi e Ana. Hoje a minha caçula, que é a minha enfermeira, trabalha na UPA. Ela está de plantão hoje, ela é enfermeira. Mas ela não gosta que ninguém chame de Josiane, ou é Aninha, ou é Josi. Como enfermeira é Josi.
00:49:16
P1 - E você escolheu esses dois nomes?
R: Eu escolhi. Eu não sei, não sei nem por onde. Acho que porque o nome do pai era João Jorge, as primeiras letras. Foi esse nome. Elas dizem: “Mãe, não sei onde tu achou esse nome.” Eu disse: “Eu achei.” E é isso.
00:49:37
P1 - Neide, e esse trabalho aí no cartório, como que era? O que você fazia lá?
R: Logo no início, era só certidão de nascimento, casamento e óbito. A gente fazia recibo, aí depois a gente entrou no tribunal para requerer, pra fazer autenticação, reconhecimento e outros documentos. O cartório já foi um cartório de notas, de título só tem Barcarena mesmo. A gente já podia tirar certidão de nascimento, casamento, a gente já fazia escritura, procurações, fazia autenticação, reconhecimento.
00:50:10
P1 - E você gostava?
R: Era uma coisa que entrava muito dinheiro. Muito dinheiro. Aí a nossa vida deu assim, uma equilibrada legal. E eu sempre trabalhei no centro comunitário, desde 1985 quando foi fundado, através do projeto MOBRAL, pela UBRAS. Foi fundado no centro comunitário em 1985, dia 01 de junho. E aí eu já entrei como secretária voluntária. Aí de lá pra cá, eu nunca mais saí. Sempre trabalhei como voluntária. Fui presidente, fui vice, fui tesoureira, fui secretária, fui de tudo. Aí em 2016, eu disse que eu não queria mais, porque é assim, a gente é cobrado, como se a gente fosse vereador da comunidade. A cobrança não vai lá no vereador, a cobrança vem em cima de nós, como representantes da comunidade. Aí eu disse que eu não queria mais, entreguei e saí. Todo o trabalho que nós tínhamos feito, não sei se vocês repararam, tem uma ruína lá na beira da praia, era lá o centro comunitário. E depois que eu saí, abandonaram tudo. Aí em 2021, o povo me procurou de novo, porque havia uma necessidade de ter um representante, eu disse que eu não queria. Aí foi, fizeram uma reunião aqui nesse barracão. Aqui nós adquirimos em 2008, que nós fazíamos o festival do cupuaçu, não porque tivesse grande quantidade de cupuaçu, mas a gente lembrava do passado em que muitas famílias sustentavam as suas famílias com a colheita do cupuaçu. E foi fundado aqui, colocamos o Festival do Cupuaçu, e a gente fazia na rua. E em 2018, através da minha pessoa como presidente, a gente adquiriu esse terreno aqui, doaram para nós, e aqui a gente fazia o festival. Em 2021 fizeram uma reunião aqui, onde eu estava presente, e novamente, por aclamação, o povo todo aclamou que eu voltasse. Eu falei: “Então eu vou voltar provisório. Provisório. Depois que eu organizar a documentação, eu conseguir construir uma sede aqui, eu estou fora.” Mas não foi isso que aconteceu. Aí, com muita luta, eu consegui a empresa Hidrovias Do Brasil, a do Porto, aqui do lado, construiu o prédio para nós e mobiliou. Aí quando eu quis sair, o povo: “Não, não. Vai ficar.” Aí, no dia da eleição, ninguém, ninguém, ninguém se manifestou. Aí eu fiquei de novo. Tenho mais três anos aí pela frente.
00:52:51
P1 - Você tinha um trabalho bem forte com a comunidade no cartório, você acabava conhecendo todo mundo.
R: Esse cartório me ajudou muito, por quê? Eu tinha dois caixas no centro comunitário, um caixa que entrava o dinheiro de associados, e um caixa meu, que eu gastava dinheiro do cartório dentro do centro comunitário. Quando eu prestava conta, eu deixava o meu de lado, porque era dinheiro do cartório, não tinha porquê prestar conta com ninguém. O dinheiro era meu. Eu prestava conta com o dinheiro que entrava de associados da comunidade. Aí esse outro, não, “Esse daí eu não vou prestar conta. Vocês vão me pagar?”. Não. Tanto que, quando eu saí, o centro me devia mais de 38 mil que eu gastava na comunidade. Por quê? As pessoas iam lá comigo, queriam uma receita, eu pegava o dinheiro do cartório, queria uma cesta básica, eu pegava o dinheiro do cartório. “Olha, nós estamos precisando de tal coisa ali.” Eu pegava o dinheiro do cartório. “Nós vamos fazer um mutirão, mutirão no cemitério para limpar. Vamos fazer uma feijoada.” Eu pegava o dinheiro do cartório. Entendeu? Aí, eu ia gastando, eu ia gastando. Então, eu digo assim, que o cartório, ele foi fundamental no meu trabalho dentro da comunidade, porque o cartório me dava muito dinheiro, e o que eu tirava não me fazia falta.
00:54:10
P1 - Mas esse dinheiro era do cartório?
R: Era meu. Era meu, porque eu era dona do cartório.
00:54:14
P1 - Então, você deixava separadinho do seu dinheiro.
R: Eu tinha um caixa 2. As meninas diziam que eu tinha um caixa 3. “Tu tem um caixa 3.” As minhas filhas ficavam indignadas. “Mãe, não faz mal.” Eu tinha um caixa 3. Tinha um caixa 1, um caixa 2 e um caixa 3. O caixa 3 era o que eu gastava na comunidade. Entendeu? Mas nunca me fez falta. É uma coisa que eu gosto de trabalhar. Olha, hoje eu trabalho aqui, eu sou pensionista, só isso, não tenho outro dinheiro de canto nenhum. E a Albras, a Alunorte, hoje é a Hidros Alunorte, que é minha parceira. Eles ajudam, assim, a gente de uma forma tal. Se a prefeitura não vem limpar isso aqui, são eles que vão vir com voluntários. A Hidrovias, Hidros do Brasil, que é a empresa aqui do Porto, também, que me ajuda. Água de São Francisco, de vez em quando eles estão aqui, mas não ajudam, muita coisa. O que eles estão fazendo é acabando com as nossas ruas. Porque por anos e anos nós esperávamos que fosse asfaltado, quando veio asfalto, Água de São Francisco está acabando com as nossas ruas, todinhas, colocando esgoto, rede de esgoto. E os sócios que pagam são poucos. A gente tem uma faixa de 60 sócios, o kit que é pago, R$ 5,00 por mês. Aí tem mês que eu tenho que pagar do meu dinheiro à internet, à luz daqui, porque o dinheiro não dá. E tem uma coisa, é que eu gosto de trabalhar, eu gosto de trabalhar com o povo. Eu aprendi a ouvir mais e falar menos. Aprendi a concordar com o que está errado, porque eu não posso discutir. Se você chegar comigo e eu falar que é pau, você falar que é pedra, eu tenho que concordar contigo que é pedra. Porque não adianta a gente brigar com o povo, o teu nome vai para as mídias sociais te acabando, entendeu? Então a gente tem que ter um psicológico muito centrado para trabalhar com o povo.
00:56:15
P1 - Eu estou aqui pensando que o João veio do Maranhão, e eu acho que você viu esse retrato em Barcarena com outras pessoas que vieram de outros lugares, não é?
R: Eu fui ao Maranhão conhecer o lugar dele, que era o Itapera. Eu fiquei assim, estarrecida com o que eu vi, a pobreza de onde era o lugar dele. As pessoas morando em casinhas de palha. O irmão dele, que até hoje mora aqui, eu trouxe para morar comigo, deficiente de nascença, arrastando no chão, não tinha cadeira de roda, era ajudado por uma igreja católica lá. Eu fiquei assim, sabe? “Meu Deus!”. E ele saiu de lá, menino, ele saiu de lá com 5 anos, a mãe dele morreu. O pai dele deu eles, todos, os cinco filhos ele deu. E ele veio parar em Belém, trabalhar em Belém e se criou, bem dizer, aqui em Belém. E nós fomos lá, voltamos no lugar dele. Aí eu comparei o que ele vivia lá, uma comunidade lá e a nossa comunidade. A nossa comunidade é rica perto do que eu vi lá. Trouxe o irmão dele para cá, hoje ele morreu, mas o irmão dele está comigo. Por quê? Para onde é que eu vou mandar esse senhor? Deficiente, depende de nós. Eu não tenho pra onde mandar, não. Ele chorou muito, porque ele achava que o irmão dele morreu, a gente ia mandá-lo embora. Eu disse: “Não, tu vai ficar aqui até quando Deus quiser. Nós vamos cuidar de ti. Ele morreu, mas tem as sobrinhas, as meninas são tuas sobrinhas. Tu vai ficar com nós.” Então, eu vejo assim, a gente se queixa, tem um lixão bem ali que tem gente daqui que ainda trabalha no lixão. Eu fiquei perplexa com uma senhora, tentei ajudar ela em aposentadoria. Eu perguntei: “Onde é que a senhora trabalha?”. “No lixão.” Eu me assustei, “No lixão?”. Ela disse: “É, no lixão. Ali eu vou todo dia. Saio às 5h30 da manhã e volto às 06h da tarde.” Aí eu perguntei: “O que a senhora faz no lixão?”. “Catando, separando o lixo.” Sinceramente, eu fiquei estarrecida, porque eu achava que esse lixão não trabalhava mais ninguém lá, mas trabalha uma comunidade lá. Entendeu? Então, eu digo assim, a gente vive aqui na comunidade de Ipanema, eu tenho hoje uma casa, um prédio grande, onde se dividem três casas, na parte de cima mora eu, uma filha, embaixo mora outra filha. E o pessoal olha pra gente e fala: “Ah, você vive de boa na frente da praia.” Mas eu já ralei. E hoje eu olho para as pessoas que precisam. Aí o que eu tenho, eu consigo dividir, eu consigo ajudar.
00:59:05
P1 - Neide, mas eu estava até pensando que vieram muitas pessoas para Barcarena, não vieram?
R: Nossa! Hoje em Itupanema já não moram os que realmente são da terra. São poucos os que realmente eram da terra. A maior parte do povo já é de fora. Itupanema, eu posso te dizer que era dessa rua aqui pra cá. Dessa rua pra lá já foi o povo de fora que vieram e tomaram posse de toda a terra. Minha mãe era dona de mais de 15 hectares de terra. Quando foi pra minha mãe aposentar, eu fui requerer o documento de terra dela pra provar que ela era lavradora, que eu cheguei no INCRA em Belém, eu fui surpreendida com o título de posse que eles me entregaram, minha mãe dona de 15 hectares de terra. Aí eu pergunto: onde é que tá essa terra? Foi tudo isso aqui que invadiram.
01:00:12
P1 - E essas pessoas vieram por quê?
R: Tem gente que veio do Maranhão, tem gente que veio de outras cidades aí de fora e se apossaram. Aí foram vendendo e foram vendendo. Talvez as pessoas que moram hoje aqui não são as mesmas que ocuparam nos anos 80, 86, 88 pra cá.
01:00:31
P1 - Mas a Barcarena era uma cidade de promessas assim?
R: Não, tudo começou com a vinda da Albras. Aí quando veio Albras pra cá, veio trazendo muitas empresas para trabalhar e aí começou. O povo de fora começou a vir atrás de trabalho, não tinha onde morar, tinha terra devoluta, aí o pessoal começou a ocupar. E daí foi desenvolvendo.
01:01:00
P1 - Então vieram muitas pessoas?
R: Muita gente.
01:01:02
P1 - E começou a desenvolver também?
R: Também, muita gente. Tudo se deu por causa da vinda da Albras e do implante de Albras. Quando Alunorte também foi implantada, primeiro foi Albras, depois Alunorte, a Hidros Alunorte, aí que a coisa cresceu mesmo. Aí foi vindo muitas indústrias, indústrias, indústrias e foi crescendo. Aí começou um desenvolvimento, assim, desordenado, que Barcarena não esperava. Hoje não, ela já está mais estruturada, mas antes a saúde foi um caos aqui. Tudo era um caos pra nós, saúde, segurança. Hoje não, já está mais estruturado.
01:01:45
P1 - Me conta um pouco desse processo pra eu conhecer então.
R: Olha, quando Albras chegou pra cá, o meu pai trabalhou ainda na Albras como vigilante. Não pra ela diretamente, mas pra terceirizada que veio. A maioria das pessoas trabalhavam como ajudante nas terceirizadas, não diretamente na Albras, nas terceirizadas. E assim foi que as famílias começaram a se estruturar. Aí começaram a abandonar a roça, aí começaram as ocupações, onde eles faziam roça, já foi começando a ser ocupado. E não tinha mais onde trabalhar com roça. Não tinha, só era a pescaria. Aí quando meu pai saía da empresa, ele ia pescar, dava muito peixe, muito peixe mesmo, muito camarão, eles pegavam. E era só ficar desempregado, a solução era a pescaria, porque a roça, já não tinha mais lugar pra se plantar de nada. E esse desenvolvimento assim, eu te digo que foi bom, porque as minhas filhas, por exemplo, já não tiveram a vida que eu tive, elas já tiveram a oportunidade de estudar em bons colégios, elas estudavam em colégios. Foi a vinda do Anglo-Americano, que na época era o colégio Anglo-americano. Então elas tiveram a oportunidade de estudar em colégio particular, porque eu já tinha mais condições de pagar. Tinha o Eduardo Angelim, quem não tinha condição de pagar, estudava no Eduardo Angelim, que era uma escola boa também, é até hoje. E daí começou um desenvolvimento muito lento pra nós aqui em Itupanema, assim, esse asfalto, acho que tem uma faixa de uns três anos que o prefeito mandou asfaltar, que a gente ficou muito feliz quando a gente viu o asfalto. E hoje, a Águas de São Francisco, estão colocando a rede de esgoto, que eu achava que nunca a gente ia ter, nunca. Água encanada nós temos desde 1985, que foi projeto nosso. Eu era, na época da comunidade, da diretoria do Centro Comunitário. Foi projeto nosso. É bem aqui o sistema. A gente já tinha água encanada e agora o sistema de esgoto, que pra nós foi novidade. E está sendo muito difícil a gente convencer a comunidade que é uma coisa que vai nos beneficiar. A comunidade não aceita que eles tenham que pagar a rede de esgoto. Eles não aceitam isso. É como a gente explica, “Gente, é um benefício pra nós. Vai valorizar sua casa, vai valorizar a nossa comunidade.” Nós temos um sistema de esgoto. Eu creio que é o primeiro município que tenha um sistema de esgoto, vai ser o nosso, Barcarena. Que é toda a Barca Arena. E as pessoas não querem aceitar isso.
01:04:55
P1 - Eu fico aqui imaginando que começaram a vir tantas pessoas, empresas, funcionários, e aí começou também a organizar a cidade. Então, até tudo entrar no eixo, deve ter sido difícil.
R: Muito difícil. A luz elétrica chegou, a Celpa colocando poste. Nós tivemos uma boa energia em 1986, logo após, a Alunorte, Albras, já estava bem desenvolvida e veio à luz. Foi muito bom para o comércio, para nós mesmos. E de lá pra cá, começou um bom desenvolvimento. Mas tem gente que acha que ainda não. Eu observo muito as pessoas no grupo da comunidade reclamando por tudo. Aí eu fico imaginando, eu nasci aqui, eu vi o desenvolvimento passo a passo, muito devagar. Aí as pessoas saem lá da sua cidade, aí chegam aqui, chamam de fim de mundo, que aqui tudo é muito ruim. Aí imagino: “Para que saem da sua cidade?”. Eu não falo isso pra ninguém, porque a gente vai levar chacotada. Mas eu fico imaginando. Aqui nós acompanhamos o desenvolvimento passo a passo.
01:06:16
P1 - O que te trouxe de bom?
R: Para nós hoje? Eu, sinceramente, pelo que eu vi o desenvolvimento, hoje a gente vive bem. Claro, evidente, se a gente quer comprar uma pupunha, um bacuri, um pique, qualquer fruta, a gente tem que comprar, porque hoje a única coisa que tem em quantidade aqui é a manga. Quando dá manga, vira lama debaixo da mangueira. Mas outras frutas, aqui não dá mais. Parece assim, que a pupunheira, por exemplo, ela floresce, mas cai toda a flor, não dá fruto. Açaizeiro, ele tá bonito, ele sai o cacho lá, sai a flor, cai tudinho, não dá fruto. Então, claro e evidente, é a poluição. É a poluição. Mas já foram tempos bons. A única coisa que a gente estranha é isso. Se a gente quer comer. Banana, o nosso quintal era cheio de bananeira, meu pai cortava a bananeira, pendurava o cacho, amarelava, o menino ia lá no tirar a banana no cacho. Hoje não tem isso, se você não comprar, você não come. A nossa casa era aqui nessa rua, aqui de trás, e era de palha, tinha uma bananeira no lado, que ela deu banana, e o cacho cresceu, ficou pra dentro de casa e amarelou no pé, dentro de casa. Não tinha trabalho nenhum, tirar banana dentro de casa, no pé. Então, era farto. Foram momentos bons.
01:08:01
P1 - Mexeu com a cidade, né? Totalmente.
R: Totalmente.
01:08:08
P1 - Quando é que começaram esses projetos? Quando é que a senhora começou a fazer essas parcerias?
R: Olha, essas parcerias vêm desde 2000. Desde 2000. Aliás, desde 1985, quando eu tinha o projeto Mobral, que foi um projeto da Albrás, que não tinha Alunorte, não tinha Hidro. Da Albrás, o projeto Mobral foi o que fundou o Centro Comunitário, que nós fomos tomar conhecimento do que era Centro Comunitário. E a Albrás, ela trouxe muitos projetos bons para nossa comunidade, como projetos de costura, cooperativa, criação de peixe e criação de frango. Isso tudo foi um passado dos primeiros que hoje não existem mais. Isso foi na década de 89 até 95, por aí. E de lá já vieram outras empresas, né? Que trabalhavam para eles lá. E a gente começou uma parceria. E a parceria maior que eu tive mesmo, onde a gente adquiriu esse terreno, foi a Unitapajós, que na época era Terfron o nome da empresa, que o gerente geral da empresa, o Kleber Menezes, até hoje ele é nosso amigo, pena que ele para mais nos Estados Unidos do que aqui. Mas assim mesmo ele não perde meu contato e nem eu o dele, quando eu preciso de algo, eu ligo. Ele me chama de Neidinha, “Neidinha, eu tô nos Estados Unidos, vim ver minha neta. Diga lá.” Entendeu? O que a gente precisar aqui, ele tá pronto pra nos ajudar.
01:09:52
P1 - De onde que ele é?
R: Ele é de Fortaleza, mas ele tem muito dinheiro, vive mais nos Estados Unidos. Então foi ele que nos doou esse terreno aqui, na época foi 40 mil. Eu sei porque eu tenho uma cópia até hoje desse cheque que ele pagou, que era o dono. E ele fez muita coisa, ele ajudou muito nós.
01:10:15
P1 - Qual empresa?
R: Era Terfron. Agora ele não tem empresa nenhuma mais. Entendeu? Mas ele continua nos ajudando sempre que a gente precisa. Às vezes eu quero fazer uma festa com criança, eu mando ofício, faço ofício e mando PDF pra ele e ele prontamente está pronto para nos ajudar. Manda o pix, a gente compra, bate foto de tudo que é aquilo que a gente fez e eu envio pra ele, para mostrar o que a gente realizou. Porque ele nem vem mais aqui. Vem pouco. Quando ele vem aqui, ele me liga, “Olha, eu tô indo aí rapidinho. Só passo aí dou um abraço e vou embora.” Mas é amigo. Aí hoje a Hidrovias do Brasil também nos ajudou na construção e sempre está nos apoiando também. E a Hidro Alunorte que é parceira de anos. Dia 2 de agosto nós vamos fazer o segundo Fashion Cultural aqui.
01:11:09
P1 - O que é esse evento?
R: O Fashion Cultural é onde a gente faz um evento que reúne todos artesãos, gastronomia, a parte cultural daqui da nossa comunidade e faz uma festa para apresentar. Começa às 05 horas, vai até às 11 horas da noite. É como se fosse uma quermesse. Entendeu? A gente apresenta tudo aqui.
01:11:31
P1 - E isso é fruto de uma parceria?
R: Com a Hydro Alunorte, parceria.
01:11:37
P1 - Me fala dos projetos que você tem com eles.
R: A gente tem a parceria dos voluntariados que estão sempre conosco. Eles que vão limpar aqui tudo. A gente precisa de uma parte elétrica, “Olha, eu não tenho condições. Dá pra vocês virem?”. Eles vêm, os voluntários. Então são as parcerias que a gente tem com eles. E isso. Agora vai começar um curso, que já é uma parceria com um vereador. Não gosto muito de falar nisso, porque é o mínimo do mínimo. Eu não gosto de falar em parte política. Eu falo mais da empresa, porque eles estão sempre com a gente.
01:12:16
P1 - Você já foi impactada, já foi beneficiada por algum desses projetos com a Alunorte nesses 30 anos?
R: Mas comunidade? Sim. O Centro Comunitário e muitas coisas. Muitos cursos que eles têm patrocinado pra nós. Só é assim, as empresas a gente tem que pedir três meses antes. Manda o ofício e tu só vai receber a resposta três, quatro meses depois, porque tem um processo todo e demora, realmente. Aí eu já entendo. Mas os meus parceiros mesmo hoje são a Hydro Alunorte e a Hidrovias do Brasil, que eu posso te falar que eles são parceiros que não falham.
01:13:03
P1 - Pra você que é da comunidade, das primeiras gerações, como é que você enxerga essas parcerias? Por que elas são boas? Por que elas ajudam as comunidades? Como é que foi feito esse trabalho?
R: Eu acho que é um dever. É um dever deles. Eles vieram pra nossa terra, Barcarena, e eles desfrutam. E é tão pouco que eles fazem ainda para nós, pela poluição que eles nos causam. É tão pouco, é muito pouco o que eles fazem pra nós. Eu não posso falar se a Hydro Alunorte veio de longe, né? Eu não sei se é realmente da Noruega de onde ela veio. E tá implantada aqui e o que ela faz é pouco. Uma coisa que é muito importante, que nós temos, a Hydro Alunorte, a maioria da poluição do ar vai pra lá, por causa do vento. O nosso vento não vem de lá pra cá, ele vai daqui pra lá. Então é tudo Vila do Conde. E já a Hidrovias do Brasil, nós recebemos, eles embarcam soja, grãos, soja e milho, Deus nos livre, no embarque de soja e de milho a população se coça toda, porque é uma poeira de pó de milho. Aí tu já viu. A minha casa é no segundo andar, se eu deixar as janelas abertas à noite, de manhã tu faz isso aqui na mesa, só é pó de milho e soja. Então nós respiramos esse pó. Nós respiramos. Ela indenizou uma parte do povo de lá, porque o povo já não aguentava mais. O pátio do povo amanhecia com partículas de fuligem de milho e o povo não aguentava mais. Aí entraram no Ministério Público, eles foram obrigados a indenizar para formar um cinturão verde. Aqui da parte da praça pra lá, eles indenizaram. Mas infelizmente o vento é nosso inimigo, quando eles estão carregando os navios ou descarregando, aquela poluição vem tudo pra nós. Então, o que eles fazem perto do que eles nos prejudicam é pouco. É pouco. É a parte social, “Ah, porque é uma parte social.” Beleza, mas é pouco demais. Poderiam fazer mais.
01:15:38
P1 - Mas eu imagino que esse é o trabalho de vocês, de lutarem pelas coisas, falarem pra eles.
R: A gente se reúne muito, a gente fala. Tem uma outra presidente aqui, que ela vai no pau, ela briga e pinta os canais. Eu não sou. Entendeu? Ou a gente conversa ou a gente não conversa. Olha, eu não tenho muito contato com o prefeito, não tenho. Quando têm a época de eleição, isso aí é horrível. Não gosto de me meter nesse negócio aí.
01:16:10
P1 - O que você gosta, então?
R: Eu gosto mais de cobrar das empresas, porque as empresas, todo esse imposto vai pra lá e nós não ficamos com nada aqui, nada. Então a gente cobra e o pouco que eles dão, já nos ajudam. Não me convence, mas nos ajuda. E eu procuro sempre cativar eles, ter eles do meu lado.
01:16:34
P1 - Me fala da importância do que você aprendeu nesses anos sobre ir lá e lutar pelo que é de vocês.
R: Olha, é uma cobrança que eu tenho com eles. Com todos eles eu tenho uma conversa muito saudável, sem brigas, mas um questionamento de cobrança. E é aquilo que a comunidade cobra. Muitas vezes a comunidade cobra, “Ah, porque eu não tenho oportunidade de trabalhar na Hydro, na Albrás, na Hidrovias do Brasil.” Mas se eu não me qualificar, eu não vou ter essa oportunidade. Eu digo: “Hoje eu tenho 62 anos, eu não tenho mais porque me qualificar.” “Ah, mas a vida não terminou para mim”. Eu sei que não terminou. Eu já trabalhei muito para trás. Então, hoje eu tenho do que sobreviver, mas o meu neto precisa se qualificar, para ele entrar numa empresa dessa, ele tem que estudar. E hoje tem oportunidade. Você abre hoje um site, você vê o Qualifica Pará, a prefeitura dando oportunidade no Senai, no Senac, em toda parte para se qualificar. Mas aí ninguém quer. Então não vão entrar nunca. E daqui para frente você tem que se qualificar, tem que estudar. “Ah, mas eu terminei meu ensino médio.” Foi a primeira fase da tua vida, foi terminar o ensino médio, você tem que estudar, vem à faculdade, “Ah, eu estudo quatro anos e não tenho oportunidade.” Então tem alguma coisa errada aí comigo, contigo, tem alguma coisa errada, porque se eu me qualifico, eu vou correr atrás, eu não fico esperando dentro da minha casa. Hoje aqui na nossa comunidade a gente tem uma preocupação muito grande, porque tem um outro mercado que está ganhando esses jovens, é um mercado fácil, é um mercado de drogas. Você vê meninas se prostituindo, você vê garotos jogados, entendeu? E isso dói muito assim no coração. Porque? Eu tenho falado: “O que a gente pode fazer por um jovem desse? A gente tem que ir na família? Tem que procurar o pai, a mãe?”. Tem que ir lá dentro da família, mas nem toda a família aceita que faça isso. E assim esse mercado cresce, o mercado do mal cresce. E a gente tem que ter muito cuidado com os nossos. Olha, eu sou da Igreja do Evangelho Quadrangular, a gente faz muitos trabalhos com jovens. O meu genro, ele é pastor junto com a minha filha. A gente faz muitos trabalhos dentro da igreja, mas tu não consegue aguentar, os jovens lá, eles não ficam, eles não ficam. A gente tenta fazer um trabalho com os pais, mas os pais não ajudam. Aí fica difícil. Aí a gente parte o quê? Para o conselho, porque o menino é de menor. Aí a gente já vai partir para a violência, porque quando a gente parte para o conselho, geralmente o conselho já chega lá com a polícia. E não é esse o caminho, eu creio.
01:20:08
P1 - Aqui na comunidade, quais são os projetos que vocês têm feito ultimamente?
R: Olha, ultimamente com jovens a gente não tem nenhum projeto. Agora que nós queremos entrar com um projeto ambiental com jovens. Vai ser uma luta, principalmente porque a escola está de férias, a gente vai ter que ir de casa em casa para ver se a gente consegue, porque a gente anunciando, eles não vêm. A gente chega lá na praça, está cheio de garotos, mas se você for levar uma palavra, a gente é cafona.
01:20:44
P1 - Mas aqui da comunidade não só com os jovens, com as mulheres, com os idosos?
R: Mas são mulheres que entram nesse projeto, mais mulheres. A gente fez o curso de artesanato, de reciclado aqui, foi só mulheres. Nós fizemos o curso de gastronomia, foi só mulheres. Os homens não vêm não, os homens não vêm. Nós fizemos um curso de banner para fazer bolsa, para aprender a fazer sapateira, porta guardanapo, mas foi só mulher. Nós fizemos um curso agora, esse era só para mulher mesmo, depilação e design de sobrancelha. Foi só mulher. O que aparece são as mulheres. Os homens, jovens, não.
01:21:36
P1 - E desses cursos, qual que você teve mais resultado, que você se orgulha mais?
R: De artesanato. Foi lindo, nossa mãe do céu! Trabalhar com garrafa pet, trabalhar com papelão, foi muito lindo. Gastronomia também foi muito bom. Apesar de eu não ser muito boa em cozinhar, a gastronomia foi ótimo. Era para aprender a fazer pratos mais chiques, fizeram o kibe de maniçoba, ensinaram como fazer um porco, foi uma coisa assim, de comida, só comida mesmo.
01:22:17
P1 - Aqui mesmo?
R: Aqui, foi aqui na sede mesmo.
01:22:21
P1 - Quanto tempo de curso?
R: Um mês. Design de sobrancelha também foi um mês, tudo é 30 dias, todos os cursos.
01:22:29
P1 - Isso tudo em parceria?
R: Parceria. O design de sobrancelha e depilação foi Qualifica a Pará, com o governo do Estado. Gastronomia e artesanato foi com a Alunorte.
01:22:49
P1 - E depois desses cursos, como é que fica a vida das pessoas?
R: Aí a gente faz os grupos, a gente fica incentivando. Esse último que teve, a maioria das meninas, das mulheres que aprenderam, elas já tinham uma iniciativa. Então, isso foi mais uma qualificação para elas. E elas já estão trabalhando. De vez em quando, no grupo, elas postam, “Já comprei minha termocera.” Aquilo que é de fazer cera, sei lá, de aguar cera. Outros já postam fazendo sobrancelhas. Então foi um dos cursos. O de artesanato, nós temos umas quatro que trabalham direto e vão para a exposição com seus artesanatos. O de gastronomia que ninguém faz nada, só fizeram aprender mesmo, acho que faz dentro de casa. E é isso.
01:23:38
P1 - Como é que você fica depois que acabam esses cursos? O que você sente? O que você escuta?
R: Eu tenho muitas fotos delas, assim, no término, a gente recebe elogio pelo nosso esforço de trazer para a comunidade, elas agradecendo, fazem a gente chorar, porque a gente se sente emocionado, gratificado. Eu fico muito grata quando elas agradecem por tudo que a gente traz. Elas mandam: dona Odineide, o que está vindo de curso?”. Olha, estão se inscrevendo aí para o curso, o pessoal está se inscrevendo para o curso. Então, a gente fica sempre ali em contato com elas, porque eu formo grupo e a gente fica se comunicando, se falando. Mas, é isso, entendeu? A comunidade de Itupanema.
01:24:24
P1 - Neide, você tem orgulho desse trabalho que você realiza?
R: Tenho, porque é tão pouco e eu posso ajudar as pessoas que me procuram por ajuda. As minhas filhas dizem: “Não pode morrer ninguém de Itupanema, que ligam para o Neide. Alguém quer ir para o hospital, liga para o Neide. Alguém quer ter neném, liga para o Neide.” Minhas filhas ficam bravas, entendeu? Porque a qualquer hora me ligam e elas ficam aborrecidas. “Agora quando tu adoece, ninguém te olha.” Eu digo: “Não, essa parte aí eu puxei para minha mãe, querer ajudar, entendeu?”. Minha mãe era assim mesmo.
01:25:08
P1 - O João te apoiava?
R: Apoiava, ele não falava nada, porque ele apoiava. Ele não gostava quando eu gastava dinheiro a mais do que deveria, mas eu não falava nada para ele. Ele perguntava: “Tu comprou isso? Tu está gastando dinheiro teu?”. Eu: “Não, é da comunidade.” Ele me olhava e sabia que não era, mas ele sabia que eu gastava dinheiro na comunidade. Quando não, quando ele saía, as pessoas: “Olha, a dona Neide!”. Aí ele chegava: “Olha, estão te elogiando lá.” Ele gostava de tomar umas, né? Ele falava: “Lá no bar estão te elogiando.” Eu perguntei: “E aí, o que é que tu falou?”. “Nada, eu me orgulho.” “Ah, já? Tá bom, então.” Porque aqui todo mundo me conhece. Se chegar perguntando onde é que a dona Neide mora, todo mundo vai falar. Todo mundo fala. A gente participa de muitas palestras por aí, e todo mundo conhece a gente.
01:26:04
P1 - Você faz as qualificações também?
R: Sim. A gente procura aprender mais, né? Eu fico triste, porque tudo que a gente aprende na palestra, o ganho é para nós, para a gente trazer para a comunidade, mas não chega uma ajuda até nós, uma ajuda, “Olha, você quer isso?”. Não. Aí eu fico triste com essas situações, porque eu acho assim, quando você chega para participar de uma palestra, aqui na porta já tem alguém colhendo a tua assinatura, tu já assinou, tu já está concordando com tudo que vai acontecer lá. Tu nem sabe o que é que vai ocorrer lá, mas tu já assinou, tu já está concordando. Eu digo assim: “Eu não perco o meu tempo para ir em uma audiência pública. Eu não perco o meu tempo, não.” Por quê? Quando tu chega lá na porta, tu já está assinando. Aí tu vai questionar com o cidadão lá, que já está tudo pronto, por mais que tu mande, “Olha, pode escrever o que você quer.” Tu escreve. Vai adiantar? Não. Já está feito. O importante é eles coletarem a tua assinatura aqui na porta. Tu não vai fazer diferença nenhuma e no que já está feito lá. Isso eu me revolto com esse negócio. Tem gente que faz questão de estar lá gritando, eu não.
01:27:33
P1 - O que faz diferença?
R: Nenhuma.
01:27:38
P1 - Como é que você vai lá fazer a diferença então? Não é indo na audiência pública. Como é que você faz a sua própria diferença?
R: Na comunidade. É aqui na comunidade. Olha, nós tivemos ontem uma reunião aqui com o pessoal questionando cada 60% que será cobrado da Águas de São Francisco. Eu disse: “Gente, quando a gente vai à reunião aqui, vocês não aparecem. Aí vocês vêm reclamar pra mim agora? Não. O que é que nós vamos fazer? Nós vamos fazer um documento, um projeto e bora em parceria. De 15 a 20 pessoas, bora lá na Câmara. Não vai adiantar muita coisa, mas a gente vai gritar lá. Vou entregar o documento, vou falar e vocês estão lá. Vai fazer maior diferença, porque vocês vão lá. Não sei se vão nos atender, não sei, mas a gente vai lá. Sozinha eu não posso fazer nada, não. Agora, se nós tivermos uma parceria, bora lá. Estou pronta pra luta, mas sozinha eu não vou, não. Uma andorinha só não faz verão. Então, se tivermos umas 15, 20 pessoas, nós vamos lá.”
01:28:48
P1 - Neide, aquela menina que nasceu em Barcarena, que nasceu aqui nessa comunidade, imaginava que ia virar uma líder social, assim?
R: Olha, na verdade, eu já me considero uma líder comunitária, porque a gente já faz algo pela sua comunidade. E eu te digo, não é só eu, porque eu tenho uma diretoria, por mais que eles não estejam lá comigo, mas eu digo o que nós fizemos, foi nós, não foi a Neide. Eu posso estar até sozinha, mas fomos nós, porque eu tenho um grupo que trabalha comigo. “Ah, ele não pode.” Olha, gente, eu venho todo dia pra cá. Eu tenho um netinho de 4 anos que ele pergunta: “Vó, tu já vai pra tua segunda casa?”. Ele gosta de vir pra cá. Quando isso aqui tá limpo, ele corre isso aqui tudinho brincando. Aí ele pergunta: “Vó, tu já vai pra tua segunda casa?”. Porque eu passo mais tempo aqui do que na minha casa. Eu moro, bem dizer, só, porque o meu marido morreu, a casa da minha filha é aqui do lado, mas é a casa dela. A minha é essa aqui. Entendeu? Aí eu vou ficar sozinha? Não. Eles estudam. Não, eu venho embora pra cá. Aqui toda hora chega gente pra reclamar, chega a gente pra pedir, chega a gente pra dar opinião, chega a gente pra bater papo. Então meu tempo é esse aqui. E eu gosto de tá aqui. Eu gosto de tá aqui. E é isso que me deixa muito feliz.
01:30:29
P1 - Quando o João estava vivo, o que vocês faziam que era divertido?
R: A gente não saía. Ele não gostava de sair. Ele gostava de sair com os amigos dele. Ele não era evangélico, ele bebia a cervejinha dele. Todo mundo sabia que ele era meu marido, mas dificilmente via a gente junto. Não via a gente junto, não. Porque ele, na sã consciência dele, ele gostava de estar em casa, mas se chegasse um colega dele e chamasse ele pra ir tomar uma cerveja, ele ia.
01:31:07
P1 - E em casa vocês faziam o que juntos?
R: De almoço, ele gostava muito de peixe. Eu dizia pra ele: “A gente vai começar a virar socó.” Não sei se vocês conhecem um pássaro com o nome socó, ele vive na praia, ele come peixe, ele vive comendo peixe, camarão, o alimento dele é esse. E eu dizia pra ele: “A gente vai virar um socó de comer peixe todo dia. Todo dia quer comer peixe? Que negócio é esse?”. Entendeu? Mas ele gostava muito de peixe. E ele teve uma morte muito rápida.
01:31:40
P1 - Mas pera, eu quero saber o que vocês faziam pra se divertir juntos?
R: Nada. Quando eu tinha um almoço de casal, alguma festa de casal da igreja, eu obrigava ele a ir comigo. Eu dizia: “Tu é o meu marido, todo mundo vai com o marido, e eu não vou porque o meu marido não quer ir? Tu vai.” A última festa que nós tivemos no ano passado, foi em setembro, um encontro de casal lá no Caripi. Essa foto vai ficar eterna. A gente bateu foto num painel. Ele estava bem, não estava doente. Eu acredito que ainda não estava doente, que ele teve uma lesão cerebral e foi isso que levou a morte dele rápido. E foi a última foto nossa.
01:32:27
P1 - Como é que foi esse dia?
R: Foi um jantar muito bom, de muitas brincadeiras, que a igreja fazia muitas brincadeiras. Quando eu tinha um encontro de casal, uma festa da igreja, eu obrigava ele a ir comigo, porque eu não ia estar sozinha. “Todo mundo com o seu marido lá, e eu sozinha, não, tu vai comigo.”. Aí ele ia. A gente ia sempre com o genro, com a minha filha e o meu genro. A gente ia de vez em quando no Caripi, passear lá no Píer, levar as crianças de noite para brincar lá na praia. Era essa a nossa saída, a nossa brincadeira era assim.
01:33:05
P1 - Era um momento de alegria de vocês também?
R: Era.
01:33:13
P1 - Quando você pensa nele, o que vem?
R: Só acho lembranças boas. As lembranças, principalmente a nossa vida familiar, porque eu digo para minhas filhas que eu construí um prédio, com três casas e a gente nunca separou. É uma família sobre o mesmo teto, porque são duas casas em cima e uma embaixo, nós vivíamos em família no mesmo teto. E depois que ele morreu as minhas filhas ficaram mais, é café, almoço e jantar na minha casa. É na minha casa. Eu digo para elas: “Vocês têm a casa de vocês. Vocês vão comer para a casa de vocês.” Mas não tem, não tem, é na minha casa. O momento que eu fico só é a noite quando eu vou dormir. É nesse momento que é mais difícil, porque todo mundo vai para as suas casas e eu vou para a minha sozinha. Aí uma casa grande, só eu.
01:34:17
P1 - Passa um filme, né?
R: Passa um filme, sim. Quando ele trabalhava de turno e ele estava em casa, ele passava o dia inteiro no quarto, numa rede, se embalando no telefone. Ria sozinho, no Tik Tok. Às vezes ele estava rindo, eu ia abrir a porta, “O que foi, menino? Tá ficando doido, é?”. Estava rindo sozinho. Então essas lembranças ficaram. A vida, 42 anos, acabou para ele. E eu estou aqui, fazendo aquilo que eu gosto, né? Agora eu não me preocupo, porque eu não tenho que voltar cedo para fazer o almoço. Quando eu demoro aqui, eu peço uma marmita, eu ligo para trazerem. Não tenho por que ter pressa na minha vida mais. Aí, depois que ele morreu, ficou minha mãe, minha mãe morava comigo, minha mãe era acamada, eu pagava uma pessoa para ficar com a minha mãe e eu vinha para cá. Aí já não me preocupava, porque a pessoa que tomava conta da minha mãe, tomava conta todo dia. Aí dia 15, agora de março, minha mãe morreu. Aí que eu fiquei só mesmo.
01:35:27
P1 - Ela morreu do quê?
R: Minha mãe era acamada, já há cinco anos, totalmente acamada. E ela teve um AVC. Corremos para UPA com ela, mas não deu mais. Teve 4 vezes COVID. Na terceira vez, ela e minha irmã tiveram COVID, foram para o hangar, a minha irmã morreu e ela saiu viva ainda de lá, mesmo camada. E com a morte da minha irmã, isso piorou mais a situação. Ela teve um AVC e não voltou mais. Aí eu tive duas mortes em 3 meses dentro da minha casa, porque a minha mãe morava comigo. Ontem morreu uma amiga nossa, bem lá perto de casa, assim, sabe? É rever aquele momento difícil em que nós passamos. Mas vai passar, né? Tem um ditado popular que diz assim: “a vida continua. Nós estamos vivos.” Ele, o que tinha que viver aqui, já viveu.
01:36:41
P1 - O que te dá força, Neide?
R: É ficar aqui, nesse centro comunitário, e meus netinhos. Uma neta de 22 anos que eu tenho, que faz faculdade de fisioterapia, é uma neta assim, muito, muito grudada em mim, se preocupa com tudo, ela me chama de mãe. E esse que está para o Paraguai, faz medicina lá, todo dia me manda mensagem, todo dia, todo dia, todo dia. E os meus netos, assim, o amor de vó é maior que o amor de mãe. Não sei quem é de vocês que têm neto aqui, tem neto? O amor por neto, mana, não queira nem imaginar. É dobrado. Então, meus netinhos. Eu tenho o meu menor, de 4 anos, que é loirinho, loirinho, loirinho. Ele me chama, “Vó.” Se eu estiver em casa, acho que ele me chama 500 vezes, é vó para tudo, é vó, é vó, é vó. Aí, isso aí, meu tempo vai. Também na igreja, nós estamos no período EBF, né?
01:37:55
P1 - O que é isso?
R: EBF são colônia de férias na igreja com as crianças. A gente tem dois momentos, tem com as crianças e tem com os adultos. Os adultos são as gincanas, para que a gente consiga para as crianças. Aí, na gincana, a gente pede de tarefa bombons, pipoca, refrigerante, tudo, todo alimento que é para as crianças. Então, EBF dos grandes é essa, dos adultos. E das crianças é o momento delas. E é o momento de distração que a gente passa na igreja. E Deus em primeiro lugar, se não fosse ele assim, que Deus é aqui o nosso sustento.
01:38:36
P1 - Neide, quando você pensa nos seus netos, qual é o legado que você quer deixar para eles?
R: Olha, é que os maiores, os que estão concluindo estudo… a minha família assim, elas estão todas na área da saúde, que a minha filha caçula é enfermeira, a filha dela se formou em técnico de enfermagem, agora está fazendo fisioterapia e o outro está para o Paraguai fazendo medicina. E assim, é o prazer que eu vou ter de ver eles se formando. Tem a minha mais velha que se formou na administração, ela não está exercendo na área, mas trabalha. E é o prazer que eu tenho de ver meus netos, já vi minhas filhas, agora eu quero ver meus netos. Ajudo no que eu posso, porque esse que está no Paraguai, não é fácil, a medicina lá, a mensalidade é bem menor do que daqui, daqui é 12 mil, 13 mil reais e lá não é isso, mas juntando todas as despesas de aluguel, despesas de tudo, chega uma faixa de uns 7 mil, é bem menor do que daqui. E a gente se junta assim e ajuda. Então, isso é o que eu vou deixar para eles, eles formados. O dia que eu partir dessa terra, eles estão todos colocados, assim como as minhas filhas estão.
01:40:06
P1 - Para além dos estudos, o que você quer deixar de legado, de ensinamento?
R: Olha, eu gostaria sim que eles gostassem daquilo que eu faço na comunidade, mas nenhum, nenhum, nenhum. Eles dizem: “Não, esse negócio é só a senhora mesmo. Nós não temos jeito para isso não.” Mas eu gostaria que eles continuassem os trabalhos na comunidade, mas eles não aceitam, pelo motivo assim, de eu trabalhar na comunidade e muitas vezes, gente vai na rede social e começa malhar e começam a falar e eles não aceitam isso de jeito nenhum. Então, o único legado que eu vou deixar para eles é que eles se lembrem do que eu fazia aqui. E é isso. Eu digo para eles: “Olha, eu não tenho nada, se eu morrer hoje, eu não tenho nada para deixar para vocês. A única coisa que eu já deixei foi ajudar nos estudos. Fiz uma casa, vocês moram, a casa é de vocês, fui eu que construí, mas é de vocês. E a que eu moro hoje é da minha neta.” Dessa que está fazendo fisioterapia. É a única neta que eu tenho. Eu tenho quatro homens e uma menina, uma neta só. Então, eu digo: “O Matheus já vai ajudar a mãe dele, que ele daqui a pouco se forma, para médico. Mas a minha casa é da minha neta. Eu não tenho muita coisa para deixar para vocês.”
01:41:41
P1 - Mas você está deixando uma Barcarena melhor.
R: Para a comunidade. Espero que se lembrem, né? Está uma confusão, estão querendo colocar o nome lá da praça, aquela praça lá. Aí, “A por que não coloca o nome não sei de quem, não sei de quem?”. Eu estava dizendo: “Será que se eu morrer, alguém vai lembrar de colocar meu nome em alguma coisa?”. Porque só pode colocar, homenagear com nome, depois que morre, não pode colocar em vida. Então, será que se eu morrer alguém vai lembrar de mim? Aí as meninas: “Vão sim, vão lembrar que tu morreu.” É, mas é impossível alguém não lembrar. Teve só uma pessoa que falou: “Gente, por que não colocam Dona Neide na praça?”. Eu fui lá rindo e disse: “Não, eu ainda não morri, eu estou viva.” Mas é isso, a comunidade de Itupanema. Sem falar nas lendas, que a gente nem chegou a falar nas lendas de Itupanema.
01:42:35
P1 - Qual é?
R: Eu tinha um tio que contava as histórias dele, de quando ele era jovem, na década de 40, 50. Ele namorava e dizia que ele via muita visagem, tinha visagem. Ele afirma que tinha. Que bateram nele, que correram atrás dele. Então, são lendas que até hoje nós lembramos e passamos para nossas filhas. Eu cheguei até a escrever, iniciei em 2000, com uma professora de história, algumas coisas de Itupanema, algumas lendas de Itupanema, que os antigos contavam. Aquela senhora que eu falei para ti, ela lembra dessas histórias que haveria realmente. Em cima disso, nós montávamos na cultura, o Grupo Pavão, era um folclore de danças que se chamava Grupo Pavão, O Encanto do Japiim. Lá na praça tinha uma mangueira grande que ela caiu com o tempo, tinha mais de 200 anos e com o tempo ela caiu, que era cheia de ninho e de japiim. Sabe o que é um ninho de japiim? Era muito. Então, nós fizemos uma homenagem à mangueira, colocando um grupo de danças chamado Encanto do Japiim.
01:43:49
P1 - Explica para quem não sabe o que é isso.
R: É um grupo, como se fosse de quadrilhas, um cordão de pássaro. Eu não sei se vocês sabem o que é o cordão de pássaro, são lendas contadas com dança. Tem os cantos e tem os personagens que fazem o Encanto do Japiim, em homenagem à mangueira do Japiim que nós tínhamos lá. Tanto que eu acho que o nome da praça vai ser Encanto do Japiim, por causa da mangueira, que tinha mais de 200 anos. Todo mundo tinha um cuidado intenso com ela. Eu coloquei grupo de quadrilha, grupo de carimbó e tantas coisas que nós fizemos de boa na parte cultural da nossa comunidade.
01:44:41
P1 -O que você mais gosta daqui, onde você cresceu?
R: Eu digo assim, que o nosso Itupanema é um paraíso. De noite, a gente senta lá no pátio de casa, tomando café, a gente vê todinho os navios, todas as paisagens. No final da tarde, uma hora dessas, o sol não está aparecendo aqui, mas se você for lá na praia, você vai ver o pôr do sol, quando a maré seca, fica a coisa mais linda na lama. Então, isso é assim, admirável, é o nosso paraíso. Até quando, eu não sei. Não sei se eu vou morrer antes de ver o desenvolvimento daqui, que o prefeito fala que ele vai indenizar todo mundo da orla do lado de lá, para fazer uma orla de Itupanema. Não sei se eu vou ver isso. São tantos anos que ele fala isso. E se eu não ver, mas meus netos verão.
01:45:36
P1 - É um sonho seu que isso aconteça?
R: É um sonho de ver. A gente ter o privilégio de, lá do pátio de casa, que é em cima, a gente olhar a praia todinha.
01:45:43
P1 - Dali você não sai, né?
R: Não. É na mesma rua do cemitério, a minha casa, eu só vou trocar de número. Eu digo para as meninas: “Quando eu morrer, não me leve para o cemitério de Barcarena. Eu quero estar aqui.” Tanto que eu disse para elas que vou mandar fazer uma gaveta lá no túmulo do meu marido, uma gaveta, porque eu quero ficar aqui. Só vou trocar de número, o nome da rua é o mesmo. Elas ficam muito bravas. Elas ficam muito bravas. Mas, a gente vai morrer, nós vamos morrer todos um dia. Eu tinha uma pastora que falava: Olha, irmã. Quando chegar o nosso dia, nós não escapamos.” É verdade. Um dia nós vamos morrer.
01:46:34
P1 - Você tem medo da morte?
R: Não, não tenho medo da morte. Eu tenho medo de não me preparar para ela. Nós temos que nos preparar para ela. O dia que ela chegar, ela não vai perguntar se você tem medo, se você quer ir, se você não quer ir, ela vem e te leva. Então nós temos que nos preparar.
01:46:55
P1 - Como é que se prepara?
R: Olha, eu falando na minha vida religiosa, na minha vida espiritual, eu tenho que tá ali tete a tete com Deus, eu tenho que seguir os mandamentos que Deus deixou escrito, né? E nós temos que ter um coração puro. A palavra de Deus diz que nós temos que voltar a ser criança. “Ah, como volta a ser criança? Vou ter que nascer de novo?”. Sim. Não nascer do ventre da minha mãe, mas eu tenho que ser uma nova criatura, eu tenho que me preparar, eu tenho que pregar, eu tenho que seguir os mandamentos, porque eu sei que há dois caminhos. Você não sabe que existem dois caminhos? O céu e o inferno, a escolha é nossa, a escolha é nossa. Se você quiser o caminho do inferno, é o mais fácil, o mais largo. Agora o caminho do céu, ele é o mais estreito e é difícil, muito difícil, porque nós somos seres humanos, nós temos que pedir perdão todo dia pra Deus, todos os dias, porque nós pecamos, nós pecamos todo dia. “Ah, eu sou crente, eu já tô com meu passaporte direto pro céu.” Mentira, já tá no inferno, já mentiu. Então, a luta é grande.
01:48:11
P1 - Na verdade, é fazer o bem nessa vida, né? Você está fazendo a sua parte, né?
R: Eu tô fazendo a minha parte. Não é só isso, tenho que fazer muito mais, muito mais. Eu, assim, fico feliz quando alguém vem querendo saber da nossa origem, entendeu? Aqui em Itupanema os índios já acamparam, hoje onde é a empresa hidrovias do Brasil, tinham os índios que acampavam lá na década de… a minha avó contava, né, que em mil novecentos e dezenove, mil novecentos e dezoito, os índios acampavam lá. Os padres jesuítas vieram para Itupanema. Quem colocou esse nome de Itupanema, foram os índios e os padres jesuítas, foram eles que colocaram esse nome em Itupanema por causa das pedras. Hoje onde é a hidrovias do Brasil, era cercado de pedras. Eu ainda me lembro muito bem, eram muitas pedras que dividiam a parte da baía e a parte da beira por pedras grandes, os índios chamavam de Itu e a praia que eles eram acampados, que eles ficavam, era Panema o nome da praia, né? E eles chamavam Itu, era as pedras, Panema era a praia. E os padres jesuítas juntaram, fizeram lá uma comunidade dos índios chamando de Itupanema, mas era a praia, não era o todo, aí com isso formou-se o nome de Itupanema. “Muita gente: “Ah, porque gerou-se por dois pescadores, que um pescador ia chegando, e o outro que estava lá e perguntou: “E tu Panema? E tu Panema, pegaste o quê?”. Né? Porque o cara era Panema, só podia ser. Mas não foi isso a origem, a gente tem escrito isso, a origem de Itupanema. Então, quando a minha avó contava assim, que os portugueses… e foi aí que a mãe dela se envolveu com dos portugueses, foi a origem da minha avó, ela era descendente de portugueses. Minha avó era branca, linda, linda, linda, minha avó, os olhos, nem imagina, entendeu? E a minha avó era descendente de portugueses mesmo, foi dessas vindas aí que ela conheceu. E aí nós estamos aqui, né? Nós somos descendentes de portugueses, mas nós também somos descendentes de índios, eu acho.
01:50:42
P1 - Como é que você se sente contando a sua história pra gente?
R: É, vai ficar na mente, vai ficar na história, né? E se a gente não contar a história de Itupanema, ela vai ser esquecida e não lembrada por ninguém. Por que que eu sei? Porque um dia eu escutei os nossos mais velhos. Nós fizemos uma entrevista com eles, escreveram, tem escrito, é reconhecido em cartório. E foi nós que fizemos isso, entendeu? Aí se eu não contar hoje, as minhas filhas não vão saber contar, ninguém vai saber. Por que é Itupanema? Como foi a origem aqui? Ninguém sabe. Quando há um trabalho na escola, pela origem de Itupanema, todo mundo corre aqui comigo, porque ninguém mais sabe, aí o pouco que a gente sabe, a gente passa pra eles, o que foi que aconteceu, por quê, entendeu?
01:51:38
P1 - E você hoje contando a sua história?
R: A minha história eu nunca tinha contado, a minha história. Eu contava a história de Itupanema, a minha não. A minha assim, dá um nó, lembrar do meu pai, da minha mãe, o nosso passado, nos trabalhos. Um dia eu falei pra minhas filhas, elas perguntaram pra mim: “Mãe, quando tu era jovem, tu trabalhava em quê?”. Elas não acreditam que eu trabalhei em casa de família. Elas não acreditam. Eu digo pra elas: “Sabe por que vocês não acreditam? Porque quando vocês nasceram, eu posso dizer que vocês não nasceram num berço de ouro, mas vocês nasceram quando eu já tinha uma vida estável. Então vocês não têm ideia do que é um dia ter passado fome, trabalhar em casa de família, você não sabe o que é isso, você não tem nem ideia o que é isso. Porque quando vocês nasceram, vocês tinham alguém. Eu fui babá, eu fui babá. E quando vocês nasceram, vocês tiveram.” E até hoje tem uma senhora que tomou conta delas, até hoje elas chamam de babá. Até hoje elas chamam de babá e até hoje ela lembra que ela vivia com a mamadeira correndo atrás delas, por causa de uma mamadeira. Eu digo: “Tá vendo só? Eu trabalhei como babá, vocês não têm ideia o que é isso, vocês não têm ideia enquanto jovem, de saber quanto custava um sapato, uma roupa, porque eu trabalhava no cartório, a minha vida era estável, “Mãe, eu quero dinheiro.” “Pega lá.” “Mãe, eu quero dinheiro.” “Pega lá, vai lá no caixa.” Entendeu? Não tem ideia, o que é trabalhar na casa de família, o que foi ser babá um dia, o que é passar uma humilhação na casa dos outros, elas não sabem e nunca vão saber, porque eu ainda estou aqui, né? Tem dia que elas, “Mãe, tu tem tanto? Mãe, tu tem dinheiro? Mãe?”. O lá do Paraguai me chama de mãe também, “Mãe, manda um pix aí pra mim”. A outra, quando tá em Belém na faculdade, ela vai todo dia, vai e volta de Belém, “Mãe, manda aí um pix que eu quero lanchar.” Não sabe o que foi que nós ralamos lá atrás, quando eu era jovem, não sabe, entendeu? E hoje assim, é o que eu vou deixar um dia pra eles lembrarem de mim, né? Um dia que eu não tiver mais aqui, eles vão lembrar da mãe Neide, a vó, com os dois menores, só eles que me chamam de vó. Mas a mãe Neide.
01:54:47
P1 - Tem essa história toda.
R: E eu não tenho só eles que me chamam de mãe, eu tenho um monte de jovens por aí, todos me chamam de mãe. Aí tu pergunta, por que eles chamam de mãe? Por causa da igreja, na época, “Olha, a gente tem um conto de jovem, a gente precisa comprar camisa.” Ninguém podia comprar, eu que comprava pra todo mundo, camisa, “Olha, precisa pagar lá o ingresso, não tem dinheiro.” Era eu que pagava pra eles. E eles me chamam de mãe. Aí as meninas, “Agora esses meninos ficam te chamando de mãe.” Eu digo: “Minha filha, algum motivo.” E é isso, me chamam de mãe. Eu chego na igreja: “A mãe Neide chegou, a mãe Neide chegou.” Aí depois eu vou pra lá, tem uns que ainda tem a audácia de tomar a bênção de mim, sabe? Eu digo: “Menino, pelo amor de Deus, não faça essa vergonha de dar uma benção aqui na rua.” sabe? É o respeito que eles têm, isso me deixa feliz. Meus netos tão grandões, tem uma com vinte e dois, um com vinte e um, um com dezessete, um com oito, um de quatro, mas todos tomam benção. E o menorzinho, quando eu digo: “Gente, já vou dormir. Boa noite!". “Ei, vó, peraí.” Aí ele vai lá no quarto, “Felipe, tu já tomou benção?”. Se não tomou benção, ele tem que sair do quarto dele e ir lá na minha casa tomar benção, mas todo mundo toma benção, todos, é um respeito. Isso aí veio o quê? Ensinamento, ensinamento, que muitos já não fazem mais isso, mas os meus netos fazem, tomam benção. E isso pra mim, assim, eu fico muito feliz, né? Que eu tomo a benção também do meu pai. Eu tenho uma única tia, ela está com 96 anos, hoje ela mandou uma mensagem pra mim, “Minha filha, como é que tu tá?” Velhinha, velhinha, velhinha, cabelo branco, branco, branco, branco, é a irmã do meu pai, mas ela se preocupa comigo. Aí eu me sinto orgulhosa, porque eu digo assim: “O que é que eu tenho, que o meu pai, a minha mãe, a minha tia até hoje tem uma preocupação por mim? Será que eu tenho alguma coisa assim, que eu fiz?”. Que, né, ela tem uma preocupação comigo. Hoje eu recebi uma mensagem dela, “Quero te ver, nunca mais te vi.”
01:57:05
P1 - É a retribuição, né?
R: Sou feliz por isso.
01:57:12
P1 - Teve uma vida, apesar das dificuldades, uma vida feliz.
R: Tive uma dificuldade lá atrás, mas hoje eu tive oportunidade de poder ajudar e ajudo, não me nego de ajudar, ninguém, ninguém.
01:57:29
P1 - E tem muito pela frente.
R: E tenho muito pela frente, com certeza, muito pela frente.
01:57:33
P1 - Neide, eu vou terminar por aqui. Te pergunto se você tem mais alguma história que você tá aí querendo contar.
R: Sou grato por vocês. Eu não sei de onde vocês vieram, não perguntei. Perguntei se tomaram açaí, disseram que não, se já comeram maniçoba, se já tomaram tacacá, nada. Ah, então, já vou ficar descontente com vocês. Mas eu creio que, não sei até quando vocês vão ficar por aqui, ou vocês trabalham aqui direto.
01:58:14
P1 - Não, a gente fica mais um pouquinho.
R: Pois é, então toma açaí.
Pode deixar. Toma açaí. Só não vai dormir muito, tá gente? Mas foi um prazer. Muito obrigada.
01:58:24
P1 - Todo nós.
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