Eu não vi, porque estava então bem longe. Na verdade, se estivesse lá, não teria acontecido. Ainda hoje - e tantos anos se passaram, que mamãe agora apenas observa a vida com olhos cansados, sábios e muitas vezes até divertidos, talvez por causa mesmo dessa sabedoria - não se sabe exatamente como tudo ocorreu, porque a única testemunha ao nosso alcance foi Dorizete, e Dorizete, ai meu Deus, era ainda mais louca do que foram aqueles dias.
Naqueles dias eu era conhecido nos meios policiais e militares como Comedor-de-Criancinhas, ou seja, não passava de um comunista safado. Não se pensava em tarado, ah, não, a coisa era mais complicada, os milicos e os meganhas preferiam que fossemos antropófagos, ou ainda melhor, canibais, que a distinta definição anterior eles não conheciam. E naqueles dias matavam as pessoas, de preferência os jovens, muitos apenas por carregarem livros junto ao sovaco, como o caso daquela empregada doméstica no Rio de Janeiro, que nem livro carregava, só alguns exemplares de Capricho e Revista do Rádio, mas a mataram assim mesmo, coitada, confundida com estudante. Era um pega-pra-capar desgramado nas ruas e teve muita gente que precisou se mandar deste país. Eu, por exemplo.
Claro, eu já devia esperar por algo parecido com o que ocorreu. Devia, sim. Afinal, nunca fui nenhum santinho para as autoridades, era só um comunista safado, comedor-de-criancinhas, como já expliquei, e devia saber que não iam me deixar partir assim tranqüilamente para Moscou sem uma boa dose de retaliação. Militar, numa ditadura, tem uma queda toda especial por retaliação, e só os mafiosos ainda acreditam que a vingança é um prato que se serve frio.
Assim, uma semana após eu ter partido, eles foram lá em casa à minha procura e acabaram batendo de frente com minha mãe. É necessário que se diga que Dona Bio sentia-se então na obrigação de resolver todos os problemas em nome da incomensurável saudade que...
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Eu não vi, porque estava então bem longe. Na verdade, se estivesse lá, não teria acontecido. Ainda hoje - e tantos anos se passaram, que mamãe agora apenas observa a vida com olhos cansados, sábios e muitas vezes até divertidos, talvez por causa mesmo dessa sabedoria - não se sabe exatamente como tudo ocorreu, porque a única testemunha ao nosso alcance foi Dorizete, e Dorizete, ai meu Deus, era ainda mais louca do que foram aqueles dias.
Naqueles dias eu era conhecido nos meios policiais e militares como Comedor-de-Criancinhas, ou seja, não passava de um comunista safado. Não se pensava em tarado, ah, não, a coisa era mais complicada, os milicos e os meganhas preferiam que fossemos antropófagos, ou ainda melhor, canibais, que a distinta definição anterior eles não conheciam. E naqueles dias matavam as pessoas, de preferência os jovens, muitos apenas por carregarem livros junto ao sovaco, como o caso daquela empregada doméstica no Rio de Janeiro, que nem livro carregava, só alguns exemplares de Capricho e Revista do Rádio, mas a mataram assim mesmo, coitada, confundida com estudante. Era um pega-pra-capar desgramado nas ruas e teve muita gente que precisou se mandar deste país. Eu, por exemplo.
Claro, eu já devia esperar por algo parecido com o que ocorreu. Devia, sim. Afinal, nunca fui nenhum santinho para as autoridades, era só um comunista safado, comedor-de-criancinhas, como já expliquei, e devia saber que não iam me deixar partir assim tranqüilamente para Moscou sem uma boa dose de retaliação. Militar, numa ditadura, tem uma queda toda especial por retaliação, e só os mafiosos ainda acreditam que a vingança é um prato que se serve frio.
Assim, uma semana após eu ter partido, eles foram lá em casa à minha procura e acabaram batendo de frente com minha mãe. É necessário que se diga que Dona Bio sentia-se então na obrigação de resolver todos os problemas em nome da incomensurável saudade que eu deixara em seu ainda maior coração materno.
Bem, acho que tudo começou porque mamãe odiava ensinar os afazeres domésticos a uma empregada nova e eles tiveram a porca sorte de bater à porta justo num desses momentos. Era muito azar, mas a vida em geral vinha sendo injusta com os brasileiros e complacente em excesso com os milicos naqueles dias de terror, portanto, que se danassem alguns deles não ia fazer muita diferença para as chamadas Forças Armadas, enquanto que para nós já era uma festa mesmo quando só apanhávamos dois deles.
Então, mamãe andava de péssimo humor, e a nova empregada, uma brocoió recém chegada de Buriti, não soube ser muito explícita na descrição de quem estava encostado na maldita campainha:
"Tem uns hôme chique atrás di seu fio, madama."
"O que eles desejam, Dorizete?"
"A, num sei não, madama. Mas devi sê genti importanti, com umas farda qui..."
"Farda?"
Aquilo fez soar outro tipo de campainha na memória de minha mãe, que vivia os dias chorando de saudade de mim, e ela saiu às pressas para atender os visitantes. Que nossa família soubesse, ela nunca tivera muita simpatia por gente de farda, e ela realmente decidiu numa fração de segundos que eles só podiam estar preparando alguma confusão absurda para cima do filho amado que andava tão distante, certamente passando fome e frio, provavelmente sendo enganado por todas as vagabundas que só podiam andar atrás de rapagão bonito como ele. Por algum processo só capaz de ocorrer na cabeça de uma mãe, Dona Bio já abriu a porta com uma disposição ainda pior que a de ensinar à uma nova empregada os afazeres domésticos. Abriu a porta, mas foi só, não permitindo que eles dessem sequer um passo à frente, postando-se diante da entrada como uma guardiã do Paraíso.
"Qual é o problema?", só podia haver algum problema para estarem ali, claro, e ela fitou irritada os três militares.
"Bem..."
Mamãe não tinha a menor idéia acerca de hierarquia militar, sua antipatia pela farda era oriunda de camadas mais profundas, de origem ancestral, ou teria logo identificado dois soldados e um tenente. Ademais, estava pouco se lixando, e disse:
"Escuta aqui, general, tenho muita coisa para fazer e não posso perder tempo", ela disse aquilo, é preciso que fique claro, sem modificar nem um milímetro a carranca que armara diante daqueles militares. "Vão logo dizendo o que desejam."
"A senhora é a mãe de..."
"Sou", ela nem mesmo deixou que o tenente concluísse. "E daí?"
Psicologia, é verdade, ela nunca tivera, mas também não dava a mínima para a recém instaurada ditadura. Já os militares, bem, estes com certeza não estavam acostumados a serem tratados de maneira tão desrespeitosa, não depois que passaram a mandar no país, e certamente esperavam que todos se mostrassem no mínimo ansiosos perante uma farda.
"Onde ele está?", perguntou o tenente, começando a ficar irritado.
"Por que deseja saber?"
O tenente concluiu que ela não tinha que fazer pergunta alguma, isto cabia somente a ele, e sentiu os lábios tremerem de afronta.
"Escute aqui, minha senhora", começou a dizer, mas mamãe deu um inesperado passo à frente, quase se chocando com ele.
"Eu não sou sua senhora", cortou Dona Bio, para irritação do militar, ao qual naquele momento só restava um fiozinho de paciência, no máximo da espessura de uma linha de pescar, e ela ainda assim disse, antes de começar a se virar para retornar ao interior da casa: "Se não tem idéia do que veio fazer aqui, passar bem"
"Tenho algumas perguntas para seu filho", disse o tenente, mais do que depressa.
Ela ainda ficou um instante de costas para ele, aparentemente tentando digerir a informação, na verdade decidindo se batia-lhe com a porta na cara ou se dava-lhe uma resposta à altura. Foi então que o tenente caiu na besteira de perguntar:
"Aquele lá é o garotão?"
Mamãe fitou meu retrato pendurado na parede do outro lado da sala, colocado ali por ela justamente para ser a primeira coisa a ser vista quando abrisse a porta. Era um retrato à nanquim feito pelo artista Milson Henriques, e ela murmurou, como se saboreasse a palavra em busca de seu verdadeiro sentido:
"Garotão..."
Mas quando virou-se para o tenente, o sabor adequado da palavra já havia atingido seu coração, aquele mesmo incomensurável coração de mãe, e ela fez uma careta, como se, além do sabor de fel, sentisse também algum mal cheiro.
"Meu filho não é nenhum garotão, general, ele é um rapaz estudioso e cheio de talento", gritou, obrigando o grupo em frente à porta a recuar dois passos: além do timbre, marcou-os também com uma enxurrada de perdigotos. Mas é preciso ressaltar, a seu favor, que este era um hábito que só ocorria quando profundamente enfurecida. "Quem o senhor pensa que é para chamar meu filho de garotão? Por acaso o conhece? Já discutiu filosofia com ele? Já conversou com ele sobre economia, política, religião?"
"Ele é comunista", rugiu o tenente, profundamente contrariado com a inadequada recepção que estava tendo, ainda por cima na presença de subordinados. "Comunista"
Aquela mulher, minha mãe, enrubesceu pelo filho, pois não havia como negar a acusação. Afinal, quantas vezes já me alertara para o perigo de ser tão entusiasmado por Lénin e Marx? Quantas vezes orara a Deus para que eu fosse mais comedido em minhas palavras e menos afoito em minhas ações? Só que aquele cretino não ia ficar acusando seu filho amado, em quem colocara todas as suas complacências, e ela logo deu o troco:
"Pois se meu filho é comunista, general, então desejo ser também"
"A senhora tem idéia do que está dizendo?"
"Só tenho idéia de que ele é o melhor filho do mundo, e se isto é ser comunista, então todos os jovens deviam ser também comunistas"
"Eu vou..."
"Ah, pode ter certeza de que vai, sim, mas é pra fora daqui, seu... seu gorila"
Aquela era uma palavra que ela só poderia ter ido buscar em alguma lembrança do filho, o tenente sabia, os dois soldados sabiam, sobretudo ela sabia, e qualquer outra pessoa que estivesse ali saberia. De certa forma, era uma confissão em nome do filho, assinada por procuração, mas como mãe ela não estava nem aí. Ela só pensava que o marido era um médico importante na cidade, com um sobrenome tradicional no Estado e cujos parentes sempre foram respeitados, de vez em quando se tornando até políticos, desses que mandavam em qualquer borra-botas que nem aquele que a estava importunando em sua própria casa. Portanto, ela não estava nem aí.
"Seu marido vai receber uma intimação para comparecer ao Batalhão, a fim de prestar esclarecimentos acerca de seu filho", avisou o tenente.
Bem, pelo menos esta era a intenção, principalmente porque desejava deixar claro para seus subordinados que com aquela maluca não dava para se ter uma conversa civilizada. Só que Dona Bio encarou aquele aviso como uma ameaça, e disparou:
"Ah, mas não vai, de jeito nenhum. Aliás, não quero nem que meu marido fique sabendo que um bando de gorilas veio nos importunar aqui em casa. Se ele receber alguma coisa enviada por vocês, mesmo se apenas um cartão de Natal, vão se ver comigo Ouviu bem, general? E pode ter certeza de que vou lhe procurar pessoalmente para lhe dizer umas boas verdades..."
Achando que não havia mais nada a dizer, virou-se e bateu com a porta na cara dos milicos. Depois, repensando, achou que ainda havia algo que precisavam ouvir, e gritou do outro lado da porta, em vez de apenas murmurar consigo mesma:
"Era só o que me faltava... perder tempo com um bando de gorilas"
Que eu soubesse, nunca chegou sequer um cartão de Natal dos militares.
Era uma mulher estranha. Muito baixinha, não tinha mais que metro e meio de altura, mas compensava com bravura e muita raiva os dissabores que outros tentavam levar para dentro de nossa casa. Aliás, o lugar era mais que uma casa - para ela, significava o recanto onde marido e filhos mereciam amor e paz, pois só assim ela mereceria, e teria, igualmente amor e paz. Ela já dera memoráveis surras nos filhos em outros tempo, quando achava que merecíamos, mas seremos sempre testemunha de que muito mais amor nos fora ofertado como uma hóstia, pedindo para ser levado à sério, com crença e sem contestação. Ela sabia ser contraditória, sim, mas nem um pouco mais que qualquer ser humano, embora fosse, provavelmente, mais complexa. Era ela quem gritava, enquanto papai murmurava; era ela quem nos castigava, enquanto papai conversava; e era ela quem nos amava à seu modo estranho e quase virulento, enquanto papai parecia geralmente surpreso com o crescimento de suas crianças.
Pensando bem, como às vezes ocorre comigo fazer, não sei, não sei mesmo se papai teria reagido da mesma forma, caso fosse ele o encontrado em casa pelos milicos, quando lá estiveram à minha procura. Pois mamãe fora à luta, fora, mas continuo pensando que papai provavelmente teria parado para analisar porque eu era tão necessário aos militares, com certeza surpreendendo-se com o fato de existir uma luta como aquela entre nós, mesmo contra todo o bom censo.
Mas, enfim, talvez uma mãe seja sempre, e apenas, um anjo da guarda.
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