Entrevista de Ana Paula da Silva.
Entrevistada por Larissa Nogueira e Priscila Correia
Maceió, 27 de julho de 2025
Projeto Memórias que não afundam
NOS_HV014
0:38 P/1 - Muito obrigada!
R - De nada.
P/1 - Vamos começar. Qual o seu nome, local e data de nascimento?
R - Ana Paula da Silva, nasci em Correntes, Pernambuco, no ano de 1974.
0:55 P/1 - Quais os nomes de seus pais?
R - José Beneão da Silva e Maria do Carmo Silva.
P/1 - O que os seus pais faziam?
R - Minha mãe sempre cuidou da casa e meu pai sempre cuidou dos gado dele.
1:10 P/1 - E quais eram os principais costumes da sua família?
R - Só assistir TV. Meu pai, como ele era uma pessoa assim, de sítio, às 05h00, ele já estava no sítio. Então, às 17h ele já estava cochilando em casa. A gente não tinha nem muita conversa com ele, porque ele dormia bem cedo.
1:32 P/1 - E você sabe a origem da sua família?
R - A minha mãe nasceu em Caruaru, Pernambuco. Depois foi morar em Correntes, que foi lá onde eles dois se conheceram e começaram a namorar. E a minha mãe ficou lá e as minhas tias vieram para cá, para Maceió.
01:58 P/1 - E como era o seu relacionamento com seus pais?
R - Era bem. Normal. Só não eram muito de conversa. Meu pai não era muito de sentar e conversar e brincar. Não, não era não. Meu pai só fazia assim: vai estudar, vai estudar. Pronto! Era a história dele.
2:18 P/1 - E você tem irmãos?
R - Tenho dois irmãos.
P/1 - Quais os nomes deles?
R - É Fabiano Henrique da Silva e Flávio André da Silva.
2:28 P/1 - E o seu relacionamento com eles, como era?
R - Na infância?
P/1 - Na infância e atualmente também?
R - Na infância era bem assim, eu brincava bastante com um deles, que era Flávio. A gente era muito, muito ligados, muito, muito mesmo. E o outro, que é o Fabiano, que é o mais velho, não. Ele sempre foi mais…. Eu acho hoje que ele tem assim, um certo… Eu creio que seja autismo. Então, por ele ser diferente da gente, a gente sempre excluía ele. Ele não brincava com a gente, por causa disso. Mas a gente criança, como era que a gente ia saber, né? Então, aí por ele mesmo, aí ele fazia o quê? Ele escutava muita música, assistia muita TV. E eu e o outro não, a gente era mesmo de rua, era mesmo de brincar.
3:29 P/1 - Você lembra da casa onde você passou a sua infância, como era?
R - Lembro, o quintal enorme, criava galinha, criava porco. Meu pai criava bode, levava o bode para lá, principalmente dia de sexta, matava o bode. Eu me lembro disso, toda sexta feira, toda sexta feira à noite, era isso, ou era o porco ou era o bode. Meu pai matava.
4:00 P/1 - E o bairro? E a cidade?
R - A cidade era Correntes, cidade pequena, de interior, calma.
4:11 P/1 - E quais eram as brincadeiras favoritas? Você falou que brincava muito com o seu irmão. Quais eram essas brincadeiras?
R - A gente brincava muito na rua, era de corda, de correr, então era de mais, de mais. Teve época que era a turma toda da rua, a gente brincando. Meu pai dormia… Meu pai falava assim: não é para sair. Mas como a gente sabia que ele ia dormir, quando ele cochilava, a gente, ó, ia, ficava brincando na rua.
4:47 P/1 - E você tinha muitos amigos?
R - Praticamente a rua inteira, eram uns dez meninos brincando, meninos e meninas, tudo junto.
4:56 P/1 - E fora as brincadeiras, o que você mais gostava de fazer quando você era criança? R - Eu acho que criança gosta mesmo é de brincar, né? Então, era isso.
5:08 P/1 - E na sua infância, o que você queria ser quando crescesse? Qual era o seu pensamento?
R - Eu não pensava nisso. Eu não pensava em crescer. Não pensava. Só depois que a gente chegou aqui em Maceió. Aí, que tem aquelas coisas assim, as professoras que sempre perguntavam. Mas eu não sabia o que eu queria realmente ser.
5:37 P/2 - E você falou dos seus pais, né? Você falou um pouquinho aí que eles se conheceram. Você sabe a história de como eles se conheceram, um pouquinho?
R - Eles se conheceram através do meu avô, porque o meu pai ele vendia queijo também, e o meu pai comprava queijo a ele. Aí, foi assim, que a minha mãe ficou de olho nele. Segundo ele, foi a minha mãe, né? Minha mãe que ficou no pé dele querendo namorar ele. E namorava na igreja, não era nem em casa, que o meu avô também não queria. Meu avô não queria. Mas aí…
6:15 P/1 - É sobre a sua escola, você lembra do nome da sua primeira professora?
R - Lembro, tia Nena. Lembro, tia nena, era a paixão da gente, da turma inteira. Tanto é que no meu aniversário de cinco anos, foi o aniversário que a minha tia, a minha tia Penha, que faleceu recente… Aí, meu Jesus! Foi ela que preparou a festa. Foi uma festa imensa, eu nunca tive uma festa daquelas. Quer dizer, eu só tive essa, e pronto! Estou com 50 anos, e aquela foi a minha única festa. E a Tia Nena foi, foi a minha turma da escola toda. Foi nessa festa de cinco anos.
7:01 P/1 - E como você ia para a escola, como era sua rotina na época da escola?
R - Andando, era andando, a pé mesmo. No interior, tudo pertinho. Era Escola da Mônica, o nome.
7:16 P/1 - E quando você começou a sair sozinha, com seus amigos? Quantos anos você tinha? Como era?
R - Eu nunca saí com meus amigos, meus pais nunca deixavam, eu sair com os meus amigos. Até mesmo no interior. Até 11 anos eu morei lá. Aí, realmente tinha bailes, que bailes do interior é bem falado, badalado. Era assim, a cidade inteira, principalmente no sábado, era assim, organização, e compra roupa e tudo assim. Mas eu não, eu só fazia olhar e não ia, porque os meus pais não deixavam.
7:57 P/1 - Você falou que se mudou para Maceió, né? Por quê a sua família mudou?
R - Porque a minha mãe decidiu em comum acordo com o meu pai, que ela vinha para aqui com os três filhos, para a gente estudar e ela trabalhar. Porque até então ela só era dona de casa. E meu pai era muito ruim na questão financeira, era muito fechado. Aí, ela sentia muita falta do ganho dela mesmo. E ele: “tá, tá bom”. Então, viemos para cá. Não me lembro o ano, 1980 e pouco, 1984, 1985 por aí.
P/1 - E você sabe o motivo de ela ter escolhido Maceió?
R - Sei, porque as minhas tias moravam aqui. Quando meu avô saiu de Correntes, de Pernambuco, vieram todos para cá, para Maceió. Então, assim, a gente vinha aqui todo ano, né? As férias nossas eram todas aqui, em Maceió. Então já tinha esse vínculo aqui.
P/1 - E quando você chegou aqui, qual foi a sua primeira impressão?
R- Como eu já vinha pra cá, por mim, foi ótimo! Senti falta do interior? Senti! Que é totalmente diferente, rotina totalmente diferente, escola também. Mas assim, foi legal, de boa.
9:33 P/1 - Qual foi o bairro que vocês se mudaram?
R - Para o Farol, para ficar próximo das minhas tias. Moramos dez anos na Íris Alagoence, no Farol.
P/12- E você, chegou aqui, como foi mudar de escola, conhecer novos amigos?
R - Pra gente jovem não é tão difícil, né? Para mim foi assim de boa tudo. Tudo, tudo, tudo. A única pessoa da minha família mesmo, que ficou rebelde, foi o meu irmão do meio. Foi a viagem inteira, de Correntes até aqui, ele chorando. Chegou aqui ele estava com uma febre altíssima. Ele não queria sair de lá de jeito nenhum. Tanto é que quando ele chegou aqui, ele não estudou. Ele foi assim, foi o rebelde, foi ele. Mas isso tudo depois que ele chegou aqui.
10:29 P/1 - E a sua primeira escola aqui em Maceió?
Foi a Cônego Machado, ela funcionava no prédio do CESMAC (Centro de Estudos Superiores de Maceió), hoje.
P/1 - E tem alguma professora lá que marcou?
R - Aí eu não lembro, porque eram vários professores, já era o sexto ano. Aí, eu não lembro.
P/1 - Algum amigo?
R - Também não, de nome não lembro não.
10:57 P/1 - Quando você saiu do Farol, você disse que morou dez anos. Você saiu do Farol e foi morar em que bairro?
R - Bem, depois de dez anos… Aí, eu comecei a namorar cedo aqui, namorei… Quer dizer, cedo para a época, namorei com 15 anos. Aí, eu fiquei grávida cedo também. Aí, meu pai comprou a casa em Bebedouro e eu fiquei morando na casa que eu morava com os meus pais. Então, eu só fui para lá depois de dois anos assim, que os meus pais estavam lá em Bebedouro.
11:35 P/1 - Você falou que teve filho cedo, né?
R - É, para a época 18 anos era cedo, 1992.
P/1 - Você teve quantos filhos?
R - Dois.
P/1 - Quais os nomes dos seus filhos?
R - Caroline e Júnior.
P/1 - E o seu relacionamento com eles?
R - Bem, até então.
11:57 P/1 - E quando você se mudou para Bebedouro, qual era o seu endereço? Onde você morava?
R - Era Rua Cônego Costa, número 3835. Era a principal de Bebedouro.
P/2 - E como começou a sua relação com o bairro de Bebedouro?
R - Mesmo eu morando no Farol, eu ia sempre para lá, porque o meu casamento não foi tão bom, então eu passava muito tempo só. Aí, eu corria pra lá, eu ficava mais tempo lá do que na minha casa, no Farol.
12:33 P/1 - E como era sua vida lá em Bebedouro? A sua rotina? O que você gostava de fazer?
R - Eu sempre fui uma pessoa assim, de casa para o trabalho. Mas o que eu fazia mais lá era ir para a igreja, que era bem pertinho? Bem próximo. Eu ia muito para lá. As pastorais que eu tentava ir, participar, ser membro de alguma pastoral. E eu ia muito na praça também, porque assim, quando eu fui para lá realmente, quando eu me separei. Aí, os meninos eram todos pequenos, dois, três anos, então ia muito na praça. Muito! Toda noite era naquela praça.
13:32 P/1 - Ana, você lembra do seu primeiro emprego?
R - Meu primeiro emprego foi em uma… Bem, o meu primeiro emprego mesmo, foi com a minha tia, que a minha tia tinha um laticínio, ela vendia carne de sol no Farol. O meu primeiro emprego foi lá. Eu passava o dia lá, e à noite eu ia estudar.
13:59 P/1 - E os outros trabalhos que você teve?
R - Aí, foi no consultório médico, depois foi numa clínica médica, depois foi no hospital. Acho que eu já tenho mais de 20 anos de recepcionista.
P/2 - E como era sua rotina? Você falou que trabalhava com a sua tia, como era a sua rotina nesse tempo com a sua tia?
R - Eu passava o dia lá, mas assim, como era na casa dela mesmo, era muito bom. A minha avó ia lá, a minha avó chegava com carne de sol frita pra mim, com um cuscuz, com pão assado. Almoçava lá também. Eu só saia de lá à noite, realmente, para ir estudar. Eu estudava na Escola Técnica do Comércio, fiz técnico de contabilidade lá. Porque eu pedi para o meu pai para ele pagar para mim uma escola, mas ele disse: “Você trabalhe e você mesmo pague, que eu não vou pagar não”.
15:04 P/1 - E atualmente, qual o seu trabalho? Sua profissão?
R - A mesma coisa. Recepcionista do consultório médico. Fotógrafa também.
15:17 P/2 - Você chegou a fazer faculdade?
R - Fiz, eu fiz faculdade de contabilidade, superior. Mas não atuo na área.
P/1 - E como foi essa escolha para fazer contabilidade?
R - Porque eu queria realmente estudar, fazer um curso, eu pensei, já que eu tenho o técnico, então eu vou fazer o superior. Aí fiz! Foi uma época muito louca, porque foi justamente na época que eu perdi meu pai, meu pai faleceu. E no mesmo ano a minha filha ficou grávida. Foi assim, meu pai faleceu em abril, no mesmo mês… Meu pai faleceu dia primeiro de abril. Não é mentira, verdade mesmo. E no dia 21 do mesmo mês, mês de abril, que é um feriado, vê como as coisas marcam, né? A minha filha chegou para mim e disse: “Mãe, estou grávida!” Eu fiz, “Menina, que história. É mentira isso.” Mas enfim, não era mentira. Aí, pronto! Foi justamente nesse ano. Aí, eu fui estudar, a minha neta nasceu. Aí, eu trabalhava muito, era de manhã, de tarde, trabalho, à noite, faculdade. Quando eu chegava, ainda ia olhar a minha neta, ficava com ela um pouquinho. Mas, estou aqui. Diga mais.
16:47 P/1 - E como era a sua rotina, a sua vida, antes do afundamento dos bairros?
R - Tá! Antes do afundamento dos bairros, como eu não tenho transporte, mas o ponto do ônibus era bem próximo a minha casa, então, assim, 6h00 o sino tocava, então eu já sabia que era para ir para o ponto. Rapidinho eu chegava lá, 40 minutos eu chegava lá no meu trabalho, na Jatiúca. Para voltar também, assim, eu fazia muito esporte, porque eu… Então, eu chegava em casa, almoçava, tomava meu banho e já saia de novo. Pegava o trem, pegava o trem de cinco horas da tarde, ia para o SESC (Serviço Social do Comércio), do SESC eu ia para a orla, e da orla eu voltava para casa. Mas mais era tudo assim, nove horas pegava o ônibus, porque eu já sabia dos horários todos. Nove horas pegava o ônibus na orla, nove e quarenta, dez horas, no máximo, estava na minha casa. Era isso. Era tudo perto.
18:01 P/1 - E os vizinhos? Tem algum vizinho que lhe marcou? Alguns vizinhos que lhe marcaram?
R - Olha, o nosso vizinho de Bebedouro, era uma pessoa bem… Chamava-se Coronel Floriano. Ele era muito prestativo. Como ele sabia que meu pai não morava lá. Ai, de vez em quando ele ia lá. “Qualquer coisa me chama aqui.” Porque assim, o quintal lá, era mangue, então o quintal era aberto. Se a gente fosse estender alguma roupa, a gente tinha que ir lá de vez em quando olhar, porque se não a gente ia ficar sem roupa. Teve época que os meus filhos ficaram sem nenhuma roupa, porque foram lá no quintal e roubaram tudo. Porque o quintal aberto. Então, como ele já era acostumado, já sabia disso tudo, ele estava sempre lá. Então, assim, foi um vizinho pai, porque sempre estava lá. “E aí, como está?” “Tudo bem, não sei o que. “Olhe, dei uns tiros ali…” Que de vez em quando ele dava mesmo uns tiros. “Dei uns tiros ali que foi uns cabrinhas que estava aqui, mas pronto, já passou.” “Tá certo Coronel. Tá bom!” Pronto!
19:23 P/1 - E os lugares do seu bairro que mais lhe marcaram?
R - A praça. A praça é o point de Bebedouro. A praça era encontro, a praça era desencontro, na praça começava a namorar, na praça terminava o namoro. Era tudo ali na praça. Os parques. O parque, eu ia lá, duas vezes por ano, e era sempre o mesmo parque de diversão.
O parque do Seu Josué. Então, como iam todo ano, e a gente morava lá próximo, e a minha mãe também tinha uma banquinha na praça, vendia pipoca, vendia água, vendia refrigerante. Então, tudo amigo. Então, meus filhos nem pagavam mais. Teve época que os meus filhos nem pagavam parque mais. Porque os funcionários também eram os mesmos todo ano, as duas vezes no ano, eram as mesmas pessoas. Então, o vínculo, né? E eles também viram os meus filhos crescendo, essas pessoas do parque. Como eu também vi os filhos deles crescerem, casarem e ter filhos. Olha só.
20:44 P/1 - E paisagens e os caminhos que marcaram você ali em Bebedouro?
R - Da minha casa, o mangue. Da minha casa, o quintal. Porque o quintal, como ele era grande. E foi assim, o que apaixonou o meu pai, foi o quintal. Veja só. Meu pai era uma pessoa de sítio, lidando com a terra e tal. No quintal tinha pé de banana, tinha pé de amora, tinha pé de goiaba, tinha pé de acerola. Manga não tinha não, mas o vizinho tinha, a gente ia lá pegar. Cajá não tinha, mas o vizinho tinha, a gente ia lá pegar. Porque na época de cajá, era tanto cajá, que o meu irmão vendia cajá, e não era no nosso quintal, era no quintal do vizinho do vizinho do vizinho. Mas a gente ia, porque era tudo aberto. Então, o quintal era assim… Eu tinha maior vontade de ver um jacaré ali no quintal, nunca vi. Nunca. Às vezes eu ficava lá, sentava, não no meu quintal, mas no quintal do vizinho, do meu vizinho, que dava mais para a lagoa. Que a gente podia ir, porque no meu não, era muito mangue, quintal da minha casa era muito mangue. Então, a gente não podia ir muito além. Mas no do vizinho a gente podia.
22:15 P/1 - E que festas, celebrações, tradições culturais marcaram você e a comunidade ali de Bebedouro?
R - As festas de sempre, as festas de junho, que era a festa de Santo Antônio, que era muito esperado, muito organizada também. Que vinha o mesmo parque, que era o parque do Seu Josué. E tinha a procissão, e tinha o famoso bolo de Santo Antônio. E as festas de final de ano. Carnaval nem tanto, porque na época que a gente chegou lá, o carnaval não era muito festeiro, muito festivo, já era uma coisa mais que vinha assim… Como é que eu vou dizer? Diminuindo mesmo. Mas a festa de Santo Antônio, e as festas do final do ano, não, nunca diminuíram, nunca. Então, é isso que realmente marca. Olha, para vocês terem uma ideia, como a gente morava próximo, a gente ficava na porta de casa, só observando as pessoas indo e vindo. Parecia interior mesmo. Festa de interior, porque ia gente para lá de todos os bairros, pessoas que a gente nunca tinha visto ali no bairro, mas nas festas eles desciam. Ou desciam do Chã da Jaqueira, ou desciam do Chã de Bebedouro. Flexais também. Fernão Velho. Mas todos iam, todos. E a gente notava que era uma pessoa diferente, porque a gente nunca via. Até a roupa também era diferente. Aí, a gente ficava na porta só observando isso.
24:06 P/1 - Ana, você lembra do primeiro tremor que ocorreu?
R - Lembro, em 2018, um sábado à tarde. Eu tinha acabado de limpar a casa, e na minha casa a gente sentiu. Eu, meu irmão, meus filhos, todos sentimos. Só minha mãe que não sentiu, que ela disse. Mas os outros…
24:33 P/1 - E o que você escutava sobre? Escutou nas mídias, as pessoas falando?
R - Das mídias, como eu não sou muito de assistir TV, eu não vi muito. Mas as pessoas realmente vinham, “Olha, Bebedouro vai afundar! O Bebedouro vai afundar, Bebedouro vai afundar”. Depois disso. Mas isso já foi, eu creio que depois de uns seis meses, oito meses. Porque até então, tudo era voltado para o Pinheiro, tudo era Pinheiro, tudo era o Pinheiro. Então, jamais eu podia imaginar que a gente também ia ser assim tão atingindo.
25:18 P/1 - E você foi atrás de informações para saber?
R - Não fui! Não fui. Mas assim, quando… Um certo dia, quando eu saí de casa em plena pandemia, que eu vi via interditada, próxima a minha casa, bem na calçada. Aí, foi que eu fiz, o que está acontecendo? Será que isso realmente vai atingir aqui? Porque eu não sei se a gente fica assim, meio negando a situação, e tentando assim, não saber, não entender. Porque realmente é um absurdo isso. Mas naquele dia eu disse, eu vou olhar o que é. Aí, fui olhar o que era. Era o Mutange já. Porque o Mutange já estava praticamente esvaziado. E o pior é que ninguém percebeu. Quer dizer, pelo menos a gente ali, de onde eu morava, a gente não viu, porque era muita mudança de tudo. Muitos carros de mudança, principalmente no final de semana, sábado. Sábado, então, eram sete, às vezes, tinha uma rua que eram sete mudanças, sete caminhões. Mas assim… Aí, eu fui lá. Fui lá, olhei, olhei, tudo muito vazio. Aí, eu voltei para casa, aí eu comentei com a minha mãe. Disse: “Ó, o Mutange já está bem vazio.” Eu lembro que era pandemia, ninguém saía de casa, então foi bem surpresa para mim, assim. E outra coisa que até hoje me deixa com muita raiva, muito ódio. É que fecharam, fecharam o Mutange para eles. Fecharam com guarita, fecharam com portão, guarita, vigilante e tudo. Uma via pública ali, que eu passava todos os dias para ir trabalhar, e milhares, e milhares de pessoas passavam ali. E fomos proibidos passar. Nós, cidadãos de Maceió. É um absurdo isso.
27:53 P/2 - Ana, com relação a notícia, como foi receber a notícia de que vocês precisavam sair de lá? Você disse que foi acompanhado o Pinheiro, Mutange. E quando chegou a notícia, você lembra de como foi esse impacto? Você já estava pronta, esperando ou você ainda estava naquela expectativa de não ter que sair?
R - Não, eu ainda estava sem acreditar. Então, a minha mãe, que ouviu o prefeito Rui Palmeira, na época, falar sobre o mapa. Aí, ela viu que ele falou Bebedouro, ela ouviu. E a minha filha também teve lá, bem apreensiva. Também foi lá na minha casa com mapa. “Mãe, você está aqui. Olhe isso aqui, e agora?” Minha filha ficou apavorada, ela ficou. Eu disse: “Mulher, isso é mentira!” Eu disse: “Isso é mentira.” Aí, a gente foi lá olhar o mapa. Olha, isso aqui sempre aconteceu, alagamento aqui em Bebedouro, sempre, sempre, sempre. 30 anos morando ali, ali perto da ponte mesmo, todo ano, chovia além um pouquinho, pronto, já enchia tudo. E só passava ali de canoa. Então, sinceramente, eu não acreditei, até aí. Eu disse: “Mulher, se acalme.” “Mas mãe, eu não durmo mais, não sei o que…” Ela ficou com síndrome de pânico mesmo. Ela ficou. “Mulher, se acalme. Não vai acontecer isso. Isso é mentira. Isso é mentira.” Foi assim. Aí, quando realmente eu me dei conta que a gente ia sair, aí foi que eu soube que tinha um grupo lá, SOS Bebedouro, que lá tinha as pessoas que realmente sabiam o que era.
Até então eu não sabia nem assim, ver o mapa direito, o que era criticidade 00, 01, 02, 03, eu nem me lembro mais. Mas as pessoas ali sabiam, então eu tinha como realmente ter aquele mais. Como é que eu vou dizer? Entender mais aquele mapa. Pronto, aí foi isso que eu fiz. Falei com uma pessoa, para a pessoa falar com o administrador, que era para me colocar ali no grupo, que era para eu entender mais isso. Tanto é que a minha mãe disse: “Olha, tu se vira, eu não sei de nada, não quero nem saber, tu é que vai tomar conta de tudo.” Meu Jesus, como é que eu vou tomar conta disso? Porque a casa é dela. A casa não era minha, então ela… E foi assim. Ai lá… Meu Deus! Eu lembro muito bem de uma noite, de um áudio que ouvi ali no grupo, de uma pessoa super, hiper desesperada. Por quê? Porque eram duas famílias, a casa era de primeiro andar, e essa pessoa morava no primeiro andar. E ela estava assim, um absurdo, por que a casa dela não entrou no mapa? É outro absurdo, é que a Diagonal, ela estava ligando para lá direto, ligando, ligando. “Quando é que você vai sair?” “Minha filha, como é que eu vou sair se a minha casa não entrou no mapa?” E ela chorava, desesperada, ela chorava. Estava bem deprimida essa pessoa. Morava lá em Bebedouro, perto da praça também. Eu me lembro.
32:06 P/1 - Além do você estar nesse processo, você também acompanhou o que estava acontecendo ao redor, através desse grupo?
R - Sim. E vendo os vizinhos saírem. Vendo os vizinhos saírem.
P/1 - Você pode narrar um pouco do seu processo de saída? Quando você recebeu a informação que precisava sair.
R - Certo. Aí, depois disso, aí eu mesma liguei para a Defesa Civil, e eles foram lá em casa, na minha casa, olharam lá direitinho, mediram, tal. Aí disseram que… Tanto é que a minha casa nunca foi selada, ela não foi selada. Porque eu não sei. Eu creio que é porque foi a própria Defesa Civil que foi lá, e não a Diagonal, que é a empresa que a Braskem tem parceria com ela. Então, ela nunca foi selada. Eu nem sei o número do selo da casa, eu não sei. Mas assim, mesmo assim, a gente ainda passou um ano lá. Isso foi em 2020. E a Defesa Civil foi lá duas vezes. Foi lá primeira vez olhar, e disse que realmente a gente tinha que sair. Depois foi lá novamente, para perguntar porque a gente ainda não tinha saído. Mas a minha mãe botou pra fora, todo mundo. Eu não estava em casa. Mas a minha mãe disse: Eu botei tudo para fora, disse que eu só ia sair da minha casa no dia e no horário que eu quisesse. Não no dia que eles quisessem. Então, aí eu contratei o advogado deste mesmo grupo, que eu acho que era uns três que tinha lá. E daí ele foi agilizando o processo. Mas eu não gostei da atitude dele, não. Porque era para a gente ter assim… Era para a minha mãe ter um ganho a mais. Mas tudo dele era assim, “Aceite isso, porque é melhor. Se você não aceitar, vai ser mais um ano.” Aí, pronto! Era isso que ele falava.
34:49 P/1 - Você falou que a sua mãe trabalhou ali na praça, né? Como foi para ela ter que deixar?
R - Pra ela foi péssimo. Foi a mais que sofreu, e sofre até hoje. Eu digo que isso para gente, assim, ficou muitíssimo difícil, com sequelas. Porque depois de quatro meses ela sofreu um AVC (Acidente Vascular Cerebral). E antes disso, ela se trancou. Era só do quarto para a cozinha, do quarto para a cozinha. E estava sempre doente, sempre doente. E pronto! Depois de uns quatro meses, aí ela sofreu esse AVC. Que não foi um AVC forte. Foi um AVC? Foi um AVC, mas não foi um AVC muito forte, que agride muito. Mas que ela não quer viver mais. Até hoje. Para vocês terem uma ideia, ela não vai para a porta de casa, é só em casa. Não vai. Não vai para missa, por exemplo. É só em casa mesmo. Ela hoje não anda, precisa de uma pessoa para tudo. Que a própria médica falou: “Mas Dona Maria, eu não entendo porque a senhora ainda não está nem andando.” Ela não vai andar normal, porque a gente sabe que quem sofreu AVC não anda normal, normal? Como antes. “Mas já era para a senhora está andando, por que a senhora não anda?” Mas ela sempre bota uma dificuldade. Sempre, “Não, eu não quero, não.” Eu falo muito com ela. O meu irmão também fala muito com ela. “Vamos andar, pelo menos ali.” Em casa mesmo. Ela não quer. Eu falo assim, para ela hoje, se ela comer está bom. Se ela tiver roupa para vestir, bem, se ela não tiver, também. Entendeu? Então, ela está assim. A vida dela está assim agora. Não tem ânimo para nada. E de vez em quando ela fala assim: “Cinco horas da tarde, cinco horas da tarde eu já estava tomando meu banho para ir para a praça”. Então… Festas também, junho, agora, ela lembra muito, porque ela vendia mais, por exemplo. Por causa do parque, as pessoas iam mais. Missa todos os dias, pelo menos nove dias, que é a novena. E final do ano também. Final do ano também, eram 15 dias de vendas, de mais vendas. E outra coisa, minha mãe gosta muito de conversar, então ela conversava com muita gente lá. Muita gente mesmo. Uma pessoa que sentava lá, falava boa tarde. Misericórdia, não saía de lá mais não. Minha mãe já sabia da vida dessa pessoa todinha, porque ia perguntando, ia perguntanto, pronto! Minha mãe era assim. E os mototáxis lá, todos, todos, todos gostavam dela. Ela levava café, ela levava cadeira, as cadeiras, não ficava uma cadeira para a gente sentar em casa, porque ela levava todas as cadeiras. Levava água para eles, era. Ela comprava água. Teve um dia que eu falei: “Mãe, a senhora vai comprar água para levar para os meninos?” Aí, ela disse: “O dinheiro é meu. Eu vou levar dessa água que a gente bebe para eles.” Levava água para eles. Ela era assim. E todos chamavam ela de tia, sentava e conversava. Conversava de tudo, de tudo, até putaria conversava com ela, era. Aí, pronto, é disso que ela sente falta.
39:04 P/1 - E como foi para vocês esse processo de mudança, de procurar um novo lugar para morar?
R - Tá! Não foi assim, um novo lugar, porque eu já morei lá. Que é na Cidade Universitária. Que a casa é minha. Quando eu soube realmente, quando caiu a ficha que a gente ia sair. Aí, ela chegou para mim e disse: “E agora, a gente vai para onde?” “Mãe, tem a minha casa.” Ela estava alugada na época. “Tem a minha casa, ela não é igual a sua, ela não é igual aqui, ela não é grande, o espaço lá é bem menor, a senhora vai ter que deixar alguns móveis. Quer ir para lá?” Ela: “É bom, né?” Pronto. E foi justamente lá, no mesmo conjunto, que eu comprei a casa dela, É próximo, assim, a gente mora quase vizinhas, é bem próximo. Então, para mim, não é novo lá. Foi novo para ela, novo e totalmente diferente, o contrário que era Bebedouro, porque a gente morava no centro, vamos dizer assim, de Bebedouro, né? Aí, era muito barulho, muita buzina, o trem, o sino da igreja, e as pessoas. Movimento demais ali, que não parava, nem de madrugada. Bebedouro não dormia. Em frente a minha casa tinha o que? Tinha passaporte, acarajé, tinha o Baixinho do Lanche. Então, era tudo assim… Saía 3h00, 4h00, entendeu? Então, acho que Bebedouro não dormia. E onde a gente mora hoje, não passa nem um pé de pessoa. Então, assim, é totalmente contrário, isso também para ela foi ruim. Para mim não foi tanto, porque eu trabalho. Eu trabalho, sou mais jovem. Aí, eu tento, assim, como eu deixei a igreja lá. Aí, o que foi que eu fiz quando cheguei lá, eu vou procurar igreja de novo, e vou procurar as pastorais e vou ver se eu consigo ser membro da pastoral. Igual era lá.
Mas ela não! Entendeu? Ela realmente se fechou. Foi muito difícil para ela, porque assim, foi ela que escolheu a casa para meu pai comprar, foi ela que escolheu o lugar, foi ela que gostou do lugar. Em primeiro lugar, foi ela. Porque ela disse uma vez que foi assim, ela foi para uma consulta no HU (Hospital Universitário), e por acaso ela pegou ônibus errado, ela pegou ônibus de Bebedouro e não pegou ônibus Farol. Aí, quando ela passou, quando ela viu aquilo, aquele movimento de Bebedouro. Aí, foi passando, viu o posto de saúde, que era bem na rua onde a gente mora, aquele movimento todo, como eu já falei, viu a praça, viu a igreja. Pronto! E olhe que coincidência. E viu, justamente essa casa, com a placa de vende-se. Aí, ela não deixou mais o meu pai em paz. “Você vai comprar a casa. Vem aqui, vem olhar e tal.” Aí, meu pai veio. Entendeu? Meu pai comprou porque ele gostou do quintal, que ele disse. “O quintal, quando eu chegar aqui eu vou passar o dia todinho no quintal, limpando o quintal e vendo o que eu posso fazer no quintal.” E ela não, ela gostou já do comércio, porque ela queria mesmo abrir um negócio para ela, fazer um ponto. Meu pai fez o ponto do negócio pra ela. Meu pai fez o ponto, então… Que ela começou a vender queijo, começou a vender carne de sol também, que era o que a minha tia também vendia. Minha tia ensinou a ela. Então, assim, o sonho foi dela. Então, eu creio que isso para ela também é muito difícil. Como eu fui morar lá depois que meus filhos nasceram, e eu fui morar lá porque eu me separei. Então, assim, a casa não era minha, eu nunca senti que a casa era minha. Mas a casa era dela. Como ela mesmo dizia, essa casa é minha. Entendeu?
43:51 P/1 - E como ficou o imóvel após a saída de vocês?
R - Como ficou? Bem, deixamos alguns móveis lá, porque ela tinha aqueles móveis antigos, grandões. Isso também para ela acho que foi uma dor tremenda, muito forte. E eu ia lá, depois que a gente saiu, mais ou menos uma vez por semana eu ia lá com o meu irmão. Porque assim, a gente se apega realmente. Mas no dia que a gente chegou lá, que estava tudo tampado, que a Braskem tampou, gente do céu, a cabeça ficou assim. Eu olhei para o meu irmão, meu irmão se entristeceu na mesma hora, na mesma hora. A gente voltou. Que o intuito da gente, realmente, era entrar como antes. Como a gente vinha sempre fazendo. Embora, que a cada semana que a gente ia, o mato já ia tomando conta, já tinha formas. Eu até fui lá e fotografei. Tinha um corredor, não largo, mas era bem fundo, que dava até para o quintal. Porque a casa, ela foi feita meio ao lado, tinha um corredor grande, e ao lado era os cômodos. E que se a gente fosse direto, dava para o quintal. Aquele corredor todinho, cheio de mato. Bonito, uma coisa linda assim, mas… Pronto, a gente ia lá… Aí, eu ia lá com ele, fazia fotos da casa e tudo. Nesse dia eu não fiz nada. A gente não entrou, a gente não consigo entrar na nossa casa. Então, foi um impacto. E depois desse dia meu irmão nunca mais falou sobre Bebedouro. Parece que Bebedouro apagou… Ele apagou Bebedouro da memória, ele apagou. Meu filho nunca mais veio. Meu filho também é outro. Desde a nossa mudança que ele não fala em Bebedouro, ele não fala. Nem passar. Porque eu já perguntei a ele, ele disse: “eu não quero passar lá”. Ele cresceu lá, cresceu. Aprendeu a andar de bicicleta, caiu, se acidentou uma vez ali, que eu tive que ir para o hospital com ele. Foi feio, viu! Foi feio mesmo nesse dia. Enfim, coisa de criança. Então, a vida dele toda ali, para ele também é difícil. A única corajosa de casa sou eu, porque até hoje eu passo por lá. E o que eu também fiquei bastante triste, foi com o mangue, porque hoje a gente não vê mais o mangue. Não existe mais a casa, ela foi demolida. E justamente em cima do mangue gente. Tinha caranguejo ali no mangue. Moramos lá 30 anos, a gente nunca comeu um guaiamum. Mas eles entravam na minha casa, viu! A gente só via as patinhas deles ali, principalmente quando chovia, aí eles saíam da toca, acho que ficava tudo perdido, aí entrava em casa e ficava… Mas a gente mesmo, nunca, nunca, nunca, a gente nunca comeu. Teve uma época que eu até peguei, viu? Peguei um pneu grande, enchi… Ainda dava comida para eles, mas roubaram, roubaram com pneu e tudo. Eu sinto, eu sinto muito o mangue está como está hoje.
48:12 P/1 - Você falou que fotografava a sua casa. Como era para você fotografar isso? E como foi fotografar o desaparecimento dos bairros, da sua casa mesmo?
R - Eita! Aí foi um desafio muito grande. Porque quando eu saía para eu fazer as fotos, eu não saia só, sempre saia com o meu irmão. Porque também estava muito esquisita a rua e tal, eu sempre levava ele. Mas em certas residências que a gente entrava, a gente sentia mesmo, vamos dizer, uma energia, não tão boa, uma coisa meio abafada, meio nebulosa. E eu chegava com dor de cabeça em casa. Chegava. Principalmente nas residências que estavam com mais… E não vou dizer mais lixo. Mas as lembranças mesmo que as pessoas deixavam ali e faziam questão mesmo de deixar, como se fosse… Se eu deixar isso aqui, eu vou esquecer, então eu deixo aqui. Porque de quadros de fotografias tinha lá, e muitas e muitas outras coisas. Sofás, cadeiras também. Mas eu acho que a maior lembrança são as coisas pequenas. Porque você deixa um quadro de fotografia de um parente ou de uma mãe. Não sei, eu acho que isso é muito forte, eu acho que é coisa assim mesmo, não, eu quero esquecer isso tudo que eu estou passando aqui. E também eu entrei na intimidade deles assim, porque em cada residência eu vi coisas diferentes. Tinha uma que me chamou muita atenção, que foi um apartamento, que foi no conjunto Freire Ribeiro, em Bebedouro, um prédiozinho pequenininho que tem lá, o único. Era assim, era uma parte da sala todinha colada com fotografias antigas de Maceió. Muito lindo aquilo. E uma residência também que tinha tinha fotos, era uma casa, eu acho que era a casa de uma adolescente, que tinha o mar, tinha um surfista lá. Eu disse: “olha só, então ele gostava disso”. Então, ali é a personagem mesmo, e a pessoa que morava ali, dona daquele quarto, vamos dizer assim. Então é a personagem da pessoa. Eu disse: olha só! No início mesmo eu me sentia meio assim, será que eu devo entrar sem bater na porta? Mas quem é que vai abrir se está tudo abandonado assim. Abandonado, não, que eu não gosto dessa palavra, porque nós não abandonamos, nós fomos expulsos mesmo. Saímos porque botaram para fora. Não tivemos voz nem vez. Ninguém veio falar com a gente, e a gente também não falou com ninguém. Simplesmente saiam. E só. Então, foi um desafio, foi muito difícil, mas também pra mim foi muito valoroso assim, porque é memória. Eu tenho imagens do Mutange que ninguém tem, porque eu fui lá logo no início. E no Mutange, já próximo da linha do trem, já próximo ao Bom Parto, ainda tinha pessoas. E como, vamos dizer assim, do meio assim, não tinha mais ninguém, ninguém. Então, os moradores tinham que botar uma placa na porta, que ali existem moradores, porque eles estavam sendo roubados, as pessoas de madrugada iam lá, então iam mexer no teto, mexer em telha. Então, eles tinham que avisar que ali tinha gente morando. Enquanto o resto não tinha, aquela ponta que era… Eu não recordo bem, mas umas cinco residências ainda tinha, nessa época, 2020, março, abril por aí, 2020. Então, eu tenho essas imagens.
53:45 P/1 - E o que as palavras de expulsão e fotografia significam pra você?
R - Ah, significa muito. Porque é o que a gente sente mesmo, como eu já falei, a gente sente expulso. Quando a gente é expulso de alguma coisa assim, de algum lugar, primeiro é porque a gente faz alguma coisa errada. Nós não fizemos nada errado. Será que nós erramos porque nós estávamos morando lá? Foi o único erro da gente, e não o crime. Então nós, moradores, pagamos por um crime que não cometemos. E fomos silenciados e colocados para fora. Então fomos expulsos. Então, quando eu estava estudando fotografia e pandemia, e participei de um grupo, que esse grupo era assim, para falar sobre fotografias e a meta era sair dali um Fotolivro Alagoano. Aí, a pessoa, o mentor, falou assim: “Vamos pensar em algum tema e tal”. Tá bom. Depois pensei, poxa, eu estou aqui ainda, não tem um tema melhor do que a gente falar sobre esse crime. Aí, na próxima reunião, aí eu fui e falei, botei isso no grupo lá, aí as pessoas: “Ah, que bom, muito bom! Ah, eu quero, que bacana… não sei o que. É denúncia, isso é memória, é denúncia.” Cada um falou e tal. Aí, eu sei que umas 20 pessoas falaram, “Não Ana, estou contigo, vamos planejar, vamos focar.” Só que era pandemia, ninguém saía. Eu saía, mas as outras pessoas não. Então, as pessoas foram saindo, porque a desculpa foi essa, que era pandemia, que não podia sair. Como era que ia fazer as imagens? Aí, foi saindo, saindo. Aí, ficaram cinco. Aí, veio o nome. Qual é o nome? Aí, não me veio outro. “O nome é Expulsão.” Até uma pessoa lá, falou: “Ah não, bota outro assim.” Eu disse: “Não, vai ser expulsão.” Essa pessoa até ficou meio chateado. Mas é porque, como eu já falei, é como a gente se sente. Se vocês falarem, acho que vocês falaram com outras pessoas. É assim que elas se sentem, expulsas. Porque ninguém chegou lá e falou… não foram conversar. “O que está acontecendo? Vamos ver aqui se tem rachadura e tal, vamos conversar. Como é que vocês se sentem? Pra onde vocês querem ir?” Não, isso não aconteceu. Não tivemos prioridade, porque a minha mãe é idosa, não aconteceu. Então, foi só assim: “Saia!” Então, era expulsão mesmo. Então, eu fui, segurei, o nome é Expulsão. Até hoje.
57:28 P/1 - Você falou do mangue, né? Você sentiu os impactos ambientais por conta do desastre?
R - É, a princípio o mangue que eu via muito, eu convivi, isso foi o que me chocou assim. Mas tem várias histórias de pescadores que até hoje reclamam também. Então, eu sinto também. Que eu também ouço histórias. Até de lugares, como é que eu vou dizer? Eles não podem ir para certos… Eu não sei se é certo falar, mas certo lugares da lagoa, porque a Braskem não quer, entendeu? Então, até a lagoa é dela, até uma parte da lagoa é dela. Porque eu já ouvi o pescador falar, “Eu fui pescar, cheguei até um certo ponto, eu fui parado. Chegou lá um drone mandando eu sair.” Porque era área particular. Particular de quem, uma lagoa? E porque eu não falar que isso também não me atinge? Claro que me atinge isso. Me atinge porque eu era de lá. O sururu que não tem mais. O sururu que vendia muito na ponte. Minha mãe falava: “Eu quero sururu hoje, vai ali comprar.” Com cinco minutos a gente ia e voltava, com um sururu gordo, que ela dizia que queria gordo. “O mais amarelinho, amarelinho, amarelo.” E hoje a gente não tem mais isso. Não é? Então, senti sim.
59:43 P/1 - E qual o impacto do desastre para os animais domésticos, os silvestres?
R - Bem lembrado. Na época a gente tinha mais de dez gatos, porque meu filho ama gato. E justamente um, que era o mais velho, que era o Lourinho, que a gente deixou ele. No cio, um animal no cio. Eu falei. Eu disse: “Pega esse gato.” Quando ele chegou em casa. “Pega esse gato e amarra esse gato, porque amanhã ele não vai estar aqui.” Ai, o meu filho: “Eu vou amarrar o meu gato?” Não sei o que, não sei o que. Menino, quando o caminhão chegou, lá vai ele procurar o gato. E cadê o gato? O gato não chegou, o bichinho. Aí, a gente deixou ele. Nunca mais a gente viu esse gato. Ele já estava até grandinho. E deixaram vários animais, vários animais. Na minhas andanças eu vi vários animais, principalmente gatos, cachorro não muito, principalmente gatos. E a gente que cria, dá uma dó, com fome ali. Às vezes até machucados.
1:01:05 P/1 - E qual impacto do desastre para a vegetação?
R - Para a vegetação… Olhe, eu vi a minha casa toda cheia de… E eu achei ali bonito. Eu achei bonito ali, porque é justamente ela que está tomando conta da área, vamos dizer assim. Hoje, quando eu passo lá, eu fico só observando as formas, elas entrando nas residências que ainda tem. Que não tem porta, não tem janela, mas ela vai e faz aquela forma e fecha aquela janela com os seus… Eu acho lindo ali. Acho bonito.
1:01:57 P/1 - Ana, você sente que houve justiça nesse processo?
R - Não, não houve justiça. O desastre ainda não acabou, para mim ainda não acabou, porque existem sequelas e muitas, então ele não acabou. Para mim ele não acabou. Eu não falo não só da minha família, eu falo das várias e várias famílias que perderam parentes, perderam mães, perderam pais, perderam primos, perderam tios. Alguns se suicidaram, outros estão doentes até hoje, como a minha mãe. Outros não saem de casa também, como a minha mãe. Outros só dormem depois que tomam medicação para dormir. Então, esse desastre não acabou. Outros que não conseguiram se reerguer em outro lugar. Que eu já conversei com comerciantes, e disseram assim: “Aonde eu morava eu tinha um comércio, mas hoje aqui eu não me vejo mais como comerciante”. Então, para mim, ele não acabou. Ele continua, o crime continua aí em todo instante, todo mês e todo ano. Ele não acabou não. E eu não sei nem se ele vai acabar, viu! Porque sempre vão existir sequelas aí.
1:03:49 P/1 - Houve algum processo de reparação fora a compensação financeira?
R - Não, não houve.
P/1 - E houve danos morais, patrimoniais e extra materiais da Braskem para vocês?
R - Danos morais ela pagou, pagou pouco, mas ela pagou. Mas os outros danos não. Não.
P/1 - E o que falta ser reparado pra você?
R - Eu acho que não tem não, viu! Tem não. Assim, a praça de Bebedouro, ela é única, a casa que a minha mãe tanto gostou e comprou aonde ela queria, na rua que ela se apaixonou, aquele movimento todo. Não vai ter outra rua Cônego Costa. Não vai ter outra, não vai ter outra praça, não vai ter outra casa. Entendeu? Então, por mais que façam, não vai ter.
1:05:08 P1 - E quais as marcas que ficaram em você e na sua família?
R - Marcas ruins, foi a doença da minha mãe, porque a minha mãe andava, minha mãe se comunicava mais, e ela hoje não faz isso mais. Então, isso… E assim, para mim, são minhas pastorais da Igreja, principalmente a pastoral familiar, porque eu amava estar ali. Todos os encontros, todas as nossas atividades que a gente fazia para a Igreja, era tudo uma brincadeira, éramos muito unidos assim. E até quando eu saí da minha casa, eu ainda fiquei lá. Ainda fiquei. Mas assim, eu não participava de reuniões porque tanto começava tarde como acabava tarde, porque sempre tinha um lanche. Depois que a gente rezava, depois que a gente falava sobre o Evangelho, mas sempre tinha uma comidinha, aí era a hora da gente brincar um com o outro. A seriedade ficou um pouco para trás e a gente começava a brincar um com o outro. Como era que eu ia participar se eu moro na Cidade Universitária? Não tinha mais como.
Eu ia chegar meia noite em casa? Porque as coisas para mim hoje são muito difíceis, principalmente essa questão… percurso aumentou demais. Então, é isso!
1:07:01 P/1 - E qual o sentimento que você carrega ao relembrar da sua casa e da sua vida antes da mudança?
R - Injustiça. Como eu já falei, pagamos por um crime que não cometemos. Então, isso é injusto. Como é que vai reparar isso? Não repara, nunca. Então, o nome é injustiça.
1:07:35 P/1 - Ana, a gente já está encaminhando para as perguntas finais. O que mudou para sempre na sua vida?
R - Para sempre? O que mudou é que a gente não vai ter mais a praça, não vai ter mais aquele movimento todo, que a gente sempre via. E isso foi que mudou, porque, como eu já falei, onde eu moro é muito calmo, é totalmente contrário. Eu não gosto de lá. Não gosto, de maneira alguma. Eu sou mais o barulho, a agitação, ver pessoas. Embora que eu sou muito… Eu não falo muito, mas eu gosto de ver o movimento, gosto de ouvir, ouvir barulho. Gosto disso. A não ser que eu saia de lá, que um dia eu possa comprar uma casa em algum outro lugar, com mais movimento, com mais… Aí sim! Eu espero que não seja para sempre.
1:08:51 P/1 - E como você vê o futuro das regiões afetadas?
R - Eu não procuro ver. Eu gosto mais de esperar e ver o que vai acontecer. Porque eu espero realmente que não construam um condomínio de luxo, que é como sempre, todo mundo diz. Eu espero que isso… porque aí é bater na cara de todos os moradores. Literalmente. E chamar de otário. Então, vou aguardar.
1:09:38 P/1 - E o futuro do meio ambiente?
R - O futuro do meio ambiente, segundo a Braskem… Hoje ela está plantando, ela disse que vai reviver também o mangue e tal. Então, eu espero que ela realmente faça isso. Mas como é que ela vai fazer? Se ela fizer isso ela vai querer um pedaço, porque ela já quer um pedaço da lagoa, que já é dela. Então, não é uma coisa que ela vai entregar pra Maceió. É uma coisa que ela vai entregar, mas ela também quer uma contrapartida, vamos dizer assim. Porque pelo que o pescador falou… Então, não é de Maceió, é dela também.
1:10:35 P/1 - E o que você gostaria que as pessoas soubessem de toda essa experiência que você viveu? Que você queria que as pessoas soubessem de tudo que você passou com a Braskem?
R - Eu quero que esse crime seja reconhecido assim, em todo mundo. Eu amo ver assim, ver uma pessoa falar assim: “Olha, eu estou fazendo uma pesquisa sobre isso, sobre o crime…” Eu amo! Qualquer pessoa, de qualquer estado, podem me procurar, porque eu quero mesmo que todas as pessoas do mundo inteiro saibam o que aconteceu aqui em Maceió. Por incrível que pareça, até os maceioenses não tem ideia. Não tem ideia. Incrível como as pessoas são omissas. Então, eu quero que esse crime que todos saibam o que aconteceu, o porquê. E não venha para cá só por causa de uma mina. Como vieram aqui na Mina, Mina 18, que o mundo inteiro veio e ficou focado, voltado só para mina. Mas existem pessoas sofrendo. Então, as pessoas precisam disso. Do mundo inteiro, podem vir. Fazer pesquisa, fazer trabalho, doutorado, mestrado. Pode fazer, pode vim. Quanto mais gente vir aqui fazer pesquisa, melhor. E se o trabalho for bom, nossa, aí que vai dar visibilidade demais, demais, demais. Porque aí vem palestras, vêm revista científica, então jogue lá. É isso que eu espero. Eu luto por memória.
01:12:51 P/2 - Ana, como foi para você contar sobre essa história de vida para o Museu da Pessoa?
R - Foi ótimo, reviver, lembrar até da minha infância. E eu não sabia como era, eu pensei que era só a minha vida em Bebedouro. Mas chegando aqui eu vi que era a minha vida desde criança. Ah, foi ótimo relembrar, relembrar da minha a minha cidade natal, Correntes. Dos meus amigos, da minha professora, tia Nena. Amei! Gostei! Muito obrigada.
1:13:28 P/1 - A gente que agradece a sua disponibilidade de estar aqui conosco. Muito obrigada.
Recolher