Projeto: Indígenas Pela Terra e Pela Vida
Entrevista de Evangelista da Silva Araújo Apurinã
Entrevistado por Marcos Eurico Souza Ferreira, Luana Abílio Bandeira e Rosiene de Souza Cruz
Entrevista concedida via Zoom (Santarém (PA), Pauini(AM) e Amarante(MA)),15/02/2023
Realizada por Museu da Pessoa
Entrevista n.º: ARMIND_HV044
P/1 – Evangelista seja muito bem vindo! Para início a gente quer que você se apresente falando o seu nome, o seu povo e o seu nome indígena?
R – Bom dia! Eu sou o Evangelista Apurinã, sou do município de Pauini, da Terra Indígena Capiri Camacuri, da Aldeia São Benedito. E atualmente estou residindo na cidade, chefiando a coordenação técnica local da FUNAI.
P/2 – OK, Evangelista! Bom, hoje a gente vai fazer essa entrevista, a gente vai conhecer um pouco da sua história. E eu gostaria de saber onde você nasceu?
R – Bom, o município de Pauini fica no sudoeste do Estado do Amazonas, nesse município a gente tem aproximadamente 21 mil habitantes, e dessa população a gente tem aí em torno 25 a 30% da população indígena aldeada. E numa dessas Aldeias, na aldeia Jagunço, na terra indígena Peneri Tacaquiri, foi onde eu nasci, sou filho de Rivaldo Apurinã, Antônia Apurinã e a gente nasceu dentro de um Igarapé que é afluente do Purus, que é o Igarapé Peneri, que é onde a gente, a nossa família paterna. E aí a minha família materna já é de um outro Igarapé, que a gente chama Camacuri, que é hoje é a terra que está em processo de reconhecimento por parte do estado brasileiro. Eu sou, a gente, do primeiro casamento da minha mãe, nós somos seis Irmãos, sendo quatro homens e duas mulheres, tem Kennedy, o mais velho, eu, Ramadã, Aivoclines, Gláucia, Glaucicleide, Luana e do segundo casamento tem Vanessa e Marcos Eurico. E antes do meu pai casar com a minha mãe, a gente também tem outros irmãos, que é o Zé Raimundo, a Saudosa Ramilsa e a Jamile, então no total nós somos onze irmãos.
P/2 –...
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Entrevista de Evangelista da Silva Araújo Apurinã
Entrevistado por Marcos Eurico Souza Ferreira, Luana Abílio Bandeira e Rosiene de Souza Cruz
Entrevista concedida via Zoom (Santarém (PA), Pauini(AM) e Amarante(MA)),15/02/2023
Realizada por Museu da Pessoa
Entrevista n.º: ARMIND_HV044
P/1 – Evangelista seja muito bem vindo! Para início a gente quer que você se apresente falando o seu nome, o seu povo e o seu nome indígena?
R – Bom dia! Eu sou o Evangelista Apurinã, sou do município de Pauini, da Terra Indígena Capiri Camacuri, da Aldeia São Benedito. E atualmente estou residindo na cidade, chefiando a coordenação técnica local da FUNAI.
P/2 – OK, Evangelista! Bom, hoje a gente vai fazer essa entrevista, a gente vai conhecer um pouco da sua história. E eu gostaria de saber onde você nasceu?
R – Bom, o município de Pauini fica no sudoeste do Estado do Amazonas, nesse município a gente tem aproximadamente 21 mil habitantes, e dessa população a gente tem aí em torno 25 a 30% da população indígena aldeada. E numa dessas Aldeias, na aldeia Jagunço, na terra indígena Peneri Tacaquiri, foi onde eu nasci, sou filho de Rivaldo Apurinã, Antônia Apurinã e a gente nasceu dentro de um Igarapé que é afluente do Purus, que é o Igarapé Peneri, que é onde a gente, a nossa família paterna. E aí a minha família materna já é de um outro Igarapé, que a gente chama Camacuri, que é hoje é a terra que está em processo de reconhecimento por parte do estado brasileiro. Eu sou, a gente, do primeiro casamento da minha mãe, nós somos seis Irmãos, sendo quatro homens e duas mulheres, tem Kennedy, o mais velho, eu, Ramadã, Aivoclines, Gláucia, Glaucicleide, Luana e do segundo casamento tem Vanessa e Marcos Eurico. E antes do meu pai casar com a minha mãe, a gente também tem outros irmãos, que é o Zé Raimundo, a Saudosa Ramilsa e a Jamile, então no total nós somos onze irmãos.
P/2 – Como foi a sua vida de infância? Onde passou a sua infância? Onde morou? Como foi esse período da infância?
R – É uma saudade que a gente tem dessa época, eu acho que cada pessoa tem saudade da sua infância. O interessante é que a gente quer crescer quando é criança, quando a gente cresce a gente volta a querer ser criança e a gente não consegue, às vezes, às vezes não, a gente não consegue na verdade. Quando o meu pai casou com a minha mãe a gente passou um tempo em Rio Branco, meu irmão mais velho, que é falecido, ele nasceu em Rio Branco, na época da ditadura, lá em 1984 mais ou menos. A gente passou esse tempo lá, por conta que o meu pai, na época, foi subdelegado da FUNAI. A FUNAI toda, ela se organizava como delegacia. E aí na época meu pai saiu para estudar, quebrou a perna, foi para Rio Branco, em tratamento, depois de lá foi para Porto Velho, onde tinha a única CASAI, na época. E daí, de lá ele começou a estudar dentro do próprio hospital e terminou o estudo dele, o que na época chamava de mobral. E aí quando ele retornou à aldeia de novo, ele já começou a organizar o povo nessa questão da dinâmica de reconhecimento dos territórios e tudo. E aí foi nesse período que ele conheceu a minha mãe, a gente foi pra Rio Branco e logo depois a gente retornou à aldeia, e aí a gente ficava mais na aldeia e ele em Rio Branco. Nesse trânsito aí de organização, que aqui para nossa região a gente reconhecia, na época o movimento como Acre, Sul do Amazonas e Noroeste de Rondônia. Então, nessa época a gente vivia na aldeia Jagunço, dentro do Igarapé Peneri. Quando meu pai viajava, a gente saía, ele deixava a gente com meu tio, que era o Juarez, por umas duas vezes ele deixou a gente lá, que é dentro de um outro afluente que é o Igarapé Clareã. E daí a gente convivia com Amarildo, Maria Antônia, convivia com outros primos nossos, tios, que cuidavam da gente também. Que era época que os nossos tios colocavam roçado para gente e a gente cuidava da roça com a minha mãe e os tios também. O tio Gildo que é irmão da minha mãe. E aí existem três filhos, três irmãos, casados com três irmãs, dessa época, a gente convivia junto, a tia Lucila, a finada tia Iraide e a minha mãe, que são irmãos. Não, tio Gildo, tia Lucila, perdão, gente, é a tia Lucila, tio Gildo, não, perdi de novo! Tia Lucila, o pai e o tio Edivaldo, esses três são irmãos, aí tem o tio Gildo, finada tia Iraide e a minha mãe, então essas três famílias de irmãos a gente considera primo carnal, então a gente é irmãos, primo e irmão, e foi o que a gente conviveu um pouco mais com eles. Tia Socorro também, que é irmã do meu pai, e o restante da população. Então foi aí que eu passei a maior parte da minha infância. Depois o pai pegou as contas da FUNAI, e aí ele veio morar permanente na aldeia, já no final dos anos 90, no final dos anos 80. E aí em 90, no início dos anos 90, o meu pai saiu, a gente saiu da Aldeia Jagunço, viemos para Aldeia no mesmo Igarapé Peneri, viemos morar na aldeia Nova Vista, que é a família do meu pai também. E daí, foi aí que eu me lembro um pouco mais, tanto que a gente conviveu lá, na época meu pai era professor e também ainda trabalhava no movimento. Então ele reuniu o povo, e daí começou a articular as outras terras que hoje a gente tem também, __________, isso já é conversa com os nossos próprios parentes. Então ele não ficava fixamente, permanente com a gente, a gente sempre teve o pai um pouco seguindo de exemplo, mas também, ele mais fora do que dentro, que esse é o peso que uma liderança carrega. Hoje eu consigo compreender isso, mas antes eu… eu entendia que ele precisava também cuidar da gente, hoje na posição que estou hoje, eu sinto que foi necessário ser ausente da gente, mas na oportunidade que tinha sempre dava bons conselhos. Então foi nessa região aí que eu passei até os meus 7 anos, que aí quando foi em 94, meu pai foi picado de cobra, e aí faleceu. Nessa época a gente não tinha as condições que tem hoje, só para ter ideia, hoje a gente gasta em torno de 3 horas, 3 horas e meia, dessa Aldeia para a cidade, e na época a gente não tinha um motor que conseguisse fazer esse translado rápido. Então, era tudo a remo, tudo de canoa, remo, a gente não tinha a facilidade que hoje tem. Embora precise melhorar, mas assim, naquela época não se tinha. Então, meu pai faleceu, depois de cinco dias de picada de cobra. E daí, após o sepultamento dele, a gente saiu de lá e viemos morar com a minha avó, que é a saudosa avó Joana, que nos deixou também, já viajou. E aí a gente veio morar com ela, daí a gente era muito pequeno, tivemos que começar a trabalhar muito cedo, ajudar a minha mãe. A minha mãe que sempre fazia a frente das coisas, mas aí o trabalho de casa sempre ficava comigo e com Kennedy, que nós dois somos os mais velhos, então sempre ficava com nós dois. E os cuidados também com os mais novos. O Goklines tinha um ano e pouco meses, minha mãe ficou grávida da minha irmã mais nova, que é a Luana, então essa parte foi uma das partes mais difíceis para a gente, por conta da situação. A minha mãe era muito nova, e também cheia… com filhos, seis filhos, inclusive uma bebê, então essa parte foi um pouco complicada para a gente. E aí foi nesse período que a minha mãe conheceu o pai do Marcos Eurico, meu ex-padrasto. Então, casou com ele, aí a gente ficou dividido, a gente ficou… eu e Goklines ficamos com a família por parte do pai, que é a tia Maria Antônia, eu fiquei com a tia Maria Antônia e o Gocklines ficou com a tia Ba, que é prima legítima do meu pai, o Ramadan ficou com a tia Socorro e o Kennedy ficou transitando aí um pouco, na casa da tia Lucila, na casa da tia Socorro. E daí a minha mãe veio para a cidade com o marido, na época, que é o Lázaro e daí depois foram morar numa comunidade não indígena, chamada Palmeiriã, onde ele era professor. E enfim, esse foi um pouco do que eu vivi até os meus 10 anos. E aí voltei novamente para a companhia da minha mãe, para ficar. Então, nesse período de infância, até os meus 13 anos, a gente viveu um pouco afastado, até os 10 anos, a gente viveu afastado da mãe, depois a gente retorna, especificamente eu, e o Kennedy continua morando com a tia Socorro, Ramadan também e o Goklines com a tia Bá. Daí quando tinha uns 11 anos de idade, eu estava com a minha mãe, foi quando eu vim para a cidade, isso já em 1998, foi quando eu vim para companhia da minha mãe, quando eu tinha nove anos. E daí comecei a estudar aqui na sede do município, e aí era muito ruim naquela época, porque a compreensão que o pessoal tinha da gente, que hoje não mudou muito. é uma história muito ruim assim, porque aqui, não sei em outras regiões, mas aqui, são os caboclos, os que falam ruim, devido a gente falar outra língua, a gente não pronuncia o português correto, então é muito cobrado da gente que a gente fala o português correto. E aí eu fico pensando, que quem é de outros países, que fala outra língua, que chega no nosso país, a gente perdoa por não saber falar direito português, a gente se coloca à disposição para ensinar um bom português, mas com a população indígena neste país, não é assim, fica criticando que a gente fala errado, que não pronuncia as palavras certas, que a gente não chega a fazer as concordâncias corretas. Então, isso foi o que eu enfrentei na escola, e devido isso, esse translado todo, eu repeti a alfabetização por quatro vezes, isso me atrasou, isso me atrasou na escola. Então, eu estou, não reclamo, porque ter repetido quatro vezes.. E aí quando foi, quando eu tive que ir para a antiga primeira série, eu falei para minha professora que eu já sabia ler e escrever, e aí ela fez um teste comigo, de ditado, a professora saiu ditando, e eu saí escrevendo, e aí ela me levou para sala do diretor, e falou que eu sabia ler e escrever, e não sabia porque que eu estava matriculado na alfabetização, e aí o diretor fez um outro teste comigo, e daí eu fui para a primeira série. Na primeira semana de alfabetização fui para a primeira série. E daí continuei a estudar. E foi uma época que o Lázaro era professor Rural, e aí ele foi convocado para dar aula na aldeia Penedo, no Seruini. E aí no primeiro ano eles foram, minha mãe foi também, e aí ficou eu, o Ramadan e a Gláucia, porque a gente já estava estudando na cidade e nós ficamos. E eles faziam rancho para a gente, deixava, mas aí tinha que completar com a mistura. E aí era eu que bancava essa parte da mistura, eu vendia dindinho, vendia picolé, sorvete, aqui na cidade. E aí no segundo ano, foi que eles decidiram levar a gente, levar a gente lá para o Seruini, e aí foi quando foi todo mundo para o Seruini, foi eu, o Ramadan. E aí ele chegou a levar um outro irmão nosso, que a gente considera, que é o filho dele, que é o Wagner. E aí nós fomos para o Seruini. E lá sim, eu me lembro um pouco mais, que foi assim, um dos melhores momentos que eu vivi foi lá no Seruini, porque a prática da pesca e da caça, a gente não viveu, a gente era muito pequeno na época que a gente morava em Peneri. E aí lá foi que eu comecei a pescar, comecei a flecha. E aí teve uma vez que eu matei o primeiro peixe grande, que foi um Tucunaré, no arco e flecha, só que ele era cego, cara! Era cego! Mas estava vivo! Eu matei! A maioria dos parentes quando fala em pesca hoje aqui, eles lembram de mim, que o primeiro peixe que eu matei era cego. E aí quando você mata um peixe assim, que você começa a dar conta da casa, na aldeia, a partir da pesca, a mãe fica muito feliz, a mãe da gente fica muito feliz. E aí eu matei uns peixes de flecha, incluindo o Tucunaré, e aí quando ela chegou… E esse peixe maior, ele sempre fica para tratar depois, trata os pequenos, e aí os maiores ficam para depois. E aí foi quando a minha mãe foi tratar o Tucunaré maior, ele viu que tinha um lado que ele era cego, e era do lado que eu estava, era o lado que ele era cego. E ela disse, “ah, meu filho, foi por isso que você matou, porque era cego.” Mas enfim!
P/1 – Evangelista, você consegue falar para a gente um pouco, durante, quando você morava na aldeia, até sete anos você tem alguma memória, assim, das brincadeiras que você tinha lá com outras crianças, durante esse tempo que você morava lá na aldeia quando criança?
R – Uma coisa que assim, tem dois momentos, o primeiro deles, é que assim, nós fomos criados numa família que… como era todo mundo junto, na aldeia, na época, da demarcação da terra no Tacaquiri, tinha três Aldeias, Teneri, Jagunço, Nova Vista e São José do Tacaquiri, hoje nessa terra indígena, tem 11 aldeias, então o povoado que tinha no Peneri, no Jagunço, era um povoado muito grande. Então o ensinamento que eles passavam pra gente era assim, se ficasse um casal na aldeia, ali era pai e mãe de todo mundo, não importava se era filho, se era sobrinho, não importava se era filho de um outro parente que tinha ido para lá morar com a gente, então era pai e mãe de todo mundo, então ali ele podia passar a vara da correção, podia deixar de castigo, podia pedir para fazer as coisas em casa. E quando chegasse, não tinha nenhum problema. E se o filho fosse contar para o pai e para a mãe, apanhava também, porque a ideia era não criar filho fofoqueiro. Então, esse é um dos ensinamentos, que assim, hoje eu não consigo passar porque não estou na aldeia e aqui a nossa relação é muito difícil. Eu acho que eu fui na casa do Eurico, acho que duas vezes esse ano. Então só para você ver. E aqui é muito pequeno o município, a gente não tem a convivência que tem na aldeia. Então eu achava aquilo muito ruim, porque se o cara estava me batendo, primeiro, ele não era meu pai, não era minha mãe, mas ele estava ali me passando um sermão. E se eu fosse contar para o pai eu apanhava de novo. Então, se a gente estava na aldeia e tinha uma determinada casa que não tinha ninguém, a família tinha ido toda para o roçado, é uma casa que a gente não ia, que era para não mexer nas coisas dos outros, a gente estava indo numa casa que não tinha ninguém para receber, então eu não tinha nada o que fazer naquela casa. Então, as questões dos furtos não tinha lá naquela época, a gente não mexia, se passasse no roçado do outro a gente não mexia, e se mexesse a gente apanhava, por mais que tivesse com fome, se passasse lá e tirasse um abacaxi e chegasse e não contasse que a gente tinha tirado o abacaxi, a gente apanhava, porque tinha que contar, se não era roubo, era assim que a gente era tratado. Uma outra… uma conversa, dois meses antes do meu pai falecer, o meu pai antes de falecer ele pegou uma canoa e a gente foi para pescar, e aí chegando lá dentro do Igapó, na canoa, a gente sempre fica de costas para quem está atrás, e aí ele virou o contrário, e aí eu perguntei para ele, “é aqui que a gente vai pescar?” Aí ele disse, “não, eu vim aqui para conversar contigo”. E aí eu disse, “tá bom!” Ele disse, “olha, eu não sei, a gente não é certo, então eu não sei quanto tempo eu vou ficar contigo, mas eu queria te dizer, o seguinte, que quando tu construir família, não importa quantos filhos tu tenha com essa mulher, você volte e deixe ela no mesmo canto, mas você nunca deve bater numa mulher. Então você volte, deixe ela lá onde você encontrou. Se os filhos ficarem contigo, fique com todos, mas deixa ela lá é nunca bata numa mulher, porque não é bonito bater em uma mulher, e isso não traz glória nenhuma, bater em uma mulher. Você sempre deve respeitar seus tios e suas tias e àqueles que são mais velhos que você, você deve pedir a benção porque são mais velhos que você. Então, se você não souber o nome do homem, você chame seu José e se for mulher, você chama dona Maria, esses são dois nomes muito comuns de quando você não sabe o nome da pessoa, então você trate como dona Maria e também com seu José, as pessoas nunca vão te ignorar por isso, então as pessoas mais velhas sempre peça a benção, independente de quem quer que seja. Outra coisa, as pessoas da tua idade é para te brincar, para ti brincar de arco e flecha, para ti brincar no terreiro, brincar de esconde, esconde. Agora, sempre ouça os mais velhos, porque o que eles contarem para ti, ou eles já viveram, ou eles já viram alguém viver aquele momento, então é sempre bom parar e ouvir, porque esses têm histórias de vida. Então, sempre faça isso durante a sua vida. Nunca responda à sua mãe, sempre trate bem os seus irmãos. Então, sempre valorize o que seus irmãos fizerem, porque assim também eles vão te valorizar. Então, por mais distante que esteja, é sempre bom lembrar da onde você está saindo, porque a família é a base de tudo, quando der tudo errado lá fora, você sempre volta para o seio da família, então é sempre importante valorizar a família e isso é uma coisa que eu tenho feito muito pouco.” Então, ele foi… quase um dia assim de conversa, muitas coisas, mas eu tinha apenas 6 anos, não consegui decorar tudo. Então, sempre preze por onde você andar, porque tudo que tu fizer, não vai ser pra ti, vai ser para os teus filhos, porque o que tu fizer de bem, as outras pessoas vão acolher bem os teus filhos, se você fizer de ruim, ninguém vai querer os seus filhos, porque a primeira referência que eles vão ter é de ti quanto pai, é de ti a partir dos teus feitos, tudo que eu estou fazendo hoje é para vocês, porque tudo que eu estou colhendo foi o que meu pai plantou junto com a minha mãe, então tudo que a gente faz na vida é para os nossos filhos e os nossos filhos que vão colher tudo que a gente fizer. E tudo que eles fizerem vão ser para os meus netos, é assim a compreensão que eu tenho hoje. Então, foram coisas assim que eu gostaria muito. Se tem uma coisa que eu gostaria, se pudesse voltar uma fita e eu pudesse gravar, eu gostaria de gravar essa conversa, porque ele me falou muitas coisas. E essa foi a parte assim, que eu me lembro com muita saudade, esses dois momentos, é a parte que eu tento prezar de lá para cá, assim, a partir do que ele me disse e do que a minha mãe me disse também para fazer. Então, a gente tem essas referências. Foram esses dois momentos .
P/1 – Como foi o trabalho no período da pandemia, como foi o seu trabalho na FUNAI?
R – O meu trabalho na pandemia, ele foi um pouco desgastante fisicamente, psicologicamente, foi um trabalho muito difícil de ser feito, mas a gente chegou um período, que assim, a pandemia chegou no Brasil, e aí chegou aqui no estado e depois chegou aqui. Primeiro, assim, eu tive que me reorganizar para poder dar conta de um trabalho, que assim, a gente não estava preparado para fazer, primeiro a FUNAI baixou uma portaria, suspendendo as atividades a partir de um termo de cooperação firmada com o Ministério da Saúde, onde a FUNAI, especificamente, trabalharia a parte de entrega de cestas básicas e a CESAI ficaria com a parte de atendimento à saúde. Então, nós tivemos que suspender todas as atividades e ficar só com os serviços essenciais, que era a entrega de cestas. Como tudo parte a partir dos processos de empenho, despacho, essa parte toda, aqui em Pauini tem dois servidores, tem eu e tem a Amanda, então a Amanda como é mais rápida e ágil nessa parte documental, ela ficava mais disponível. Mas aí o coordenador regional nos colocou à disposição das secretarias municipais, e aí nós tivemos que fazer esse trabalho de casa e também fazer o trabalho junto com a Secretaria Municipal de Saúde. E aí, a primeira vez chegou para gente 130 cestas, a gente tinha um total de 612 famílias, e aí tivemos que segurar as cestas. E aí quando as aldeias começaram a positivar, a gente saía entregando, a recomendação é que isolasse a aldeia, então a gente isolava a aldeia e entregava a cesta de alimentos. E daí a nossa organização, a maior parte do povo saiu para o isolamento nas aldeias, achando que não pegaria Covid, e aí ficou na cidade, eu, pela FUNAI, a Amanda, o Kennedy, Vanessa e o Antônio Nascimento. A Vanessa da Apinajé, o Antônio Nascimento do polo base, e daí a gente montava as equipes, para poder fazer esse atendimento. Então, a gente tanto estava dentro da equipe de saúde, para poder sensibilizar, porque as Fake News na época rolou bastante, sobre a questão da vacina, principalmente. Então, hoje, a gente totaliza aí, a gente não parou ainda para fazer as contas, mas eu acho que a gente entregou, eu me arrisco a dizer que a gente entregou, mais ou menos uns 180 mil quilos de alimentos, durante o período da pandemia. Isso sem contar com a mobilização que a Apinajé fez, para arrecadar máscara, álcool gel, kit de higiene e limpeza, fora as viagens que a gente fez para entrega disso para as aldeias, as orientações, as recomendações. E aí foi trabalhando que eu peguei Covid por duas vezes. E aí, assim, a gente não tinha folga, pelo número de pessoas que a gente tinha aqui para trabalhar. Então, foi desafiador para caramba para gente, mas graças a Deus, apesar da perda, que assim, por mais que a gente tivesse só uma, seria uma perda irreparável, mas a gente chegou a perder seis parentes aqui. E assim, eu lembro com muita tristeza dessas perdas que a gente teve. Apesar dos dados dizerem que foi uma perda pequena, mas irreparável, a gente considera que foi uma perda, que assim, no auge dessa pandemia, foi quando eu peguei Covid também, por duas vezes. E daí a gente… eu pensei que eu ia enlouquecer dentro de casa, porque eu tinha ideia das recomendações, de não visitar e tudo, e se pegasse Covid morria. Eu sempre acreditei que se eu pegasse eu não ia morrer não, mas a situação ia ser muito ruim. Então, peguei covid por duas vezes, também a gente trabalhou no projeto com a Alpiaje e Associação ATRAMP, que é dos não indígenas, a gente teve que dar as mãos, foi um dos projetos desafiador, para a gente também, porque a gente teria que trabalhar também com não indígena, mas a gente deu conta do recado, graças a Deus, enfim. Então a gente viveu essa pandemia, mesmo os dados dizendo que é um número pequeno, mas foram parentes que a gente perdeu, foi família ali, alguém perdeu alguém da família, então isso foi bastante ruim para a gente. Mas estamos de pé e eu acredito que a gente está vivo por algum propósito, depois de passar por uma pandemia dessas, agora cabe a gente saber qual é o nosso papel a partir de agora para dar continuidade nos trabalhos. É isso.
P/2 – Bom, Evangelista, queria voltar só um pouco mais na sua história de vida e gostaria que você compartilhasse um pouco sobre a sua juventude, como foi sair do ensino fundamental, ir para o médio? Como foi essa questão da escola? Como foi a sua juventude?
R – Aí a gente precisa voltar para o Seruini de novo. Mas vamos lá! No Seruini, na parte da caça, da pesca e tudo, foi onde eu tive um pouco mais… eu tenho certeza, foi a parte que que mais me aproximou, assim, dessa parte da caça, da pesca, dessa questão mais tradicional, assim, posso dizer. E aí quando nós saímos do Seruini, a minha mãe mais o Lázaro saíram de lá e trouxeram a gente para cidade e eu continuei a estudar. Devido a minha idade, não foi permitido mais eu estudar no ensino curricular, aí eu entrei na parte do EJA, que é o programa de jovens e adultos, e aí me matriculei, e aí comecei a estudar aqui. Tempo depois, em 2004, 2003, final de 2003. Eu sou cardiopata, e aí tive uma crise, fui parar em Rio Branco. E aí quando retornei de lá, no início de 2004, a minha tia Socorro, que também já não estava mais na aldeia, ela tem dois filhos, que é o William e o Wallace, e já estavam no Rio Branco, já tinham saído do Jagunço também, da Aldeia, e tinha colocado eles para estudar em Rio Branco. E aí o William, os dois fizeram alistamento militar, só que como eles eram gêmeos, a regra do exército, só podia servir um. E aí o William foi o cara que foi servir e o Wallace teria que ir para escola sozinho. E aí foi quando a tia Socorro conversou com a minha mãe, e aí pediu que eu fosse para Rio Branco, para acompanhar o Wallace na escola. E aí chegando lá o Wallace já ia fazer ensino médio, e eu comecei a fazer o fundamental 2, hoje, ainda pelo EJA. E daí foi quando, foi uma parte também da vida que, assim, eu tive que isolar todo mundo, por conta que se eu não fizesse isso, eu não daria continuidade aos meus estudos. Então, a gente não tinha telefone também, então isso de certa forma foi meio automático, não tinha telefone em Rio Branco e também não tinha telefone aqui, na época era só telefone de linha, orelhão, todas essas coisas, de comunicação. E-mail era uma coisa muito rara, internet aqui nem existia ainda, nem passava na nossa cabeça de usar nessa época internet, essas coisas, aqui ainda era na época do fax ainda, então a pessoa ligava e dizia da linha do fax, é como se fosse um e-mail hoje, uma mensagem hoje, então passava e pediu fax, e aí para poder enviar documento. Então foi quando eu fui, dia 5 de Março de 2004, foi quando eu cheguei em Rio Branco, para estudar, me matriculei e comecei a estudar junto com o Wallace. E aí, cara, foi quando eu passei muita fome, nessa época, porque a mãe não tinha as condições, a tia Socorro vivia de um salário de agente de saúde, então para ela chegar até lá, onde a gente estava em Rio Branco, ela passava dois três meses para chegar lá e fazer uma feira. Foi quando eu comi mais ovos na minha vida foi nessa época, assim, porque era ovos no almoço, era ovos na janta, era ovos no café e na merenda ainda fazia uma farofinha de ovo também, que era para complementar. Mas eu sei que cinco dias, eu não sei se a pessoa vive com fome não, mas quatro dias ela vive, que eu já vivi, bebendo água também. E aí quando acabava a feira que a tia Socorro deixava, aí pronto, aí a gente tinha que esperar e a gente olhava um para o outro e aí dizia assim, Deus proverá a nossa janta e tudo. E aí foi assim, esse período assim. Então, quando a gente ia para escola, por conta da merenda que tinha, só que lá no Acre funciona assim, o programa Jovens e adultos, era um programa que não tinha merenda. Então, a gente ficava ali esperando, quando sobrava uma merenda era que a gente merendava. Então, foi assim, já a partir da minha juventude. E aí tem uma história interessante, bem engraçadinha, que os meninos na oportunidade que têm pedem para eu contar, mas teve uma Shirley na minha vida, que assim, de namoro, que assim, eu namorei com ela por conta do churrasco, que ela vendia, entendeu? Então, ela era bem fofinha, e aí o Wallace e o William que arrumaram esse namoro para mim, mas aí quando a gente chegava à noite ela assava três churrascos e deixava três churrascos separados para a gente, e aí era para a gente comer, então isso aconteceu com a gente, comigo, com ele e com Wallace. E aí eles sempre pedem para contar sobre a Shirley, que foi quem ajudou a gente ainda por uns 6 meses aí. Só que na época, não é que a gente não ia atrás de trabalho, a gente ia atrás de trabalho, só que as pessoas queriam contratar pessoas que mexessem no computador, e a gente dizia, “olha, a gente não tem, não sabe mexer em computador, a gente sabe fazer é limpar, é varrer, é passar, se for preciso fazer um cafezinho a gente faz, a gente sabe arrumar as coisas na prateleira, a gente consegue organizar um depósito e tudo, mas as pessoas gostariam que a gente tivesse… E aí pediam um negócio para gente que era estranho, chamado currículo, a gente não sabia nem para onde que ia o currículo, a gente não sabia nem para que servia um currículo. Quando o pessoal pediu o currículo da gente, a gente pensou que era um documento, e aí um dia a gente saiu em busca, para tirar o currículo, e aí tiramos foto e tudo, para tirar esse documento chamado currículo. É interessante que foi nós três, foi eu, Willian e o Wallace, nós fomos tirar o currículo. E chegando, ninguém sabia, e aí foi quando uma moça lá, muito simpática, num setor público lá, na rede de mulheres e homens, que era o nome da instituição, aí ela perguntou para a gente, viu a gente conversando com outro rapaz, ela chamou a gente no particular e perguntou, aí digo, “não, é que a gente tá atrás de tirar o nosso currículo, que é um documento, que é para a gente conseguir trabalho”. Aí que ela foi explicar para a gente que o currículo é a sua experiência profissional, os cursos que você fez, e aí foi o que nós tivemos a compreensão do que que era um currículo, do que que é na verdade um currículo, mas até então a gente não sabia. A gente era tão sem noção da coisa assim, que o Wallace, a gente tem o costume aqui de na escada, a gente deixar a sandália, o Wallace quando entrou no ônibus, ele deixou a sandália dele na escada, e a gente saía pela porta da frente e entrava pela porta de trás e saia pela porta da frente. E aí o Wallace ficou descalço no terminal, porque ele deixou a sandália dele dentro do ônibus, na escada do ônibus, porque na nossa cabeça, entra no ônibus tinha que deixar a sandália na escada. Então, a gente era muito matuto, como algumas pessoas dizem. Aqui a gente não chama matuto, a gente chama maricó, que é o cara que não sabe aquele contexto ali, sabe, tem umas habilidades para a região, por causa que a gente sabe lidar, mas lá em Rio Branco a gente não sabe, não sabia lidar com isso. A gente não sabia pegar ônibus, os meninos saíam correndo atrás do ônibus, quando o ônibus ia fazer a curva, eles paravam, então, por que? Falaram para a gente, que todos os ônibus que pegavam certa direção, ele ia para o centro e lá no centro onde era a movimentação, então a gente viveu isso em Rio Branco, na época, que eles chegaram lá e quando eu cheguei também, entendeu? Então, é assim, foi necessário a gente se adaptar muito rapidamente. E aí chegamos no ensino médio, um dia a tia Socorro chegou lá e falou se a gente não conseguisse o trabalho, ela ia trazer nós três e para cada um já tinha uma mulher esperando aqui. E daí a gente ficou conversando com ela até 4 horas da manhã, de 3 horas da tarde até 4 horas da manhã, ela consentiu, mas se a gente arrumasse trabalho, e aí nós prometemos para ela que nós íamos conseguir trabalho. E aí, eu consegui um estágio, mas isso, tipo, quase três anos que nós já estávamos lá. E aí, eu consegui um estágio, eu sempre… teve um professor meu que ele me disse assim, “olha, não existe escola boa ou ruim, existe aluno que se interessa é aluno que não se interessa.” E a gente entrou muito pela… a nossa formação foi muito pelos programas do governo, de informática, de associativismo, de cooperativismo, de ciências contábeis, e aí consegui, mais ou menos ali montar um currículo, nesse período, e aí conseguiu um estágio de 6 meses, e nesse trabalho eu fiquei dois anos. E aí foi quando, nesse trabalho, eu conheci a minha primeira mulher, que foi a Soleane, e daí a gente casou, a gente se juntou na verdade e fomos fazer um pedido de um salário maternidade. E aí chegando lá a mulher dizia que nós não tinha direito, porque nós não fazia atividade rural, e eu dizia que nós era índio, que nós era índia até na China, que tinha direito. E aí o meu tio, o tio Antônio, ele era chefe da FUNAI, da Administração Regional da FUNAI no Acre. Ele disse, “meu filho, tu não quer assumir a FUNAI em Pauini, não, no posto indígena?” Eu disse, “ah, tio, eu casei, agora eu preciso conversar com a minha senhora, para depois dar um veredito aí para o senhor. Voltei para casa…
P/1 – Só um momentinho, ainda continuando na sua juventude, a gente já vai passar para essa parte do seu trabalho na FUNAI, mas a gente sabe que tem um processo, leva um tempo para ir da aldeia e se adaptar, tentar na verdade, se adaptar na cidade, isso não é fácil, porque a vida na aldeia é totalmente diferente. E aí nós gostaríamos de ouvir de você, em relação a esse tempo na escola, ensino médio, ensino fundamental, se você sofreu algum tipo de preconceito durante esse tempo na escola? Dentro assim do ambiente escolar, você lembra?
R – Lembro! Nessa parte a gente criou um grupo chamado de estudantes indígenas da cidade, a gente mesmo sem noção criou esse grupo. Na época não tinha WhatsApp, então não dava para criar grupo de WhatsApp. Mas aí, a gente se encontrava todo final de mês, escolhia o parto no canal da maternidade e a gente se encontrava lá, e lá a gente conversava e contava as experiências. Na escola, primeiro que nós éramos caboclo, cabelos duros, então as pessoas não se misturavam com a gente, e aí a gente tinha que mostrar resultado. Então, a gente quando entrava na sala e dizia que era __________, Apurinã, as pessoas já começavam a olhar diferente para a gente, antes da gente entrar na sala, as pessoas conversavam com a gente normalmente, tudo, mas na hora da apresentação na escola, sempre foi um desafio para a gente, durante esses quatro anos que eu estive em Rio Branco, estudando, porque era ali que a gente se apresentava e a gente estudou em quatro escolas diferentes, cada ano era numa escola diferente, não era que a gente era danado, não, era porque as escolas estavam passando por um processo de reforma, para também fazer inclusão das crianças de quatro a cinco anos também, então as escolas estavam sendo adaptadas, então a gente acabava sendo transferido para outra escola. Então, era sempre um desafio, e a gente sempre ficava no canto, e uma coisa que quando eu cheguei em Rio Branco que os meninos já me falaram, disseram assim, “nunca se junta com o pessoal do fundão, que o pessoal do fundão é a turma do papel, é a que faz bolo de papel e fica jogando nos outros, tudo, então. Como eu fui fazer o fundamental, não ia ficar na mesma sala que eles, aí eu sempre ficava na frente. E aí os dois primeiros anos foram muito difíceis, porque nenhum dos meninos estudava comigo, e aí eu tive que me esforçar ali o máximo. Então, a nossa rotina diária era acordar, depois de acordar, a gente tomava café, e aí ia estudar, depois a gente limpava a casa e de tarde a gente ia para uma academia de kung fu, e isso para ocupar o tempo. Quando a gente chegava, tomava banho e ia para escola, essa era nossa rotina. E aí as pessoas colocavam a gente sempre de canto, e aí quando via que a gente tirava boas notas, aí começava a chamar a gente para fazer parte do grupo da escola e tudo, começava, pela parte da nota, não era nem por uma questão de fazer uma inclusão da gente de fato. E aí no primeiro ano, eu fui representar a escola, quando eu fui escolhido para representar a escola, no programa chamado deputado por um dia, na assembleia Legislativa, O pessoal me questionou muito, porque, primeiro, eu era do Estado do Amazonas, eu era indígena do Estado do Amazonas, eu era um cara do Estado do Amazonas e quem tinha que representar, tinha que ser de lá. E aí, eu falei para eles, “olha, eu não tenho nenhum problema não, que alguns de vocês vá representar, pelo contrário, se der para eu ir, bater palma também, eu vou, porque aqui nós não estamos numa competição de pessoas, a gente tá aqui para representar coletivamente, se vocês não estão preparados para discutir coletivamente, fazer a inclusão de outras pessoas, essa escola não está preparada para me receber, essa escola não está preparada para que eu estude nela, porque a escola onde eu estudei, na minha Aldeia, se tivesse branco lá, estudava do mesmo jeito, e teria direito do mesmo jeito, então não é porque eu estou aqui que eu também não sou defensor de direito, o ensino e aprendizagem ele é universal, ele é para todos, e se vocês não estão preparados para me receber aqui, vocês também não estão preparados para representar essa escola na assembleia legislativa. E aí o pessoal aplaudiu lá e tudo, e concordaram comigo, e eu fui representei a escola. Então, esses preconceitos eles existem até hoje, a gente pensa que a gente está vivendo algo que já é passado, não é não, isso, os nossos filhos vivem hoje na escola, só que do jeito que eu chegava e eu não contava para minha mãe, os meus filhos não contam também para mim. E quando a gente chega para contar, é porque o caldo já está no auge da coisa, a maior causa das depressões hoje, nesse país, ele é em virtude disso, das coisas vividas na escola. Primeiro, hoje a gente não tem tempo para os filhos, a gente não tem, então, quando eu estava na aldeia, a minha mãe pegava, colocava eu entre as pernas e ia catar os meus piolhos, e ali ela ia me aconselhar. Piolho é uma coisa que é nojenta, eu sei, mas assim, didaticamente, era onde a mãe se aproxima do filho e ficava ali catando os piolhos, ficava aconselhando, ficava orientando, ficava ali perguntando. Então, pedagogicamente, hoje o piolho faz falta, entendeu? Então, não tem isso, hoje, você cria um filho, pensando o seguinte, eu vou colocar na creche! Não sabe nem quem é o responsável por aquela criança, nem toda vez a gente tem uma pessoa que vai cuidar do seu garoto, que vai passar boa Informação. E o meu pai, uma das coisas das conversas que o meu pai disse, a gente aprende até os 12 anos, dos 12 anos para frente você vai desenvolver o que você aprendeu, e também a experiência você continua aprendendo, mas assim, o que você aprende de fato é até os seus 12 anos, e aí é justamente quando o filho está no seio da família, que tem conversa com o pai, que tem conversa com os tios, com as tias. Então, esse foi o momento que a gente vive hoje, que a gente coloca na natação, coloca no inglês, coloca não sei o quê, informática, não sei o quê, para tentar ocupar o espaço daquela criança, e a gente na qualidade de pai e de mãe, a gente não cumpre esse papel. Então, os nossos filhos vivem isso hoje, e às vezes não contam para a gente, chega até pensar, dar o start assim, dizer assim, “mas será que não é tu que está aprontando na escola?” E a gente acaba jogando mais responsabilidade em cima dessa criança, entende? Então, isso que eu vivi lá, eu não pude em momento algum contar para minha mãe, devido à distância, e outra coisa, o sistema de ensino, ele precisa chegar no chão das nossas Aldeias, para que o que eu vivi, eu não consigo viver, às vezes eu chego até a pensar, será que a gente não está sendo discriminado com a gente mesmo, sabe, a gente fala de uma discriminação do outro, do não indígena, mas muitas vezes separar as coisas, e a gente às vezes separa, a gente acaba discriminando a gente mesmo, sem a gente saber que está discriminando, porque quando isso acontece dentro da escola, ao invés da gente pensar e fazer uma inclusão de fato, a gente pensa, não, eu quero que esse ensino seja na minha Aldeia, que é para o meu filho não passe por isso. E aí eu percebo que é uma discriminação, no fundo, como de plano de fundo aí, e um isolamento e uma separação entre nós e os não indígenas. Mas até que ponto nós estamos dispostos, nós indígenas estamos dispostos a ceder, e até que ponto os não indígenas estão dispostos a ceder? Porque isso é uma gestão que eu entendo que é compartilhado, que nem tudo que é meu é seu, e nem tudo o que é teu é meu, mas o que tá dentro do seu direito, que você está disposto a ceder, e o que tá dentro do meu a ceder. Para daí a gente chegar de fato nessa inclusão tão sonhada e tão discutida nesse país.
P/3 – Você disse que do jeito que está acontecendo, do jeito que está se fazendo, acaba que continua essa discriminação. Será que nós estamos fazendo também, você falou, a gente também não está reforçando a discriminação. Como que seria diferente? Qual seria a forma de fazer diferente? Porque olha o que eu entendi, você faz com o seu filho, prepara ele, para ele realmente não ser discriminado na escola dos não indígenas, eu entendi isso.
R – Não entendi!
P/3 – Oh, eu entendi assim, cada vez mais a pessoa indígena prepara o filho para não ser discriminado na escola dos não indígenas, é isso que você fala?
R – É isso!
P/3 – Isso quer dizer que a gente também está discriminando, porque você está preparando para ele, que ele seja menos indígena, é isso?
R – Não, não! É assim…
P/3 – A minha pergunta é assim, como seria diferente, como poderia ser diferente, fazendo como?
R – Então, deixa eu tentar reformular novamente. Quando eu digo, que assim, nesse processo que eu vivi, o que que eu pensei, o que que eu penso, que esse tipo de ensino, ele precisa ir para dentro da aldeia, só que ele ir para dentro da Aldeia, não resolve, o ensino médio chegar dentro das nossas aldeias não resolve, porque há um isolamento aí, porque aí enquanto eu não lhe conheço direito, eu não vou lhe respeitar como deve, por uma simples coisa de eu achar, aí entra o que eu acho, o achismo, porque eu acho que você é uma pessoa diferente, que é uma pessoa que é menos comunicativa, por ser uma pessoa… E aí, muitas vezes não é nem isso, então, hoje, a gente tá querendo, e aí foi o que eu tentei responder para ela, é que quando a gente está querendo o ensino desse tipo, para que os nossos filhos não passe por isso, a gente está se isolando e não está dando a oportunidade das pessoas conhecerem a gente de fato como a gente é, e a gente não está dando oportunidade de conhecer o outro lado também, né! Então, eu passo a respeitar, acreditar, e fazer uma consolidação disso junto, quando eu passo a entender, e quando eu passo de fato a viver aquilo, enquanto eu não passar a viver e não ver de fato, eu vou achar sempre que há essa discriminação. Então, é necessário que a gente faça… eu aprendi um termo que é o seguinte, que é indigenizar a modernidade, né! Mas até que ponto a gente também pode deixar ou não indígena a entrar e conhecer a gente de fato, a gente fala, por exemplo, que a gente é discriminado na escola, mas a gente não leva os nossos colegas para dentro de uma sala de aula indígena, entende? Então como que a gente vai quebrar isso se a gente não dá oportunidade também, né! É tudo muito restrito dentro da comunidade indígena, muito. Mas do contrário não é. Então, isso é necessário que a gente também ceda, dentro de uma gestão, levando para a para a parte mais prática da coisa, a gestão compartilhada, ela funciona assim, o que que está dentro do seu direito que você cede e o que tá dentro do meu que eu cedo também, que nem tudo o que é seu é meu, e nem tudo que é meu é seu. Mas a gente fazer esses dois mundos se conversarem, porque pelo que eu entendo a gente tem um mundo querendo conversar com o outro, mas quando o outro quer conversar com esse outro, aí há um racha, os dois não conseguem conversar. Por exemplo, eu tô aqui na cidade, eu não tive que pedir licença de ninguém para vim aqui, mas para ir na minha Aldeia, eu digo, eu tenho que dizer, “olha, eu preciso conversar lá com a minha Aldeia, preciso conversar lá com o meu Cacique.” Ou seja, quando eu coloco essa barreira, eu estou impedindo do outro me conhecer, certo? Então é necessário que tenha uma certas instituições de tudo, bacana, eu compreendo. E se tivesse, por exemplo, essa restrição desse outro lado, entende como é? Então, se tivesse essa restrição, como seria? Como que eu lhe daria com isso? Eu indígena, eu …que sou! Como que seria isso? Então é necessário que a gente ceda, para que de fato as pessoas compreendam e não continuem contando e escrevendo as histórias muito antes de 1500. Se eu uso um celular, eu não sou mais Apurinã? Então o cara que inventou o celular, a Apple, que inventou, se o brasileiro usa, não é mais brasileiro? Entendeu? Então, será que foram os brasileiros mesmo que inventaram a roupa? Quem foi que inventou a roupa? Entendeu? Os maias foram os melhores astrólogos da época, então se eu tô usando isso agora eu sou um Maia também agora, eu tô usando o calendário, sabe? Então, esse tipo de argumento, é tipo assim, agora você tá usando um cocar você é… agora, sabe? Mas essa relação multicultural, ela é mútua, mas a gente não está dando a oportunidade, eu não vou nem dizer respeito, a oportunidade de se conversarem. Por exemplo, nós estamos montando agora, nós estamos numa discussão, de fazer implantação dos sextos anos nas nossas Aldeias. Em comunidade não indígena, vai ser uma matriz curricular diferenciada, uma proposta pedagógica diferenciada, enfim. Se o parente branco está do outro lado do rio e o polo mais próximo vai ser o nosso, esse parente branco vai entrar para nossa escola sem problema nenhum. E nós vamos ter que aceitar. E isso já houve momentos de resistência, por conta disso. E aí o que a gente está tentando quebrar, que a gente fala que está tentando quebrar de fato a gente nem tá. Então, é necessário que o parente branco venha para dentro dessa escola, primeiro, porque o ensino é universal, e segunda, é necessário que ele conheça a gente, isso não vai tornar ele um indígena, não vai tornar ele um …., não vai tornar ele um Munduruku, mas ele vai conhecer a gente. Se a gente fala português, por que ele não pode falar a nossa língua também? Só um exemplo. Sabe? Se a gente está falando de um contexto intercultural. Então, as escolas públicas do Acre, onde eu estudei, elas não estão preparadas, até hoje, para receber um aluno indígena, mas as nossas escolas também não estão preparadas para receber um parente branco também, entende? Porque quando eu coloco que a minha cultura, o meu ensino é maior ou melhor do que o do outro, eu tô também discriminando também, então é necessário que a balança seja equilibrada para que as coisas, a gente viva nesse país, a gente tenha momentos bons nesse país, a gente viva reconhecendo quem está de fato do nosso lado, ali. E aqueles que não estiverem também a gente precisa conviver com eles. Não sei se respondi, mas é o que eu penso.
P/3 – Respondeu! Agora entendi! Brigada! Eu agora só também avisar a Rose, a Luana e o Eurico, que a gente tá terminando. Como a gente atrasou um pouco, acho que a gente tem aí mais uns 15 minutos, viu! Para vocês fazerem as perguntas que vocês consideram mais importantes para serem respondidas, tá? Para que ele não saia da entrevista sem responder essa pergunta.
P/2 – Está ok Marcia! Evangelista, queria que contasse um pouco, breve, como foi entrar na FUNAI e como está sendo esse trabalho até os dias de hoje? Como está sendo realizado esse trabalho no município? Em quantas terras indígenas você trabalha e quantos povos também?
R – Bom, e aí voltando um pouquinho lá atrás, quando o meu tio ofereceu para eu fazer, assumir a FUNAI, eu estava atrás de um benefício salário-maternidade, e chegando conversei com a minha ex-mulher, e daí a gente concordou de vir para cá, para Pauini e passar dois anos. Eu estava cursando a graduação de administração de empresas, e aí foi assim que eu cheguei até aqui. Quando eu cheguei eu não tinha noção nenhuma do que que era a FUNAI, eu tinha 22 anos e não tinha noção nenhuma o que que era, o estado brasileiro, como que funcionava e tudo. Mas aceitei o desafio. E aí chegando aqui, já tinha a organização indígena criada, a Apinajé, que é esse nome aqui atrás, maneira aqui é o ó, essa flauta aqui é o p, povos, a flecha de I, tem o tipiti, que é o j, que simboliza o J e essa outra aqui que eu esqueci o nome agora, pessoal, perdão. Mas é o que a gente usa para pescar. Então, são tecidos que a gente utiliza para fazer a pesca. E já tinha criado essa organização e foi que eu fui perceber, que assim, a gente trabalhava com sete terras indígenas demarcadas, tinha três em processos de reconhecimento e também eram na época 27 Aldeias, então dava aí uma população de 1200 pessoas, na época. Então, a gente teve que começar a criar formas de uma nova FUNAI. A FUNAI não tinha estrutura, eu tive que comprar um computador para começar a fazer os trabalhos, na época o Kennedy trabalhava junto com Francisco Ferreira, que me deram apoio, me arrumaram uma sala na Secretaria de Educação, então a internet eu usava quando eles terminavam o expediente, o expediente aqui vai só até 2 horas da tarde, então à tarde eu ficava ali para mandar os e-mails. Então, a primeira coisa que a gente fez como estratégia de luta, foi criar encontros por terras indígenas, a gente passaria dois meses só de Aldeia em Aldeia, a gente tem quase 1.700 km de rios e igarapés para acessar, hoje 43 Aldeias. Então, uma logística muito grande, a gente não tem estrada, em Pauini você só chega por via fluvial e aérea, hoje a nossa pista está interditada, então mais fluvial. Então, nós criamos essa estratégia de reunir, juntava o povo daquela Terra indígena e reunia e reúne naquele local, discutindo um ponto, são três dias, quatro dias de reuniões, que é saúde, educação, sustentabilidade, proteção do território. Então, é assim que a gente se organiza aqui. Essa foi assim, a parte de criar metodologias, estratégias, para a gente poder ouvir todo mundo. Daí hoje a gente já discute a parte da gestão dos territórios a partir da afinidade. E aí tive um grande parceiro, que foi o Alex, que também me ajudou, na época ele era coordenador da Upiajé, e assim consegui chegar, e hoje estou com 14 anos e alguns meses de trabalho frente a FUNAI. Não é a melhor FUNAI do mundo, mas é o que a gente consegue fazer. E a diferença dessa coordenação técnica local, primeiro porque sou indígena que tô ocupando, sou o terceiro indígena na escala a assumir esse posto da FUNAI aqui. E também por me considerar do movimento do governo. Então, a ideia é indianizar a modernidade na perspectiva de dias melhores e fazer esse desenvolvimento pelas nossas Aldeias, por nossos parentes, porque são meus tios, minhas tias, meus primos, sobrinhos e sobrinhas. Então hoje a gente tá, a CTL aqui é uma referência para o Brasil, não sei qual que foi a lógica, os critérios usados, mas hoje a CTL de Pauini, falo com muito orgulho assim, pela dinâmica que a gente tem de trabalho. E hoje estamos aqui tentando desenvolver as comunidades para que a FUNAI seja apenas um detalhe na vida dos parentes e não ser a parte, ser o todo, mas que cada vez mais ela seja um detalhe ali nas nossas vidas e que a gente consiga de fato assumir a tão sonhada autonomia que a gente sempre tem buscado, mas a gente não tem conseguido ainda. É isso!
P/2 – Evangelista, a gente já está praticamente na reta final, mas eu queria que você contasse para a gente, resumidamente, um pouquinho sobre o processo de demarcação do território de vocês, da terra indígena. Como é que tá esse processo, já foi demarcada? Como que foi?
R – A terra indígena, porque é assim, a gente ocupa os dois lados do rio, então da parte materna que é a parte do meu pai, a terra está demarcada, foi muito duro, foi muito difícil o processo de demarcação, por conta dos patrões, na época. e assim, meu pai foi ameaçado ainda, teve revólver no peito dele, ele junto com os outros parentes, enfim. Mas a gente conseguiu demarcar o território Peneri Tacaquiri, que hoje concentra 11 aldeias, 1.400 pessoas, aproximadamente. Então, ela finalizou o processo de demarcação dela em 2002. Já o outro lado do Rio, a outra margem, a margem esquerda do Rio, que é da família da minha mãe, que é a parte materna, ela está em processo de reconhecimento, desde de 96, que houve o pedido, qualificação e tudo e hoje a gente está trabalhando nela a autodemarcação. E aí, é um processo paralelo da FUNAI, mas seguindo todo o critério que é estabelecido pelo governo. Então, a gente está seguindo todo esse critério está em processo, não está demarcado, mas o relatório substanciado já está quase pronto, quase finalizado, então, a ideia é que a gente vá repor as outras forças para que a gente consiga o reconhecimento desse território.
P/3 – Quando você fala de autodemarcação, no caso a FUNAI, como órgão do governo, ela não participa dessa autodemarcação é o próprio povo que faz? Como é isso?
R – Isso! É assim, a gente teve a ideia da autodemarcação, isso ao Piajé, incorporando esses processos para si, inclusive para eu acompanhar esse processo, eu peguei férias, porque a FUNAI não participa, então, eu peguei férias para ajudar no relatório substanciado. Como a minha formação é gestão, tecnólogo em gestão ambiental, então eu ajudei a construir o relatório da parte ambiental, não sou o cara direto do relatório, mas ajudei a construir esse relatório. E também a parte como o todo, por conhecer a dinâmica das famílias, a questão financeira, como se dá a questão econômica dentro das Aldeias, enfim. Kenedy e eu, a gente ajudou bastante, mas isso é um processo que não está registrado dentro da FUNAI, então não é a autodemarcação que a gente entendia, era a gente entrar na mata, abrir um travessão e dizer, “olha, aqui é o nosso território”. Só que não é, a gente foi ver na legislação, autodemarcação ela é isso, isso, uma parte do processo de autodemarcação, mas é necessário que tenha um relatório circunstanciado, para caracterizar a área como tradicionalmente ocupada por indígena, né? Então, a Aupiajé embarcou num projeto na Finatec, e aí trouxe o recurso para contratar a equipe técnica. E aí, o argumento nosso é que siga todos os padrões que o governo exige para o reconhecimento de um território. E assim, a Finatec aceitou o desafio e a gente emplacou isso junto ao ministério público para acompanhar, para não dizer que algo que a gente está inventando, mas isso já foi feito um dia, se não foi feito a gente está fazendo, é uma experiência que são sete terras indígenas, que está nesse processo, a Finatec selecionou outras terras. E aí contratou um grupo de trabalho para fazer esse estudo. Então, a ideia é que depois a gente, pelo um outro projeto com a COIAB, a gente chegue até a fase de indenização e tudo, desde que se tenha uma aprovação. Enfim, esse é o processo de autodemarcação que a gente está emplacando pela Aupiajé.
P/2 – A gente vai para as perguntas finais, a gente poderia passar aqui mais 2 horas conversando, mas vamos lá para as perguntas finais. Uma pergunta bem pessoal, quais as coisas mais importantes para você hoje? E quais os seus sonhos? E o que gostaria de deixar de legado?
R – Caraca véio! É difícil de responder, mas vamos lá! Cara, eu acho que a coisa mais importante pra mim, embora não esteja dando atenção, são as minhas filhas e os meus filhos. E que isso abarca a família como um todo, irmão, irmãs, minha mãe que graças a deus ainda tenho ela hoje. Então, porque do jeito que o meu pai falou, a família é a base de tudo. Então hoje eu estou aqui na FUNAI, se eu sair daqui, eu não consigo emprego rápido, então eu vou para onde? Eu vou para a aldeia, eu vou para o seio da família, então acho que é a coisa mais importante para qualquer cidadão, é a família, boa ou ruim, né! Que se entendam, ou não se entendam, mas eu acho que eu acredito que a família, ela é a base de tudo, né! Então, isso eu vejo como algo mais importante pra mim, hoje cuidar da atenção que eu ainda não dei devida para os meus filhos, para minha família, para os meus irmãos, para minha mãe, para minha mulher hoje, porque hoje já estou no segundo casamento. Então, acho que isso que faz a gente ser com as pessoas, acho que faz a gente acreditar em dias melhores. O desafio é pra mim, é por onde eu passar é eu deixar uma porta aberta para os meus filhos, para os meus irmãos. E que as pessoas falem coisas boas de mim. E se tiver que falar coisa ruim, que fale também, porque a gente não é perfeito, a gente é humano, a gente é passivo de erro, entendeu? Então, eu vejo que esse é o desafio, assim. E pra mim será um legado, por mais que não reconheçam o trabalho que eu faço hoje, mas para mim vai ser um legado se alguém disser, assim: olha, teu pai foi uma boa pessoa, com todos os defeitos dele, mas assim, o teu irmão é uma boa pessoa. Sabe? Seu filho, dona Antônio, é uma boa pessoa. E que bom que a senhora soube criar! Pra mim eu acho que não vai ter um legado maior, do que a minha mãe, os meus irmãos, meus filhos, ouvirem isso. Eu acho que isso vai ser o legado. Eu não espero deixar legado, eu espero deixar portas abertas.
P/2 – Certo! Evangelista, já te agradecendo por você ter topado esse desafio, a gente sabe que não é tão simples ceder uma entrevista assim, falar da sua história de vida, falar principalmente da sua infância, na maioria das vezes, é um momento difícil, é um momento que traz dores, mas que traz alegria também! E aí, de coração mesmo, nós gostaríamos de te agradecer muito por ter cedido essa entrevista para a gente. E para finalizar eu gostaria de ter fazer uma última pergunta. Eu gostaria de te perguntar como foi para você ceder essa entrevista para a gente, como foi contar a sua história?
R – Às vezes, a gente faz tanta coisa na vida, no dia a dia que a gente esquece de refletir algumas coisas, eu vejo que esse momento foi o momento que eu parei para pensar sobre isso. E pensar coisas que, às vezes, a gente acha que nem lembra, que a gente acha que nem sabe. Então, na hora que eu recebi o convite, eu pensei assim, vai ser maneiro participar disso, deixar isso registrado, embora eu ache que tem pessoas que têm experiência bacana também, mas assim, eu fico mais, fui eu o escolhido da vez, eu acho que por conta do destino. E enfim, foi… na hora assim eu pensei: vai ser só uma entrevista. Vai ser só uma entrevista. Só que agora, depois que está chegando nos finalmentes, a gente pensa em muitas coisas, e a gente viveu muita coisa! Momentos bons, momentos ruins. E, às vezes, a gente na loucura, na pressa, porque a gente, se tem uma coisa que eu tenho certeza, a gente se tornou escravo do relógio, a gente não vive mais, a gente é escravo do relógio, porque tudo vem a partir do relógio, 8h, 7h30 tem que deixar a criança na escola, 8h tem que estar no trabalho, 9h30 você já tem que ter reunião, nove e não sei o quê, meio dia tem que parar para almoçar, porque uma hora você já tem que estar, sabe… Então, a gente se tornou escravo do relógio, a gente não vive mais a vida que a gente sonha. E aí, quando a gente para pra pensar, é necessário que cada um de nós tire um momento para a gente pensar nessas coisas! Para a gente viver isso! Para dizer assim: “Poxa, quantas coisas bacanas eu já construí, quantas coisas legais eu já fiz, quantas coisas eu deixei de fazer. E a gente não faz isso”. Eu vejo que foi o momento mais de reflexão pra mim do que de fato uma entrevista.
P/3 – Tem uma história, que seja breve, que você viveu na FUNAI, um acontecimento, uma coisa que você fez ou participou que você gostaria de deixar registrado? Uma ação, mas que você viveu. E aí a gente conclui.
R – Eu vivi.. essa é um pouquinho grande, mas eu vou tentar resumir. Eu vivi um momento junto com o Alex no Seruini, trabalhando na FUNAI, que, quando eu assumi em 2008, houve, em maio de 2008, a demarcação de uma Unidade de Conservação que sobrepôs o Território Indígena, que tá em fase de estudo, que foi muito punk, porque lá, quando eu cheguei… Eu vou contar do jeito que aconteceu, quando eu cheguei lá, na Unidade de Conservação, estava na assembléia e tinha mais de 600 pessoas, nesta assembleia, ao lado de uma aldeia e os indígenas estavam com quarenta armas de fogo, prontos para atacar a comunidade, para expulsar os caras, os não indígenas. E aí isso foi provocado pelo o meu tio, que era chefe da FUNAI. E aí eu cheguei lá, cara, estavam em pé de guerra. E aí, eu vejo que foi assim, a primeira vez que a minha perna tremeu, trabalhando na FUNAI. E aí, para tentar apaziguar a situação, tomar o controle da situação, foi muito ruim. E aí eles olharam para mim e disseram o seguinte: “Olha, a gente está aqui, a gente está desse jeito, agora tu vai voltar na cidade, vai buscar o teu chefe para a gente resolver isso. E você tem até as 5 horas da tarde para resolver isso”. Eu vim à cidade junto com o Alex e trouxe mais três lideranças. E daí quando eu cheguei na sede do município, tinha uma avião na pista, eu fui até a empresa e falei, “olha, esse avião está fretado para a FUNAI agora, eu vou só em casa, trocar de roupa e nós já voltamos para pegar o avião”. Só que quem autoriza o pagamento do frete não era eu, era o meu tio, e a empresa entrou em contato direto com ele. E aí ele foi e cancelou o avião. Eu chorei de raiva nesse dia, porque a gente ia buscar ele, eu tava com tanta raiva que o meu objetivo era ir lá, buscar ele, chegar, colocar na voadeira e levar ele lá. Mas aí ele cancelou o voo. Aqui, na época, só tinha orelhão ainda, então eu comprei um cartão, fui no telefone, no orelhão, liguei para ele, eu acho que eu disse coisas para ele que eu não devia ter dito, muito menos de ser ouvido, principalmente na hierarquia, porque essa estrutura, ela não sobrepõem dentro dos órgãos públicos, então ele é mais velho, é meu tio, então eu devia respeito, deveria ter falado de outra forma com ele, mas não deu naquele momento. Voltei lá com eles e falei: “Não rolou, mas é o seguinte, se vocês confiarem em nós, ________” Que era em mim e no Alex. “A gente resolve isso e a gente não entra no conflito armado.” E aí eles toparam e eu falei para eles: “Olha, mas também a partir de hoje, por mais que seja minha mãe que venha aqui conversar com vocês e fechar qualquer tipo de acordo, eu quero saber e eu quero estar presente. A gente fecha esse pacto hoje”. E aí eles se assumiram comigo. Então, hoje no Seruini, qualquer pessoa que chega lá para conversar, se for para visitar, eles recebem, se for para falar de trabalho, eles mandam me buscar aqui na cidade. Sabe, pelo momento que a gente viveu. Eu fui, quando eu cheguei na comunidade extrativista, o pessoal desceu no caminho e fizeram assim, uma multidão, aqueles 600 extrativistas. E aí, entre eles abriram assim, ficou gente de um lado e de outro, abriu um caminho e eu saí caminhando com o Alex. Nós ficamos até nove horas da noite, negociando, e aí a gente chegou num entendimento, e aí foi quando a gente fechou, saiu um diálogo para uma reunião na cidade, com menos pessoas e a gente não conseguiu entrar, a gente não entrou no conflito armado e a gente construiu um acordo de convivência lá dentro. Então, esse foi um dos momentos mais… Depois da pandemia, o mais tenso que eu vivi como servidor da FUNAI. Foi isso, assim! E uma outra experiência, que vai ser rapidinho, foi quando os invasores entraram dentro da Terra Indígena Peneri Tacaquiri, que é um território que é meu também. E na qualidade de servidor, eu fui convocado para uma reunião, isso agora em 2018, e os meus parentes me colocaram lá e falaram: “Olha, você é o único cara que entende de GPS e você está sendo convocado para ir lá. A única garantia que a gente te dá, é o seguinte, onde você cair, a gente cai também.” Então esse foi um outro momento muito, acho que a segunda vez que a minha perna tremeu. Foram esses dois momentos mais tensos que eu vivi assim. E nós fomos nas fazendas, foram dez dias de caminhada na mata. E graças a Deus, eu fui e voltei com todo mundo bem, todo mundo _______, viram, a gente não chegou a encontrar com ninguém lá dentro, mas a gente viu o arregaço, na época tinha, a gente mediu, deu 800 hectares de mata no chão, que eles derrubaram em menos de quinze dias. Então, esses foram os dois momentos muito tensos para mim, assim, vividos na FUNAI.
[Fim da Entrevista]
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