A vida não é o que a gente viveu, e sim a que a gente recorda , e como recorda para contá-la.
Gabriel Garcia Márquez
infância.
Meu nome é Marcia, mais conhecida como Marcia Penna, Penosa ou até mesmo Penna. Venho de uma família de cinco irmãos. Sou a filha do meio entre duas irmãs mais velhas e dois irmãos mais novos. Marilea , Edna , Mario Fernando e Claudio.
Da minha infância , lembro bem que minha mãe comprava uma peça inteira de fazenda(tecido) para fazer a roupa de todos nós. Os modelos eram diferentes , mas a padronagem era a mesma. Não havia nenhuma reclamação , por parte dos meus irmãos , mas eu confesso que não gostava nem um pouco.
Morávamos numa casa com varanda , com árvores e apenas dois quartos: o dos meus pais e o das crianças.
Fico pensando como cabia tanta criança naquele espaço. Tínhamos bicamas. Antes de dormir , o texto do papai era sempre o mesmo: São Cosme Damião que proteja! E nós , num coro só: Bença pai, bença mãe!
À época faltava muita luz no nosso bairro( Andará, zona norte do Rio de Janeiro) e, por incrível que possa parecer , esse era o momento mais esperado por mim e pelos meus irmãos, pois nossa mãe nos contava muitas histórias à luz de velas. Também brincávamos com as sombras e inventávamos muitas histórias... o tempo passava mas não chegava ali. Lembro com tanta ternura ...naquelas horas , já sem ter tantos afazeres nossa mãe estava ali inteira, completamente MÃE!
Assim também recordo como nosso pai , bem à noitinha , nos dava o jantar. Não de " qualquer maneira" , ele fazia um mexidinho como ninguém. Ele é mineiro de Belo Horizonte, e em suas lembranças esse tipo de comida é sempre citado. Ele punha num prato a mistura e, com toso os cinco filhos enfileirados , fazia uns bolinhos com as mãos e recitava : Senhor capitão, bolinho na mão , espada na cinta e ginete na mão( uma adaptação dele) , e lá ia o primeiro bolinho na boca do filho mais novo, e assim...
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A vida não é o que a gente viveu, e sim a que a gente recorda , e como recorda para contá-la.
Gabriel Garcia Márquez
infância.
Meu nome é Marcia, mais conhecida como Marcia Penna, Penosa ou até mesmo Penna. Venho de uma família de cinco irmãos. Sou a filha do meio entre duas irmãs mais velhas e dois irmãos mais novos. Marilea , Edna , Mario Fernando e Claudio.
Da minha infância , lembro bem que minha mãe comprava uma peça inteira de fazenda(tecido) para fazer a roupa de todos nós. Os modelos eram diferentes , mas a padronagem era a mesma. Não havia nenhuma reclamação , por parte dos meus irmãos , mas eu confesso que não gostava nem um pouco.
Morávamos numa casa com varanda , com árvores e apenas dois quartos: o dos meus pais e o das crianças.
Fico pensando como cabia tanta criança naquele espaço. Tínhamos bicamas. Antes de dormir , o texto do papai era sempre o mesmo: São Cosme Damião que proteja! E nós , num coro só: Bença pai, bença mãe!
À época faltava muita luz no nosso bairro( Andará, zona norte do Rio de Janeiro) e, por incrível que possa parecer , esse era o momento mais esperado por mim e pelos meus irmãos, pois nossa mãe nos contava muitas histórias à luz de velas. Também brincávamos com as sombras e inventávamos muitas histórias... o tempo passava mas não chegava ali. Lembro com tanta ternura ...naquelas horas , já sem ter tantos afazeres nossa mãe estava ali inteira, completamente MÃE!
Assim também recordo como nosso pai , bem à noitinha , nos dava o jantar. Não de " qualquer maneira" , ele fazia um mexidinho como ninguém. Ele é mineiro de Belo Horizonte, e em suas lembranças esse tipo de comida é sempre citado. Ele punha num prato a mistura e, com toso os cinco filhos enfileirados , fazia uns bolinhos com as mãos e recitava : Senhor capitão, bolinho na mão , espada na cinta e ginete na mão( uma adaptação dele) , e lá ia o primeiro bolinho na boca do filho mais novo, e assim sucessivamente. Era de dar água na boca . E a melodia ficou com gosto e sabor . Por conta disso , toda vez que ouvíamos uma rima , ela sempre soava familiar. Talvez o meu gosto pela poesia tenha começado aí. Lendo um texto de Ogêda (2007) , ela afirma que " a história e a cultura daqueles com quem a criança se relaciona atuam de modo centralno processo de constituição do sujeito". Creio que meus pais foram fundamentais no meu processo de formação ligada à cultura , e por outras tantas lembranças que irei relatar no decorrer deste texto.
na escola
Não frequentei o Jardim de Infância , somente meu irmão mais novo o fez. O Jardim de infância era da igreja, que ficava bem próxima de nossa casa. Com minha entrada na escola, a lembrança mais recorrente até o final do Ensino Fundamental é a do dia da entrega da lista de livros que usaríamos no ano. Meu pai chegava em casa , lá pelas 18h , com aquela pilha de livros( afinal , éramos cinco!) , e a nossa alegria era enorme. Ele separava os livros de cada filho e começava a maratona para encapá-los. Papel pardo e plástico eram os materiais fundamentais , e até hoje temos uma atenção especial quanto à conservação e à preservação de livros. Ele encapava um por um , depois cada responsável pelo livro ficava sentado no sofá , com o livro embaixo , até que papai autorizasse a nossa saída , assim que verificasse que a capa estava marcada! A seguir , escrevia o título dos livros ( com caneta esferográfica mesmo) , o nome de cada um, turma, escola, professora, um verdadeiro cabeçalho. Aliás , como essa palvra é tão marcante antes de escrevermos qualquer texto na escola: " Não esqueça o cabeçalho " ,dizia sempre a professora, antes mesmo de dizer" bom dia, turma!" Voltando à entrega dos livros , tudo isso meu pai fazia com os cincos filhos em volta. As recomendações vinham a seguir: escrever a lápis ( pois passávamos os livros no ano seguinte para os menores); não fazer" orelha" ; não rasgar e nem sujar os livros.
Na nossa estante da sala havia muitas coleçõese, em lugar de destaque ,as enciclopédias: Delta -Larousse, Barsa, as principais. Tínhamos também a coleção completa do Monteiro Lobato, a que mais gostávamos!
Não guardo nenhuma lembrança de ter ido à livraria ( acho mesmo que passei a frequentá-la já adulta- virou compulsão!). Naquela época meu pai comprava as coleções de vendedores que batiam de porta em porta .
Em nossa rua nós éramos os únicos que tínhamos tantas enciclopédias . Todas as pesquisas das crianças da vizinhança eram feitas lá em casa. Só não estavam autorizadas a levar os volumes para casa! E em função desse contato , nós , as meninas da rua, fundamos um " clubinho" onde discutíamos muitos assuntos, líamos histórias e poesias e em que havia a relatora. Quando assisti ao filme" Sociedade dos Poetas Mortos" , na parte em que os personagens se reuniam para ler poesias, logo me veio à mente o clubinho que criamos.
No " ginásio" passei a ter um contato mais próximo com a literatura propriamente dita. Embora fosse sempre assim: ler para interpretar - antagonista, protagonista, ideia central, não esquecendo mais esses conceitos. Novamente me remeto a Ogêda (2007) : " na escola não se leem textos , fazem-se exercícios de interpretações , também não se escrevem textos , produzem-se redações". Foi essa prática que vivenciei até o Final do Ensino Fundamental.
Dos livros que li, lembro de O Quinze, de Raquel de Queiroz; Memórias de um cabo de vassoura; O menino do dedo verde; O cortiço, de Aluísio de Azevedo; As meninas, de Lygia Fagundes Telles. Esses foram os que mais me marcaram.
Já nos anos finais do Ensino Fundamental, tive contato com uma professora de música que nos apresentou um repertório do folclore brasileiro, e isso mudou o meu olhar, ou melhor, desviou minha atenção para a cultura popular. A partir daí, passei a ler as lendas, os contos e ditos populares com muito prazer. Nessa época a escola respirava e vivia a cultura em todas as disciplinas. Ensaiávamos as danças folclóricas sempre no mês de agosto e nos apresentávamos num clube próximo da escola. Tive também uma aproximação com os instrumentos de percussão - até hoje não posso ver um atabaque!
Dessa forma, terminei o Ensino Fundamental percebendo que os livros, as leituras poderiam ser vistos de outra maneira. A aproximação com a cultura popular, mesmo que inicialmente através da música, fez com que o meu desejo por essa literatura se fizesse presente. Passei a ler Câmara Cascudo e outros livros sobre o folclore. Ainda conforme Ôgeda (2007, p.44): “Aprender a ler, numa perspectiva cultural de formação de leitor, é abrir as portas do universo letrado para ter acesso a materiais de qualidade e interesse. Não se lê para aprender a ler, lemos para descobrir coisas sobre o mundo e sobre nós mesmos, para nos encantar com outros mundos, outras realidades, outras culturas”.
Pensando nessa leitura de descobertas de mundos, creio que dei uma guinada a partir do curso de formação de professores. O meu interesse por autores como Simone Beauvoir, Sartre, Paulo Freire, Cecília Meirelles, Drummond, Thiago de Mello se fez presente, e permanece até hoje. Dei vazão ao meu desejo, incontrolável, de montar a minha biblioteca: educação, poesias, artes, infância, direitos da mulher, da criança, biografias, romances, coleções de revistas (mas nenhuma enciclopédia) fazem parte do meu acervo atual. Essa biblioteca concretiza meu repertório de leituras e meu próprio desenvolvimento pessoal. Ela abriga todo esse processo de formação como leitora, que teve sua origem no contato com as histórias à luz de velas, com as brincadeiras de sombras ativando a imaginação, as rimas saborosas no jantar, o acesso constante aos livros em casa e no ambiente escolar.
Ao longo deste texto, o exercício de reflexão que tentei fazer foi o de resgatar a história de meu contato com os livros, com a leitura, tendo as lembranças de infância como pano de fundo, para tentar entender como me constituí uma leitora, uma apaixonada por livros e “causos” vida afora. A memória foi solicitada o tempo todo, as lembranças vieram à tona. A saudade, a tristeza, a ansiedade, os sentimentos estiveram sempre presentes, nos enredos, como nos contos, nas poesias.
Mas isso também constituiu um olhar para o futuro, pois só podemos recuperar o passado, dele retirando o que nos é mais significativo, a partir do nosso projeto de futuro. Nesse movimento, passado, presente e futuro dialeticamente se entrelaçam.
Pensando no meu papel como educadora e na escola, reflito a partir do que considera Nóvoa (2000, p.16): “o processo identitário caracteriza a maneira como cada um sente e se diz professor. A identidade não é um dado adquirido, não é um produto. A identidade é um lugar de conflitos, é um espaço de construção de maneiras de ser, de estar na profissão”. E eu me sinto desta maneira: uma professora compromissada com a linguagem, ou melhor, com as muitas linguagens que povoaram minha formação, acreditando que, dessa forma, estarei desempenhando minha função como educadora da infância. E nesse processo de construção profissional, estarei engajada hoje tanto quanto ontem.
Fica o desejo de continuar minhas leituras, em um movimento contínuo e constante.
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