Entrevista de Jeane Cunha Ramos
Entrevistada por Epaminondas Júnior e Samara Vitória Borges.
Maceió, 08 de julho de 2025
Projeto Nosso chão nossa história
NOS_HV018
0:37 P/1 - Bom dia Jeane!
R - Bom dia!
P/1 - Tudo bem? Nós estamos aqui para conversar com você sobre sua história de vida, Projeto da UNOPS, Nossa História, Nosso Chão, para o Museu da Pessoa. E eu gostaria de começar essa conversa com você Jeane, sabendo onde você nasceu, sua data de nascimento e a cidade de onde você vem?
R - Meu nome é Jeane Cunha Ramos, eu nasci no dia 11/04/1973, em Maceió. E criada também em Maceió.
1:25 P/1 - Como é o nome dos seus pais, Jeane?
R - José Álvaro de Freitas Ramos, conhecido como Guel e Rosa de Lourdes Cunha Ramos.
P/1 - Eles também nasceram em Maceió?
R - Não. Quer dizer, minha mãe sim, nasceu na Pajuçara. Meu pai nasceu em Porto Calvo.
1:44 - Você sabe a profissão que eles tinham? Você pode falar um pouco da profissão deles, o trabalho que eles tinham?
R - Sim. Meu pai sempre trabalhou no comércio e minha mãe do lar, sempre em casa.
P/1 - Você abrevia como eles se conheceram? Como foi a história deles?
R - Sim. Então, os meus avós maternos, vieram de Campo Alegre e foram para a Pajuçara, e lá minha mãe nasceu. E meu pai nasceu em Porto Calvo. Então, eles se conheceram já num bairro chamado Prado. Meu avô foi morar lá e minha mãe chegou primeiro. Eles chegaram lá e com o tempo meu pai também foi morar perto da minha mãe, no mesmo bairro. Aí, eles se conheceram lá. A minha mãe tinha 13 anos. E meu pai, mais ou menos 16 anos. Aí, ela viu, foi amor à primeira vista.
P/1 - Muito jovem, né?
R - Muito.
2:47 P/1 - Aconteceu algum fato desse momento que eles contam?
R - Minha mãe sempre contou em relação como foi, porque era um amor platônico, meu pai nem… Porque ela muito nova, ele já mais velho, então nem olhava para ela. Mas ela era apaixonada, então ela já sabia o horário, quando ele passava ela ia pra porta. E esse namoro deles foi a minha tia, a irmã da minha mãe, que ajudou eles se conhecerem.
P/1 - E eles levaram esse namoro até um relacionamento mais sério, casamento?
R - Então, aí… Porque naquela época o namoro era muito acompanhado, ficava ela, a minha tia e meu pai. Então, assim, era conversando, às vezes a minha tia dava uma saidinha, mas era na porta. E minha mãe casou com ele tinha 18 anos. Ela bem que queria muito sair de casa, porque meu avô, muito rígido, um pouco ignorante, minha mãe sofria muito. Então, ela achou que casando logo ela ia ter essa paz, e ela ia formar família. Mas ela esqueceu que não sabiam onde iriam morar. Eles fugiram para o casamento, mas assim que casaram eles voltaram e levaram a certidão de casamento. Na verdade meu avô assinou, porque não sabia, minha mãe enganou, disse que era um assinatura referente a escola, ele assinou, não leu, confiou, e autorizou ela se casar. Eles se casaram e assim que ela teve a certidão voltou e informou para o meu avô. Aí, uma tia minha disse: “Sim, é onde vocês vão morar?” Aí, minha mãe caiu na realidade de que não tinha realmente onde ir morar. E permaneceu na casa dos meus avós.
4:55 P/1 - Aí, você nasce? Pouco tempo depois, muito tempo?
R - Então, os meus irmãos nasceram todos… Eles moraram muito tempo na casa dos meus avós. Então, eu já não nasci lá, mas os meus dois irmãos, que eu tenho… Somos quatro… Éramos quatro, porque veio depois a minha caçula, mas aí já foi muito tempo depois. Então, dois irmãos nasceram lá. Eu já nasci no hospital, que os dois foram em casa, eu já fui no hospital. Aí, depois eles conseguiram um cantinho para eles, mas sempre próximo, ali no Prado, onde todos moravam.
5:38 P/1 - Então, foram quatro irmãos que você teve.
R - Sim, quatro irmãos, uma escadinha.
P/1 - Como era?
R - Brigava demais. Porque os dois meninos eram mais velhos do que eu, então eles tinham umas brincadeiras de menino. Eu ficava isolada, porque minha irmã, dois anos mais nova do que eu, então eu queria brincar com eles, pra mim, a brincadeira tinha que ser com eles, e eles não gostavam muito, então ainda rolava briga. Mas foi coisa de criança, né?
6:10 P/1 - Você lembra das brincadeiras?
R - Sim, o meu irmão, ele tinha coleção daqueles soldadinhos, eles brincavam muito os dois, e eu também queria colocar a minha boneca no meio, enorme, mas eu queria participar. Então, tinha as brincadeiras na rua, como todos meninos, de pipa, chimbra, e eu estava dentro. Embora eles não gostassem muito, mas eu permanecia, era insistente. E é isso. Foi muita brincadeira, dois meninos, então imagina. Minha irmã também veio, eu puxei, porque a brincadeira que existia para menina eu não achava muito interessante, então eu puxei a minha irmã também para a gente entrar no mundo dos meninos. É isso.
7:01 P/2 - Pelo o que você está nos contando, sua família parece ser bem unida. Tem um costume que vocês tinham, alguma lembrança de vocês todos juntos?
R - Olha, eu lembro que toda a festividade a gente ia para a casa dos meus avós, e era a família toda. Os meus avós, eles tiveram 15 filhos, então sobreviveram 11 filhos. Então, o ponto de encontro era na casa dos meus avós. Eu digo, na parte materna. Já o paterno, os meus avós tiveram oito filhos. Mas sempre é a mãe que puxa para o lado da família materna. Então, a família da gente era muito unida. E a gente gosta muito de festa, qualquer motivo era um encontro. Ou na casa dos meus avós, ou então na casa de uma outra tia. Mas a gente fazia festas de tudo, a gente gosta demais de dançar, tudo para a gente tem que ter dança. Então, durante a minha infância eu tive muito isso. Natal, todo mundo se reunia. Carnaval, todo mundo se reunia. As primas, na minha faixa etária eram oito primas. Então, a família fazia questão das meninas se vestirem tudo igual e ir para o clube. Então, assim, eu realmente aproveitei demais a união da família. Isso quando era pequena, porque depois, quando vai crescendo, tudo muda. Mas a minha infância foi maravilhosa. E a família sempre junto.
8:49 P/1 - Você falou dessa mudança, saiu da infância, adolescência. E você com certeza estava na escola estudando. Conta um pouco desse contato da escola, que escola você estudava?
R - Eu sempre estudei num colégio infantil, Santa Terezinha, ficava ali no Prado, perto do Frango Assado, o grupo escolar. E isso eu era bem pequenininha. Depois de lá, eu fui para o Colégio Sagrada Família. Então, toda minha vida eu estudei lá, até a oitava série, porque foi uma época que o Sagrada Família, infelizmente não estava bem, devendo os professores, aí foram as greves. E infelizmente eu tive que sair, porque eu queria fazer o primeiro grau e eu achava que o Sagrada não estava mais como antes. E aí, também eu tinha me mudado, já não morava, na época, perto do colégio. Eu parti para a parte alta da cidade, para a Gruta com a família e lá a gente soube de um colégio que se chamava San German, que também era na Gruta, era novo, vizinho nosso, que era o Padre Petrúcio, ele era sócio do colégio, e meu pai conhecia ele, falou do colégio. Ele: “Ó, não quer não ir pra esse colégio?” Aí, eu disse: “por que não?” Uma parte eu senti, porque você imagina, você estudar durante mais de dez anos num colégio, em que você todo ano tinha as mesmas pessoas, então eu tinha uma intimidade. O colégio Sagrada Família sempre foi para mim minha segunda casa. Eu estudava, voltava pra casa e depois tinha que voltar, porque sempre estava participando de tudo que tinha no colégio.
10:48 P/2 - Você falou para a gente que o seu colégio foi um ponto marcante para você. Teve alguém lá dentro que lhe marcou até hoje?
R - Olha, alguém, assim, não tenho. Tenho pessoas maravilhosas que passaram realmente na minha vida, mas assim, pensando… Porque assim, desde pequena você convive com as mesmas, é claro que em um ano, ou outro, sempre saía e chegava gente nova e tal. Agora, tem momentos que realmente foram marcantes. Tinha um menino lá do colégio, que ele era muito estudioso, um menino inteligentíssimo. E ele tinha um problema sério, na época, de saúde, desde a infância. E isso me marcou muito, porque eu fazia a quinta série e ele, eu acho que ele já fazia primeiro ano. E era um rapaz que sempre participava, todo mundo conhecia, todos sabiam quem era ele. E ele veio a falecer. E isso assim, comoveu muito o colégio. E todo mundo na hora saiu para o velório dele, o colégio parou. Isso me marcou muito, eu estava na quinta série, então acho que com 13, 14 anos. E veio aquela multidão de alunos para se despedirem dele. E eu achei isso bem marcante. Tanto é que eu sempre considerei o Sagrada Família como… porque eu vivia lá, eu tinha na época, assim, sabe? Meus amigos, o esporte, eu também dançava, tinha o grupo folclórico lá, do professor Pedro Teixeira, e eu participei também. Então, assim, era o tempo todo lá, com os meus amigos, conhecia todo mundo. E é isso.
12:57 P/1 - Nesse momento que você estava na Gruta, você morou quanto tempo na Gruta?
R - Morei. Cheguei lá com 13 anos e eu fiquei lá até uns 28, por aí. Então, foi a minha pré adolescência, até a fase adulta, fiquei lá, morando na Gruta. Olha, lá eu fiz boas amizades, eu tinha uns vizinhos maravilhosos. Mas assim, é diferente quando você entra na fase adulta, porque você passa a ter também compromissos de trabalho, você já não tem mais tempo de ficar na porta de casa pra conversar. Então, eu passava realmente, eu só chegava em casa a noite, na verdade, era estudo, trabalho. Então, a noite lá.
13:48 P/1 - Me fala um pouco desses trabalhos.
R - Olha, eu comecei a trabalhar quando terminei o colégio, não passei no vestibular, estava em casa, minha tia foi lá, e disse: “Ó, você está parada, eu vou levar você para estagiar no meu trabalho.” Ela trabalhava na Fiat, na Mavel, ela era contadora. Aí, eu fui pra lá. Era pra ficar uns três meses, mas terminei ficando. De início foi complicado, porque eu tinha 18 anos, é um mundo masculino, homens mais velhos, entendeu? E você chegar assim, de repente, num lugar. Aí, você vê que as coisas não são bem como você espera. Entendeu? Então, foi uma fase assim, foi uma experiência, óbvio, nada agradável, muitas vezes, mas faz parte.
14:45 P/1 - Depois com sua experiência, você mudou, saiu da Gruta?
R - Então, a casa que a gente morava, era um triplex, então a casa da gente era o térreo, primeiro e segundo, então eram duas escadas. E os meus pais já estavam também numa certa idade. Nessa época, quem ficou… Já tinha minhas irmãs, minha irmã, um irmão casado. E tinha só o meu irmão mais velho, eu e minha irmã caçula, que tem uma diferença de 17 anos. Essa minha irmã, ela chegou na nossa vida assim, que veio dar um brilho, porque em casa era todo mundo adulto, sabe? E a gente também, aquela fase de muita briga, sabe? Entre irmãos. E a chegada da Rayane, ela veio acalentar, veio dar uma harmonia. Era tudo voltado pra ela. Então, quando meus irmãos se casaram, foram saindo, ficou eu, o meu irmão mais velho e ela, a caçula. E como eram três quartos, então tinha um quarto que era meu e dela, e do meu outro irmão. Mas como realmente a casa já estava deixando meus pais muito cansados, então foi quando eles resolveram sair de lá. Aí, foi quando a gente veio achar uma casa no Farol. Eles procuraram e encontraram essa casa. Minha mãe foi ver, e quando eles decidiram, eu não tinha nem visto, eu fui ver a casa praticamente na mudança, porque eu realmente vivia trabalhando, não tinha tempo. Então, eles resolveram. E quando houve essa saída, o meu irmão que já tinha um tempo namorando, aí ele resolveu sair. Então, quando a gente foi para a nova casa, aí foi meus pais, a Neuza, que era a menina que trabalhava com a gente já há muito tempo, eu e minha irmã. Então, quando a gente chegou na casa, uma casa maravilhosa, grande. E aí, para mim foi bom, porque eu encontrei um quarto enorme para mim. Óbvio, que eu era… Imagina você dividir um quarto com uma adolescente, né? Quer dizer, pré-adolescente, minha irmã. Eu acho que a Rayanne chegou, tinha uns 13 anos, 12, 13 anos, por aí. E aí, como eu não parava em casa, demorou muito para eu conhecer os vizinhos. Quem realmente passou, porque a Rayanne era adolescente, e conheceu logo as meninas que moravam na rua. Minha mãe também é muito comunicativa, fez logo amizades com os vizinhos. Meu pai também, sabe? E aí, já conheceu o morador que jogava baralho na rua, o
outro era dominó. Então, para eles foi muito bom, porque eles tinham realmente alguma coisa para fazer. À noite minha mãe estava na porta conversando e meu pai jogando, a minha irmã Rayanne na casa de uma colega, e quando eu chegava, eu chegava cansada. Eu só ouvia assim, o comentário, eu nunca sabia quem era quem, eles já sabia o nome de todo mundo, mas eu não sabia quem era. Mas isso houve uma mudança, porque nesse meio termo, eu saí de casa, eu disse: “Não, eu acho que agora eu quero o meu cantinho.” E saí. Fui morar no Poço. Fiquei lá um tempo. Porque aí eu engravidei, tive um relacionamento e tal. E eu engravidei e para mim ficaria muito complicado, ter um filho, que eu fui mãe solo, e sustentar uma casa, e ter uma criança. E conversando com os meus pais, a gente achou que seria pra mim, e principalmente para o Pedro, voltar para casa. Aí, eu voltei. Aí, foi quando tudo mudou. Porque aí eu tive o tempo de conhecer todo mundo da rua. Conheci através da minha mãe, do meu pai, da minha irmã, e também do meu filho, porque o meu filho teve uma infância maravilhosa ali, ele foi realmente acolhido. Era uma rua que tinha bastante crianças, uma rua tranquila, de carros, mas sempre gente na porta. E o Pedro, ele teve uma experiência maravilhosa, porque ele brincou de tudo. Enquanto os coleguinhas dele viviam só no apartamento, ele não, ele tinha todo o acesso, com as crianças. Fugia muitas vezes, eu tive um susto muito grande, a primeira vez que ele aprendeu a abrir o portão, ele saiu disparado e eu gritando, “Pedro!”, louca, porque eu não tinha visto. “Ele está aqui.” Então, todo mundo sabia quem era o Pedro. E isso foi para mim, maravilhoso, quando eu passei a morar no Farol.
20:07 P/1 - Então, era um local que vocês tinham todo um convívio com os vizinhos?
R - Sim, sim.
P/1 - Você tinha alguma coisa especial nessa rua, na parte da vegetação que chama a atenção?
R - Tinha, muito mesmo. Quase todas as calçadas tinham uma árvore. Incrível. Eu olhava assim… Tá aí, é tão difícil achar. Eu só achei uma rua assim, que todas as casas tinham, em outro bairro onde eu morei, na Gruta, que tinha também. E era até maravilhoso, porque o sol, de repente, na época do inverno, você sempre tem uma sombra, né? E também, o que eu achava interessante, é que toda manhã quando eu saía para trabalhar, sempre tinha o povo matutino, que já estava na porta. Então, eu passava, bom dia, bom dia, bom dia. E quando eu voltava a noite, aí já tinha outras pessoas já, da noite, aí eu passava, boa noite, dava uma paradinha, conversava, sabe? Porque sempre tinha gente.
21:16 P/1 - Você circulava nessas regiões ao lado, nos bairros perto?
R - Olha, eu frequentava a pracinha, porque tinha o Passaporte do Gilmar, que a gente gostava de ir. Ele fazia entrega também na residência, mas só o fato de a gente dar uma caminhada, era perto, e ficava na praça aguardando. Então, a gente ficava lá. Porque como eram casas ali, lugar assim, de ficar… Eu ficava mesmo em outra casa. Eu tinha uma amizade com a vizinha da frente, então era esse o meu percurso, era a extensão da minha casa, eu chegava, “Digo, eu vou ver o que a Ana está fazendo, que era a minha amiga. Então, chegava lá, “Ana!”, gritava. E eu entrava na casa dela, lá a gente conversava. E muitas vezes a gente combinava, “Eu vou levar o tira gosto, vou pegar a cerveja, um vinhozinho.” Eu sempre estava indo para a casa dela. Na minha casa e para a casa dela.
22:24 P/2 - E quanto aos eventos, você participava de uma festividade, alguma coisa relacionada a rua?
R - A rua era animada, então quando tinha o São João, quase todas as portas tinha a fogueira. Então, ninguém ficava cheiroso nessa época, só cheiro de fumaça. E costumava o pessoal ficar na calçada, comendo, bebendo, conversando. E também nos jogos, tinha também uma família lá, o pessoal gostava de enfeitar. Então, arrecadava dinheiro e a gente também fazia o enfeite na rua. No Ano Novo, muitos também tinham o costume de levar a mesa para a porta e também comemorar o Natal, o Ano Novo. Eu não podia fazer isso, levar a mesa para a minha porta, porque tinha uma ladeira. Mas eu ia pra casa da Ana, com os irmãos, costumava ficar lá. E todo ano, no primeiro dia do ano, sai o bloco, o bloco dos meninos, que era o Pingalada. Eles se organizavam, camisa e tudo, era legal.
23:42 P/1 - A gente está falando de uma situação que aconteceu, teve um impacto, o estrondo. Como é que você ficou sabendo? Como é que isso aconteceu?
R - Olha, na época, quando eu soube do terremoto, eu realmente não estava em Maceió. Nessa época eu estava morando fora. Mas eu vi a reportagem, mas eu sabia que meus pais moravam perto, então eu liguei para saber o que tinha acontecido. E também, eu tenho uma grande amiga que morava no Pinheiro, e também liguei para ela para saber. Ela tinha falado, relatou. “Eu senti, tal, tudo bem.” Mas como eu estava em outro estado, eu não fiquei realmente sabendo dos detalhes. Só quando eu voltei a morar em Maceió. E isso já estava acontecendo, muitas coisas, o pessoal saindo e tudo. Mas realmente ainda não tinha chegado onde eu morava. Nem a minha amiga que morava no Pinheiro… Eu sabia até mais, porque para ela era muito mais real naquele momento. Eu tinha o costume de ir para a casa dela muitas vezes. E eu comecei realmente a ver toda a mudança ao redor dos apartamentos. Tinha um apartamento que foi logo demolido, que era bem próximo ao mercadinho Pilar, que tinha, eu acho que foi o primeiro ali. Então, eu realmente eu vi isso tudo, porque eu visitava ela. Mas eu achava que realmente nem chegaria na casa dos meus pais. Mas eu olhava e ela sempre relatando, é isso, isso. Ela muito chateada, decepcionada com tudo que estava acontecendo. Mas eu não estava realmente sentindo na pele. Eu via, tinha a empatia de ver toda a situação, mas não senti. Eu vim sentir, porque a casa que a gente morava, era uma casa muito grande, e na época quem estava morando era só os meus pais. E minha irmã, a caçula, já não morava mais. E só o meu filho que estava. Nessa época, eu realmente estava morando em outro estado. E quando eu voltei para casa, eu disse: “Pai, a casa está muito grande, para a mainha não dá.” A Neuza, que era a pessoa que dava o apoio a minha mãe, que cuidava da casa. Já eu já não estava mais com a gente. Ela se aposentou, então minha mãe ficou sozinha. Eu disse: “não tem mais necessidade”. Realmente era muito grande a casa. Eu disse: olha, vamos fazer o seguinte: “vamos ver se a gente procura uma casa menor por aqui mesmo”. Até porque meu filho estudava no Cristo Rei, que era um colégio bem perto. O melhor amigo do meu filho ficava na rua. Minha mãe tinha o grupo da igreja, que é Mães que Oram, ela tinha. O meu pai também gostava muito de lá, porque ele tinha os amigos para jogar. Então, tinha a rotina deles. Mas eu achei assim, casa não dá. E a casa realmente precisava de uma reforma muito grande. E aí, quando eu disse assim: vamos fazer uma reforma principal, que era na parte da cozinha, que precisava realmente fazer um ajuste. E a gente achava uma coisa estranha no solo, da cozinha para a lavanderia, quando a gente andava a gente sentia oco. A minha mãe dizia: “Isso aqui está muito estranho, isso aqui está muito estranho.” Eu dizia: “Não mainha, não deve ser nada.” E quando o pedreiro foi ver, quando ele quebrou, a gente encontrou um buraco enorme, na hora eu disse: “Meu Deus, como é que isso? O que está acontecendo?” Ele fez. “Não, deve ter sido um cano, que deve ter soltado e vazou e formou esse buraco.” E a gente ficou assim: “Ah, vamos arrumar”, porque a gente queria que a casa tivesse uma reforma para ser mais valorizada na hora da venda. Nesse meio termo, um belo dia, assistindo o jornal, a gente assiste uma reportagem de uma TV local, informando que três casas, na minha rua, na Tenente Antônio Oliveira, tinha encontrado rachadura. Aí, na hora a gente ficou, “Como assim?” Porque a gente não soube através de vizinhos, nada. A gente só soube através da TV. Aí, quando eu olhei, eu disse: “Mãe, não vamos fazer mais nada, porque se a gente pensava em vender, não vamos mais.” Aí, foi quando eu fui procurar saber quais eram as casas e tudo mais. De fato eu entrei e vi as rachaduras, fiquei impressionada. Mas até então, a gente ficou aguardando, para ver o que ia acontecer. “Não vai dar, e tal.” Mas essas pessoas, nessas três casas, os moradores realmente precisaram sair. E a gente ficou aguardando. Sei lá, tem que esperar o mapa que vai avaliar. E ficamos aguardando.
29:21 P/1 - Nesse momento, qual foi esse sentimento, de chegar tão perto? Que você achava que não ia chegar as rachaduras, chegou! Como foi esse sentimento?
R - Na hora, eu fiquei assim, tipo, impactada, porque eu disse: “Caramba, e se isso aí agora, sabe, ceder?” Primeiro a minha visão foi a sobrevivência. Que eu disse assim, se chegou aqui, e agora o que a gente vai fazer? Eu disse: “Mãe, pelo amor de Deus!” Se aqui está correndo o risco, não vamos ficar, não, vamos resolver mais do que tudo, mais rápido possível, para sair. Porque eu fiquei realmente com esse medo. Eu acho que quando você é mãe… Eu já pensei no filho, sabe? E a minha pretensão era cair logo fora dali, porque eu não queria que acontecesse nada trágico.
30:22 P/1 - Bom, Jeanne, você estava em qual foi o sentimento quando você soube que também teria que sair do local.
R - Porque realmente, a princípio, eu pensei realmente na minha família. O que eu queria era retirá-los dali, porque eu não sabia até que ponto realmente era perigoso. Então, eu achei assim, de imediato vamos sair logo daqui. Mas aí a gente vai recebendo informações, né? Disseram, “‘não, tranquilo, não precisa sair agora, pode ficar que ainda não se encontra na área”. Saiu um mapa, eu acho que era um verde claro, que não mostrava perigo. Então, vamos ficar. E aí, a gente disse: “Vamos ficar!” Os vizinhos também falaram, “Não, ninguém vai sair.” Tinham muitos lá que não queriam, porque a maioria era a sua própria casa, moravam ali há muito tempo. Não era sair assim, tão fácil. E aí, a gente disse: “Vamos ficar! Vamos ver no que vai dar”. Só que a gente começou a ver as pessoas saírem. Onde eu moro, ao lado tem uma rua chamada, acho que é Ari Barroso. Eu sou muito ruim. Mas fica perto já da Gruta do Padre. Minha casa, como era primeiro andar, então dava para ver muitas casas já saindo. E foi saindo, foi saindo. E chegou a rua lateral. E aí, eu comecei a dizer: “Mãe, pelo amor de Deus, a gente não vai não? Porque está todo mundo saindo. E aí, a gente vai ficar aqui?” “Não, vamos ficar, porque a Ana vai ficar, porque fulano…” Ela começou… “Mas a gente vai ficar.” “Tá bom!” Aí, começou que, muito mosquito, muita mosca, muito rato. E o lixeiro já não passava mais como passava todos os dias. E a casa ao lado saiu, a de trás também. Então, eu disse: Não! Eu disse: “Olha, realmente, agora, mais do que tudo, vamos sair”. Eu entrei em contato, nesse período, lá rua começou a aparecer advogados querendo a causa e tal. Mas a gente, graças a Deus, a gente teve um advogado excelente. E eu entrei em contato com ele, dizendo que a partir dali a gente já não queria mais ficar porque não tinha mais condições. Mas até começar a ter toda essa negociação, a gente viu realmente o processo das pessoas saírem das suas casas. Aí, a gente cai na real, de ver o seu vizinho que estava ali há muito tempo, que tinha história, e não tem como você não se sensibilizar, de ver que era de partir o coração, que muitos estavam ali saindo e não queriam. Mas, era necessário, que eu realmente vi que não tinha mais condições, e a gente terminou realmente saindo dali. A gente foi em 2021. Foi esse ano que a gente saiu. Não lembro mais ou menos o mês. E isso.
34:12 P/2 - Você falou que a sua casa era grande e espaçosa. Como foi o processo de achar um novo lar?
R - Então, como lá em casa éramos quatro, já, minha casa era grande mas tinha os móveis antigos que minha mãe amava, sabe? Que cuidava. Claro que quando a gente ia sair, a gente queria levar realmente a mobília dela, tal. E como eu acho que a gente já foi um dos últimos assim, a sair, já não tinha mais casa para dar o conforto que a gente tinha. Eu tinha o meu quarto, o meu filho tinha o dele, o dos meus pais era uma suíte. Então, assim, pra gente achar foi complicado. E o detalhe, é que quando a gente faz a negociação, eles querem que a gente saia logo. E não é bem assim, porque a gente não encontrou uma casa fácil. Eles dão um valor de R$1.000,00, mas uma casa de R$1.000,00 não tinha. Na verdade, as casas que tinham de R$1.000,00, nem valia, sabe? Assim, muito longe, casa muito velha, entendeu? Então, não valia. Pra gente achar uma casa, pelo menos um conforto, demorou. E quando a gente achou, não era nem o valor, a gente teve que colocar um valor a mais do aluguel. Isso é muito chato, né? Porque é um desgaste.
36:05 P/1 - E como foi essa outra moradia, como foi a adaptação desse novo lugar?
R - Como meu filho estudava no Cristo Rio, não tinha cabimento a gente ir para um lugar tão longe. Então, a gente tentou na Pitanguinha, próximo aos bairros. A gente foi morar, ali é Pinheiro, só que é perto da Fernandes Lima, tem o posto Convém, e tem aquelas casas de conjunto, de primeiro andar. E a gente conseguiu lá uma casa. Pelo menos, não deu pra colocar toda mobília, uma parte da mobília a gente saiu levando pra casa do meu irmão. E a gente conseguiu essa casa próximo, pelo menos para o meu filho. E assim, mudou, porque é uma casa que não tinha ninguém na porta. Minha mãe já não tinha mais ninguém pra conversar, meu pai também já não tinha mais uns amigos pra jogar. O meu filho já não tinha um coleguinha. Pra mim, eu já não tinha a minha amiga pra conversar, que era praticamente todos os dias, eu ia pra lá. E é uma casa aparentemente boa, confortável, mas, sabe? Como eu posso dizer? Sem ninguém. A rua morta, uma rua que não tinha vida. E também, assim, era uma casa onde tinha muito escorpião, durante toda vivência a gente acordava e tudo era olhando com medo do escorpião. E era realmente muitos escorpiões, todo dia tinha um. E eles ficaram ali, nesse meio tempo eu precisei ir para um outro estado, eu fui morar em outro lugar, e deixei meu filho com meus pais. E pra eles, assim, foi um ano mais ou menos, que eles moraram. Acho que foi um ano. Foi. Chegou a um ano. Quando a Braskem entrou em contato com eles, aliás, com eles não, comigo, porque eu que resolvi tudo. Entraram em contato pra fazer a negociação da casa. Aí, a gente fez. E aí, eu conversei com os meus pais, com os meus irmãos, dizendo assim: “Olha, a avaliação da casa foi X, se eles derem esse valor, ou outro valor, não vamos nos estressar”, porque a gente via os exemplos, realmente, de pessoas muito chateados, porque o valor do imóvel era muito inferior. E a gente falou, “se eles deram o valor que a gente quer, a gente pega e vamos tentar sair logo de toda essa situação”. Porque a minha maior preocupação era que meus pais não tivessem envolvidos com tudo aquilo, sabe? Então, eu achei por bem a gente resolver logo o que podia resolver. E realmente foi a nossa primeira conversa… Eu acho que a gente foi agraciado, porque nessa época muita, muita gente estava reclamando pelo valor. E eu acho que a própria Braskem viu realmente o que estava fazendo, disse, “não, eu vou realmente colocar o valor da casa”. Então, o valor da casa foi realmente aquilo que o avaliador tinha feito. E aí, houve um aumento, uma porcentagem, porque foi um ano, a casa tinha que realmente sofrer a alteração, valorizando o bem. E aí, a gente chegou realmente a um acordo, e aí aceitamos. Aí, foi isso.
40:08 P2 - Você nos falou que seus pais eram pessoas muito ativas. Você poderia me falar como que ficou a saúde mental sua e da sua família?
R - A minha mãe hoje até reclama. Ela fala muito. Ela diz muito, porque hoje ela mora num apartamento, então ela não tem que convívio com ninguém. Então, ela sempre está falando, vira e mexe ela fala: “Ah, minhas amigas. Ah, eu não tenho isso. Não tenho mais com quem falar.” Então… Ela não tem mais o jardim dela. Ela tinha um jardim que ela amava as plantas. Então, tudo realmente foi reduzido. O meu pai é uma pessoa que não existe. Embora não esteja mais aqui. Mas o meu pai é uma pessoa muito de boa. Ele sentiu, mas como meu pai é mais danadinho, ele tinha a rua como um cano de escape. Ele de manhã saía, e só voltava de tarde. Então, ele encontrou um cano de escape. Mas a minha mãe não. Minha mãe, ela sempre reclamou, reclama até hoje. Eu disse: “Mãe, se a gente encontrasse uma casa ali próximo.” Ela: “Aí, eu queria.”
41:33 P2 - Você nos falou também sobre a sua amizade com a sua amiga de rua e tal. Você poderia nos falar se você ainda mantém contato com ela?
R - Sim, mantenho, mas nunca mais será a mesma coisa. Uma coisa é você estar lá todo dia, estar vendo aquela pessoa. Você passa. Eu passava. Eu só de propósito, ficava gritando o nome dela, só pra ela, “Oi, estou aqui!” Então, qualquer momento que eu estava lá em casa, “Eu vou lá na casa da Ana para conversar.” Não é a mesma coisa, estar na distância. Você fala com ela, liga no WhatsApp e tal, mas não é a mesma coisa. E a família da Ana, que morava em frente, eles eram pessoas que gostavam muito da música, tudo pra eles tinha música lá. Muitas bandas também, eu não conhecia e vim conhecer através deles. Então, muitas vezes eu estava lá na casa dela conversando, “Ah, vamos botar uma música!” Sempre, sabe? E a família muito animada. E ela era uma pessoa que para mim, naquela época, era a pessoa que sabia tudo na minha vida. Ela que me aconselhava, que me ouvia. Então, eu tinha realmente na hora, “Aí, eu estou precisando conversar com a Ana.” Para tudo. E eu perdi isso, na verdade. Hoje eu não tenho como. Eu ligo para ela. Hoje ela mora na Gruta. E você acredita, eu nunca fui visitá-la. Moramos na mesma cidade, mas eu nunca fui. Porque eu digo: “eu vou, vou marcar, vamos”. Eu acho que eu era entrona, na verdade, na época que eu morava. Porque eu passava, “Ana. está fazendo o quê?” “Estou aqui.” Aí, eu esperava ela abrir o portão e entrava. Mas agora não é mais assim. E você sente muito. É uma quebra assim, da sua vida, da sua rotina, que não vai ter mais.
43:46 P/1 - Quando seu sentimento para o futuro dessa região e de todas essas pessoas? Qual o seu sentimento? O que você acha que vai acontecer?
R - Olha só, a gente sempre fica sabendo de um, de outro, que saiu da casa, das suas histórias. E não tem como você não se sensibilizar, não sentir a dor deles. Assim, eu queria muito que pudesse voltar todo mundo, mesmo com suas casas que já não existem mais, mas para reconstruir, porque não? Eu queria que tudo isso acabasse, sabe? Assim… Claro, não volta, mas eu espero que acabe, que não tenha mais o crescimento, que outros vizinhos que estão não passem mais por isso. Que tenha realmente o limite. “Acabou é aqui.” O que eles puderam fazer acabar, acabou aqui. Que não se estenda mais. Porque ninguém merece isso.
45:03 P/1 - A gente está se encaminhando para o final. Você teria alguma coisa a acrescentar? Alguma coisa que você não conseguiu falar, não veio em mente?
R - Não, acho que…
P/1 - Uma mensagem, alguma coisa?
R - O que eu realmente desejo é que tudo isso sirva de exemplo para que no futuro não aconteça, sabe? Que tenha justiça. Se ainda puder… Eu sei que realmente dinheiro não vai tirar a dor, o sofrimento de ninguém, mas para eles isso é o que move, para eles. Então, o que puder tirar deles, eu acho justo, sabe? Tem gente que diz assim: “Ah, mas eles vão falir.”
Não, não vão não. Eles tiveram muitos anos a consciência, sabendo que uma hora a coisa ia acontecer. Eles tiveram toda oportunidade de dizer assim, “vamos parar por aqui”. E não pararam. Então, eu acho que a gente, o que deveria, pelo menos, é a gente lutar até o final, de todas as maneiras, e não acabar. Então, esse projeto, qualquer coisa que tiver, entendeu?
Para a gente sempre estar lembrando, todo ano, todo ano. Não morrer! É isso.
46:42 P/1 - Bom, Jeane, a gente agradece.
R - Eu que agradeço.
P/1 - Acho que a gente finaliza por aqui. Tá bom?
R - Ótimo.
P/1 - Obrigada, viu!
R - Por nada!
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