Projeto Vidas, Vozes e Saberes em um Mundo em Chamas
Entrevista de Ângelo Pacelli Cipriano Rabelo
Entrevistado por Bruna Oliveira
Corumbá, 29 de maio de 2025
Código da entrevista: PCSH_HV1464
Revisado por Nataniel Torres
P - Ângelo, para começar, eu queria que você dissesse seu nome completo.
R - Meu nome é Ângelo Pacelli Cipriano Rabelo.
P - E quando você nasceu e onde?
R - Eu nasci dia 20 de fevereiro de 1960 na cidade de Belo Horizonte, Minas Gerais.
P - E qual é o nome dos seus pais?
R - Papai chamava José Rabelo e minha mãe Jormir Cipriano Rabelo.
P - E o que que eles faziam?
R - Meu pai era militar de carreira e foi ele que me inspirou, inclusive, à essa rotina militar. E minha mãe era funcionária do Correios, onde terminou a sua carreira ao longo dos anos, além de advogada.
P - E como você descreveria eles?
R - Eles? Uma família católica, com uma boa base de estrutura familiar da origem, meus avós, por parte de pai e mãe, e tinham uma rotina familiar muito convencional à época, de viajar de férias, de reunir, de participar de movimentos religiosos. Então, eram pais bem presentes e que certamente nos ajudaram bastante na nossa estruturação de personalidade, de família.
P - E você tinha irmãos?
R - Sim. Nós somos cinco irmãos, duas irmãs, a Desirée, que hoje mora na Espanha, a Júnia Marise mora em Belo Horizonte, o Cássio, que mora nos Estados Unidos, que é o caçula, e o meu irmão mais velho, o Hermes, que nós o perdemos na Covid, mas morava em Campo Grande.
P - E você é em que lugar da escadinha?
R - Eu sou o terceiro na escadinha. É o Hermes, o Desirée, eu, aí depois vem a Junia e o Cássio.
P - E como é que era a relação de vocês na infância?
R - Sempre foi muito agradável. A gente nunca teve, assim, nada que pudesse falar de ruídos, de... O meu irmão mais velho, ele veio só por parte de pai, e ele foi, para mim, principalmente, uma inspiração, o irmão mais velho. Então, ele tinha uma...
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Entrevista de Ângelo Pacelli Cipriano Rabelo
Entrevistado por Bruna Oliveira
Corumbá, 29 de maio de 2025
Código da entrevista: PCSH_HV1464
Revisado por Nataniel Torres
P - Ângelo, para começar, eu queria que você dissesse seu nome completo.
R - Meu nome é Ângelo Pacelli Cipriano Rabelo.
P - E quando você nasceu e onde?
R - Eu nasci dia 20 de fevereiro de 1960 na cidade de Belo Horizonte, Minas Gerais.
P - E qual é o nome dos seus pais?
R - Papai chamava José Rabelo e minha mãe Jormir Cipriano Rabelo.
P - E o que que eles faziam?
R - Meu pai era militar de carreira e foi ele que me inspirou, inclusive, à essa rotina militar. E minha mãe era funcionária do Correios, onde terminou a sua carreira ao longo dos anos, além de advogada.
P - E como você descreveria eles?
R - Eles? Uma família católica, com uma boa base de estrutura familiar da origem, meus avós, por parte de pai e mãe, e tinham uma rotina familiar muito convencional à época, de viajar de férias, de reunir, de participar de movimentos religiosos. Então, eram pais bem presentes e que certamente nos ajudaram bastante na nossa estruturação de personalidade, de família.
P - E você tinha irmãos?
R - Sim. Nós somos cinco irmãos, duas irmãs, a Desirée, que hoje mora na Espanha, a Júnia Marise mora em Belo Horizonte, o Cássio, que mora nos Estados Unidos, que é o caçula, e o meu irmão mais velho, o Hermes, que nós o perdemos na Covid, mas morava em Campo Grande.
P - E você é em que lugar da escadinha?
R - Eu sou o terceiro na escadinha. É o Hermes, o Desirée, eu, aí depois vem a Junia e o Cássio.
P - E como é que era a relação de vocês na infância?
R - Sempre foi muito agradável. A gente nunca teve, assim, nada que pudesse falar de ruídos, de... O meu irmão mais velho, ele veio só por parte de pai, e ele foi, para mim, principalmente, uma inspiração, o irmão mais velho. Então, ele tinha uma história estudando em colégios internos e vinha sempre cheio de histórias para contar. A minha irmã é jornalista e sempre foi uma inspiração, sempre corrigindo, desde a forma de falar e... Mas tem uma história bacana também: foi morar fora cedo para aprender inglês, depois mestrado, doutorado também na Espanha, acabou se apaixonando pelo país e hoje vive lá. A Júnia morava em Campo Grande. Hoje, sempre foi da noite, da música, ela é cantora, então a gente sempre teve uma convivência bastante agradável também. E o Cássio, o caçula, sempre muito naquela rebeldia do último que fica, sempre acaba aguentando mais pressão, mas sempre foi... sempre houve uma fraternidade muito saudável, assim, sem nenhuma lembrança de nada que pudesse trazer alguma tristeza, né? A não ser a perda do meu irmão mais velho mesmo.
P - E quando você pensa na sua infância, tem alguma paisagem que te traga boas memórias? E qual é essa paisagem?
R - Eu tenho essa parte da infância, o que mais marcou e que ainda tem, era as viagens de férias, especialmente para o lado da família da minha mãe, que a gente viajava de trem para Aimorés, a cidade do nosso saudoso, recém o perdemos, Sebastião Salgado. Então, era uma viagem muito agradável e tinha toda uma rotina de fazenda, aquela coisa da convivência com os primos. Então, é uma memória afetiva ainda muito forte. Por parte de pai também, a gente tinha uma família muito ali próximo de Belo Horizonte, cidade de Pitangui, e é extremamente religiosa. Então, vem aí até o paladar das rosquinhas, das coisas gostosas da culinária mineira, né?
P - Isso que eu ia te perguntar, se tem alguma comida, um gosto que te lembre a sua infância?
R - Principalmente por parte do meu pai, né? A família era muito dada a culinárias, os biscoitinhos de polvilho, o bolo, sempre deixa uma saudade aí, quando você reencontra em alguma situação, a gente tem essa memória aí afetiva aí desses momentos, porque sempre eles vinham carregados de muita emoção, não era uma comida simples, ela vinha aí com o coração junto, era uma coisa feita com amor.
P - E me conta um pouco como foi essa viagem para Aimorés, o que você via lá, como era o cenário?
R - Então, ela embarcava em Belo Horizonte, no trem, e a gente passava a noite toda numa cabine e fiz isso várias vezes, dormindo naquelas camas beliche, e vendo diferentes fotografias de paisagem passar, muita serra, Minas Gerais, e isso estava também associado às paradas, para pegar, ou seja, o lanche da chegada, ou o café da manhã, o café com leite. Então, a mãe saía para ir buscar lá fora e você ficava ansioso e com medo, o trem sair, ela não voltar. Então, era uma coisa agitada, mas que tinha num sacolejo, talvez até no som que vem de maneira oportuna agora, momentos que ficaram na memória. E a chegada em Aimorés era sempre marcada de muito abraço, de muito carinho, seja por parte das tias, dos primos. Minha mãe era uma família de sete irmãs, então elas estavam todas lá. Então, muitos primos. E isso trazia aí, com certeza, uma agitação muito carinhosa.
P - E me conta como foi ingressar na escola, esse momento de começar a estudar?
R - Então, essas memórias são bem vagas, mas eu me lembro muito de Belo Horizonte, ainda pequeno, nos primeiros colégios que minha mãe depois, já eu adulto, me levou para rememorizar, e sempre essa parte era 100% minha mãe que tocava. Meu pai tinha uma rotina de quartel, e também viajava muito. Meu pai sempre foi um empreendedor, sempre estava fazendo algum negócio, ou vendendo um carro, ou comprando um carro. Então, ele não era ativo e presente nessas rotinas familiares. E minha mãe era muito disciplinada desde as coisas básicas da arrumação pessoal, do quarto, das coisas, da gaveta. Tinha um rigor que perdurou até os 18, 19 anos, cuidar do uniforme, tarefa, essas coisas. Mamãe sempre foi extremamente rigorosa, de uma disciplina mais dura do que disciplina de quartel. E isso nos ajudou a ir enfrentando e superando aí cada etapa de escola e assim por diante.
P - E me conta um pouco se você conhece a origem da sua família, dos seus avós?
R - Seus avós, Então, isso a gente até, durante muitos anos, isso nunca foi motivo de atenção, mas ela não tem uma relação muito forte com histórias de Europa e assim por diante, mas a ver mesmo com coisas ligadas à história de Minas Gerais. Meus avós também todos ali cresceram no interior de Minas, tanto parte mãe e pai, e quem tinha uma história mais intensa era minha mãe, que o meu avô é de uma região que durante muitos anos foi muito violenta em Minas Gerais, essa região lá do norte de Minas, mas ela se restringe realmente a fazendas, a história de gado, em alguns momentos histórias de mortes, mas não foge muito desse contexto, não.
P - E me conta o que você gostava de estudar, você lembra?
R - Nunca fui um estudante muito disciplinado, de mergulhar em temas, quer leitura, quer matemática, muito menos. Eu gostava muito de atividades que eram fora da sala. Então, isso me fez, inclusive, ao longo do tempo, entrar nos anos 1970, meu pai foi transferido de Belo Horizonte para Campo Grande, E ali foi uma ruptura de família muito forte, porque vir para Mato Grosso, à época, de Minas Gerais, era como se você estivesse indo para o Amazonas. Então, a família se despediu como se a gente fosse ser comido por jacaré, onça, era a relação que se tinha do então Mato Grosso à época. E aí, quando eu cheguei aqui, logo em seguida, um estado ainda muito pujante, ainda é um pouco, mas à época era muito mais de natureza. Então, eu entrei na atividade de escotismo e fui quase seis, sete anos escoteiro. Então, eu vivia no campo. Isso me deu um pouco desse norte que eu acabei seguindo na minha vida.
P - Você tinha dez anos?
R - Dez anos. Engraçado que tem a memória de você... Nessa idade você já começa a consolidar as amizades e foi uma ruptura que é como se estivesse recomeçando a vida, né? Porque eu não tenho memória nenhuma desses amigos que eu tive nessa faixa aí dos 5 aos 10, exceto primos, né? Mas que moravam lá no... no Bairro da Graça, que é onde eu morava por último. Houve uma ruptura bem radical, sabe? Até voltei recentemente, tem a igreja São Judas Tadeu e tinha um lugar que a gente fazia muito, muitas atividades de esporte e tal, desapareceu, foi ocupada por prédios e tudo mais, e a casa onde eu morei ainda está lá, mas nenhuma memória de pessoas.
P - E como foi chegar aqui?
R - Foi, eu diria, um universo de interrogações, não sabia exatamente o que a gente ia encontrar, mas eu diria que a gente até foi bem acolhido, principalmente pela conduta e rotina religiosa dos meus pais. Então, logo, logo a gente já estava dentro da igreja de Santo Antônio, que era a casa nossa, ficava próximo, e aí já participando do movimento jovem. Foi onde eu fui muito ativo, pelo menos uns 10 anos, a minha irmã também. Isso tornou mais aconchegante estar aqui. Porque era recomeçando uma vida, de fato. Meu pai tinha a rotina do quartel, minha mãe foi transferida para o Correio de Campo Grande. E a gente, aos poucos, começou a criar os laços que, na verdade, é o que marca a nossa vida. As amizades que eu tenho, tudo estão marcadas ou associadas a esse momento mais forte da vida de 10 e 20 anos.
P - E o seu pai ficava alocado em Campo Grande?
R - Em Campo Grande, é. Ele chegou, ele era do quadro de saúde, foi servir no Hospital Militar e lá ele basicamente foi até... terminar a carreira. Então, a gente tinha uma rotina. No quartel anterior de Belo Horizonte, eu comumente ia com ele até para o quartel. Quando ele estava de serviço, às vezes dormia no quartel também. Tinha coisas como desfilar [no dia] 7 de setembro, com uma farda ainda jovem. Então, essa proximidade minha da caserna e do quartel sempre foi muito forte. E Campo Grande sempre foi uma cidade que tem muitos quartéis, então, eu acabei, quando eu estudei meu primeiro grau, fui ali para o que chamava na época o terceiro científico, você tinha a opção de não servir como soldado, mas se você tivesse concluído o segundo grau, você podia fazer um curso de oficiais, que era o NPOR. E eu fiz, fiz na cavalaria. Nossa, meu pai, para ele, era algo de muito orgulho. Passei um ano lidando com cavalo e era pertinho do hospital dele. Já estava com 18 anos. Foi um momento bacana.
P - Vamos voltar um pouquinho. Queria perguntar se na sua infância você tinha sonho de ter uma profissão diferente do seu pai, ou sempre foi?
R - Não, eu acho que nunca me passou pela cabeça profissões assim, em algum momento eu tive um certo fascínio por meu pai servir em um hospital militar, em algum momento essa questão da saúde, da medicina, mas eu quero crer que a questão da farda, da disciplina estiveram sempre muito presentes. Inclusive, na fase que eu fui escoteiro, porque a gente usava farda e assim por diante, em outros momentos, seguir carreira militar sempre estava próximo aí do desejo.
P - Você me contou agora que quando você chegou aqui era um cenário diferente em questão de natureza, que você estava observando desde a mudança de Minas. Como é que era Campo Grande naquela época?
R - Era uma cidade ainda pequena, mesmo sendo capital. Na verdade, quando nós chegamos ainda não era capital, porque a capital era Cuiabá. Mas Campo Grande era uma cidade, sempre foi uma cidade muito agradável, de temperatura, e ela teve a sorte de ser muito bem planejada, então ela era muito bem servida de parques, a gente tinha uma rotina até bem agradável e quase todo final de semana era ir para algum lugar que tivesse uma natureza, seja um lago, um córrego, seja uma nascente, um riacho, era uma rotina para uma cidade que ainda era pequena. Mesmo quando ela virou capital, em 77, ela ainda protegeu grande parte dessa característica que persiste até hoje. Ela ainda continua muito bem servida de parque, as ruas espaçosas, e ao mesmo tempo, a época que nós chegamos, você tinha rotinas ligadas à questão de vida silvestre muito próxima, então era comum ver bichos andando próximo da cidade, as histórias de caça, ter animal silvestre era uma coisa comum, quase todo mundo tinha um papagaio, uma arara, porque era muito fácil, porque vinha do Pantanal. Era um pouco dessa relação, já com essa abundância que o Pantanal oferecia.
P - E as pessoas tinham dentro de casa?
R - Dentro de casa. Criar um animal silvestre era uma coisa comum. Era um hobby que grande parte das pessoas tinham e facilidade até de aquisição. Ainda não havia um rigor no sentido da proibição de compra de animais silvestres. Essas aí são coisas que vieram já a partir dos anos 90, 2000.
P - Então, até então era uma coisa…
R - Super normal, sabe? Você conseguia comprar com facilidade um papagaio, uma arara, ter um macaco dentro de casa, eram coisas que eram comuns pela facilidade que se tinha de acesso, né?
P - E me conta como foi essa época do escotismo.
R - Então, foi uma época que me marcou muito. Foi quando eu construí, inclusive, amizades que duram até hoje. Ela é marcada por muita disciplina, por iniciar ações de voluntariado e de solidariedade. A gente fazia as campanhas de arrecadação, seja no inverno, também muitas coisas ligadas ao patriotismo. Na Semana da Pátria, a gente tinha uma semana de guarda da bandeira, 24 horas, passávamos a noite ali numa guarda de uma bandeira. E isso foi muito marcante. E ir para a natureza era algo que nos permitia ter grandes experiências. Os acampamentos, os momentos de preparar os acampamentos, de construir as barracas, de sair na trilha, de navegar, de aprender a olhar as estrelas. E foi ali que se consolidou amizades importantes de pessoas que depois seguiram juntas, como o Silvestre. Recentemente eu perdi um que era um irmão, o Bebeto, que era uma figura que eu conheci no escotismo e que foi um irmão a mais que eu tive, e que a gente viveu momentos muito intensos, seja de desafio, seja nas coisas de adolescência mesmo, nas aventuras que a gente passava. O Bebeto, inclusive, era uma figura que tinha uma pegada pro lado do malandro. Então, às vezes, ele... me lembro de momentos como em Dourados, a gente foi recebido num acampamento lá, foi dentro da cidade, as senhoras de uma associação levaram vários bolos de boas-vindas aos escoteiros. E durante a noite o Bebeto me cutucou, falou assim: “Vamos lá roubar o bolo, que eu sei onde tá.” E aí nós levantamos, fomos lá, comemos o bolo. E eu tinha uma inocência dessa disciplina, muito do rigor da minha mãe. E de manhã cedo, eu me lembro até hoje, assim, tinha uma formação que era um círculo, e o chefe bravo: “Olha, aconteceu isso, isso, isso, isso, isso. Eu quero saber quem foi.” E eu, de pronto, no ímpeto, falei: “Eu não fui!” — gritei assim, como se me entregasse. Esse Bebeto queria me matar ________ (00:22:17). Aí ele já, de pronto, quis me salvar: “Olha, eu vi os cachorros, eu estava de patrulha na hora, o cachorro passou lá e a gente correu.” Mas com ele eu passei momentos que me marcaram. A gente foi para um outro acampamento nacional, em Maringá, um frio danado, e o chefe da nossa patrulha colocou a gente numa escala madrugada, e de manhã cedo colocou a gente para escalar para fazer o almoço também. E aí o Bebeto falou: “Vamos fazer uma coisa aqui que ninguém vai comer.” E eu me lembro até hoje que a gente fez uma panela, colocou a panela, a água estava fria, enfiamos o macarrão lá dentro, deixamos ferver e virou aquele bloco, aquela pasta, e aquilo gerou um mal-estar. O chefe foi lá reclamar da gente, e aí nós dois fomos chamados lá na cúpula do comando daquele acampamento, que se a gente não andasse, a gente estava sendo convidado a sair do acampamento. Quinhentos escoteiros e nós dois os convidados. Mas esse Bebeto, até hoje eu me lembro, eu falo... eu dizia para ele que ele era um dos professores da malandragem. Mas foi um momento da minha vida muito marcante. Chefe Ingresse, figuras importantes que fizeram parte dessa história da minha vida, essa janela entre 15, 14, 15 até quase 18. Foi cinco anos que eu tenho... acho que 13 anos, eu acho que quando entrei.
P - E você falou, você comentou uma frase que eu queria te perguntar. Você falou: “Ah, quando a gente ia para a natureza”, o que que era “ir para a natureza”?
R - Então, com certeza, esses momentos foram os primeiros momentos que eu comecei a me permitir interagir. Me permitir encantar, me permitir ter um olhar que fosse não o do medo, mas do encontro, do reencontro. Essa é uma coisa que eu gosto muito, quando a gente lembra um pouco das escritas de Manoel de Barros, essa coisa da gente, das nossas origens. Então, com certeza, acabou me permitindo. E a própria infância, nas fazendas, em Aimorés, tudo tinha a ver um pouco de ir para o primitivo, para aquilo onde você não tinha intervenção humana, os córregos, as cachoeiras, os riachos, e isso foi a grande experiência que o escotismo permitiu, de você cultivar, cultuar, experimentar lugares que a natureza ainda estava intacta.
P - Você contou que você fazia umas brincadeiras com o seu amigo, com o Bebeto. Mas eu queria saber o que você fazia para se divertir durante a adolescência?
R - Eu sempre gostei muito, e isso foi interessante, porque eu sempre gostei muito de piada e acabava sempre fazendo graça, seja no comportamento, seja contando piada. E foi interessante que, em muitas situações, eu era chamado para quebrar o baixo astral ou contar uma piada, e isso foi uma... a gente... criamos algumas atividades, seja de teatro, teve até uma loucura que nós inventamos durante uma época lá, que era um show de patinação, inspirado num projeto que o Clube Palmeiras trouxe, um espetáculo em Campo Grande, chamado Periquitos em Revista. E ali a gente adotou, se inspirou ali para criar um show de patinação. E foi muito interessante porque eu tinha uma parte que eu vestia de palhaço, fazendo graça. Então, eu tive sempre um lado meio, um pé nessa coisa da comédia, da alegria. E isso foi até quando eu fui para o primeiro ano na academia militar, que é só para dar um pulinho no tempo, mas é interessante porque, quando eu cheguei na academia, você tinha um rigor de academia militar. No primeiro ano, a gente era chamado de “bicho”. E teve uma atividade num determinado momento lá que eu contei duas, três piadas. E ganhei fama com isso. E aí os veteranos me chamavam e falavam: “Ó, conta uma piada, mas se eu não rir, você vai pagar 50 apoios e tal.” Então, eu fazia uma coisa que era muito engraçada. No final de semana, eu saía, ia para as bancas de revistas e comprava cinco, seis revistas de piada. Numa revista, às vezes, eu escolhia uma, porque eu sabia que as outras não fariam sentido e não iam fazer graça. E isso até se tornou uma característica interessante que me safou de algumas situações bastante duras na academia militar. Mas é um pouco dessa vivência lá no escotismo com esses amigos que a gente experimentou aí bons momentos.
P - E como é que foi esse momento de ingressar na academia?
R - Bom, ele foi interessante e com algumas nuances, assim, bem... Eu tinha... Tava aí no Exército, lá fazendo uma carreira que tava muito bonita. Era a cavalaria, então você usava as botas, tinha todo um glamour. E terminou. Eu me tornei oficial aspirante em novembro, dezembro, e janeiro eu já iria para uma unidade militar servir como oficial. Só que era oficial temporário. Nessa janela, eu prestei também vestibular para a Escola de Oficiais, e eu fiz as provas e passei. Então, eu não fui cumprir o tempo de serviço, como é chamado no Exército, porque eu passei para a Escola de Oficiais e, na formação, o Mato Grosso do Sul mandava formar em outros estados que tinham Escola de Oficiais. E, nesse vestibular, tinha vaga para o Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul. E, na hora da divisão, por classificação, eu fui designado para o Rio de Janeiro. E, na mesma época, alguns amigos que estavam na mesma idade foram para o Rio para fazer cursinho e ir para a universidade. E eram de famílias com bom poder aquisitivo. E minha mãe ficou preocupada desses meus amigos estando lá, eu não ter a dedicação na academia. E ela conheceu um coronel, o coronel Aguiar. Ela foi lá no Comando-Geral da PM e falou: “Olha, meu filho está indo, mas eu queria que, se você pudesse, ele mudasse de academia, que ele fosse para um outro lugar, mas não para o Rio.” Aí o coronel já mexeu lá e tal... Fui parar no Rio Grande do Sul, que era uma academia extremamente rigorosa. Assim, pra você ter ideia, no primeiro ano, dos dez que nós fomos, três desistiram. Teve um colega que se suicidou pela pressão do trote. Foi um momento extremamente difícil. E minha mãe, depois, ela entrou... ficou muito arrependida do movimento, porque ela viu que eu estava passando por algo que talvez eu não precisaria, em função de ter ido para outra academia. Nada que tenha ficado marcado, mas foi, assim, talvez um dos momentos mais difíceis da minha vida, porque era um trote extremamente... Foi um ano de trote, né? Você era... Os alunos do 2º, 3º, 4º ano sempre... O primeiro ano era um bicho. Então, eu tinha lá um boxe de banheiro que tinha que ficar impecável. O veterano falava: “Ó, quero pentear meu cabelo no azulejo.” Aí tinha um vitrô gigante, assim, que eu fiquei os primeiros dois meses, três meses, detido no final de semana, porque, se você não cumprisse... Então, você tinha dez aulas por dia, sendo duas, três atividades extraclasses, que eram judô, cavalaria, diferentes atividades, e atividades complementares, que ainda cumpriam a escala de serviço. Então, era um ritmo muito intenso. E eu diria que até grande parte da minha capacidade de superação teve a ver com a criação rigorosa da minha mãe, que foi muito dura. Então, tinha a vistoria de armário, tinha a vistoria de tudo, e eu tinha... Minhas coisas sempre estavam muito arrumadas, pela minha própria história. Mas as atividades extras... Você tirava turno de serviço, por exemplo, imagina, das quatro às seis da manhã. Seis horas tinha que estar na cama do veterano para ajudá-lo a se arrumar, aí sete horas café, sete e meia sala de aula, e o dia todo de aula. Então, você tinha dias que você estava... E se dormisse na sala de aula, você já estava detido no final de semana. Então, olha... Foi um período que eu diria que a gente... e que eu tive que me superar em muito, pelo rigor, pelo aspecto emocional, longe de casa, longe de todo mundo. E eu só não fui pior porque eu fui adotado por uma família gaúcha lá, a família do seu Claudino e dona Janice, e que, no final de semana, quando eu não estava detido, eu ia pra lá e recebia um calor humano, porque na academia era “sim, senhor”, “não, senhor”, “quero ir embora”. E marcou muito a minha vida esse momento, pela intensidade, pela dimensão, pelo período, pelo grau de exigência que ele estabeleceu e que, logicamente, te ajuda a desenvolver uma outra dimensão de capacidade de superação nos desafios, sabe?
P - Foi em Porto Alegre?
R - Foi em Porto Alegre. Na Aparício Borges, que era a avenida onde era a academia. Enfrentando principalmente a questão climática, foi outra coisa. Chegava março, abril, que já o sol, eu brincava que o sol sumia em março, só voltava em outubro. E aí tinha um tal de “adaptação”, o frio, acordava 4h30, 5h, correr de short, só tênis e meia pra adaptar o frio e depois só punha japona, tinha um termômetro lá na cabeça, só quando eu atingia 15 graus pra baixo que podia pôr japona, antes disso não. Então eram coisas assim, que faz um sentido no aspecto de você desenvolver uma outra dimensão de resistência para lidar com o tempo, com o esgotamento físico, com o esgotamento emocional, principalmente, que te torna um pouco mais duro, mais resistente.
P - E como é que começa a sua história com o Pantanal? Demora para chegar nisso ou não?
R - Não, é muito interessante porque eu chego da academia aspirante em 82, em dezembro de 82. E fevereiro e março de 83 eu já fui escolhido para fazer parte de um grupo de operações que veio trabalhar no Pantanal para combater aquilo que se iniciava, que era a caça ao jacaré. A caça, ela inicia no início dos anos 80, influenciada por uma moda na Europa de couro, de animais silvestres para roupa, para sapato, para tudo. E você tinha no mundo o couro da Flórida, tinha o da Venezuela, e descobriram, à época, esse couro do jacaré do Pantanal, que era um couro, sendo um jacaré menor, mais mole, mais flexível. E isso desperta o mercado no Paraguai, e os paraguaios entram para começar a caçar onde é a região de divisa nossa, no sul do Pantanal, e vão subindo porque o mercado demanda. Estima-se que, nessa década de 80, pelo menos 3 a 5 milhões de pele de jacaré saíram do Pantanal. E eu, já em março daquele ano, sou chamado para compor um grupo de operações especiais. O meu primeiro contato com o Pantanal. Foi tenso, foi de combate mesmo. Esse ano, em março, eu vim, enfrentamos troca de tiro. Depois, junho, julho, agosto, vinha e ficava uma semana, dez dias, nas condições mais adversas possíveis, andando em barco, água, chuva, sem nenhum meio, nenhum equipamento sofisticado, nenhum recurso, nenhuma comunicação. E era realmente um desafio humano e profissional, porque o Estado deu a missão à Polícia Militar e não deu nenhuma condição. E aí, nessas vindas, em dezembro de 83, numa dessas patrulhas, eu tenho o confronto que resulta no tiro que eu tomei. Dia 3 de dezembro, nós já estávamos há 4, 5 dias dentro do Pantanal trabalhando. Era final de tarde, 2, 3 horas da tarde, a gente estava voltando de uma patrulha, e o capitão Henrique, na época que comandava, a gente estava num barco Apaporé, um barco que tinha 2, 3 camarotes. Eram 12 homens, 14 homens na nossa patrulha. E aí o capitão Henrique falou: “Ó, eu tô olhando de binóculo aqui, tô vendo um pessoal, um ponto aqui, eu queria que vocês fossem lá abordar.” E aí a gente preparou e saímos assim, subimos o rio. E aí, quando nós começamos a fazer a curva, nós estávamos em três barcos. Eu nomeei, falei: “Ó, vamos abordar, ninguém atira sem ordem e tal.” Quando eu falei isso, eu ouvi o primeiro disparo e meu barco balançou. E olhei para trás, meu piloteiro já tinha tomado um tiro na testa ou costas. E ele caiu e manteve a aceleração, e meu barco foi na direção dos caçadores. Nisso, o meu barco bate com o barco deles e aí bate no barranco. Eu consigo pular e, quando eu tô avançando pra procurar um ponto de me proteger, eu tomo um tiro aqui, que também era... Eles só atiravam na testa. Eles passavam a noite caçando jacaré e atiravam só entre os olhos, porque eles usavam a lanterna com a espingarda. Então dava ideia, porque, se era um olho muito pertinho, era um couro muito pequeno. Então, eles tinham uma ideia já, por experiência, da distância. E eles atiravam entre os olhos. Então, durante o dia, acertar na cabeça era como se fosse parte da caça ao jacaré. E aí eu, rastejando, tomei o tiro. Foi esse movimento que tirou minha testa, né? E ali eu me protejo. Eu estava com metralhadora, ainda atirando. E esse confronto demora alguma coisa como três horas, quatro horas. A maior parte dele foi dentro do rio, barcos viraram ali e tal. E, quando deu duas... Eles eram uns 12, 14 homens paraguaios, alguns conseguem fugir. E, quando a coisa acalma, um barco encosta no barranco onde eu estava. E eu me lembro até hoje, assim, o Chaves, que era o soldado que primeiro me encontrou, ele encontra e grita assim: “Atiraram o tenente!” E até hoje eu escuto esse grito dele, né? E, realmente, o tiro pegou a artéria, então jorrava sangue, assim, bem alto. E eu, deitado, tentando estancar, mas não conseguia, porque tinha pego artéria e eu tinha uma outra capacidade muscular. E ali inicia-se todo um procedimento para tentar me resgatar e dar algum tipo de atendimento. Isso demora várias horas, porque eu sou colocado no barco, aí eu vou até o barco-mãe, o Apaporé. O capitão Henrique se assusta com aquele quadro, o Costa já em estado de coma, porque o tiro tinha pegado na cabeça, mas ainda estava nos últimos suspiros. E eu... ali, eu fico assistindo aquele movimento de “o que fazer?”. Já era quatro da tarde. E você imagina, em 1983, você não tinha Starlink, comunicação, essas coisas — era um rádio precário. E aí o capitão Henrique começa a tentar chamar e falou: “Vamos levar ele aqui para o destacamento do Exército.” Tinha um destacamento a duas horas do local onde tinha sido atirado, chamado Barranco Branco. E falou: “Leva para lá e a gente vai tentando pedir ajuda.” E ele vai tentando falar no rádio. E o que dói... Um japonês forte falou: “Vamos levar, mas nós vamos passar na frente da base militar dos paraguaios”, que dali saíram antes para caçar. Lá era todo o centro onde os caçadores ficavam. E eu me lembro, eu deitado no barco, do lado do Costa, já no estado final, e eu com a mão tamponando. E o Kidoy vem no barco pilotando, meio como um índio Guaicuru no lado do cavalo, ele vem pilotando meio abaixado, devagarzinho, na outra margem, para conseguir chegar no destacamento do Exército. E lá — é engraçado — que eu tenho essa memória de chegar no destacamento. E ali eu sou recebido no barranco. Vem o sargento Osório, ele aparece no barranco e fala: “Desce, desce todo mundo aqui e tal.” E aí eu sou levado para a enfermaria. E, na enfermaria, o enfermeiro olha e fala: “Ó, não tem o que fazer aqui, não. Tem que ser removido o quanto antes, porque, senão, tem hemorragia e ele não vai resistir.” E, nisso, o Costa já tinha morrido. Aí eu escuto eles falando: “Ó, conseguiu falar, tá vindo um avião buscar.” Isso já tava escurecendo. “Vamos iluminar a pista pro avião poder enxergar.” Você imagina... Depois, eu falando com o piloto, ele foi a uma reunião em Campo Grande, na Casa Militar, onde o coronel chamou os pilotos e falou: “Ó, tem uma situação de emergência. E precisamos de alguém com coragem para ir lá buscar, as condições são adversas, vai ter que ir pela bússola, não é?” Mas aí o piloto — me deu um branco aqui agora no nome dele... Nelson — falou assim: “Eu vou lá buscar. Manda iluminar a pista bem, com tocha de fogo, que eu vou lá buscar. Eu já voei lá uma vez.” Então, era um voo de uma hora e meia, quase duas horas, de Campo Grande. Ele decola já quase escurecendo e consegue localizar o fogo — estava a marcação da pista — para que ele pudesse me socorrer e me tirar ali daquele lugar. Ele consegue pousar, e eu sou colocado dentro do avião e transferido para Campo Grande, onde iniciam-se as primeiras tentativas de estancar a hemorragia, já no hospital. Mas tudo isso durou três, quatro horas, para mais, para poder ter essa sequência de tratativas.
P - E o que passava pela sua cabeça?
R - Nesse momento que me marcaram, quando eu tomei o tiro-braço, ele era como se tivesse sido decepado, assim, eu não sentia nada nele, porque a bala atingiu o nervo também. E eu, deitado num barco nessa viagem pro destacamento do Exército, eu me lembro de eu fazendo uma oração e falou assim, “Deus, me dê um sinal que eu não vou morrer e que eu vou continuar vivo”. E eu comecei a rezar o Pai Nosso e quando eu terminei eu me lembro do meu braço começar a formigar todo ele. E como se pra mim tivesse sido um sinal de que eu ainda tinha uma missão. Talvez ali comece um momento importante do porquê do Pantanal e tudo mais. E todo esse processo de resgate, de movimentação, dentro do avião... Me lembro, quando chegamos em Campo Grande, no aeroporto, na ambulância, quando a ambulância ia andando naqueles feixes de luz da iluminação, até chegar no hospital, tudo aquilo tinha uma intensidade associada ao medo, à resistência, à fé no momento de grande provação, porque havia muitas incertezas, a gente não sabia da dimensão. E, realmente, a bala cortou e ela parou aqui embaixo, aqui das costelas. Ela podia ter atingido outros órgãos e tudo mais... e trazido outros resultados que, certamente já me tirava ou tinha encerrado ali a minha história. Então, foi bem intenso. Cada segundo daquele foi uma eternidade.
P - Quantos anos você tinha?
R - Eu estava com... 1983, estava com 23. Estava começando a carreira. Era o início da carreira. E é interessante que eu fico ali, sou atendido em Campo Grande. Para mim houve parte de um erro médico, porque o sangue parou de sair, acharam que tinha estancado e me imobilizaram, falaram: “Não.” Eles deixaram, acho que um dia, dois dias. Aquilo teve repercussão nacional, falando do oficial da PM baleado, caçador e tudo mais. Acho que com dois, três dias eu fui pra casa, e minha mãe, como toda mãe, falou: “Tem alguma coisa errada, ele não tá bem.” E eu fico em casa e as dores começam a aumentar numa intensidade ao limite do insuportável, porque seguia a hemorragia interna. E, nisso, tem-se a decisão de buscar uma outra ajuda médica que não dá do hospital público lá. E aí o médico olha e fala assim: “Ó, se ele não for para São Paulo hoje, ele vai perder o braço. Ou, pior ainda, ele não vai resistir.” E ali começa uma operação. E é muito comum... hoje melhorou muito o suporte do serviço público, mas, na época, eu me lembro que houve um esforço de falar com A, com B, para uma passagem aérea, num voo da madrugada, para que eu amanhecesse em São Paulo e fosse atendido lá no hospital, no Ibirapuera, no Hospital do Servidor Público. E lá, assim, olharam, fizeram os primeiros exames, falaram: “Não, vão ter que abrir imediatamente.” Então, eles abriram aqui toda, para recompor, tiraram um pedaço da minha artéria da perna para recompor e fecharam. E falaram: “Ó, o nervo depois a gente olha numa segunda cirurgia”, que eu volto ali, talvez 60 dias depois, para fazer essa recomposição dos nervos. Essas tratativas e essa evolução dessa sequência impõem o tempo todo muito desafio, porque eu tinha perdido 100% do movimento. Eu carregava, de fato, meu braço. E começa, depois da segunda cirurgia do nervo, aí o médico fala: “Tem que ter paciência, demora.” Aí começa a fisioterapia e tudo mais, começam a aparecer os primeiros movimentos. E nos primeiros movimentos que apareceram já foram uma sequência de quase nove, dez cirurgias, porque à medida que tinha a reação de um tendão, ou a possibilidade de você transferir um músculo de um lugar para o outro para ajudar, dar funcionalidade... Então, nesse processo, começa aí uma sequência de esforço para buscar dar funcionalidade e, ao mesmo tempo, me deixar liberado dessas rotinas. Eu fico lá em São Paulo quase dois anos em cirurgias e tratamento. E eu me lembro que colocaram uma tala aqui no meu braço para que eu pudesse ter alguma funcionalidade. E aí eu me apresento. Esse foi um momento talvez muito importante, ou talvez um dos mais importantes, porque eu chego, visto a farda e vou no comando-geral me apresentar. E faço uma continência bem desconfigurada, assim, porque eu não tinha o domínio. E aí me apresento no comando-geral, falo: “Estou me apresentando.” Aí o comandante-geral falou: “Ó, coronel Pardo...” “Não, tenente.” “Parabéns aí pelo seu esforço, mas está aqui o seu processo de passagem à reserva, de ser reformado, já que você não vai poder continuar na carreira tendo perdido um movimento.” Aí eu falei: “Não, comandante, eu quero ficar.” Ele falou: “Não, mas você não pode ficar, você tem uma lesão.” Falei: “Não, não. Eu posso, e eu quero ser submetido a todas as provas para que efetivamente eu possa comprovar que eu posso permanecer.” E nisso eu também já tinha procurado algum respaldo de outros fatos e tudo mais, e eu sempre fui canhoto. Então, se é pela questão de uso da arma, eu tenho. E ali eu crio uma situação constrangedora no comando: “O que fazer com esse tenente teimoso?” Me mandam para a área de pessoal e mandam eu me preparar para eu fazer as provas, que seriam corrida — quer dizer, não tive nenhum problema, fiz 100 pontos —, o abdominal, e eu me preparei muito para conseguir fazer com um braço só, que era a barra. Mais de 10 barras subindo com uma mão só, já que essa aqui eu não tinha pegada. E, quando eu passo em tudo, eu vejo que eles ficam... Aí me mandam para a clínica, os médicos reúnem e falam: “Bem, ele não tem... fez as atividades físicas, questões de saúde... a limitação dele não é impeditiva.” E eles — tem uma palavra que chama testado de origem — então eles me dão a condição da permanência. Aquilo foi uma vitória emblemática. E, talvez, a segunda foi quando eu tenho a liberação para permanecer, eu volto ao comando-geral. E aquilo ali já era ano 85, 86. Eu peço para o comandante para ir para a escola, porque o governador decide criar, então, a Polícia Florestal. E eu peço para ir para a escola para ajudar a formar os homens. Porque no último ano que eu fiquei em São Paulo, em 1985, eu estava lá fazendo cirurgia e fisioterapia, eu consegui uma vaga num curso da Academia da Polícia Militar do Barro Branco, que era um curso de especialização em comunicação, e eu aproveitei para trabalhar meu TCC em cima do que seria uma polícia adequada para trabalhar no Pantanal, associada ao aspecto de relações públicas. Escrevo sobre isso e, quando eu volto para o comando-geral, falo que queria ajudar a formar, porque eu fiz um trabalho e foi, inclusive, aprovado com nota máxima. E aí ele concede autorização para eu ir para a escola. Aí eu fico na escola oito meses formando esses primeiros soldados, os primeiros 80 homens que compuseram a Polícia Florestal. E todo dia era muito interessante, porque eu não tinha, basicamente, eu tinha um único movimento, que era esse aqui de subir o braço, mas usava uma tala. Eu era sempre olhado com alguma discriminação. Falavam: “O que esse cara está fazendo com esse braço?” E, numa dessas, inclusive, quando eu me apresentei na escola, os meninos, depois me narrando, falaram: “Esse tenente aí, vamos fazer uma corrida e vamos matar ele na primeira curva aí, no sentido de resistência.” E aí eu vou com eles na corrida, na frente, vou liderando e termino. E aí eu já começo a ganhar respeito. E teve uma que foi muito marcante: eu dando um treinamento forte pra eles. A gente vai pra um lugar e aí tinha que atravessar um rio. E aí nós colocamos uma corda para que a gente subisse na corda e atravessasse esse rio. E aí começa todo mundo a passar e eu vejo que todo mundo começa a olhar pra mim, se eu vou dar a volta e tal. E aí eu olho e falo assim: “Vou ter que demonstrar.” E eu subo na corda e vou puxando com um braço só, porque todo mundo vai puxando com dois, e consigo atravessar. Então, momentos como esse, para mim, foram importantes e, ao mesmo tempo, o que era me legitimar e ganhar respeito, no sentido de superação. E, quando começa a chegar na fase final do curso, eu volto ao comando-geral e peço para que eu pudesse voltar para Corumbá para continuar a batalha, porque naquele momento, anos 86, 87, a caça, o tráfico de animais silvestres estava no auge. E o comandante-geral, meio contrariado, aceita. Então eu volto para Corumbá para ser o subcomandante do que foi a primeira Companhia Independente de Polícia Florestal. E foi um momento, assim, extremamente forte. Três, quatro anos, assim, 87, 88, 89, extremamente tensos. Era troca de tiro quase todo dia. Os paraguaios já estavam aqui, chegaram acima de Corumbá. Tráfico de animais silvestres houve — pelo menos 3 mil araras-azuis saíram do Pantanal. Mais de 1.500 peles de onça-pintada já tinham sido apreendidas fora do Pantanal, oriundas do Pantanal. Então a gente faz um combate muito difícil. E, nos anos 89, começa também uma outra pressão, que foram os frigoríficos de pesca, aqui principalmente em Corumbá, Aquidauana. E a gente faz um enfrentamento rigoroso e, nesse momento, minha casa é atirada durante a madrugada, ameaça de morte para mim — eu já era casado, tinha duas filhas —, ameaçando sequestrar minhas filhas. Em 89, o secretário de Meio Ambiente, que era conhecido e tinha um respeito muito grande pelo meu trabalho, convence o governador e falou: “Vamos tirar o capitão de lá, senão ele vai morrer.”
P - Nesse momento, eu queria retomar algumas coisas com você. Quando você vai para o Pantanal, você veio para Corumbá, né? E daí, nessa questão do tráfico, já existia uma consciência ambiental das pessoas de não ter esses animais silvestres em casa ou ainda continuava?
R - Não, ainda continuava. Inclusive, quando a gente veio pra cá, 86, 87, pra Polícia Florestal, ainda persistia. Ter animais silvestres em casa era um hobby que era... Acho que não ter era constrangedor. Todo mundo tinha e talvez tenha sido um dos primeiros desafios nossos de mudar uma cultura, porque como a região sempre teve uma fartura muito grande de vida silvestre, era normal você sair, final de semana, qualquer beiradinha de Pantanal que você chegava, tinha alguém oferecendo um papagaio. Isso quando não um filhote de onça seja pintada ou parda, porque tinham matado a mãe. Aí ficavam lá os filhotinhos e ele nessa primeira fase dele, até um ano de idade, é uma gracinha. Depois a brincadeira começa a ficar sem graça. Mas foi um desafio gigantesco de mudar esse hábito que gerava com certeza um impacto, mas não havia nenhuma discussão a respeito ou consciência com relação aos aspectos ambientais. Foi uma batalha que a gente começou e teve uma vitória importante.
P - Só que nessa época, pelo que eu estou entendendo que você está falando, o foco nem era as pessoas terem em casa, era o montante do volume do tráfico de peles e de animais também.
R - Tinha um aspecto que era o tráfico, lamentavelmente, estava intimamente associado à moda. E aí estamos falando de Europa, principalmente Europa, que pautava a moda global. Então, os casacos de pele e tudo aquilo que vinha da indumentária... não havia nenhuma movimentação. Eu diria que foi já no final dos anos 80, 90, que começam esses movimentos a ganhar escala no sentido de chamar a atenção do mundo, que era a matança de animais silvestres. E o tráfico de aves, principalmente, também era um hobby que tinha grande escala, movimentava milhões de dólares. Ainda, lamentavelmente, nos dias de hoje, ainda movimenta. Mas eu, naquele momento ali — eu acho que final dos anos 80 —, o meu tiro teve muita repercussão, mas a questão da causa ambiental vem já ali no final dos anos 80, quando você tem os primeiros jornalistas aí, o Washington Novaes, Randall Marx, essas figuras que começam a escrever sobre o tema e o que representava aquilo de ameaça ao bioma. Então, as matérias, seja nacional ou de repercussão... eu me lembro de jornalistas que estavam: Zé Hamilton, o Caco — que está na Itália agora —, da Globo, vieram fazer matéria aqui, o Globo Repórter, mostrando os acampamentos com quantidade de jacarés mortos, os números que eram divulgados pelas convenções internacionais de animais que estavam entrando no mercado internacional oriundos do Pantanal começam a chamar a atenção. E também acontece uma coisa importante, porque quando eu chego aqui no Pantanal, é uma dívida de gratidão que me leva, inclusive, à questão de criar o Memorial do Homem Pantaneiro, porque o Estado me trouxe para cá com 80 homens e falou: “Ó, vocês estão com salário pago e boa sorte.” E nenhuma estrutura. Armas totalmente inadequadas, logística também insuficiente. E eu recebo o apoio dos homens pantaneiros. Eles foram determinantes para que a gente pudesse ter o mínimo de condições, não só na logística. Eu tinha aviões à minha disposição todo o tempo aqui — aviões pequenos, pantaneiros — para levar as patrulhas. Muitas fazendas tinham armas remanescentes aí, da história da família, Guerra do Paraguai, disponibilizando armas. E isso foi fundamental para que eu pudesse fazer esse enfrentamento. E a caça, o tráfico, trouxe uma insegurança pela primeira vez no Brasil, num território dominado por uma paz e tranquilidade pós-Guerra do Paraguai, quer dizer, quase 100 anos depois, ele voltou a viver um clima de insegurança com os caçadores. Então, os pantaneiros se mobilizam, criam uma associação chamada Sodepan — Sociedade de Defesa do Pantanal — e a gente começa a trabalhar junto, inclusive em campanhas, tipo “Pantanal Alerta Brasil”. Fomos para São Paulo, a gente começa a ter apoio de organizações internacionais que começam a perceber que realmente era grave, até pela importância do Pantanal enquanto bioma. Então, essa mobilização começa justamente num clima dessa consciência que começa globalmente — não é uma coisa que começa só no Brasil — e que culmina, inclusive, com a Rio 92, onde a repercussão desses fatos ganha escala. Inclusive, eu fui para o Rio também, levando muito material apreendido para chamar a atenção das autoridades. E dali para frente, você percebe claramente que, dos anos 1990 até 2000, você tem uma evolução significativa na mudança de comportamento, na adesão, no compromisso com as causas ambientais por parte de empresas. Tem um despertar aí bem positivo. E tem um momento marcante nessa história: quando a gente consegue controlar a caça — final de 91 —, a gente, em 92, tem os últimos confrontos e consegue ter um domínio do território. A gente também resolve, a partir da pergunta “qual é o nosso papel aqui?”, perceber a necessidade de estudar mais, de se capacitar. E aí cada soldado, cada integrante da Polícia Militar Ambiental vira um educador. E foi muito bacana, porque a gente passa a ter uma política preventiva muito forte. Isso, inclusive, ganha repercussão nacional com vários estados do Brasil que ainda estavam criando — ou já tinham — uma Polícia Militar Ambiental, Florestal, à época que chamava, e a gente se torna até uma referência. Então a gente começa a ter um papel efetivamente de guardião. Isso deu muita repercussão. Inclusive é quando eu começo a me moldar no sentido de me preparar para continuar trabalhando no Pantanal, mesmo quando eu cumprisse minha missão na Polícia Militar, convivendo com muitos pesquisadores, muitos cientistas, muitas ONGs, e me inspira a seguir trabalhando onde eu estou até hoje.
P - Eu queria voltar um pouco, mas depois a gente vai pra frente de novo. Eu queria perguntar qual foi o sentimento de retornar pra Corumbá, depois da cirurgia e de todo o treinamento, não, de toda a aptidão que você tava apresentando. Que sentimento foi esse?
R - O primeiro foi o associado à minha mãe, porque foi muito interessante, porque eu me lembro até hoje do dia em que eu falei: “Mãe, estou voltando para Corumbá.” E ela, de maneira assustada, de repente falou assim: “Bem, agora você está indo para morrer.” Porque ela viveu do meu tiro, das cirurgias, de cada momento da minha recuperação, e mesmo com sequelas eu consegui começar a voltar para o Pantanal. E o outro foi muito interessante, porque, à medida que eu iniciei o processo de recuperação, talvez aquele momento deitado no barco, quando eu pedi um sinal, de que, se eu estava ali concluindo a minha missão, eu recebesse o sinal de que não, que eu continuaria vivo... Nas cirurgias e depois nos estudos, eu fui consolidando e clarificando qual era a minha missão. Eu costumo usar muito aquela expressão: duas datas importantes da sua vida, o dia que você nasce e o dia que você descobre o porquê. Então, acho que eu comecei a desenhar a resposta do porquê, e que o Pantanal era e continua sendo meu destino, no sentido de propósito. E fiz disso uma cruzada que, nesse retorno para Corumbá, numa situação ainda de alto risco, foi interessante porque a minha relação com o Pantanal não começa no encantamento, mas num desafio de alto risco. E aí, quando a gente consegue controlar a situação, a gente começa a viver esse momento de entender melhor o lugar onde a gente estava, que lugar era esse e quais eram os seus desafios, seus propósitos. E é muito fascinante. Eu sou até muito repetitivo, porque você começa a, principalmente, fazer cursos na área de conservação, de manejo, e você percebe o quão diferente foi a relação homem-natureza no Pantanal. Antes de ontem, eu estava em São Paulo, num evento, e falei que não é uma história marcada por trator, por máquinas. É uma história marcada por uma interação, por uma metamorfose, por uma adequação, onde o homem respeita os limites que a natureza impõe e estabelece, a partir daí, uma condição de sobrevida econômica e cultural. Ele não quis modificar o lugar para se instalar. Ele percebeu qual era o limite e, a partir daí, ele se estabelece, não num confronto, mas numa relação côncava-convexa, mais ou menos nessa linha.
P – Eu queria que você falasse um pouco como era Corumbá quando você estava nessa situação de conflito. O que você via de Corumbá? Qual era o cenário?
R – Então, tinham dois cenários muito interessantes, porque ela começa no momento em que a caça, o tráfico, estava longe de Corumbá. Quando eu venho para cá, de maneira definitiva, já em 85, 86, a caça e o tráfico começaram a envolver brasileiros e pessoas aqui da cidade. Então, a gente tinha uma relação de respeito, admiração por parte dos fazendeiros, por parte dessa classe mais esclarecida, sabendo a gravidade. E, ao mesmo tempo, a gente tinha uma hostilidade por parte dessa comunidade que fica mais próxima ao rio, porque tinha parentes envolvidos, tinha uma conivência. E isso foi, inclusive, emocionalmente, muito difícil para nós, a ponto de, em alguns lugares, a hostilidade chegar a ponto de, às vezes, xingamentos, coisas que tinham a ver principalmente quando se tinha um confronto e tinha morte. E tinha morte de gente ligada à família daqui, porque nesse período aí, do final dos anos 80, a região que a gente conhecia, a região das colônias, a região do Taquari e Ribeirinhos, muitos se envolveram na caça. Pouquíssimos. Nós não temos registro histórico assim: “Ah, tem fazendeiro que se envolveu, fazendas.” Um caso ou outro excepcional, sabe? Mas a maioria eram famílias que moravam em região mais próxima do rio e que acabaram se beneficiando, principalmente, do tráfico de aves, que eles tinham habilidade, estavam no lugar. Mas a caça também, em alguns momentos, porque os pilotos levavam de avião coro para o Paraguai. Então, Corumbá... Mas, aos poucos, nós ganhamos o respeito, sabe? Até hoje a polícia florestal vive muito da história do que ela foi e representou para a sociedade à época.
P – E me conta como era o rio nessa época, o rio Paraguai?
R – Então, eu tenho essa memória muito clara da robustez, da capacidade, da força do rio quando a gente chegou aqui, porque principalmente a gente pegou o final de um ciclo de seca e um longo, quase 30 anos, ciclo de cheia. E o rio Paraguai é a grande artéria que irriga e renova a vida no Pantanal. E a gente viveu isso muito próximo, podendo conhecer, usufruir da pungência. Para você ter uma ideia, Corumbá, por essa condição favorável de muita água, chegou a produzir 200, 300 toneladas de peixe em mês para mandar para o centro-sul do Brasil. Era muito forte. E peguei o começo também do início da atividade de pesca esportiva, que era muito ponderada. O turista podia levar 25 quilos mais um exemplar. O exemplar normalmente era acima de 10 quilos, ou seja, um turista levava 50 quilos de peixe. Então, o rio Paraguai sempre me chamou a atenção pela sua importância, pelo que ele representa, e até hoje eu sou estudioso, todo dia falo um pouquinho das minhas preocupações com relação ao risco que ele tem por causa da falta de proteção das nascentes e tudo aquilo que o ameaça. Ele é um rio que cruza uma planície, então ele recebe todos os sedimentos que vêm do planalto, hoje muito menos, mas nos anos 80, 90, onde você tinha uma ocupação no Cerrado que ultrapassou mais de 70%, grande parte dos sedimentos desceu para a planície, então entupiu alguns rios, como o rio Taquari, o próprio rio Paraguai. Hoje tem muitos bancos de areia, mas ele continua sendo ainda um ponto de atenção que deve merecer uma outra dimensão de tratativa. Eu acho que ele não tem o cuidado e o zelo que ele deveria merecer. Até por ser um rio internacional, nós somos detentores da nascente de um rio que passa grande parte por dentro do Brasil, mas também pelo Paraguai e Argentina, para depois encontrar com o Paraná, formar o Rio da Prata. Então, eu acho que a gente é um pouco irresponsável com relação a isso. E, ao mesmo tempo, um rio marcado por histórias, por momentos extremamente importantes dessa ocupação humana, né? América do Sul, os espanhóis, depois portugueses, e que ele carece ainda de uma atenção mais especial no que se refere aos aspectos ambientais. Acho que deixamos a desejar em muito, e, ao mesmo tempo, ainda temos — isso é um privilégio — você ter um rio de mais de 2 mil quilômetros de extensão e ainda você ter água boa para beber, recursos pesqueiros abundantes. Então, assim, a janela do tempo da ocupação humana talvez esteja caminhando para um ponto de reflexão, mas que ainda nos dá a possibilidade de interromper esse processo de perda. Toda perda da natureza é para sempre. “Ah, vai mudar, reverter, vai dragar.” Não, ele perde. É como as hidrelétricas colocadas num rio: você interrompe todos os processos naturais de migração. E o Paraguai, por ter uma baixa declividade, nunca teve vocação para hidrelétrica. Isso deu a ele uma sobrevida, ao mesmo tempo que falta ainda uma política mais clara de responsabilidade com relação a isso.
P - Eu queria que você contasse um pouco dessa desse surgimento da PMA que começou com você aqui e também dessa atuação junto ao homem pantaneiro. Você já falou um pouco, mas eu queria que você contasse mais sobre o que é o homem pantaneiro junto com esse início da PMA.
R - Então, a história de qualquer carreira é sempre marcada por momentos desde a formação, mas há a história pessoal e, às vezes, de lugares e circunstâncias como é de uma caserna, de um quartel, é muito interessante, porque ele é marcado por muita intensidade, você tem coisas relacionadas ao espírito de corpo, a questão da missão, são coisas que ultrapassam, muitas vezes, aquilo que é inerente a outra profissão. E a Florestal foi algo muito importante na minha história, porque eu participei desse grupo antes, que não era uma polícia florestal, eram homens rudes, com uma alta capacidade de resistência, com clareza na missão. E depois eu ajudo a formar esses primeiros 80 homens. E eram jovens, todos na faixa dos seus 21, 22 anos, e que vieram para o Pantanal para uma missão. e que os levaram a um processo extremamente rigoroso de abnegação, de renúncia, de abrir mão, talvez, num momento importante da juventude ali, e que os levaram a ficar dias e dias dentro do Pantanal em circunstâncias de alto risco. E quase, eu diria talvez, a janela de 10 anos, cumprindo uma das missões, um dos momentos mais importantes da história do Pantanal, especialmente da segurança das pessoas e da vida silvestre. E eu estou trabalhando aí, finalizando um documento que vai virar um livro, e eu pedi para que uma pessoa me ajudasse, um jornalista, gravando com esses homens o que foi esse período. E um desses sargentos, entrevistado, falou, “como é que você se sente…”, depois de algumas perguntas, “como é que você se sente tendo concluído essa missão e controlado a caça?”. E ele fala, “eu me sinto um herói sem medalha”. E esse é o nome que eu escolhi para o livro, porque eu não tenho dúvida, e eu me lembro de cada soldado, de cada um, o quanto eles tinham o compromisso, a determinação, a capacidade de superar a vontade de estar em casa, a maioria era solteiro, mas a vontade de voltar para casa para descansar, interromper o frio, a adversidade, as péssimas condições de trabalho para garantir que aquela missão seria cumprida, seja de um tráfico de peles, de caçadores, de pássaros. E isso foi muito intenso, muito marcante. E a gente está tentando traduzir isso no livro, e que talvez essa palavra seja a mais adequada. Foi uma história cumprida com alto risco, com uma capacidade humana muito impressionante, e que eu tive orgulho de liderar, depois como subcomandante, depois comandá-los, e vivemos um momento importante da nossa vida. Nesse processo, eu não tenho dúvida que só conseguimos isso porque nós soubemos respeitar o homem pantaneiro, especialmente os proprietários de fazenda que viram em cada um dos integrantes da Polícia Florestal o compromisso e a ajuda necessária para impedir que eles perdessem algo que era relevante no bioma, que era a tranquilidade, o espírito de paz que reinava nesse lugar e que havia sido interrompido pela invasão dos caçadores. Então, o fruto dessa relação de respeito foi uma força, tarefa ainda maior, mais resistente, que nos levou a ter isso nessa grande batalha.
P - Você estava falando que esse homem pantaneiro, ele tem, de uma certa forma, se modificado ao longo das gerações. Como é que é essa situação?
R - Então, eu sempre faço um corte. Eu cheguei aqui, tive o privilégio de conhecer e conviver. Eu cheguei nos anos 80. A terceira geração, ela estava com... segunda para terceira geração, estava com seus 60 anos, 70 anos. Então, estavam ainda no auge da vitalidade. E eles tinham uma relação com o Pantanal extremamente harmônica, muito forte, de respeito e de energia. E eram grandes fazendas. E a pecuária, principalmente oriunda do período de seca que teve na década de 60, houve um período de muita riqueza, quando chega a chuva mais intensa nos anos 80, você tem fatores como grandes áreas inundadas, essa riqueza também nos anos 60 que perdurou até os anos 75, ela permitiu que muitos fazendeiros mandassem os filhos estudar para fora, Rio, São Paulo, e muitos já não quiseram voltar. Então de quatro filhos, três, não voltam mais, não querem mais saber daquilo. E veio a reforma agrária familiar, o início do falecimento dessa geração, dividindo fazendas em áreas menores e que, pelo tamanho, tornaram-se aí mais difíceis de serem produtivas. Então, essa evolução nesse lugar, ele é marcado pelo grande e longo período de inundação, a dificuldade de competir com o planalto, quando... Ele estava com um ano vendendo a produção, aqui há dois anos e meio, três anos, sem estradas. Até hoje persiste sem estradas, sem energia, sem comunicação. Então, o custo de produção aqui acaba deixando o pantaneiro pouco competitivo. Então, essa falência, que ela é econômica, ela se reflete também no cultural. Muitos perderam justamente a motivação, quer por não terem sucessores para ocupar e continuar a história, não justificava mais, e, ao mesmo tempo, você vê chegando outras figuras, um novo pantaneiro, com uma capacidade financeira maior, ele compra grandes áreas e, também, ele não tem uma relação de dependência só com a produção no Pantanal. Então, isso dá um conforto de, às vezes, demorar um pouquinho mais para a resposta. Então, você vê cada vez mais essa cultura, passando a existir num outro patamar que não é mais o que marcou a história. Ou seja, o pantaneiro, ele tinha poucos encontros anuais, que era na festa dos santos, que dava nome à fazenda, dia de Santo Antônio, Nossa senhora, e assim por diante, eles faziam as festas, e era um momento de harmonia, momento de reencontro com pouca... Nunca se ouviu falar de história de roubos, ameaça à segurança, tráfico. Então, você teve algumas modificações que foram para pior, que foi esse caso, mesmo hoje você tem problemas com alguma frequência de roubo de gado no Pantanal, rota de tráfico de droga, coisas que criam uma certa instabilidade, insegurança e que nos levam a sentir saudade de um tempo que era de harmonia.
P - E eu queria que você puxasse pela memória algum episódio de colaboração da polícia com algum fazendeiro que foi muito importante, algum encontro, algum episódio.
R - Eu poderia narrar muitos, assim, mas figuras importantes como Orlando Rondon, Cássio Leite Barros, Eu tinha, assim, uma... eu gozava de um respeito enorme por parte de cada um deles, Abílio Leite Barros, eram lideranças dos pantaneiros e que, ao mesmo tempo, sempre estiveram prontos para me ajudar. A criação da Sodepan, que reuniu todos esses pantaneiros, foi muito importante, eu fui chamado, o dia que eles tomaram a decisão de criar a organização, para me falar que aquela organização estava ali para apoiar o nosso trabalho. E sempre, talvez, como um bom mineiro, eu acho que essa afinidade estava muito associada a algo que era um pouquinho acima da instituição, tinha uma questão pessoal mesmo. Eu sempre fui muito respeitoso e foi recíproco esse respeito. Então, eu tive situações marcantes no ano de 88, eu estava numa situação de tensão aqui, com ameaças, e os frigoríficos de pesca tentando enfraquecer essa minha força que eu tinha, eles criam um cenário de denúncia que eu tinha recebido recurso para liberar uma carga de peixe. E aquilo foi jornal comprado, aquela coisa toda maquiavélica por trás. E eu, antes que eu tivesse uma reação, um pantaneiro que era o secretário de Estado do Meio Ambiente, Nilson de Barros, marcam a coletiva e falam: “Ó, o capitão Rabelo é uma pessoa que tem total idoneidade, responsabilidade e essa denúncia, ela não tem nenhuma origem que não seja a de enfraquecer a atuação da polícia para que o crime, especialmente da pesca predatória, sobreviva”. Então, essa relação de confiança, respeito, ela sempre foi muito importante para que eu pudesse ter e seguir me movimentando em diferentes dimensões e ganhando respeito e alcançando resultados. Eu acho que essa equação sempre foi muito clara para mim. Então, nunca permiti ou tolerei abuso de autoridade com meus subordinados. A condição de guardiões, quando eu os capacitei a ir em diferentes lugares do Brasil, eu tive muita ajuda de especialistas em recursos pesqueiros, em zoológicos e tudo mais. À medida que eles se tornaram, é muito interessante isso, o filho ser de um soldado da florestal, ele tinha muito orgulho porque o pai era reconhecido em qualquer lugar que ia na sociedade. Então, com isso a gente reduziu e muito também problemas de desvio de conduta, então era uma elite. E isso foi um momento da história da Polícia Militar muito bacana, que marcou uma página da corporação que todos lembram com muito orgulho.
P - E depois desse momento, como é que continua a sua missão no Pantanal? E qual é essa missão?
R - Então, você sabe que eu tenho me feito essa pergunta porque, quando eu saio ali do Comando 86, 87, eu já tinha uma certeza de que havia demanda no Pantanal para que eu continuasse trabalhando. Então, como eu poderia continuar? Eu ainda tinha alguns anos na corporação, e indo para a capital, como eu poderia? E nisso vem a ideia da criação, com mais duas, três amigas, de criar o Instituto Homem-Pantaneiro. E a escolha do nome foi feita por mim, justamente pela questão de que aqui não se inverte a ordem, no sentido de a onça, o homem — é o homem e a onça — porque esse comportamento foi determinante para que a onça existisse. Isso é um cifrão, uma designação, um conceito muito bem estabelecido nesse bioma, sabe? O homem foi determinante para que a natureza sobrevivesse. Como na maioria dos lugares ele foi determinante para a destruição, aqui ele tem uma relação que deve ser de respeito. Então, eu tomo a decisão de criar a organização e, ao mesmo tempo, começo ela de maneira bastante embrionária, com o propósito de buscar trabalhar em políticas de proteção de rios, e nunca abri mão da questão da memória. Surge uma oportunidade para eu comprar o edifício Vasquez, comprei e doei ele para a instituição. Foi uma coisa que meu pai vivia me perguntando, que não conseguia entender, mas eu fiz um sacrifício à época, juntei o dinheiro, consegui comprar. No ato de compra, eu já fiz, no cartório, a doação para o Instituto Homem-Pantaneiro, que é a sede da instituição hoje, e faz com que isso possa começar a ganhar robustez, no sentido de fazer com que a gente comece a escrever uma história que já dura uns 23 anos e que é marcada, primeiro, pelo desafio da própria sustentabilidade. Um país que agora começa a despertar, em função dos desastres e crises climáticas, como o Rio Grande do Sul, como o fogo no Pantanal, a despertar a solidariedade. Então, você busca recurso o tempo todo para começar os primeiros passos, adquirir áreas, implementar programas de proteção de espécies. E é uma história marcada por muita ajuda, por conquistas importantes, por muito respeito, por, em alguns momentos, a maldade humana tentando atingir a reputação, e que tem hoje uma história de resultados bastante significativa em proteção do bioma. São coisas que a gente não consegue alcançar, como essa questão da proteção da espécie humana, porque ela tem associado fator econômico, fator familiar — você não consegue. Mas a ideia da criação de um espaço de memória é parte desse compromisso de proteger. E eu sempre falo para o meu time: qualquer discurso seu, comece falando pela relação homem-natureza. E, talvez, eu acho que recorro sempre, com muita frequência, a Manoel de Barros para tentar expressar essa sinergia, de que forma esse processo se consolida ao longo de 300 anos. Todo dia você lê uma coisa que ele escreveu e fica tentando traduzir. E, recentemente, eu recorri a uma fala dele que, para mim, se tornou quase um mantra: “Eu não caminho para o fim, eu caminho para as minhas origens.” E é muito forte o que passava na cabeça dele quando ele fala isso. E, para mim, tem a ver com essa questão do nosso reencontro com a natureza, com as nossas origens. Porque nós somos marcados, enquanto espécie humana, por um distanciamento do dia a dia. Você nasce numa cidade interior, vai estudar, vai para uma cidade grande, aí quer outra maior, e a gente vai perdendo, a ponto de uma criança, se não mais esclarecida, não entender que aquela água que sai da torneira vem de uma nascente em algum lugar. Então, esse desafio de proteger as origens para que a gente possa ter para onde voltar, para mim, pode fazer cada vez mais sentido. Eu gosto muito, quando a gente fala de esperança, de que a esperança só se torna efetiva se você tem ações e gestos que evidenciem que você pode continuar tendo esperança. E nós nunca vivemos um momento tão importante da nossa relação com o planeta, de clareza de que precisamos de gestos, precisamos de ações efetivas que nos permitam ter esperança. A lógica do milagre pressupõe fé, mas talvez mais do que fé, ela exige de todos nós gestos. Esse é o grande desafio que a gente vive no planeta agora: de cada vez mais falar menos e fazer mais. Eu acho que é um pouco desse propósito do Instituto.
P - Eu queria que você contasse um pouco da atuação do Instituto. Em que frente vocês atuam?
R - Então, o Instituto a gente vem evoluindo gradativamente com compromissos com a cultura, com a biodiversidade, e as questões climáticas, procurando fazer, desenvolver e implementar uma série de ações que nos traduzam à uma condição que a gente adotou, que é de produção de natureza. A gente, há alguns anos, adotamos essa estratégia política de produtores de natureza. Porque é, de fato, um compromisso com aquilo que mais necessitamos. Somos dependentes no que comemos, no que produzimos de biodiversidade. E todo dia a gente, de alguma forma, segue perdendo um pouco pela forma com que a gente se relaciona com o planeta. Então, a gente está muito focado na proteção de espécies, recursos hídricos e inovação. Nós fomos o primeiro projeto de carbono no Pantanal, também o primeiro no Brasil de crédito de biodiversidade, que são esforços onde a gente percebe que o mercado começa a chegar perto da questão ambiental. E, logicamente, chega dentro daquilo que ele se propõe, resultados financeiros, mas que podem trazer benefícios sociais a partir da proteção de áreas, a partir da proteção de espécies. Então, esse tem sido o nosso esforço e o nosso foco, e que vem nos ajudando, inclusive, a sobreviver enquanto instituição, seja na questão financeira, na questão reputacional, na questão de parceiros estratégicos que nos ajudam a sobreviver no dia a dia.
P - Queria que você contasse um pouco do que é esse crédito de biodiversidade.
R - Então, o crédito de biodiversidade, ele nasce num contexto da evolução das COP aí, das Grandes Reuniões Estratégicas, e cada vez mais ao longo da história. Os últimos movimentos foram pautados pelos acordos, especialmente do clima, onde controle de emissões, reciclagem, tudo foram determinantes, e aí percebeu-se em algum momento que também nós precisaríamos criar lógica mercadológica de valoração da natureza. Então, quando nasce o mercado de carbono em cima de uma estratégia que é a da redução das emissões associada ao desmatamento, ela já dá um primeiro sinal de que nós precisamos proteger o que nos resta. Dois, a base de qualquer estrutura de floresta, ela obrigatoriamente não só de floresta, mas da nossa produção, passa por biodiversidade. E a velocidade com que a gente vem perdendo é muito significativa, desacelerou um pouco, mas a nossa história no planeta foi marcada por perdas significativas e extinção. E o crédito de Biodiversidade chega com essa proposta de espécies que são bandeiras, são o topo de cadeia e que dão o sinal que aquele ambiente está em equilíbrio, se protegidas, você está protegendo um grande território. Então, ele nasce dentro de um conceito não associado a emissões, mas efetivamente de proteção de espécies que são emblemáticas para um território associado a um esforço de evidências e comprovações e auditorias de que você tem um território, você tem a espécie, ela está em boas condições e para que ela sobreviva você precisa de condições financeiras e aí isso é transformado num crédito para que possa ser comercializado.
P - Aqui no caso do Pantanal, quais são essas espécies?
R - Então, prioritariamente a onça-pintada, E depois tem outras espécies que são muito emblemáticas, como a ariranha, como a própria arara azul, como o tatu canastra, o tamanduá, que cumprem diferentes papéis no bioma, ajudando outras espécies a sobreviverem. e mantendo o equilíbrio. Então, nós fizemos esse primeiro trabalho com a onça-pintada e a ideia é amanhã poder fazer com a onça-parda também, mas o importante é você procurar essas espécies que ajudam. São tantas que têm um papel num contexto de biodiversidade bastante significativo.
P - Eu queria que você contasse pra gente um momento muito marcante, pode ser de medo ou de emoção, do que você quiser contar do Instituto, o momento que vocês tiveram que agir.
R - Eu confesso pra você que a sobrevida do Instituto é marcada por momentos de muita alegria — seja com o time consolidando conquistas, como foi o Crédito de Carbono da Biodiversidade — e, ao mesmo tempo, por momentos muito fortes associados à questão reputacional. Eu não vou nem trazer a questão financeira, porque a gente vive isso em altos e baixos. Mas talvez eu pudesse lembrar aqui um momento importante da nossa história: a gente estava lidando com um parceiro que tinha uma capacidade financeira boa, aquilo parecia nos trazer uma tranquilidade, e aí, passados cinco anos, essa empresa entra numa crise e quebra. Aquilo trouxe, assim, um corte radical de todas as receitas. Só que, um ano antes disso acontecer, a gente recebe a visita do Sebastião Salgado. Foi um momento, pra mim, muito importante. Eu estava no Rio, numa reunião, vi tocar o telefone, apareceu assim: “0000”. Eu falei: “É ligação internacional.” “Oi, é o coronel Rabelo?” “Sim, pois não.” “Aqui é o Sebastião Salgado.” Eu me lembro que, na hora, veio uma reação do corpo todo, arrepiei. Eu levantei — eu estava com uma pessoa — e falei: “Rabelo, por que você…” Foi uma emoção. “Então, eu estou aqui no Canadá, fotografando o urso polar no norte, e... eu já vinha procurando um lugar que me permitisse concluir o projeto Gênesis, onde eu tivesse diversidade. E falaram que o Pantanal é esse lugar. E que o senhor é a pessoa que pode me guiar.” Imagina a honra, né? A partir daí, eu começo, durante um ano, a falar com ele com frequência, porque ele ainda estava concluindo. Foi para o Estreito de Bering, foi para lugares que eu morria de inveja quando ele ligava — eu querendo estar lá. E ele falou: “Organiza tudo durante um mês. Eu vou ficar aí.” E, com aquele jeitão mineiro de falar: “Não se preocupe com despesa, veja o que precisa e tal.” Eu passei um ano fazendo o roteiro, até que o recebi aqui em Corumbá. E daqui a gente inicia uma viagem que durou um mês. E ele foi. Veio aqui, foi no Moinho conversar com as crianças — uma humildade enorme. E cada noite era uma história de um lugar que ele andou no mundo. E a gente agora — quem não conhecia está podendo conhecê-lo mais — porque ele fala muito que fotografou a desgraça humana, fotografou o inferno, fotografou a beleza... E é muito interessante, e serve talvez como exemplo. Ele para de fotografar por um ano, porque depois de tanta desgraça, ela foi somatizada e começou a se expressar no seu corpo. E ele para um ano. O médico fala: “Você vai ter que parar de fotografar.” E aquilo era o fim pra ele. Até que vem a esposa dele, a Lélia, falando: “Vamos começar a fotografar alguma coisa boa.” E vem a ideia do Gênesis. A gente passa, voei em cima da Serra do Amolar três, quatro dias — inclusive tem uma imagem no Sal da Terra que eu estava com ele no helicóptero — e, ao final da viagem, quando a gente estava fazendo as contas — tinha que pagar o piloto, tinha que pagar tal — ele olha pra mim e fala: “Mas, coronel, eu não estou vendo aqui o seu custo, o valor do trabalho que o senhor fez.” E eu falei: “O senhor acha que eu vou cobrar?” “Não, não aceito. Não aceito isso, não. Foi talvez uma das missões mais nobres que eu tenha recebido: guiá-lo no Pantanal. E quem sabe um dia o senhor vai me ajudar.” E aquilo virou... Ao longo de um mês, foi muito intenso. Acabamos criando uma amizade que perdurou anos depois. E eu sou convidado pra ir, inclusive, a Londres, no lançamento do projeto e tal. E aí, voltando no tempo, a história da crise da empresa... Um ano depois, um ano e pouco depois, a empresa quebra. E vem aquele pânico e tal. E aí me vem à cabeça ele. Eu ligo pra ele. Ele prontamente atendeu. “Ô, coronel, o que foi?”, ele falou. “Sebastião, a empresa que era a mantenedora das áreas quebrou, e eu preciso de ajuda.” E ele fala: “Deixa eu pensar um pouquinho aqui, e eu já te ligo.” Aí passou uma meia horinha, o telefone tocou: “Faz o seguinte: eu vou doar 20 fotografias e você vende, e ganha um respiro para você sobreviver.” Eu fui buscar as fotos — todas maravilhosas —, a mais barata era 60 mil reais. E a gente começa uma via-sacra de vender as fotografias e tudo mais. E isso deu uma condição para que, passados dois anos, a gente buscasse novos parceiros e tudo mais. Então, o dia a dia da instituição é isso, né? É pensar de que forma, no presente, a gente possa proteger o futuro — não só dos riscos que nos ameaçam enquanto espécie humana, mas do próprio propósito da instituição — no sentido de manter uma capacidade mínima de manter um efetivo técnico e seus propósitos.
P - Me conta como foi o desafio do fogo nos últimos anos.
R - Ah, eu pensei que você não fosse tocar nesse assunto e me poupar, mas... Ele trouxe, primeiro, a forma brutal com que chegou em 2020, atravessando 98% de uma história de 30, 40 anos de áreas protegidas. A Serra foi — o Amolar inteiro ali — as áreas que a gente foi consolidando, com lugares com 50 espécies de abelhas diferentes dizimadas em poucas horas pelo fogo. E ainda naquele ano de 2020, nós terminamos sem luz de futuro e nem a certeza da dimensão do que nós tínhamos perdido. Eu senti uma dor enorme, porque foi muito perverso, tanto do ponto de vista ambiental quanto emocional. Aí entramos no ano de 21 com o fogo também repetindo um pouco do cenário — não na mesma dimensão —, 22 um pouco menos, aí 23 a gente teve uma pequena trégua, que veio bastante chuva. E 24, ele volta de novo, numa voracidade… A gente lidando com fogo desde janeiro até dezembro. E eu confesso pra você que são dores, algumas quase incuráveis, porque eu sei que algumas perdas são para sempre. A gente não está — associado à própria questão climática — com florestas e lugares que vão demorar 20, 30 anos para se restabelecerem, e isso associado a uma condição ambiental favorável, que a gente não tem certeza se virá. Então, o fogo trouxe um custo emocional, eu diria, perverso. É como se ainda algumas queimaduras permanecessem dentro do espírito. E, ao mesmo tempo, duas coisas talvez pudessem ser destacadas. Uma: eu vi nascer algo que sempre foi muito distante do coletivo, que foi a solidariedade. Muitas pessoas querendo ajudar. Foi a primeira vez que a gente teve a procura de empresas, de pessoas querendo nos ajudar, desde recursos financeiros até pessoas trazendo frutas para a gente levar aos animais que não tinham o que comer. E, ao mesmo tempo, isso nos motivou a repensar o nosso planejamento numa escala de 10, 20 anos, para que a gente pudesse manter aquilo que eu falei há pouco: a esperança das pessoas. Então, qual é o nosso trabalho, qual é o nosso propósito, como é que nós vamos continuar enfrentando? E, principalmente no que se refere ao fogo, como que a gente conseguiu organizar um time — que é a nossa Brigada Alto Pantanal —, que é o nosso grande orgulho hoje. Um time que tem uma dedicação impressionante, não só de compromisso na prevenção — que é onde a gente consome grande parte do nosso tempo —, mas também no enfrentamento. No ano passado, teve momentos em que eles passaram 40 dias contínuos enfrentando fogo todo dia. Então, a gente criou uma estrutura com tecnologia, com recursos humanos, para fazer esse enfrentamento. E virou o nosso propósito: manter o compromisso de proteger essas áreas, especialmente o Amolar, que é um sítio do Patrimônio Natural da Humanidade. A gente tem clareza de que não é algo pessoal, é algo do coletivo. Eu diria que hoje, pela repercussão e visibilidade que o Amolar ganhou, o país já ouviu falar onde fica a Serra do Amolar. Diz o Sebastião que foi um dos lugares mais lindos que ele conheceu na vida. Então, a gente está aí, todo dia, tentando se preparar um pouco melhor para enfrentar algo cuja dimensão a gente ainda não tem ideia. Isso, ainda por cima, é o que mais desafia.
P - Você estava falando de feridas emocionais que o fogo causou. Você tem algum episódio?
R - Um dos momentos que foi muito marcante para mim: eu estava na Serra do Amolar, na Acorizal, já em novembro, dezembro, num grau de esgotamento gigantesco. A gente estava sentado num banco, esperando os helicópteros voltarem de um resgate, e vê, de longe, uma nuvem cinza vindo de muito longe. A gente já tinha alguns indicativos de que poderia ser a chuva chegando. E a gente olhou aquilo e falou assim: “Nossa, será que finalmente é a chuva?” Aquilo vem crescendo, crescendo... Quando chega mais próximo, a gente percebe que era uma tempestade de areia com cinzas. Algo assustador. Assustador. E tinha um barco nosso saindo com uma equipe de televisão. Eu vejo aquilo, levanto e corro. Eram três e meia da tarde. Eu lembro que um helicóptero estava chegando e grito para o mecânico, que tinha um rádio: “Avisa para não vir para cá! Avisa para não vir para cá!” E saio correndo para segurar essa equipe de televisão que estava saindo, porque, em questão de 30 minutos, virou noite. Imagina: a gente está falando de 4 horas da tarde. Isso, com certeza, foi um dos momentos mais fortes, mais intensos — uma tempestade que ocorre em condições muito excepcionais: baixa umidade, alta temperatura — e que assustou a todos. Só não foi mais grave porque, dos quatro helicópteros que tínhamos lá, três já estavam no solo. Só um estava voltando. O piloto consegue transpor a serra e pular para o outro lado. Eu tenho uma imagem que mostra bem isso. E essa equipe de televisão consegue sair, mas ficou encostada até a noite, e só retornou para a base na hora em que melhorou um pouquinho. São vários momentos assim, principalmente ao ver muitas espécies mortas. Eu andei em lugares com quantidade de animais silvestres totalmente carbonizados. Alguns bandos correndo ainda, soltando fumaça — bando de queixada. Então, foi algo que marcou e que fica na memória de maneira inesquecível. Foram momentos muito fortes.
P - Eu queria que você contasse um pouco do memorial do homem pantaneiro.
R - Então, o memorial é uma paixão e um compromisso — um compromisso de gratidão e uma paixão por tudo que eu pude aprender com esses homens. E é uma história ainda pouco escrita, e que o país também conhece muito pouco: de homens e mulheres que ocuparam um território de dimensões de três, quatro países da Europa. Só o município de Corumbá é maior do que a Holanda, onde moram 17 milhões de pessoas, e aqui nós somos 100 mil. Então, eu, pela forma com que fui recebido, pela forma com que fui tratado, pelo apoio que eu tive — não só eu, como meus homens —, me gerou essa dívida de gratidão. E, talvez, o tempo também evidenciando esse risco de perda, e que o próprio irmão do Manoel de Barros, o Abílio, fala: “Eu sei que muitas espécies serão salvas pela mudança de legislação, pela consciência ambiental. Porém, uma delas me preocupa: o homem pantaneiro.” Ele já começava a ver o fim. E eu diria que não o fim, mas a transição para uma outra espécie humana chegando nesse lugar. Eu procurei recursos, inteligências, cenógrafos como o Nivaldo, que pudesse entender e traduzir esse homem. A parte da etnologia, as suas origens — essa parte é fácil —, os seus meios, a sua história com comitiva. Mas algumas figuras como Manoel de Barro, Augusto César Proença e o próprio Abílio é que traduzem a essência, ou tentam traduzir a essência dessa personagem. E uma das peças que falta no memorial — e que um dia eu vou descobrir como trazê-la — porque a gente teve um desafio muito grande de, primeiro, trazer a parte da indumentária, dos meios, e havia uma dúvida de como expressar a mulher pantaneira, que ela era a essência, a força, o que segurava o homem nesse território. E, depois de muita discussão, vieram duas palavras: a parteira — mas depois veio e se traduziu na onça. Beleza, imponência, território, força. E a gente até trouxe, numa segunda versão do memorial, a mulher pantaneira. E outra coisa que o cenógrafo que primeiro fez, ele tinha pensado num tecido de seda que ele teria visto em São Paulo, que mostrava um homem como se ele estivesse sofrendo uma metamorfose, e ele ficando meio natureza, meio verde. Até hoje eu tenho essa imagem e nós não conseguimos achar — porque ele, lamentavelmente, faleceu — aonde ele tinha visto isso. Talvez fosse a forma de maior expressão, de tradução de quem foi esse homem pantaneiro nesse ambiente.
P - Ângelo, a gente vai mudar um pouco de assunto agora. A gente vai estar caminhando para o final da entrevista. Eu queria saber se você quer contar como que você conheceu a sua esposa.
R - A Márcia, minha companheira dos últimos 25 anos, nasce num contexto muito interessante. Ela é bailarina, tinha uma paixão por promover eventos ligados à dança, e eu estava numa transição, ocupando uma função política de secretário de Meio Ambiente, Cultura e Turismo. Ela se aproxima mais para propor que a gente fosse parceiro num espetáculo que durou 10 anos, chamado Mostra de Dança, onde a gente trouxe Ana Botafogo, Deborah Colker, figuras de renome nacional e internacional, para dançar num palco montado, cujo fundo era o Pantanal. E marcou a história da dança no país. A partir daí, a gente assumiu um compromisso. Ela me ajudou a terminar de criar minhas filhas do outro casamento, depois tive o privilégio de ter uma outra filha, a Tainá, e adotamos um menino também, o Carlos Henrique — com 5 anos; ele está com 17 hoje —, e se tornou efetivamente uma grande companheira. A ponto de, quando é criado o Instituto Homem-Pantaneiro, surgir uma oportunidade de criar um projeto social — que virou um programa durante 10 anos dentro do Instituto —, ele ganha asas, voa, e se torna o Moinho Cultural. E, ao longo desse tempo, todo dia a gente está rememorizando coisas. A gente resgatou recentemente... eu era tenente, e, logo quando a gente chegou aqui nos anos 80, ela era nova — tinha 12, 14 anos — e ia muito para uma pousada que a família dela tinha, a Santa Clara. E eu ia com frequência lá soltar os bichos e entregar para a dona Hortência e o seu Menino, que eram os tios. E ela, ainda jovem, contou depois o encanto que tinha de ver a Polícia Florestal chegar — e, ali, ela já tinha despertado o que, na verdade, a gente acabou se encontrando anos depois. Hoje, a gente tem uma rotina muito intensa — eu, com os desafios ambientais, e ela, com os desafios culturais —, mas eles se encontram. Os últimos espetáculos produzidos pelo Moinho, todos eles passam por questões ambientais, como o fogo, como a história de ocupação no Pantanal. Então, há uma sinergia de paixões, há um desafio de sobrevivência, de propósitos. E diz um amigo meu que nós somos dois loucos — toda hora estamos pedindo para ficar vivos e, ao mesmo tempo, sabemos que a gente tem contribuído de alguma forma pra tornar esse lugar, nosso estado, melhor, a partir da nossa dedicação e compromisso.
P - E como é o nome dos seus quatro filhos?
R - Ah, é Fernanda, Flávia, Nayara, Tainá e Carlos Henrique. Quatro mulheres e um homem.
P - E como foi se tornar pai?
R - Ah, num primeiro momento foi um misto de alegria e, ao mesmo tempo, eu estava no auge da Polícia Florestal, no desafio de consolidar a interrupção da caça. Então, foi um momento que veio muito forte, de intensidade, com ameaças contra minhas filhas e tudo mais, e que aos poucos foi se acalmando. Mas, com certeza, as minhas meninas são uma paixão, todas mulheres hoje já. E que hoje seguem aí suas atividades profissionais e estamos só no esforço de encaminhar o Carlos agora.
P - E eu queria saber se você tem sonhos?
R - Olha, não há como deixar de tê-los até para se manter vivo. E confesso que em alguns momentos que o fogo e outras questões trouxeram uma tristeza que você tem que conviver e lidar com esses sonhos, mas eu diria que existem possibilidades fantásticas ainda de consolidar e criar condições não só para o Instituto ter uma sobrevida, mas também para o Pantanal ganhar uma relevância internacional. Então, eu venho trabalhando em algumas iniciativas aí que tem esses propósitos e sou muito otimista que elas terão êxito para que a gente possa deixar um legado. E tem um lugar sagrado aí com o time que a gente tem fazendo um trabalho, um lugar chamado Rio Perdido, e que a gente avançou muito na proteção desse lugar, e que eu quero ver concluir essa etapa ali também, esse lugar ganhando uma dimensão de importância pela sua beleza e pela forma com que será protegido.
P - E onde que fica?
R - Fica para baixo de Bonito.
P - Também o Pantanal.
R - Pantanal. Já está no alto, no planalto, né? Aí você vai ouvir falar, guarde disso, Rio Perdido.
P - E tem alguma coisa que eu não te perguntei, que você queria contar?
R - Não, eu acho que percorreu aí... grande parte dos aspectos. Tem um detalhe que eu gosto de falar dessa história associada à Polícia Florestal de Mato Grosso do Sul, que nós fizemos e desenvolvemos algo que se tornou referência para o país. Isso fez com que a gente também pensasse em replicar essa experiência que é a necessidade do olhar preventivo. Então, nós criamos um programa que chama “Estratégias para a Conservação da Natureza”, onde mais de 700 oficiais já passaram por esse programa. Hoje é um curso de pós-graduação que acontece a cada dois anos. e que a gente influenciou de maneira positiva na criação de pelo menos 10 unidades no país em estados que não tinham e que com certeza é um motivo de orgulho porque a gente sabe que a gente influenciou em forma de agir, em forma de pensar, em forma de atuar de maneira mais preventiva a partir da lógica de que se eu estou multando ou prendendo é porque eu estou chegando atrasado. E a natureza perda é para sempre.
P - Ótimo. Você quer deixar alguma mensagem no final da sua entrevista?
R - Nós precisamos desse país de pessoas que tenham compromisso com o coletivo cada vez mais. Devemos todos ter a missão pessoal, proteger o privado, mas temos que ter com clareza um compromisso com o coletivo, porque nós nunca vivemos um momento tão importante no sentido de que a solidariedade é que vai nos proteger.
P - Como foi contar um pouco dessa história hoje para o Museu da Pessoa?
R - Ah, é muito fascinante, no sentido de você lembrar de lugares, pessoas, momentos que vão consolidando aí uma história. E, às vezes, a gente peca até por omissão — em alguns momentos, até por excesso de modéstia —, e que, às vezes, a vaidade e o orgulho de ter contribuído é necessário até como exemplo. Até como forma de você melhorar a sua estima, mas também incentivar outras pessoas. Até porque eu não sou eterno. Então, a música é muito clara: “Cada um compõe a sua história”. A gente ouve com muita frequência aqui no Pantanal essa música, muito bem cantada por Almir Sater. E “o dom de ser feliz” passa por você poder olhar para trás e saber que, além dos seus interesses, você pode estender a mão — e ainda ter a possibilidade de olhar para o futuro com a mão estendida.
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