Entrevista de Maura Cristina da Silva
Entrevistado por Lupity Rossetto
São Paulo, 21 de novembro de 2022
Projeto Conte Sua História
Entrevista número PCSH_HV1201
Transcrita por Teresa de Carvalho Magalhães
Revisado por Nicolau da Conceição
Realização Museu da Pessoa
R- Me chamo Maura Cristina da Silva. Eu nasci em São Caetano do Sul, São Paulo. E tenho 65, 1957. Eu sou a primeira sobrinha, eu sou a primeira neta e eu sou a primeira filha. Então o meu nascimento foi um acontecimento para a família. Primeira criança chegando. Então, graças aos orixás, graças a Deus, eu fui um ser muito bem desejado da família. Papai, é, ele hoje em Orum né? Ele foi a minha referência, a minha referência de homem, minha referência de como viver. Eu fui criada pelo meu pai, né? Ele se separa muito cedo da minha mãe. Mas ele sempre cuidou de mim e do meu irmão. Então tudo que eu… Eu sou a cópia dele. Hoje eu reconheço. É esse cara que eu briguei mais na minha vida, de bater de frente. Eu hoje reconheço que eu sou a cópia dele. Então ele foi um cara empreendedor na época, né? Na época que qualquer negro seria motorista, jardineiro, pedreiro, enfim, várias das profissões que é em São Paulo construiu, e, assim, com muito orgulho porque foram essas construções paulistana que construíram São Paulo, né? Foram a mão de obra negra. E o meu pai já falava empreendedorismo. Então, ele já, é, vivia arriscando, sonhando com o empreendedorismo. E eu herdei isso dele, né? De ter essa para além de querer ficar estagnada, de ter a curiosidade de ousar na vida, né? Então hoje eu compreendo que todos os exemplos que eu tenho. Papai ele sempre foi liderança. O velório dele era um absurdo, o número de pessoas que acompanharam o dia que ele faleceu. Sempre foi muito solidário, me ensinou a ter solidariedade. Isso é uma coisa que assim, sabe? É… a gente sempre teve em casa que ajudar vizinhos de compartilhar. A solidariedade eu aprendi com o...
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Entrevistado por Lupity Rossetto
São Paulo, 21 de novembro de 2022
Projeto Conte Sua História
Entrevista número PCSH_HV1201
Transcrita por Teresa de Carvalho Magalhães
Revisado por Nicolau da Conceição
Realização Museu da Pessoa
R- Me chamo Maura Cristina da Silva. Eu nasci em São Caetano do Sul, São Paulo. E tenho 65, 1957. Eu sou a primeira sobrinha, eu sou a primeira neta e eu sou a primeira filha. Então o meu nascimento foi um acontecimento para a família. Primeira criança chegando. Então, graças aos orixás, graças a Deus, eu fui um ser muito bem desejado da família. Papai, é, ele hoje em Orum né? Ele foi a minha referência, a minha referência de homem, minha referência de como viver. Eu fui criada pelo meu pai, né? Ele se separa muito cedo da minha mãe. Mas ele sempre cuidou de mim e do meu irmão. Então tudo que eu… Eu sou a cópia dele. Hoje eu reconheço. É esse cara que eu briguei mais na minha vida, de bater de frente. Eu hoje reconheço que eu sou a cópia dele. Então ele foi um cara empreendedor na época, né? Na época que qualquer negro seria motorista, jardineiro, pedreiro, enfim, várias das profissões que é em São Paulo construiu, e, assim, com muito orgulho porque foram essas construções paulistana que construíram São Paulo, né? Foram a mão de obra negra. E o meu pai já falava empreendedorismo. Então, ele já, é, vivia arriscando, sonhando com o empreendedorismo. E eu herdei isso dele, né? De ter essa para além de querer ficar estagnada, de ter a curiosidade de ousar na vida, né? Então hoje eu compreendo que todos os exemplos que eu tenho. Papai ele sempre foi liderança. O velório dele era um absurdo, o número de pessoas que acompanharam o dia que ele faleceu. Sempre foi muito solidário, me ensinou a ter solidariedade. Isso é uma coisa que assim, sabe? É… a gente sempre teve em casa que ajudar vizinhos de compartilhar. A solidariedade eu aprendi com o papai, né? E como aprendi outros valores também. Questionei que era um homem negro, um merengo, vários casamentos, então, a gente batia de frente. Mas hoje eu compreendo, o saldo é muito mais positivo do que negativo que é esse produto hoje que sou eu.
As minhas tias, as irmãs são as minhas tias, as minhas pretas velhas hoje. Todas elas. Por eu ser a primeira sobrinha, elas sempre cuidaram de mim, gente. Sabe o que é cuidar e cuida até hoje. Hoje eu sou uma senhora de 65 anos e ainda sou chamada de Laurinha. Sabe? Elas são deliciosas. Toda a minha família. Todas as minhas tias sempre muito carinhosa. E pelo fato do papai ter tido vários casamentos, e sempre levar eu e o meu irmão Marcos junto, elas sempre estiveram por perto cuidando. Mas é o que é legal na minha família que eu acho interessante que a família, o meu núcleo de irmãos, ele não se resume somente em mim e o meu irmão né que é o primeiro casamento do meu pai. De várias relações que o meu pai teve, ele foi acolhendo todos os filhos. E aí a mamãe também, a minha mãe teve um outro casamento que teve mais duas filhas. Então, nós somos doze irmãos e nós somos todos muito ligado, sabe? Que proeza, né? Ser de mães diferente, mesmo assim a gente é afeto mesmo. Isso foi a minha sustentação, foi o afeto.
O nome da minha mãe real é Maria Lourdes da Silva. Maria Aparecida da Silva está no meu documento. E Maria de Lourdes é o nome real da minha mãe. Agora, pasme, porque meu pai se casa com a minha mãe, com os documentos da minha tia. E ele namorou com as duas, viu? Imagine a questão machista da época pra uma coisa dessa, né? Conta-se que meu avô na hora de casar, deu o documento de uma filha em vez de dar na outra, mas meu pai percebia que no documento estava errado, né? Ela morreu muito magoada com a irmã e nunca perdoou. Né? Papai se separou muito cedo da minha mãe e aí tem um processo muito sério que é um processo de traição. Papai… Hoje nos dias de hoje, como nós avançamos, né? Vocês que são jovem, não vão viver isso, né? Mas uma mulher que trai, ela era a pior história da sociedade, né? E… mas e meu pai? Tinha milhares de família pra ele tudo era possível. Tanto é que aguarda menino, meu irmão ficou com o meu pai, né? E nós fomos criados pelo meu pai, né? E a minha relação com a minha mãe sempre foi… um pouco distante, mas meu pai ele já era noivo, quando ele separa da minha mãe, de uma outra mulher e que vem a ser a minha segunda mãe. E uma mulher também solidária carinhosa que me recebeu a mim e meu irmão como filhos, sabe? Ela abre mão do… porque na época se casar com um homem que já era casado não existia. Ela abre mão desse amor e vai viver com o meu pai, né? E recebe no casamento duas crianças, nós estamos nas fotos de do casamento dela, mas também extremamente doce a mamãe. Onde uma doçura que é a mamãe Vera. Então, eu tenho duas mães. Eu tive a minha mãe Lourdes e a mamãe Vera. E a Vera nunca negou a presença da Lurdes na nossa vida. E ela assim escondida do meu pai nos levava pra minha mãe ver. Convidava minha mãe para vir em casa. Então eu hoje eu entendo isso que… solidariedade feminina, né? Como isso foi importante? Pra que eu não trouxesse hoje esse resquício de que a outra mulher é minha inimiga. Tudo é construção. E eu sou muito agradecida porque é exatamente esse afeto e a minha vó também. A minha vó, minha vó parece com Carolina de Jesus. Sabe essa doçura que vocês dedicaram naquela música. Nós sabemos. Mas esse lado da minha vó que cuidava da gente e que criou essas minhas tias que hoje são as minhas velhas. Então a minha família sempre teve muito afeto.
Papai era representante comercial, né? Papai ele vem… minha família, ela vem de Tupã, Minas Gerais. Entra em São Paulo por Minas. E minhas tias são ou algumas domésticas e outras já vão pras fábricas de São Paulo. Anos cinquenta, né? E o meu pai, ele sempre arriscou com vendas. Ele sempre teve nele esse tino de vendedor. Eu tenho uma tia mais velha, a irmã dele, né? Que dizia assim: “Ditinho sempre foi doido, sempre quando chegava o dia do meu pagamento ele já tava na porta da fábrica pra pegar dinheiro emprestado”. Ele sempre estava em um grande projeto e ele se torna representante comercial. Né? E o que ele nos educou e nos criou e que nos deu, é… sustentação financeira foi como representante de sal grosso. E foi o que deu régua e compasso pra ir comprar as casas eu falo as casas porque meu pai era realmente empreendedor. Não é rico, mas teve oportunidade de fazer negócio com algumas casas. E na época São Paulo também, que daí já nos anos setenta, tem telefone, comprar ações de telefone. Né? Então ele foi sempre um cara muito… mas não tinha dito não, tinha um grande arroz em casa pra comer. Nunca foi nunca foi fácil, por quê? Porque meu pai quando recebia eu tinha uma das mulheres do meu pai, tinha uma mãe que chamava dona Júlia e ela dizia: “um dia mata um boi pra comer, no outro dia não tem nem água pra tomar”. Porque ele era assim, sabe? Então a gente teve momentos muito felizes na nossa vida de fartura, mas tivemos momentos de muita dificuldade. Nunca houve uma estabilidade, assim. E no meio disso ele foi fazendo negócios, fazendo negócio.
A família da minha mãe era muito pequena, era ela a irmã e o pai. Eu me lembro do meu vô Adriano muito pouco assim porque a minha família, do meu pai, ela é marcante, até hoje. É grande, sabe? A gente se reúne todo o Natal, todo ano novo. Nós temos foto que posamos com avô, com avó, com os… sabe? Toda a geração. Então e a, o meu avô ele ficou lá no interior, meu pai veio pra capital com a mulher, com a mãe, com a minha mãe, depois a irmã veio. Então, a família era muito pequena, eu me lembro do vô Adriano quando ele veio e depois ele faleceu.
Minha mãe não, quando esposa e o meu pai não. Né? Ela ficava muito em casa e cuidava da gente, né? Tem uma coisa também, né? Meu pai, ele sempre foi muito grandioso, né? Eu falo, mais do meu pai do que a minha hoje, ele é grandioso, ele foi muito grande na minha vida. Ele era presidente da associação do bairro em Ferraz de Vasconcelos, era uma vilinha desse tamanho, e o papai era da associação. Então minha mãe tinha essas atividades. Agora tinha uma coisa que é muito marcante da minha relação, com a relação do papai, com a mamãe, que era muito sério, a minha a minha mãe genitora mesmo, que ela era da umbanda e meu pai desacreditava da umbanda. Então muitas vezes desrespeitosamente ele ia buscá-la e era violento, violento mesmo. Teve cenas muito violentas na minha infância.
Ah, minhas tias todas, não me mande escolher uma delas não me mande elas são maravilhosas. Agora na covid eu perdi uma, infelizmente nós perdemos uma. Mas elas são… elas cuidam de mim, sabe? Eu morar em Salvador é um problema pra elas.
A mais velha é a dona Teresa. Maria Tereza. Uma mulher que se tivesse as oportunidades que jovens negros tem hoje, ela seria uma das maiores empre… empresárias. Ela sempre teve uma visão de negócios absurda assim, né? Daí depois você tem a tia Inês, a tia Inês é que faleceu. Professora, comprometida com a educação. É… depois você tem a Alice. Alice é…. A minha tia Alice é… é uma mulher ainda a mais… acho que uma das... não a mais, é doce também, mas doce também, né? E, assim, muito elegante, muito fina, né? Gosta das coisas muito elegante. E depois você tem a Dulce. Ai a tia Dulce é o favo de mel, eu diria, né? E a Luísa que é a mais nova. São essas. E eu tenho a esposa de um tio que entra nesse também que é a minha tia Dita. Sempre cuidou. Então todas elas sempre cuidaram de mim e cuidam de mim até hoje.
E agora, pós-pandemia, eu tenho mais essa preocupação de aproveitar todos os momentos que eu posso com elas. Sempre.
A minha vó contava muita história. Só que a minha vó contava história de lobisomem. Sabe essas histórias? Pagava de medo. Ela contava muito e eu me lembro que, mesmo dando aquela adrenalina, a gente queria ouvir. Agora o que eu aprendi com as minhas tias, é… elas me ensinaram muita coisa de se comportar, como ser mocinha. Eu sempre as via como… e elas eram muito, elas são muito bonitas, né? Então elas sempre me ensinaram muita coisa, minhas tias, né? “E quando crescer vou ser igual a elas”. E elas, as mais novas, que daí começa a partir da… dona Eleonice. Eleonice, Dulce e Luiza, as três últimas, as três mais novas, elas eram as as meninas as adolescentes do bairro, mais bonita. Naquela época usava, usava-se muita peruca na época né? Elas curtiam o Roberto Carlos, Erasmo Carlos, então no quarto delas tinha um painel cheio dessas fotos deles e eu as admirava demais. Então elas que me ensinaram, a Dulce que me ensinou a ir no samba, a ir pro samba rock, enfim.
Tinha o baile da associação, que eu sempre estava com elas, né? Mas o convívio depois já vem na minha pré-adolescência, adolescência eu já vou chegando com elas nos bailes.
Então, eu e o Marcos, né? Somos filho do mesmo pai e da mesma mãe. E a gente sempre foi muito junto, porém a gente brigava muito quando criança. Cês lembram…. não era da época de vocês… existia programa que se chamava Luta Livre: Ted Boy Marino. E uma coisa de…. e eu menina, e a gente brincava de luta. Além das lutas a gente andava muito de bicicleta, brincávamos na rua, então a minha relação com meu irmão Marcos, sempre fomos parceiros, não muito cúmplice, mas sempre parceiros, né? É… mas nós sabíamos que tínhamos a nossa infância inteira um com o outro.
Que daí meu pai veio num outro casamento e esse casamento eu vejo os meninos nascerem e… que é Maurício e Marcel, né? São meus fofos, assim, meus bebês, né? Porque daí eu já sou adolescente eu cuido deles. Depois eu tenho o Luiz, e o Luiz é muito especial também. Luiz Roberto e Luiza. E eles são, todos eles presentes na minha vida até hoje, sabe assim? E Luiz também. Ele vem. A adolescência eu já sou referência pra ele. Eu já estou trabalhando, cuidando, né? E depois vem Luiz… tem Márcia, tem Margareth, com Luiz. Porque meu pai tem dois filhos com cada esposa. Então ele tem Luiz e Renato, né? Renato eu tive um pouco, pouca, poco convívio. Renato tem uma vida meia que difícil, né? E ele acaba indo pra prisão. Então fica muito distante e foi muito doloroso pra gente. E Luiz são os dois do mesmo casamento da do meu pai, né? Da mesma união. Mas o Luiz, assim, é… ele é muito doce. Aí eu passei a adolescência inteira cuidando do meu irmão, né? Dentro do que eu podia cuidar eu cuidei de Luiz, né? E ele maduro pra viver as experiências que ele viveu, pra chegar na família do meu pai, que já é outra mulher, e poder ser aceito…ele é muito valente… ele foi muito valente. Sabe? Não ter passado a infância ali e chegar e conquistar esse lugar na família. No meu coração ele ganhou tudo. Daí eu tenho uma irmã que se chama Márcia, e era Márcia e Margareth, que daí é de um outro casamento do meu pai, que a gente tem uma relação legal, afetuosa, de respeito, né? Margarete era outra irmã do mesmo casamento. Margareth faleceu muito cedo, eu não estava mais em São Paulo. Mas ela deixa pra mim uma sobrinha que é a cópia dela.
Sérgio um pouco distante, mas perto, né? A gente foi a adolescência próxima. E eu tive um irmão do coração que foi Nelson, que hoje já, em Orum, também. Ele tinha uma deficiência auditiva e me deixa também uma sobrinha maravilhosa. Eu acho que eu não esqueci de nenhum de vocês, esqueci, não vamos lá. Marcos, Maurício, Marcel, Margareth, Márcia, Luiz e Renato, Nelson, Sérgio. E aí eu tenho duas filhas da minha mãe que é Solange e Silvia. Que também Solange é meu bebê também.
Eu tive uma infância em Ferraz de Vasconcelos na Vila Santo Antônio. Pense numa vilinha. Pense, né? E aí você tem a mercearia do português, você tem associação. A mamãe Vera, que é a segunda mãe, ela já era professora alfabetizadora na escola do pai. Era um loteamento, né? É muito interessante porque hoje na vida eu atuo com direito a cidade, né? A minha luta de militância é direito a cidade e é voltada pra questão racial. Então quando eu vou nos quilombos, eu fico pensando que eu fui criada num, né? A forma como as coisas se dava naquele território. Então a gente tinha a costureira da cidade do bairro, nós tínhamos a associação, nós tínhamos o bairro Boteco que os cachaceiros fica lá sentado conversando e a minha infância era brincar, correr, nessa vila, que é a Vila Santo Antônio, que fica na zona leste, já chegando no extremo leste de São Paulo. Um lugar muito precário, um lugar que pra você pegar ônibus você andava quilômetros. Então hoje quando eu assisto alguns filmes, né? É… Cor Púrpura, me lembra isso. Aquele caminho que segue faz, caminhando e aí o mato lá, né? Era daquele jeito, não tinha nada a não ser casas. Que daí a gente… eu comece a identificar isso hoje na minha luta que são os lugares onde nós negros temos direito de ter casa, somente casa. A linha do trem nós atravessávamos pra poder pegar o ônibus do outro lado. Com toda precariedade, né? E aí, mas eu era uma criança que adorava morar naquele lugar e brincava muito. Eu brinquei muito.
P/1 - Na rua da rua.
R - Na rua não tinha. Não tinha ônibus, não tinha carro, tinha nada. A rua era nossa, sabe? Eu já tinha bicicleta, ó e a gente compartilhava a bicicleta. Né?
Bicicleta… andei muito de bicicleta. É… pega-pega pique. Nossa, como a gente brincava.
Brincar de casinha. Muito, brincava muito de casinha, né? A gente tinha uma piscina plástica que a gente armava no quintal e brincava com todos os amigos.
Papai era muito, ele era presidente da associação. E as vila todo mundo se conhecia. Era muito legal.
Isso faz parte da doçura da vida. Vocês viram que vocês chegaram em casa e a gente estava ouvindo música. A minha vida é ouvir música. Então o meu pai ouvia muita música, a mamãe ouvia muito música e eu fui educada com música boa. Então eu já conhecia Jamel. Hum, né? Eu conheci Dóris Day. Essa turma da época. Porque a mamãe e o papai ouviam muita música.
Eu ouço Jorge Ben Jor, que é a minha formação. Jorge Ben, não é nem Ben Jor. Eu ouço muito Tim Maia, eu ouço muito Djavan, eu ouço Iracira, né? Eu ouço… eu ouço Sandra de Sá. Eu ouço muita música preta Brasil no meu MPB. E também o Caetano, os clássicos, né? Tem algumas coisas muito legais. Em dias de festa de almoço da família, eu imagino hoje, depois que eu me torno mãe, como essa coisa, ela funciona na gente, né?
É óbvio que tinha muita dificuldade. Isso eu tô contando pra vocês o lado legal que eu nem sonhava das dificuldades, né? Mas quem sabia disso era nossos pais, né? E aí existia um macarrão que ele era louco, ele era grosso assim, acho que era o mais barato que ele tinha que cumprir, né? E era esse macarrão que era feito pra gente, com molho de… molho de carne moída. Mas o sabor desta comida era deliciosa, sabe? E eu tenho. Olha eu consigo. E aí, sabe essas bacias imensas? Aí outro dia eu fui numa festa africana pra dar o nome do bebê, que só dá depois que a criança nasce. E aí, olha como é próximo da gente isso e a gente nem sabe: Os africanos eles colocam nessa bacia e comem todos juntos. Nós não comíamos todos juntos, mas eu me lembro da bacia que a minha irmã colocava na mesa e a gente se servia com esse batalho. Macarrão e frango… era frango.
Então, quando eu crescer, eu quero ser professora.
P/1 - Era o desejo da infância?
R - É! Isso é referência da mamãe, né? Eu queria ser professora.
Eu estudei nesta vila, minha primeira formação. Fundamental que não era fundamental, era o primário, né? Foi numa escola… a Escola Estadual da Vila Santo Antônio. Que era uma casinha.
Eu tinha uma amiga, diz que hoje também ela é (inaudível), que era a Verinha o nome dela, e achava aquela menina tão linda, tão bonita que eu queria ser como ela. Ela era obviamente branca. E para mim ela era a pessoa mais bonita. Então eu me espelhava nela, referência era ela. E ela era a minha amiga, assim eu nem sei se ela… se eu era a melhor amiga dela, mas ela era a minha melhor amiga, né? Mas era muito mais pela questão do estereótipo, porque essa coisa racial ela não era dita na minha família, né? Eramos uma família negra, ouvíamos muito Martinho da Vila, ouvíamos elementos e comportamento negro, mas era como se isso não existe… não existia. Então, mais essa menina para mim era a referência.
Aí eu fui muito ruim na escola. Eu nunca gostei muito de estudar não, viu gente, sabe? Até então quem diria que eu ia dar nisso. Mas, assim, eu não era assim e tenho motivos pra isso. Meu pai, na santa Ignorância dele, ele me dava o dever e era muito violento pra dar o dever, né? Então eu tinha medo, eu tinha que saber, eu vou te dizer a cada matéria que eu odiava era a tabuada, eu não conseguia decorar a tabuada, e a mim era exigido que soubesse a tabuada. Então, tipo assim, sua lição de casa hoje quando eu chegar é fazer dez vezes a tabuada. Pensa em você e os castigos do meu pai eram castigos muito pesado, né? Ele nunca bateu, mas os castigos eram muita coisa, né? E aí esse isso de escravidão mesmo pra gente, né? Muito pesado.
Então, daí eu saio da vila, né?
P/1 - E aí?
R - E aí eu venho morar em Osasco. E depois eu tive dois períodos, Osasco e Vila São Francisco, uma do lado da outra. É um período que eu venho morar em Osasco e eu passo a estudar no colégio público também. Em Osasco eu me torno uma grande jogadora de handebol. E aí eu sempre sou líder, sempre, sempre, sempre, sempre, sempre, sempre, sempre, sempre, sempre fui líder. Sempre. Sabe? Sem ter essa consciência. Mas eu era pretinha, gordinha, que ninguém namorava. Que ninguém pegava. Então eu era a legal que arrumava a namorada pro amigo, né? E que fazia todo esse processo. Mas na hora da música lenta eu ficava na parede, ninguém dançava, ninguém me tirava pra dançar. Né? Então durante, esse era o colégio que eu estudava, depois, depois eu vim estudar no Colégio La Vila São Francisco, que daí já é um colégio… que também é distante, porque perto de Osasco, né? Mas as famílias um pouco melhor já compraram um empreendimento melhor e eu era a mais pretinha. Então vocês imaginem os problemas de identidade… de se reconhecer e da aceitação. Então como é que se aceita? Sempre sendo a simpática. Sempre sendo líder.
Porque eu sempre fui liderança, sempre fui a simpática, brincava. Né? As minhas dores era as minhas dores. E isso me rendeu muitos problemas como como mulher, como aceitação porque são coisas que são veladas, elas não são ditas. Elas estão na subjetividade. Né? Apesar de todo esse afeto que foi a minha base familiar eu não tinha o respaldo da sociedade para mim. Então a insegurança era total, e ai eu vou pro mercado de trabalho, né? Não sei se a gente pode falar. Né?
P/1 - Pode falar.
R - E quando a gente chega no mercado de trabalho eu não consigo também as melhores vagas. As melhores vagas não é para mim. Eu fiz ensino médio, eh, eu acho que eu já tinha terminado, quando começa a trabalhar, né? Eu tive uma experiência com meu pai, meu pai por ser essa pessoa com hábitos de escravidão, eu não consegui ficar com ele, era um escritório pequenininho no Brás. Dizia-se escritório, mas poderia ser o fundo de casa. Né? Mas é lá que eu aprendi tirar nota fiscal, a datilografar, já dar datilografava, tá? E aí eu sou formada e aí resultante o que que a gente usava? Um aparelho que você, era PABX, que você pegava os cabos pra ligar, pra fazer chamada de ramal, né? Fiz curso de digitação, computador tava chegando, era aquelas máquinas gigantesca, tal. Mas eu nunca conseguia, e as minhas coleguinhas todas conseguiam passar na entrevista. Eu nunca ficava. E aí a ousadia, eu queria ser secretária executiva. Professora foi embora e eu queria ser da secretaria. Mulher preta, gorda, gordinha queria ser uma secretária executiva. E eu não tinha o entendimento racial. Imagine o grau de frustração, imagine quanto sofrimento foi isso, né? E aí eu sofri muito por causa disso. E a minha madrasta, que é a mãe dos meninos, ela é a linda e eu tive que competir com essa mulher também. Imagine o pau que a gente quebrava dentro de casa, era muito grande, era muito grande porque eu disputava o único homem que tinha na minha vida, que era o meu pai. Né? Então sempre foi muito difícil pra, eu acho que eu diria que apesar de todo afeto que foi, o que me segurou, o mais difícil foi eu me encontrar comigo, me descobri. Porque esse afeto, essa afirmação, quando eu vou para a sociedade, eu não tenho isso. E aí era muito sofrido, porque eu sempre fui a legal, mas eu nunca era escolhida. Eu fazia testes eh de seleção de todas as minhas amigas foram trabalhar nas grandes empresas da região e daí eu moro em Osasco, né? Então tem grandes empresas naquela região. Todo mundo conseguiu uma colocação. Eu nunca consegui nenhuma dessas grandes empresas. O máximo que eu consegui foi trabalhar no UNIBANCO. O UNIBAMCO era carimbar o dia inteiro, bater carimbo, uma coisa estúpida.
Trabalhei em escritórios pequenos, né? Era aqui, era acolá. Mas tinha uma coisa muito legal que me fortalecia. Porque eu morava em Osasco, nós pegávamos um trem, que era sete e quinze da manhã, esse trem, sete e quinze, seis e quinze, não sei. E a gente ia no vagão que ia só os negros. Ele vinha de Carapicuíba. E aí era uma turma… e daí eu já estava dançando, dançava muito samba rock. Eu nunca ficava mais na parede, a não ser na música lenta, mas na hora da música lenta eu ia tomar uma água eu vou. E aí, nós nos reunimos no terceiro vagão. Nessa época existe uma menina, que nós somos amigas até hoje, se chama Ana Lúcia. Ana Lúcia era uma menina de pele clara, como você. E muito charmosa, muito bonita, muito elegante e ela é até hoje. E eu achava Ana Lúcia belíssima. E aí Carapicuíba era negros com muita altivez, com muita altivez: Milton, Fred, eram todos e todo mundo de manhã. E ali na Vinte e Quatro de Maio tinha a Mesbla, era uma das primeiras lojas de Magazine. E tinha uma outra preta, que era minha amiga também, se chamava Vera, ela usava um black redondinho. A Vera tinha um corpo, meu Deus! Eu era amiga dessas mulheres e eu as admirava demais da conta. Isso era legal pra mim, sabe? Porque em Osasco, quando eu frequentava Osasco, eu andava com muitos brancos. Eu andava no grupo de Rock and Roll. Como é que é? Led Zeppelin. Imagina. E aí eles usavam coturno e andando na rua que nem… eu andava com essa turma.
Eu nem sei se a gente gosta, né? A gente vai se encaixando quando jovem em algum grupo, né? E aí dizia que gostava, né? Andava nesse grupo. E assim, daí é que ninguém me olhava mesmo. Era só liderança. Quando, como eu descubro esse grupo? Eu misturei um pouco as histórias, que a gente tá falando de trabalho, mas é que isso foi consequência: eu vou no baile numa festa da família da minha madrasta, essa mulher que é linda, né? A Neusa da época muito bonita, muito. Aí, quando, meu pai me obriga: “você tem que ir”, eu não queria com esses roqueiros, esses… e aí nós fomos àquelas festas, né? Quando chega lá eu encontro esse povo preto, mas com muita dignidade. E a primeira vez. É a primeira vez, não. Mas o que eu ouço mesmo Jorge Ben. E eu me descubro como uma menina preta. Foi o divisor de água. Daí eu faço amizade, começo a ir nos bailes e a gente combina o trem todo dia de manhã pra ir trabalhar. E daí nós vamos nesse trem. Todos nós vamos nesse trem pro trabalho. Descemos lá na, como que é o nome da estação? Era Júlio Prestes. E caminhávamos a Duque de Caxias toda, porque todo mundo trabalhava no centro e esse desfazendo as pessoas ali, né? E aí na hora de vim embora vínhamos todos juntos. Então. E aí, naquela época o ponto da do Caxias tinha ônibus, casa verde…. toda zona norte de São Paulo. Era uma negrada no ponto de ônibus. Então, era muito legal essa época. Então, eu trabalhava só em lugares pequenininhos. Pequenininhos, vezes. Pequenininhos mesmo. Eu trabalhei numa associação de funcionário público que faz financiamento e tal. Mas uma grande empresa, a máxima que eu consegui, foi UNIBANCO. Até então… e fiquei pouquíssimo, porque só ficar carimbando, eu não tinha capacidade pra ficar carimbando. Imagina a frustração.
Aí aos vinte e um anos eu saio de casa. Eu vou morar, que era meu sonho, morar com, completamente com as amigas. Né? E eu termino o ensino médio e eu não tive coragem de sair antes, porque meu pai ele era muito enérgico e eu tinha medo do juizado de menor. Então eu ficava muito preocupada de que eu pude.. se eu fosse sair com menos de vinte e um na época, meu pai poderia chamar o juizado menores. E eu iria ficar recolhida lá, então eu tinha muito receio. E sei que ele era doido o suficiente pra fazer isso na época. Então pra não correr o risco, quando eu fiz vinte e um anos eu me libertei e fui morar com as amigas. Nós alugamos um apartamento, e esse apartamento era a farra.
Aí a gente… eu vou morar um pouco na casa dessa minha tia, que é a mais velha do meu pai, mas não quero morar lá muito tempo, né? Assim, porque depois que você sai de casa, pra voltar pra casa é humanamente impossível, né? E aí, mas daí eu já era baladeira, ia pros bailes blacks, pros show, palmeira, os tempos mais áureos da black music, da black... é, da black music, dos vários black, que foram nos anos setenta, oitenta, eu estava ali, eu vivi tudo isso. Nelsão, enfim, foi Mano Brown, toda essa revolução e eu estava ali no meio. E cadê tempo pra ir pra faculdade? Nada disso, né? E eu curti bastante e eu comecei a trabalhar, mas eu tinha que me sustentar, então eu trabalhei muito tempo temporário em agência de emprego. Saia de um emprego, tava em outro. Sempre como datilógrafa, né? E aí eu era datilógrafa, que conseguia um emprego por algum tempo. E aí eu fui ficando rata de agência de emprego. Conhecendo todo mundo das agências e todas as agências. Mas as agências que eu tinha, que eu tinha uma frequência maior era a agência da GEO. Era uma era uma empresa que tinha em São Paulo, muito forte. A primeira em consultoria. E aí, eu conheço o Jair, Jair era um jovem negro que era recrutador, selecionador nessa agência. Só que ele reunia a negrada toda na agência. Aí era um espaço, quem tava desempregado passava na agência, ficava lá, batia papo, ele arrumava vaga e mandava. E a negrada trabalhava do que tivesse, era os jovens dele né? E virou um point. A gente se encontrava ali, né? Eu fui trabalhar na CBS Discos por ali. Eu trabalhei no Instituto de Pesquisa de São Paulo, trabalhei em vários lugares, sempre como datilógrafa. Mas com o sonho de ser a secretária executiva, nunca aconteceu. Eu não tinha o perfil para ser a secretária executiva. Sabia tudo, mas não tinha. Esse caminho me levou para agência de emprego. Eu comecei a ser recrutadora. Então eu ia pro Brás. É a simpatia, a liderança são perfis que a gente nem sonha que tem, né? Me levou a ir pra Estação do Brás de manhã, abri a Kombi da agência e começar: (batendo as mãos) pedreiro! Carpinteiro! Todas as funções! Olhava as carteiras, via se a pessoa tinha experiência, lotava a kombi e levava pra agência. Chegava lá, eu já sabia ver como era os rapazes que iam trabalhar, porque tinha muito emprego em São Paulo. E eu fui, mas gente, eu fui me aperfeiçoando, eu fui me aperfeiçoando; e daí eu tinha a ambição de ser a selecionadora, saca? Aquela mulher toda bonitona, toda de meia fina, salto fino, que chega na agência, chama você, você entra, faz a entrevista e a sua vida está na mão dessa mulher. Pra te arrumar emprego. E eu fui fazendo isso. Eu fui caminhando como recrutador e me tornei selecionadora, aí aparece a faculdade. Por quê? Pra que eu pudesse galgar outros espaços, eu teria que fazer psicologia. E isso me levou para a psicologia. Inicialmente eu comecei fazendo serviço social, foi a minha primeira, eh… vestibular na época que foi FMU, uma das faculdades mais caras de São Paulo, que óbvio eu não consegui pagar. E aí eu participo da queima de carnês da faculdade. Que na época existia uma lei que você não poderia fazer a prova se estivesse devendo; e isso foi uma luta construída que os movimentos de educação conseguiu derrubar. Mas da época, se você tivesse devendo na faculdade, você não podia fazer prova. Olha que absurdo! Mas era assim. Aí eu participei da queima de carnês e tal. Aí olha a minha veia nascendo da militância né? E me descobrindo. Daí eu já sabia que eu era preta, tá? Eu já sabia que eu era preta, eu já sabia que, é… da militância e eu sempre gostei muito, porque eu gostava do Marvin Gaye, gosto ainda, né? Marvin Gaye, Billie Poe, eu curtia todas as coisas dos Estados Unidos. Acompanhava algumas coisas de Black Punker, mas não tinha esse entendimento. Mas essas coisas me chamaram E aonde é que eu me descubro? Na universidade. Porque daí eu vou estudar em Mogi das Cruzes. Gente, Mogi das Cruzes é longe demais. Pra você sair do centro e ir são oitenta quilômetros, né? Hoje. Mas depois de um dia todo de trabalho você pegar o trem, que era trem de estudantes. O trem dos estudantes, o terceiro vagão era só de jovens negros. E era nesse vagão que eu ia. E aí eu conheci, que foi um grande divisor da minha vida, foi Chiquinho. Que ele fazia engenharia, né, e Chico me ajudou muito porque ele escrevia um jornal… Ele já era ativista e me convidava pra algumas reuniões… e aí eu fui entendendo a questão racial e isso foi nascendo dentro de mim e graças a Deus meus orixás nunca mais saíram de dentro de mim. Né? E eu sou movida pela pessoa racial porque todas essas, esse sofrimento, essa falta de… porque isso parece pequeno quando eu falo da minha vida, da infância até aqui, mas isso me construiu insegura, isso me construiu, é… não gostando de mim. O que o racismo faz de me levar à beira de um de um suicídio, né? E de muita tristeza, de você ter sonhos e os sonhos são atravessados pelo racismo. Então é tão sério isso, tão sério e a faculdade de psicologia também me ajudou muito. E aí eu vou fazer a universidade. Chega na Braz Cubas. E chegar na Braz Cubas é estudar numa sala de brancos e negros, mas andar no terceiro vagão é andar com muitos negros. A gente ia fazendo samba e voltava fazendo samba, né? E aí Silvana é uma amiga também jornalista que ela dizia, ela tem um livro onde ela fala, ela usou um termo que eu nunca mais esquecerei. Eram… não era o navio negreiro, era navio que levava advogados, professor de educação física, médicos, atravessando a cidade e construindo sonhos. Né? Inclusive Vicente, que é o dono da faculdade Zumbi dos Palmares, estudou lá. Então imagine como foi importante todo para todos nós estudarmos nessa universidade. Na época a gente não tinha em São Paulo ainda metrô. A gente acompanha o nascimento do metrô. Então, a gente vinha até a estação ferroviária, atravessava, pulava a linha, é uma loucura, mas muito feliz. E aí eu chego na universidade, faço psicologia e conheço um grande amigo, irmão, que hoje é em Orum também, que é Judson. Judson é um amigo que vem da Bahia estudar em Salvador, em São Paulo, perdão. E aí ele entra na sala de aula, que eu já tava acho que no segundo, terceiro ano, mas eu tinha dependência né? A gente carregava dependência. E eu estava na sala de aula quando ele entra, no primeiro dia de aula assim, né? E daí é um monte de jovem chegando que quer se aparecer, tirar sarro e tal… quando ele entra, e ele não dava pra passar despercebido, porque ele era gordo, bem gordo, lindo. Ele tava com um sobretudo, um casacão morrendo de frio e quando ele abre a boca pra falar, todo mundo fala: “E! A baianada”, aquela coisa horrível, né? E aí eu pulei na frente pra defendê-lo, né? E aí na hora do, que eu tive a oportunidade: “e aí você veio de onde, baiano”. E ele falou: “eu venho de Salvador”. E eu já observava Salvador. Eu já olhava as coisas de Salvador, principalmente os filhos de Gandhi, né?
Ele me contou que ele era de Salvador e nós nos tornamos muito amigos na universidade. Então, quando ele tinha que vir a Salvador, que não tinha esse processo de avião de duas horas, ele via eu assinava a lista, colocava nome dele no trabalho, enfim era sua parceira. E ele tinha pai e mãe velhos aqui, que… Ele precisa e tinha uma esposa também. Depois de algum tempo eu falei: “oh vamos lá em casa que é melhor porque você fica só aqui em Mogi não conhece nada”. Ele morou uma época em casa e a gente se tornou muito muito amigo. Muito mesmo. E aí ele falava: “negona você nasceu no lugar errado". Você não era pra ter nascido de São Paulo, você é baiana”. É mesmo gente. Eu morro de vontade de conhecer a Bahia. Ele: “é, você precisa conhecer a Bahia”. Aí um dia eu vim conhecer a Bahia. Gente, é ancestral. Eu vim pra ficar dez dias. Eu fiquei trinta. E eu fui com a certeza de voltar. E cheguei em São Paulo eu rompi todos os meus compromissos que eu tinha lá e já era autônoma, fazia festa, organizava viagem. Eu terminei com tudo e me mudei pra Bahia. E nunca me arrependi de vir pra cá.
Não, o movimento negro entra primeiro, então eu sempre digo o seguinte: o que me levou pro movimento de moradia do MSTB Movimento Sem Teto da Bahia, da qual eu falo que eu sou hoje coordenadora estadual, foi o movimento negro. Porque eu tive uma compreensão de que: nós, negros, é… na pseuda abolição, nós fomos convidados a sair das fazendas ou ser escravo de cana. Nós não recebemos nem semente e nem terra. Tudo que a gente constrói foi a partir de muito trabalho, pra que a gente pudesse ter… E daí eu começo a entender a minha história do meu pai ter ido pro norte, distante, com as famílias todas negras, eu começo a entender por que que as coisas se dão para nós povo negro desta forma e os piores lugares é que nós podemos ter direito à terra. Essa terra não tem planejamento de habitação, não tem saneamento, não tem nada; e nós somos tão poderosos que a gente consegue fazer desse bairro um bairro poderoso, que daí depois vem o interesse dos… dos poderosos de quererem nos tirar desse lugar. Então nasce comigo a questão do racismo mesmo. É me descobrir de como é… e eu passo a ler muito. Eu passo a estudar muito, eu devoro… Carolina de Jesus pra mim é fundamental pra entender o processo de território, né? E eu começo a ter esse e o MSTB, Movimento Sem Teto da Bahia, me dá mais ainda, me dá linha pra que eu compreenda o direito à terra, o direito à moradia, que está na carta magna. No artigo sexto da Constituição que moradia é um direito. E a partir daí eu vou me construindo. Né? Eu tenho muitos parceiros, inclusive a universidade de Salvador, a UFBA, né? E algumas, lugar comum, e outras cadeiras que me chamam pra gente fazer o debate do direito a morar. E morar no centro, porque eu moro no centro E por que não morar no centro? Que daí eu vou estudar. Quem ficou no centro histórico, quando o centro histórico não era mais importante pras famílias nobres. Quem ficou fomos nós, o povo negro. Se o Centro Histórico existe foi porque nós, o povo negro, ficamos nesse lugar. E aqui a gente não deixou que caísse tudo. Agora quando há interesse imobiliário, né? As especulações. Nós somos convidados… Não, não somos convidados, nós somos expulsos desse território. Então, eu me torno a partir do direito à moradia. Ela entra na minha vida, e por que ela entra na minha vida. “Mas Maura, seu pai num, num, num deixou lá, construiu a casa, tal, num sei o que”. Eu passei a vida inteira morando de aluguel. E eu passei a minha vida inteira sendo despejada. E assim que a gente se constrói. A partir disso eu passo a buscar moradia, né? E eu acabo entrando nessa ocupação que vocês estão aqui hoje.
Então, né? O que é essa história? Eu vim pra Salvador, saio de São Paulo, descubro Salvador, moro aqui um período, moro aqui dezoito anos aí isso entre você pode colocar em vinte anos. Indo e vindo a Salvador e morando. Mas eu volto pra São Paulo, que eu volto pra São Paulo de banzo. De banzo. Saudade da minha família. Saudade. Eu comecei a ir demais pra São Paulo. Comecei a sentir muita falta da minha família. Adoro a Páscoa em São Paulo com a família, aquelas coisas. E aí eu volto pra São Paulo, casada, viu? Casada, mas com casamento em crise, tentando salvar esse casamento, casada com baiano, né? Que era o amor da minha vida, nos casar ser felizes para Sempre. E eu vou morar na casa do meu pai nosso casamento acaba lá e eu começo a namorar com um ex-namorado porque daí você volta toda uma algo da adolescência, daquela época do samba rock, da descoberta, tempo muito bom na minha vida e me apaixonar e ali eu entro na moradia. Porque lá eu começo a trabalhar com… eu vou morar em um lugar, que foi ocupado o terreno, que foi construído com a partir da autoconstrução das famílias e eu vou morar nesse lugar, eu me descubro o direito à moradia, né? E é um projeto que… só que eu entro nesse lugar e eu engravido. Imagina, eu fiquei tantos anos aqui na Bahia, fiz o sonho de ser mãe, de ter essa família, mas eu volto pra São Paulo, entro no projeto de moradia e engravido em São Paulo. E aí eu fico grávida, eu tenho uma gravidez muito feliz, né? O pai do Acani, meu filho, se chama Acani (inaudível). Eu fui uma grávida feliz, bonita, em plena mesmo, mas o casamento acaba nos dois próximos anos do nascimento do meu filho. Nesse período de São Paulo eu já sofria, porque eu sentia falta de Salvador. Eu não conseguia mais morar em São Paulo. Eu… tudo me remetia a Salvador, né? Os hábitos, os amigos, eu mantive tudo aqui. Do mesmo jeito que eu vivia antes. E aí papai faleceu, mamãe faleceu e eu volto pra Salvador. E aí eu volto pra Salvador para morar nessa cidade e me reconecto com todas as minhas amizades, né? Inicialmente, quem escolhe morar em Salvador no centro histórico nem sou eu, viu? É o Acane, meu filho. Ele era bebê, a rua cheia de criança e o lugar que eu fiquei hospedada não tinha bebês, não tinha criança. E a rua aqui era uma festa, né? E fiquei na casa hospedada, na casa de uma grande amiga, irmã, Jussara Santana, que me recebeu na casa dela e eu fui ficando. Aconteceu essa ocupação. E como eu já tinha uma vivência de ocupação lá, inicialmente eu nem queria vir porque eu não tinha participado do processo inicial. E procurando casa em Salvador, não encontrava, e era do lado da casa de Jussara. Aí eu acabei sendo convidada pela liderança pra vir morar aqui nesse nesse casarão. Esse casarão foi ocupado na época por pessoas da área da educação, poesia, artesãos e chefes de família, sempre majoritariamente de mulheres. Eles entraram primeiro, eu entro depois. Eu não entro no ato da ocupação. Porque esse lugar onde eu moro, onde fique destinado para mim tinha sido ocupado por uma outra pessoa que não veio e aí quando eu recebo o convite eu abraço com o meu filho e venho pra moradia. E aí nós começamos a travar lutas pra resistir e ficar nesse casarão. Aí o baba ficou legal. Aqui em Salvador a gente fala, aqui jogar futebol é o baba. O baba ficou legal. Porque não é só entrar e reivindicar o direito, né? A gente quando entra num casarão do centro ou de qualquer lugar ou território, e ele é do Estado, ocupar é um direito, porque nós estamos dando um fim social. Se o Estado não dá o fim social a um imóvel, a um terreno, moradia é fim social. Então nós ocupamos esse espaço. Espaço que a gente ocupa e começa a negociar que seja transformado em habitação e habitação social. E nós passamos a ocupar aqui no centro, né? E tivemos o apoio da comunidade, da rua e várias outras ocupações foram feita aqui no território pelo movimento sem teto da Bahia. Lá na frente a gente se une com outros movimentos do centro histórico, do qual nós começamos a ganhar mais força, né? Então nós nos reunimos com a com moradores que fazem resistência em permanecer morando. São pessoas historicamente nascida e criada no centro histórico. Nada justifica as famílias terem que sair daqui para gentrificação do local, né? Então nós passamos a nos unir com a Ladeira da Conceição da Praia, Ladeira da Preguiça, Gamboa, Dois de Julho, Tororó, enfim. Vários outros lugares que nós nos reunimos e passamos a ocupar. A ocupar não, a nos juntar pra ter força. E aí nasce a articulação do centro ativo de Salvador. Então nós somos hoje a articulação que representa a luta e fazemos esse enfrentamento na cidade com os órgãos que define o direito à cidade.
Porque não foi fácil, né? Uma paulistana entrar e vir morar num casarão, num centro histórico com um filho de sete aninhos. Não foi fácil. Eu tive toda a resistência de um grupo contrário que não queria que eu permanecesse aqui. Eles tinham, e eu acho que eles estavam certo, eu concordo com isso, sabe? Eles tinham outro projeto. Eu venho depois e eles queriam o térreo para fazer um projeto cultural, de poesia, de outros projetos; porém essa senhora que acabou de sair daqui que é a liderança, ela entendeu em uma reunião, que se não fosse moradia qualquer outro projeto, ONG não ficaria. Então ela entendeu que era importante que fossemos moradores, pessoas que tivessem interesse em morar. Mas gente, isso, pra vocês terem uma ideia eu perdi minha voz uma época, porque a pressão que você vive. Porque você tem uma luta com os dirigentes dessas cidades, os governadores, todos os interesses exterior e também você tem que viver, conviver, com o interior, os internos. Que fica uma disputa o tempo todo e eu tinha que trabalhar e cuidar do meu filho de sete anos sem ter nenhum conhecimento com quem é que eu estava lidando. Então foram dias de muito tempo. De muita dificuldade. Sabe assim de: será que eu estou indo no caminho certo de educar meu filho e trazer a luta? Então, e, mais foi a partir dessa provocação desse grupo que me tornou forte pra fazer o enfrentamento. Então eu passo a lutar e me torno uma ativista política por direito à cidade, por direito à moradia e pra discutir racismo estrutural a partir desse desafio que me foi apresentado. Então, hoje, assim, eu sou muito agradecida a eles, que foi graças a essa pressão que eu sofri que me fez estudar mais, aprender mais, entender mais o que é direito à moradia. E principalmente entender, sabe, como nosso povo com esse resquício de tanta dor lida com o outro. Os conflitos que a gente tem dentro de ocupação até a gente ter essa união e entender. Só que tem uma coisa, a gente pode brigar como for, se a gente tiver que enfrentar o opressor, todo mundo vai junto.
A maior alegria que eu tenho. Olha uma das maiores alegrias é ter meu filho hoje com vinte e quatro anos, praticamente, estudando na UNILAB. Ele faz relações internacionais. É possível, a gente consegue. E de ver tantas outras… as nossas famílias, as mesmas, resistir dezesseis anos e permanecer aqui. Isso é uma vitória. Dezesseis anos é uma vitória. Isso é uma alegria. É… uma outra alegria que tenho é todos os dias é descer a Ladeira do Passo e me deparar com o largo do Pelourinho. E saber.. e agradecer mesmo, que em vida eu consigo viver o que eu planejei. Eu escolhi exatamente essa cidade pra viver. Eu escolhi. Ela me deu regra e compasso. E é dessa cidade que me devolve tudo isso. Respeito, carinho de trabalhar com as pessoas que eu trabalho. Então, o que eu tenho de devolução, e assim com muito respeito a minha família porque a minha família foi a minha base, né? De lutar com ódio, de não carregar esse ranço. É a partir disso que eu consegui escrever, reescrever, né, a minha história. Eu reescrevi, escolhi a Bahia para viver e escolhi a Bahia para morrer aqui. Então eu gosto muito de viver aqui. Todas as vezes que eu olho essa ladeira que eu olho pro lado do Pelourinho eu agradeço. Porque é escolha, né? E são poucas pessoas que podem fazer as suas escolhas. E agora daqui é só seguir e construir pra que você jovens possam levar essa luta antirracista, racista e mudar a nossa história. E nós estamos caminhando pra isso, sem sombra de dúvida.
Então, olha só. É… eu esqueci de contar que eu sou coordenadora estadual do Movimento Sem Teto, sou integrante da articulação do centro ativo de Salvador e também sou representante do despejo zero na Bahia. O despejo zero nasce na pandemia. Ele nasceu para, com outra com várias organizações, mais de quarenta organizações, pra que a gente pudesse encontrar meios de guardar que as pessoas não fossem despejadas durante a pandemia. Porque a orientação que tínhamos é: use máscara, lave as mãos, mantenha distância e fique em casa. Que casa? Se juízes do Tribunal de Justiça assinavam integração de posse e assinava despejo. Então houve uma grande movimentação dos despejo, do, de organizações nacional e internacional pra que a gente contasse isso. Isso foi uma das atitudes do da pandemia.
Porque nós nos organizamos para não morrer. Então a universidade veio conosco e criou pias que foram instaladas nas ruas, com sabão e água pra que a gente pudesse lavar as mãos, pra que todos lavassem, né? E também nós tivemos a ajuda de vários órgãos, principalmente o campo, dando é… nos entregando alimento. O campo plantando pra cidade. E nós distribuímos comida, cestas. Também tivemos a parceria, que eu acho fantástico, que foi com a Coalizão Negra, que foi fundamental pra que os nossos não passassem fome. Então todo movimento de alimentação, de álcool, de máscara, de despejo, nós fomos em prol de garantir a vida dessas pessoas. Porque quando começou a pandemia, ninguém sabia o que era e nós também fomos descobrindo e criar formas de sobreviver.
Mais importante é romper o racismo. Como nós não vamos acabar com o racismo, não vamos ter essa ilusão, nós precisamos garantir o que é nosso de direito. Nós, povo negro, precisamos garantir respeito. Não fala em igualdade porque nós somos iguais, mas nós precisamos garantir o que é nosso. E fundamental: nós precisamos de encontrar uma forma de romper a morte da juventude. Isso é números de guerra. Para mim são as coisas fundamentais, porque mãe não pode ficar chorando o corpo de menino que morre. Então isso é fundamental. E para isso nós precisamos de ter educação, garantir educação.
Meus sonhos, ah… ganhar essa queda de braço como nossa ocupação e não só minha, ninguém luta sozinho, coletivo é importante que garanta moradia popular. É importante que tenha outros olhares para a cidade do Salvador ou para todos, eu falo a nível universal, né? Que é isso, dignidade pra morar, comida de qualidade, né? Café da manhã, almoço e janta, trabalho, educação, são esses os sonhos, porque se a gente tem uma sociedade que vive bem, consequentemente nós vamos viver bem. Então não dá pra eu desejar o meu sonho se esse sonho não for coletivo.
A questão racial, vamos pensar sobre ela. Eu penso que esse é o meu maior legado. A gente tem que ser como uma formiguinha ali. Olha, dizendo que tem que prestar atenção o que é racismo, porque é o racismo que estrutura a falta de educação, a falta de casa, a moradia digna. A falta de tudo é a partir do racismo estrutural, então nós temos um grande monstro para derrubar.
Olha, o que eu mais gostava de fazer em dia de lazer era dançar. Como hoje eu tenho algum problema cardíaco, que me falta respiração, eu já não posso mais dançar; mas o que eu mais fiz na vida e o que eu gosto é de dançar samba rock. Essa é a minha pegada. Gosto muito de shows, show bom, música boa, né? Gosto muito de teatro, gosto muito de ler.
É… gosta de televisão. Música é meu carro chefe porque tudo isso é feito regado a muita música. Gosto de comer. Hum… adoro uma boa comida. E adoro reunir amigos pra uma resenha, sabe? Pra um bom papo, pra um bom debate. E o que eu gosto, olha quanta coisa que eu gosto. Se tem algo que me dá o maior prazer é toda vez que eu sou convidada pra dar uma palestra. Eu saio super revigorada, sabe? Então eu acho que é dividir conhecimento. Eu gosto de fazer isso.
É um momento muito importante e isso fica gravado. Primeiro eu quero agradecer. Agradecer imensamente a vocês pelo convite que, nem sei se sou, eu sei que existem histórias fantásticas, né? Eu me descobri, eu me reinventei e foi a partir do que eu descobri no mundo, né? E foram várias caixinhas que eu fui abrindo e fui me descobrindo. Então, eu sempre digo que é como uma cebola, né? Nós vamos tirando algumas fases pra gente descobrir a essência de quem realmente nós somos. E eu sou muito agradecida, muito agradecida ao universo, agradecida a Deus, agradeci os orixás, por ter me dado esta oportunidade na vida, né? E a todas as pessoas. Eu seria extremamente injusta se eu citar o nome de qualquer pessoa porque eu tenho pessoas gigantes na minha vida, que construíram, Maura não é construída a partir de si, é construída a partir de todas essas experiências e essas vivências, né, como diz Conceição. Muito obrigada!
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