Projeto 30 anos Alunorte
Entrevista de Maria Goreth de Sousa Lages
Entrevistada por Lígia Scalise
Barcarena, 9 de julho de 2025
Transcrita por Selma Paiva
(00:20) P1 - Goreth, vou pedir para você começar falando seu nome, sua data de nascimento e a cidade onde você nasceu.
R1 - Eu me chamo Maria Goreth de Sousa Lages, tenho 64 anos. Eu sou filha de uma cidade chamada Monte Alegre, fica no oeste do Pará. Nasci no interior, numa vila chamada Mulata, muito pequena, por sinal. Sou filha de um casal de agricultores nordestinos, que vieram na época da seca, em busca de vida melhor e vieram para cá, para Belém, depois resolveram ir para Monte Alegre, em busca de terras, para trabalhar.
(01:05) P1 - Já me deu aí um resuminho, vamos voltar. Alguém te contou como foi o dia do seu nascimento?
R1 - Sim, minha mãe sempre conta nossas histórias. Eu nasci, não prematura, mas era muito pequenininha. Então, até colocaram meu apelido de Meio Quilo, por eu ser muito pequena, na época que eu nasci. Foi um parto muito difícil da minha mãe. E como a vida de interior não tem hospitais, eu nasci com a ajuda de uma parteira, que era da própria família.
(01:41) P1 - Nasceu em casa?
R1 - Nasci em casa. Eu sou a oitava filha de 14 filhos.
(01:46) P1 - Uau! E, nessa época que você nasceu, como estava a vida dos seus pais?
R1 - Olha, na época eles já tinham começado a se estabilizar um pouco. Quando eu tinha acho que oito anos, sete ou oito anos, meu pai era agricultor, mas ele tinha um pequeno comércio. Então, dali ele sustentava a família. E um dia o Estado chegou para o meu pai e disse que na terra do meu pai tinha calcário, onde eles extraem calcário, até hoje. Então, que a terra seria confiscada. E meu pai ficou sem chão, por que de onde? Só do comércio não tinha como ele sustentar. Na época, eram oito filhos, já. E ele ficou desesperado, desnorteado. O meu tio, na época, era do Incra. Tinha um japonês, lá para a nossa região tinha...
Continuar leituraProjeto 30 anos Alunorte
Entrevista de Maria Goreth de Sousa Lages
Entrevistada por Lígia Scalise
Barcarena, 9 de julho de 2025
Transcrita por Selma Paiva
(00:20) P1 - Goreth, vou pedir para você começar falando seu nome, sua data de nascimento e a cidade onde você nasceu.
R1 - Eu me chamo Maria Goreth de Sousa Lages, tenho 64 anos. Eu sou filha de uma cidade chamada Monte Alegre, fica no oeste do Pará. Nasci no interior, numa vila chamada Mulata, muito pequena, por sinal. Sou filha de um casal de agricultores nordestinos, que vieram na época da seca, em busca de vida melhor e vieram para cá, para Belém, depois resolveram ir para Monte Alegre, em busca de terras, para trabalhar.
(01:05) P1 - Já me deu aí um resuminho, vamos voltar. Alguém te contou como foi o dia do seu nascimento?
R1 - Sim, minha mãe sempre conta nossas histórias. Eu nasci, não prematura, mas era muito pequenininha. Então, até colocaram meu apelido de Meio Quilo, por eu ser muito pequena, na época que eu nasci. Foi um parto muito difícil da minha mãe. E como a vida de interior não tem hospitais, eu nasci com a ajuda de uma parteira, que era da própria família.
(01:41) P1 - Nasceu em casa?
R1 - Nasci em casa. Eu sou a oitava filha de 14 filhos.
(01:46) P1 - Uau! E, nessa época que você nasceu, como estava a vida dos seus pais?
R1 - Olha, na época eles já tinham começado a se estabilizar um pouco. Quando eu tinha acho que oito anos, sete ou oito anos, meu pai era agricultor, mas ele tinha um pequeno comércio. Então, dali ele sustentava a família. E um dia o Estado chegou para o meu pai e disse que na terra do meu pai tinha calcário, onde eles extraem calcário, até hoje. Então, que a terra seria confiscada. E meu pai ficou sem chão, por que de onde? Só do comércio não tinha como ele sustentar. Na época, eram oito filhos, já. E ele ficou desesperado, desnorteado. O meu tio, na época, era do Incra. Tinha um japonês, lá para a nossa região tinha colônia de japoneses, que vieram na época da Segunda Guerra, então tinham japoneses que cultivavam pimenta do reino e estavam querendo voltar para o Japão. Aí o meu tio fez um empréstimo no Banco da Amazônia, na época e se associou com o meu pai e compraram essa terra, onde os japoneses produziam pimenta-do-reino. Ficava a seis quilômetros da vila onde nós morávamos. Então, para nós estudarmos foi muito difícil.
(03:03) P1 - A gente já vai chegar aí, eu ainda quero ir lá no comecinho, lá quando você nasceu. De onde os seus pais se conheceram, de onde eles são e como eles decidiram o seu nome?
R1 - Bom, como eu falei, meus pais são nordestinos.
(03:15) P1 - De onde?
R1 - Da cidade de Serra do Baturité, no Ceará.
(03:22) P1 - Os dois?
R1 - Os dois. Então, eles vieram, os pais vieram para cá. Meu pai já veio com 11 anos, a minha mãe já nasceu aqui, na região do Salgado. E aí eles se conheceram. Nessa vinda, veio vários nordestinos, né? E eles acabaram se conhecendo já nessa... lá, em Monte Alegre e a minha mãe vinha de uma família muito pobre, né? Perdeu a mãe muito cedo, sofreu muito, né? Ela conta a história dela, é muito triste a história da minha mãe. Ela disse que ela melhorou de vida quando ela casou, realmente, com o meu pai, que era agricultor, mas já tinha uma certa estrutura para construir uma família. Então, ela disse que foi quando ela começou a viver a vida, né? Que ela era órfã de mãe, sofreu muito por mão de madrasta e era a filha mais velha, eram duas irmãs. E ela que cuidava dos irmãos, com oito anos ela tomava conta dos outros irmãos.
(04:15) P1 - Como que seus pais chamam?
R1 - Meu pai se chamava Luiz Vieira de Souza, né? Vai fazer três anos que faleceu, com 98 anos, lúcido, tocando violino, né? Eu herdei, ele me deu um violino, preciso aprender a tocar. E a minha mãe está com 93 anos, uma pessoa lúcida, muito ‘antenada’, mexe no celular, acho que, se duvidar, melhor que eu.
(04:39) P1 - Como ela chama?
R1 - Licina Silva de Souza. E ama contar as histórias dela. Agora, assim, foram casados por 72 anos, né? Nossa, eles tinham uma afinidade tão grande, que eu acho que, se a minha mãe tivesse falecido primeiro, o meu pai não tinha resistido.
(04:58) P1 - Goreth, você sabe o por quê seus pais saíram lá do Ceará e vieram para o Pará?
R1 - Fugindo da seca do sertão, né? Em busca de terras, para trabalharem. Então, aqui no norte eles conseguiram esse espaço, né? Meu pai amava. Depois ele começou, quando eles conseguiram essa terra para trabalhar, nossa, ele se viu realizado. Aí, lá ele começou a produzir a pimenta-do-reino, quando na primeira produção ele já teve a capacidade de comprar a parte do meu tio, né? E lá ele criava gado, ele plantava tudo. Para você ter ideia, eu acho que a longevidade dos meus pais e de qualquer idoso se dá pela qualidade de vida que eles começam lá atrás. Então, tudo que se consumia na minha casa era orgânico. Até o vinagre que a minha mãe usava na cozinha era feito de banana. Então, os hortifrutis, tudo, tudo, tudo era orgânico. A gente cresceu, assim, com as dificuldades do interior, mas numa fartura muito grande.
(06:01) P1 - E eles te falaram do por quê colocaram o seu nome como Goreth?
R1 - A minha mãe amava a história de Santa Maria Goretti. Então, quando eu nasci, ela... lá em casa todo mundo é Maria, né? Aí ela me colocou o nome de Maria Goreth.
(06:16) P1 - Qual que é a história?
R1 - Do meu nome?
(06:18) P1 – É.
R1 - Porque ela era devota de Santa Maria Goretti.
(06:21) P1 - Mas ela adorava a história da santa?
R1 - Da história, porque ela ouviu a história, né? Que ela tinha sido aliciada, por uma pessoa que... então, ela preferiu morrer, do que se entregar para o aliciador. Então, ela gostava muito da história. Ela foi contada pelos avós. Então, ela gostava da santa e colocou o meu nome de Maria Goreth. (risos)
(06:46) P1 - E a casa onde você nasceu, como que era?
R1 - A casa que eu nasci era uma casa de madeira, bem simples, nessa vila chamada Mulata, mas onde, do início ao final da vila, eram quase todos só familiares. Que foram todos que vieram, né? E foram formando suas famílias lá. E ali era uma vila onde a gente vivia, naquela época, em comum. Um ajudava o outro. Todos eram agricultores. Então, assim, eram compadres, eram comadres, era parteira que fazia o parto de todas as mulheres. Depois levaram um posto de saúde para lá, mas os partos eram feitos em casa. Só o último filho, meu último irmão, que já pela idade da minha mãe, já com 46 anos, 47 anos, aí o médico sugeriu que ela tivesse no hospital. Foi o único que nasceu no hospital. Os outros todos em casa.
(07:43) P1 - E aí você dividia o quarto com esses outros irmãos?
R1 - Nossa! Era um quarto assim: tinha o quarto dos meninos e tinha o quarto das meninas. Mas, assim, tudo de madeira e a gente dormia, na época, em rede, que é comum aqui na nossa casa. Cama só quem tinha eram os meus pais. E o que era interessante, eu ainda lembro perfeitamente, é que a cama era feita de capim. Não era esponja. Então, eles juntavam os capins, inclusive eram uns capins florais, que tinham um cheiro, que faziam as capas e formavam o colchão. Já depois, o meu pai era uma pessoa extremamente vaidosa. Mesmo do interior, mas ele era uma pessoa muito vaidosa. Então, ele começou... tanto que o enxoval do casamento deles, eles contam, meu pai veio para Belém. Eu não sei quantos dias de viagem de Monte Alegre para Belém, de barco. Então, ele veio comprar o enxoval. Ele tinha muita pena da minha mãe, da história da minha mãe. Então, ele sempre colocou... ele falava isso para a gente, que ele queria oferecer o melhor para ela. Tirá-la daquela vida que ela vivia. E deu, realmente. Até ele falecer, ele foi um companheiro incansável da minha mãe.
(09:05) P1 - Que bonito! Essa cama era gostosa?
R1 - Era gostosa, era macia. Só que eles renovavam. Não sei de quanto em quanto tempo tinha que renovar o capim. Depois sim, que ele começou a vir para Belém, foi que começaram a aparecer na região o que eles chamavam de barqueiros, os comerciantes, que eles pegavam um carro e começaram a ir para os interiores. Então, eles já começaram a levar panelas, panelas de pressão que naquela época não tinha. Tudo isso a gente já sabe, porque eles contam. Colchão. Aí foi que ele foi comprando essas coisas já mais atuais. Mas até eu acho que meus sete, seis, sete anos, era assim.
(09:45) P1 – (risos) E você era uma criança de que jeito?
R1 - Olha, eu não fui muito agitada, não. Até porque meus pais eram rígidos. Deram uns princípios e valores que hoje eu agradeço muito. Então, nós somos de uma geração que, se meus pais estivessem conversando aqui, você não podia passar por perto, interromper a conversa. Se você falasse alguma coisa, eles só olhavam. Então, a gente ali já entendia e ali a gente já saía. Mas nunca fomos de viver apanhando. Mas meu pai era muito rígido. Meu pai não deixava a gente ir para a casa de ninguém, nem na casa da mãe dele, porque a mão dele chamava muito palavrão e ele não gostava. Ele era um dos filhos que não gostava. Então, quando ele tinha o comércio, ele fazia a cestinha básica da minha avó. E ele, ou a minha mãe, deixava. Mas ele não deixava a gente quase lá, só quando nós fôssemos com eles, porque ele disse que a gente ia aprender o palavrão que a minha avó chamava.
(10:51) P1 – (risos) E você gostava de brincar?
R1 - Muito. E naquela época a gente fazia boneca de coisa de milho, ou boneca de pano, que minha mãe ensinava a fazer. Sombrinha de folha de mamoeiro, de imbaúba. Então, a gente brincava muito. Os meninos faziam aqueles, não sei nem como chamavam, que era de lata. As crianças criavam. A gente criava os nossos brinquedos. Naquela época não tinha para comprar. Nas nossas festas de escola, o nosso suco era natural. Não existiam essas coisas artificiais. Então, eu falo que eu tive uma infância muito boa, porque brinquei muito, no interior. A gente ia para igarapé, a gente pulava. Tinha um campo imenso na frente da casa da minha mãe, dos meus pais, que era areia branquinha. Lá à noite, noite de luar, as pessoas se juntavam. O ponto de referência era na casa dos meus pais. Mas aquelas senhoras iam para lá, brincavam com as crianças, até tarde. Era uma vida tão gostosa que os nossos filhos, infelizmente, não tiveram essa felicidade de ver, vivenciar isso.
(12:05) P1 - Tinha luz elétrica na vila?
R1 - Não, não tinha luz elétrica, na época. A luz elétrica já veio chegar bem depois. Depois que nós mudamos para esse sítio, as coisas ficaram mais difíceis em termos de escola, aprendizado. Nós tínhamos que sair, porque eu tinha sete anos e o meu irmão tinha dez. Eu tinha sete para oito anos. E nós tínhamos que andar doze quilômetros para estudar. Então, nós saímos às cinco e meia, às cinco horas da manhã, com uma latinha de comida, para ir para a escola e voltava meio-dia. Então, por isso, por essas dificuldades que eu passei pegando chuva, pegando sol, eu fui sempre muito exigente com meus filhos, em termos de aprendizagem. Eu sempre exigi muito deles porque, na época, eu já pude oferecer aquilo que eu não tinha. Então, eu falava para eles das dificuldades que a gente tinha passado, se quisesse estudar. Falei: “Olha, hoje eu posso comprar um caderno. Na minha época, como eram muitos filhos, não sei se vocês lembram, se conhecem, aqueles papéis almaços. Então, nossos pais compravam, cortavam, costuravam os cadernos, dividiam para os filhos e a gente levava uma sacolinha, um saco, protegendo ali, da chuva. Eu falo para eles: “Olha, meu cabelo era amarelo, mas não era L’Oreal, era sol”. Então, eu agradeço. Nunca fui revoltada com meus pais. Era uma... caminhava subindo serra, descendo serra, pegando sol, pegando chuva. E a gente vinha cantando, naquela felicidade, passando no meio daquela revoada de borboletas coloridas, que eu tenho isso na minha mente, assim, a coisa mais linda que eu lembro da minha infância. E sou apaixonada por borboletas, por essa imagem que eu vivenciei. Então, se pegava... tinha árvores frutíferas, tinha goiaba, tinha tangerina e a gente parava, a gente comia. Depois de um certo tempo, eu tinha um tio que tinha um cavalo e aí ele ficou com dó da gente, falou para o meu pai que ia dar o cavalo, se a gente tinha coragem. Gente, eu aprendi a andar de cavalo, que eu amava, chega o cabelinho voava. E aí nós tínhamos um casal de vizinhos, próximo ao sítio do meu pai, que também estudavam nesse local e nós nos encontrávamos num determinado lugar e íamos juntos. Quando a gente conseguiu, ganhou o cavalo do meu tio, a gente fazia o seguinte...
(14:40) P1 - Tá, e esse cavalo, como que era?
R1 - Ah, ele era um cavalo tipo caramelo, com uma coisa branca no focinho dele. Era manso, ele era muito legal e aí a gente cuidava muito bem dele. Como nós éramos dois casais de irmãos, aí a gente dividia: um dia eles iam, os dois homens, ou então eu ia na ida, com a Rosa, que era minha amiga e eles voltavam. E assim a gente se revezava, para que o casal andasse, se beneficiasse do transporte que nós tínhamos. E na minha casa meu pai tinha uma carroça de boi. Quando a gente ia para a igreja, que ficava longe, todo mundo ia na carroça. Eu acho que essa foto, eu acho que a minha mãe tem, (risos) eu vou pedir para ela me mandar.
(15:24) P1 - Você falou que vocês cantavam pelo caminho. Você lembra de alguma música?
R1 - Essas músicas infantis, da nossa época, né? A ciranda, vinha, jogava, passava em coisas de água, de riozinhos, que passava na estrada e a gente pegava e jogava um no outro e vinha pulando. Gente, era uma coisa assim, que eu tenho tão gravado na minha mente, que a gente era tão feliz e não sabia, naquela época.
(15:54) P1 - E, ao mesmo tempo, estava lá enfrentando 12 quilômetros.
R1 - Doze quilômetros, doze quilômetros. Aí quando a gente chegava em casa, uma hora da tarde, a gente já vinha com uma fome, meu Deus do céu! E aí o meu pai... eu já, nessa época, estava o que, com dez anos? Fiquei ainda três anos, nessa caminhada. Aí a minha irmã mais velha já trabalhava, né? Já estava na cidade, que a gente chamava cidade, que era Monte Alegre e trabalhava na catequese, né? Ela sempre gostou dessa parte religiosa. A gente achava até, a minha mãe achava que ela ia ser freira. Mas não, ela só gostava de trabalhar. Então, ela veio para estudar, meus pais sempre falavam assim: “Olha, eu vou oferecer a vocês aquilo que eu não tive. Então, eu podia colocar todo mundo aqui no campo, na roça, mas eu não vou fazer. Eu vou fazer um sacrifício de colocar vocês...”. E a gente vinha, quando a gente completava 11, 12 anos, lá só tinha até o quinto ano. Então, terminava o quinto ano, a gente ia para a cidade, para estudar. Só que a minha irmã e meu irmão, que eram os mais velhos, a Lurdinha e o Raimundo, moravam na casa de pessoas, né? Assim, de amigos, para poder estudar. Depois, a minha irmã conseguiu, através da catequese, vir para Santarém. Aí foi quando meu pai, também continuaram morando na casa dos outros. Aí meu pai foi economizando, comprou uma casa, né? Pequena, a casa era de madeira, em Santarém. E falou: “Olha, vocês dois - que era a minha irmã mais velha e o outro - vão, vou comprar uma casa para vocês morarem e, quando terminar a quinta série dos outros, cada um vai indo para lá e vocês vão tomar conta. Mas vocês vão morar só”. A minha irmã trabalhava viajando, assim, na catequese, para os interiores, né? Com os padres, com o pessoal da diocese. Mas ela deixava as normas para a gente. Então, na casa do meu pai, depois que ele foi melhorando, construiu uma casa grande, era aquela casa avarandada, uma mesa grande, em que os filhos podiam ficar ele numa cabeceira, minha mãe na outra. Então, todas as vezes que a gente voltava para o sítio, ele nos reunia e antes de nós voltarmos para a cidade, ele falava: “Vou repetir o que eu sempre falo: eu vou dar a vocês a oportunidade que eu não tive. Agora, quem der com os ‘burros n’água’, não volte, siga seu caminho”. Isso ficou tão forte na nossa mente, na nossa cabeça, que a gente andava ‘no trilho’, entendeu? Nós nunca demos trabalho para os nossos pais. Aí fomos, viemos para Santarém, né? Eu já vim com 11 anos - o outro meu irmão com 12, quando terminava - fazer a quinta série em Santarém. Porque o meu outro irmão, que era minha companhia, já tinha terminado e vinha, precisava sair para estudar e eu tinha terminado o quarto ano, é diferente que é hoje, né? Então, não tinha como caminhar sozinha de madrugada, né? Aí eu já vim para Santarém, para morar junto com os outros. E aí a gente foi morando, foi estudando, cada um foi assumindo a sua vida, né? Quem quis estudar, estudar; quem quis trabalhar foi para as empresas e aí cada um foi ajustando a sua vida que cada um tem hoje, né? A gente é um pouco espalhado.
(19:18) P1 - Goreth, seus pais vieram do Ceará. Eles trouxeram tradições de lá, que você aprendeu enquanto criança?
R1 - Alimentar, né? Tradições, assim: aquela rigidez do nordestino, o amor pelo trabalho, o respeito, né? Valorizar as pessoas, o respeito com o professor, que eu lembro. Hoje eu lamento ver esse desrespeito com o professor, porque na nossa época o professor era uma autoridade máxima. E, se o professor fizesse alguma reclamação, a gente apanhava, a gente ficava de castigo, porque a gente tinha que respeitar. Na minha época todo idoso era avô, toda meia-idade era tio, então a gente tinha o respeito pelas pessoas, a gente aprendia a respeitar. Meus pais nos ensinaram a partilhar. Meu pai não era rico, mas depois de tanto trabalho, ele conseguiu ajustar a vida. E aí, quando ele conseguiu ajustar, os vizinhos que tinham um poder econômico menor que o meu pai, ajudavam. Eu vivi com isso, entendeu? Então: o fulano não podia estudar, vem pra casa do compadre Valdizo, que no meu paralelismo eu chamava de Valdizo. Então, iam pra casa, eles ajudavam. E eles nos ensinaram isso, que a gente tinha que partilhar aquilo que a gente tinha. Mesmo pouco, a gente pode partilhar, entendeu? Então, remédio minha mãe sempre tinha, então vem um doente, você sabe? Então, aprendi a viver com isso.
E assim: o que eu lamentei na época que eu vim, que eu vi meus vizinhos, amigos, que não tiveram a mesma oportunidade que a gente teve, depois ficaram lá. Não que fosse errado, mas gostariam de ter tido oportunidade de estudar, de ter tido uma vida melhor. Pessoas, assim, jovens da nossa idade, que já ficaram com 12 filhos, oito filhos. Assim, aí a gente lamentou, porque a gente também chegou a um limite que a gente não podia ajudar. Até onde a gente pôde, a gente trazia alguém pra Santarém, pra estudar, pra nos ajudar. Nunca vi meu pai explorar um trabalhador. Meu pai, na época de colheita da pimenta, parecia um arraial na minha casa, na nossa casa, mas eu nunca vi nenhum trabalhador do meu pai comer com marmita na área de serviço, todo mundo ia pra mesa. Então, tinha duas... e nós éramos os últimos que comíamos. Por quê? Eles tinham prioridade, porque estavam vindo da roça, do campo, do pimental, então a prioridade era deles. Então, quando era a época da safra mesmo, eram três rodadas de mesa de alimentação e a nossa era a última. A família, os filhos eram os últimos. Primeiro era quem trabalhava, entendeu? Então, assim, eu aprendi isso com meu pai, nós aprendemos isso com meu pai. Então, não tinha essa coisa: “Ah, é empregado”. Não. Sabe? É uma pessoa que está nos ajudando, um colaborador que está ali, dando o seu serviço. Nunca vi meu pai explorar ninguém, minha mãe...
(22:26) P1 – A sua mãe ficava em casa, enquanto seu pai ia na roça?
R1 – Ia. Minha mãe nunca foi pra roça. Era também com tanto de filho, mas ia pra igarapé com aquela baciada de roupa na cabeça. Minha mãe hoje tem problema sério de osteoporose, na coluna, igual a mim, hérnias de disco, porque ela carregava bacias de roupas muito pesadas, em distância de três quilômetros de casa, pra ir pro igarapé, lavar roupa. Depois que meu pai foi pra esse sítio, que o japonês o poço era dentro de casa. E tinha o igarapezinho onde a gente lavava roupa, que também era próximo. Mas a minha mãe, antes disso, tinha sofrido muito com isso. Então, tinha uma senhora que nos ajudava. E nós passamos uma época bem delicada. As minhas duas irmãs adoeceram e tiveram...
(23:16) P1 – De quê?
R1 - A minha irmã teve... ela dava... uns diziam que era problema espiritual, mas eu acredito que era... hoje, a gente, já conhecendo os sintomas, era epilepsia, entendeu? Mas ela, na verdade, podia ser associada, porque ela ficava agitada. Mas, graças a Deus... aí teve uma época que eles estavam com as duas filhas internadas. E, na época, eu estava o quê? Com oito, nove anos. Aí tinha uma senhora que ficou em casa, ajudando. Então, eu, com onze anos... com nove anos, acho, nove para dez anos, pilava arroz, porque não tinha quem ajudasse a senhora. Meus pais estavam na cidade, com as duas filhas doentes. Então, eu tinha que ajudar a senhorinha. Então, eu chegava uma hora, meio-dia e meia, uma hora, almoçava e ia para aquela... na época não era pia, não. Chamava giral. E não tinha torneira. A gente tirava do poço, colocava numa lata aqui e aqui ficava lavando e lavava toda a louça. Quando eu terminava, eu ia para o pilão de arroz. Eu pilava dois pilões de arroz, naquela idade. Então, não tem coluna hoje que aguente.
(24:35) P1 - Como é que é pilar um arroz? Eu não sei.
R1 - O pilão de arroz tem um pilão aqui, é feito de madeira, um tronco de madeira que eles pegam. Por isso que diz cintura de pilão, porque eles fazem aquela cinturinha. Então, ele tem aquele buraco. Aí você chama mão de pilão, que é uma coisa para você... tipo uma marreta, que aí você vai batendo, batendo, até soltar a casca, até ele ficar no arroz. Aí você tira, peneira ali, ‘bota’ numa bacia, faz ao vento, até sair tudinho. Depois você vai catar, tirar aqueles que ainda ficaram, para poder fazer. Era um arroz integral que meu pai produzia. Depois as coisas foram evoluindo, aí um senhor na vila levou uma máquina para beneficiar o arroz. Foi daí que começou a beneficiar. Mas eu pilei muito arroz. Por isso que eu não tenho os braços muito flácidos, (risos) porque eu acabei pilando, fazia musculação pilando o arroz. Então, a vida de interior é uma vida sacrificada. Nós passamos, eu acho, uns dois anos nessa situação. Aí foi quando as meninas melhoraram, voltaram para casa e aí foi que nós viemos embora para Santarém.
(25:51) P1 - As duas tinham questões de epilepsia?
R1 - Não, só uma.
(25:54) P1 – E a outra?
R1 - Mas a outra, depois do tratamento, nunca deu, também.
(25:58) P1 – E o que a outra tinha?
R1 - A outra, na época, eu não lembro o que era. Era um problema no sangue, alguma coisa assim. Eu era muito criança, nessa idade de nove anos, eu não lembro muito bem. A Alice. Tanto que hoje ela acabou desenvolvendo uma obesidade, é a única irmã obesa, assim, gordinha, que a gente tem. Você sabe que na época não tinha exames específicos para detectar o que realmente era, se era uma anemia, não se sabe. Mas depois, graças a Deus, elas ficaram bem. Mas eu fiquei esse período muito difícil. À noite, agora você imagina uma menina de nove, dez anos, ter uma rotina dessa e ainda ter que estudar. Então, esse era o motivo pelo qual eu sempre exigi muito dos meus filhos, porque eles tiveram tudo: tinham tempo, tinham espaço, tinham uma boa alimentação, tinham atenção de pai e de mãe. Então, não justificava, para mim, tirar um sete. Eu não aceitava. Um dia eu fui chamada na escola, porque depois dessa rotina todinha que eu tinha, nesses dois anos que eu passei, eu ia estudar com lamparina. Nós não tínhamos luz elétrica. Naquela época era uma lamparina feita de uma lata de leite, que eles faziam, colocava aquele paviozinho e colocava querosene e acendia e ali iluminava a casa. Depois, quando meu pai foi melhorando, foi que ele comprou um aparelho chamado Pietromac. Não sei nem se vocês conhecem esse nome. Depois foi que veio aquele Aladim a gás. Então, eu sou dessa geração. Mas eu estudei com lamparina para, no outro dia, levar os deveres certos para a escola. Então, quando eu tive meus filhos, eu falei: “Vocês vão ter que valorizar cada centavo que a gente vai investir na educação de vocês”.
(27:56) P1 - E você gostava de estudar?
R1 - Gostava. Sempre gostei. E gosto até hoje. Gosto de ler. Eu ia fazer o mestrado. Depois, meus filhos disseram assim: - os dois têm mestrado e o meu filho está fazendo doutorado – “A senhora falou que, quando a gente terminasse, a senhora ia fazer”. Eu falei: “Não, está bom, já chega. Já deixa eu ir ajudar os outros”.
(28:23) P1 - Ô, Goreth, você tinha algum sonho, quando você era criança, de ser alguma coisa?
R1 - Olha, por incrível que pareça, eu sempre falava para a minha mãe e eu acho que, assim, as palavras têm poder, mesmo. Eu lembro criança, a minha mãe costurando, consertando umas roupas e ela sempre falava: “Olha” - minha mãe falava para nós, mulheres, em casa – “homem não é bem de raiz, vocês tratem de estudar”. (risos) E eu a via falar isso, né? Falava para as meninas mais velhas e aquilo foi ficando. Então, aí, um dia, automaticamente, ela disse: “Olha, pois é, daqui a pouco vocês saem, vão para a cidade estudar, quem sabe para Belém”. Eu falei: “Pois é, eu vou para Belém”. Eu lembro que eu falei isso para ela, pequena e acabei realmente vindo anos depois, né? Vim para Belém. Quando eu cheguei, eu já fiz faculdade depois de casada, né?
(29:23) P1 - Mas o sonho, enquanto pequena, era ir para Belém ou trabalhar no quê?
R1 - Não, a minha vontade era trabalhar. Eu queria ser assistente social ou psicóloga, né? Era o que tinha. Naquela época a gente também não tinha muito conhecimento das profissões, mas eu sempre gostei de trabalhar com gente. Então, quando eu fiz Enfermagem, foi assim: lá na nossa cidade, Santarém, na época tinha só Pedagogia, Letras e aí, de repente, a UNAMA, que é uma universidade de Belém, foi lá para a região do Tapajós e criou um polo da UNAMA, né? Eu já estava casada, na época. Que, quando eu casei, em 1981, eu fiz magistério.
(30:04) P1 – A gente vai chegar aí, espera. (risos)
R1 – Se tu for deixar, eu vou embora.
(30:08) P1 – A gente tem que voltar um pouquinho, ainda.
R1 – Sim, diga.
(30:11) P1 – Mas você não era uma criança que pensava em ser psicólogo, porque nem se sabia, né?
R1 – Não, não se sabia. Eu queria estudar. O meu pensamento era não ficar no interior. Naquela época eu falei: “Não quero ficar aqui. Eu quero sair daqui”. Então, quando vi a minha irmã mais velha vir pra cidade e trabalhar e ia de vez em quando nos visitar, eu falei: “Essa é a vida que eu quero, não quero ficar aqui”. Aí, quando eu comecei a estudar, já, no ensino médio, aí eu falei: “Vou ter que pensar”, que aí nós já passamos por uma... foi a época que o governo lançou aquelas escolas não integrais, mas uma escola técnica. Quando eu cheguei em Santarém já fui pra essa escola. Então, tinha essas áreas, até técnica comercial tinha, que eles chamavam pra dar orientação pra agronomia. Tinha artes industriais, então nós tínhamos uma sala de arte. Então, ela já foi nos direcionando. Aí eu pensava: “Puxa, eu gosto muito...”, já era envolvida na igreja, participava de grupos de jovens, eu falei: “Eu quero me direcionar pra uma coisa que eu trabalhe com pessoas”. Aí cheguei a pensar: “Vou fazer Psicologia, ou assistente social”, mas pra isso eu tinha que vir pra Belém.
(31:24) P1 – Quando você chegou em Santarém, antes?
R1 – Isso. Já no ensino médio.
(31:27) P1 – Qual foi o baque de ver uma cidade tão diferente da que você vivia? O que te passava pela cabeça?
R1 – Quando eu cheguei em Santarém? Santarém era uma cidade bem pequena. Monte Alegre era menor, mas a gente só vinha na cidade, que a gente amava a cidade, quando tinha que vir ao médico, ou comprar alguma coisa com a minha mãe, mas a gente dificilmente vinha à cidade. Então, depois a gente veio para Santarém, para estudar. Quando chegava o período de férias, nós voltávamos pra casa e ficávamos o período de férias todinho ajudando papai e mamãe. Então, quando as aulas iniciavam, a gente voltava pra cidade. Eu te confesso que o impacto maior que eu tive foi quando eu vim para Belém. Aí, sim.
(32:11) P1 – E quando vocês voltavam pras férias, imagino que para o Natal, como era essa comemoração em família?
R1 – Nossa! Era linda, porque era tudo tão assim inocente! Não tem essas coisas, hoje, a gente faz tanta... como é que se diz?... coisas totalmente diferentes, né? Culinária diferente, os pratos são diferentes. Naquela época a gente tinha o bolo de macaxeira, que era o que a gente fazia. Fazia as tapioquinhas, que é o que a gente faz, que é uma tradição nordestina, que veio pra cá, também cultura indígena. E era nossa essa festa. A gente fazia árvores de Natal com galhos, que a gente colocava algodão. Já depois de morando em Santarém, que a gente achou as bolinhas de Natal e a gente levava pra enfeitar a nossa árvore de galhos, que a gente fazia, mas era assim. Fazia mingau. Então, era essa a nossa... a minha mãe fazia muita comida, a minha casa era muito farta. Então, matava galinha caipira, minha mãe criava muito, eles criavam de um tudo que você pudesse imaginar. Aí meu pai matava gado. Não era fazenda, assim, mas eles criavam pra sobreviver. E aí a gente fazia assim, mas os doces eram de leite, porque aí minha mãe já fazia, fazia queijo do leite que eles tiravam, mas era totalmente do que a gente tem hoje, mas a gente era tão feliz, gente, era... nossa! Aí, por exemplo: amigos de Santarém já queriam ir, passar com a gente. Os netos foram chegando. Essa tem, fotografia dos netos dentro do campo, na carroça de boi, isso eu posso até resgatar pra ti. E os netos faziam questão de ir pro interior, não queriam ficar na cidade.
(34:05) P1 – Eu imagino, pela diferença de idade, você era a oitava, então o mais velho pro caçula era muita diferença!
R1 – É. O meu irmão mais novo, Ricardo, no dia em que ele completou dois anos, o Joel nasceu, que foi o mais novo. O neto mais velho tem quase... era muito interessante ele chamar o meu irmão de tio quando eles tinham a idade bem próxima, tinham quase o mesmo tamanho.
(34:32) P1 – E você era amiga dos seus irmãos?
R1 – Sim. Era mais paparicada, porque era mais nova, também. E a gente sempre se dava muito bem, graças a Deus!
(34:42) P1 – E vocês passavam a roupa de um pro outro? Era uma coisa que acontecia?
R1 - É. Eu já não passava mais, porque já não tinha ninguém depois de mim, mas eu já usava da minha irmã.
(34:52) P1 - Mas você era oitava.
R1 - Eu sou oitava.
(34:53) P1 - Mas são 14?
R1 - Sim, mas nós somos só quatro mulheres. Os outros todos são homens. Hoje nós somos só sete vivos. Os outros já faleceram. Aí moram em lugares diferentes, mas de vez em quando a gente encontra, em Santarém.
(35:10) P1 – Aí, em Santarém você foi estudar e começou a trabalhar também, ou não?
R1 - Não. Eu só fui estudar. Naquela época, existia o técnico magistério. Então, quando eu terminei o ensino fundamental, que eu entrei para o ensino médio, já era técnico. Aí eu fiz técnico magistério. Eu terminei em 1981. Quando eu terminei, eu tinha um irmão que era do Exército e servia em Manaus. Aí eu sempre ia em período de férias para lá. Ele disse: “Olha, quando você terminar, você vem para cá”. Aí eu fui. Não gostei muito da cidade. Manaus é muito mais quente do que a nossa aqui, para cá. Aí eu falei: “Olha, não, venha para cá, que aqui a gente consegue trabalho e tal”. Nisso que eu estou lá, a minha irmã tinha uma amiga que viajava muito. Ela trabalhava... lá ainda existe essa fundação chamada Fundação Esperança. A Fundação Esperança foi fundada por um padre americano, que era franciscano, que veio para a região nos anos sessenta. E sessenta e acho que o quê? Não, setenta. Eu já tinha... já fazia tratamento dentário com os 11, 12 anos, lá. Então, quando ele viu a pobreza da região amazônica, na região do Tapajós, a família dele era muito rica e eles eram rotaryanos, ele propôs para o Rotary americano, que a família fazia parte, pedir um barco montado, um barco-hospital, que hoje nós temos um outro, que é o do Papa Francisco, que ele queria prestar assistência na região, na área de saúde. E eles deram esse barco. E, por coincidência, onde eu fazia tratamento dentário quando eu era adolescente, depois eu fui trabalhar nessa fundação. Então, a minha irmã tinha uma amiga que trabalhava. Quando eu terminei o magistério, eles estavam precisando de uma pessoa, para fazer o trabalho de Educação e Saúde, no Grupo de Saúde Comunitária. E aí ela lembrou, falou com a Lurdinha, minha irmã. Aí eu tinha vindo, voltado de Manaus para pegar as minhas coisas e voltar para Manaus definitivamente, para morar. Quando surgiu essa oportunidade, eu falei: “Não, não vou voltar, vou ficar aqui”. Aí fui para a Fundação Esperança. A Fundação Esperança foi a minha escola de vida e eu comecei a minha escola na vida profissional. (choro) Eu falo dessa fundação com muito carinho, porque lá eu aprendi muita coisa. Os americanos podem ter um certo bairrismo, mas as pessoas que vieram para a fundação, na época, nos ajudaram muito, muito mesmo. Aí eu comecei a viajar para os interiores, com a equipe. Amava, amava aquele trabalho, só fazendo a parte de educação. Sempre gostei muito de falar. E depois a nossa enfermeira-chefe casou com um dos americanos e eles passaram a ser os diretores da fundação. Ela disse: “Não, você não vai ficar só nisso, eu vou trazer para os funcionários, que não tem”. Naquela época não tinha nem auxiliar de enfermagem, era só atendente de enfermagem. Aí ela trouxe, implantou na fundação um curso de auxiliar. E um horário a gente trabalhava e no outro horário a gente fazia o curso de auxiliar de enfermagem. E aí eu trabalhei nessa fundação, elas tinham vários programas, eu passei por todos os programas. Pelo Programa da Mulher; pelo Programa da Criança, que é onde a gente recuperava as crianças desnutridas, com coisas naturais, passei no ambulatório e casei em 1980... eu trabalhei até 1986, eu casei em 1987, foi quando eu pedi para sair, por que aí o meu esposo trabalhava numa mineradora, desde jovenzinho.
(39:04) P1 - Como é que vocês se conheceram?
R1 - Ele era amigo do meu irmão, eles estudavam na escola, no ensino médio, na época fizeram o Senai juntos e depois que eles concluíram o Senai, a Mineração Rio do Norte, que é uma empresa da Vale, que é uma mineradora da Vale do Rio Doce, hoje é só Vale, fica lá na região, levava os alunos, já empregava os alunos. E aí foi meu irmão e ele. Então, na época de escola, eu o conheci. E aí, depois, a gente acabou namorando.
(39:40) P1 - E quando você o viu nessa época de escola, já despertou aí o interesse?
R1 - Não, não. Ele fala que gostava de mim. Na verdade, a gente achava que ele... tinha uma moça que morava conosco, que estudava, que era também lá da região e ela era toda branquinha e toda, assim, saltitante e a gente achava que ele gostava dela. E, no caso, por exemplo: eles estudavam à noite, quando terminava, ele vinha. O meu irmão ia deixar a namorada e ele vinha deixar a minha irmã e essa minha amiga, que morava também conosco. E aí, nisso, a gente foi conhecendo e, não sei, acabamos fazendo... estreitando essa amizade e acabamos... ficamos três anos noivos. Eu era muito resistente a casamento, meus irmãos eram muito ‘perigosos’, então eu tinha uma certa resistência para casar.
(40:30) P1 - Por que eles eram perigosos? (risos)
R1 - Eles namoravam demais, ficavam com uma, ficavam com outra. Meu irmão, que era do Exército, casou, depois teve filho fora do casamento. Então, assim, isso me deixava meio cabreira, que nem diz o caboclo.
(40:49) P1 - Com os homens, em geral?
R1 - É, com os homens em geral. Mas aí acabamos com três anos de casamento... dois anos. Ele falou: “Vamos casar”. Ele morava lá no projeto, mas eu continuava morando em Santarém, trabalhava na fundação. E, quando ele vinha, a gente se encontrava, quando coincidia de eu não estar viajando, a gente se encontrava, saía. Ficamos nisso três anos. No segundo ano ele quis, nós arrumamos tudo, depois eu me arrependi e falei: “Não, não, não caso, não. Desmanchei tudo. Ficamos mais um ano. No terceiro ano ele falou: “Olha, não dá. Ou a gente casa...”. Por coincidência, nessa época, a fundação tinha também uma fundação que se chamava Fundação Incorporate, que era nos Estados Unidos, mas fazia trabalho na África e ela queria levar funcionários para fazer esse intercâmbio. Aí a nutricionista, fizeram a proposta para ir. Eu falei: “Caramba, me deu vontade de ir”. Eu falo com as meninas, disse: “Olha, eu não precisei ir para a África para conseguir um negro para casar”. (risos) Porque meu marido é bem negro. E aí acabei desistindo de ir, porque ele falava que não esperava. Eu falei: “Não, eu só quero ficar dois anos lá”. Então, acabei não indo.
(42:10) P1 - Foi o seu primeiro emprego, na fundação?
R1 - Não, eu já tinha trabalhado na secretaria da Diocese. De lá foi o meu segundo emprego.
(42:20) P1 - E eu vi que você se emocionou bastante quando falou da fundação. O que tocava, no seu coração?
R1 - Porque eles tinham um trabalho voltado para atender os mais pobres. Quando eles iniciaram o trabalho, chamavam a Clínica dos Pobres. Quando o barco não teve mais condição de viajar, eles montaram o Centro em Terra, numa área que era também da Diocese, uma área franciscana, que ele era franciscano. Então, montaram a clínica, que chamava Clínica dos Pobres. Então, as pessoas eram atendidas sem cobrar nada. O barco era um barco de primeiro mundo. Eles faziam cirurgias oftalmológicas, cirurgia geral. Na época, na região, a gente não sabe qual era a causa, mas eram identificadas muitas crianças, nasceu muita criança com o pé torto, os pés tortos e lábios leporinos. Então, durante o ano, tinham duas jornadas: duas de lábio leporino, cirurgia plástica para lábio leporino e fenda palatina. Tinha ortopédica, para correção dos pés. Geral, cirurgia geral. E, assim, aquilo me encantava. Por ser um trabalho voltado para quem realmente precisava. Então, eu aprendi muito, muito mesmo, com eles. E depois, eu já fui trabalhar em terra, quando eles montaram a clínica e foram ampliando.
(43:45) P1 - A clínica ficava parada, ou ela ia de comunidade?
R1 - Não. Nós tínhamos o projeto que iam pras comunidades, chamava Projeto de Saúde Comunitária, que aí nós viajávamos para os interiores, região do Tapajós, região amazônica, toda a região amazônica, do Rio Amazonas, a gente viajava.
(44:02) P1 - De barco?
R1 - De barquinho, mas quando a gente chegava nas vilas, época de verão, principalmente, que você via um rio imenso, mas não tinha isso aqui de água, aí o barco encalhava. Os comunitários vinham nas canoas, chamavam de canoas, ou catraia e nos pegavam, para ir até a comunidade. E, de lá, nós íamos para as comunidades, para o centro, que eles chamavam, para as comunidades mais distantes. Então, você ‘botava’ a mochilinha nas costas e a gente ia com isopor de vacina, com todo o material de atendimento e atendia as comunidades bem mais distantes.
(44:40) P1 – Nossa, que bonito!
R1 - Eu sou apaixonada, era apaixonada por aquele trabalho.
(44:45) P1 - Você ficava de quanto tempo viajando?
R1 - Durante o mês a gente fazia três, quatro, porque a gente ia de comunidade para comunidade. Então, quem trabalhava nesse setor, viajava muito. Depois, a gente revezava. A gente ia para o ambulatório, depois passava para o Programa de Saúde Comunitária, tinha as meninas do dentário, da clínica dentária. Aí eles foram, a partir do curso de auxiliar de enfermagem, vendo a necessidade de ampliar a parte de educação na região. E essa nossa coordenadora, chamada Vera Bertagnoli, hoje mora em Belém também, ela e o esposo, eles começaram a investir, a pedir recurso para construir centros de educação. Então, lá nós temos um centro técnico, de cursos técnicos e temos um centro de formação superior, que depois teve que desvincular, que chamava-se IESPES. Foi pelo IESPES que eu fiz a minha formação, que eles fizeram uma parceria com a UNB, que eu fiz a enfermagem do trabalho.
(45:49) P1 - Então, antes disso você estava trabalhando na área do magistério, com o pessoal?
R1 - Era. Eu era técnica de magistério, mas eu trabalhava na saúde comunitária, como educadora.
(45:58) P1 - O que você fazia?
R1 - As palestras de educação e saúde. Aí eu fui começar a estudar a parte de saúde, para administrar as palestras.
(46:06) P1 - E era palestra de quê?
R1 - Ah, sobre alimentação, sobre cuidados de higiene para as senhoras, para as crianças, palestra nas escolas. Aí depois nós fizemos o curso mesmo de auxiliar, aí melhorou mais ainda. Eu sou muito grata a ela, à Vera, porque ela sempre acreditou e nos incentivou. Ela é de Óbidos, de uma cidade também lá do oeste do Pará e chegou onde ela chegou também e ela acreditava que todo mundo também podia chegar. E eu aprendi muito isso, também com ela. Poxa, a gente pode chegar aonde a gente quer chegar. E aí nós fizemos esse curso, eu continuei trabalhando, depois passei para o Programa da Mulher, não fui mais viajar, fui pro Programa da Mulher, onde nós atendíamos desde 15 anos até a menopausa. A fundação era um ambiente tão agradável de trabalhar que, na época, eu fiz um concurso, hoje eu poderia ter aposentado muito bem financeiramente, porque hoje é a FUNASA, mas naquela época era a Fundação FSESP, eu fiz para a visitadora, eu e outra colega e nós passamos. O salário era igual, na época, mas a gente não tinha noção de que era uma segurança maior. Então, nós não fomos, nem eu, nem a minha amiga. Falamos: “Não vamos sair daqui não, vamos ficar aqui mesmo”.
(47:33) P1 - Tem alguma história dessa época da fundação, que te marcou, que você fez algum atendimento, que você lembra até hoje?
R1 - Sim. No Programa da Mulher. É por isso que hoje eu gosto de trabalhar com as mulheres. Aí, quando já implantaram o centro e foram evoluindo as coisas, passaram a cobrar apenas uma taxa. A parte de financiamento que vinha foi reduzindo. Aí cobraram apenas uma taxa, até para valorizar mais. Elas pagavam para ser escutadas, entendeu? Então, teve o caso de uma senhora... e as doenças são psicossomáticas, a maioria das doenças. Elas vão se somatizando, até de acordo com o que as pessoas passam na vida. E essa senhora acabou encontrando o esposo, tinha uma vida maravilhosa e um dia ela encontrou o esposo com a moça que ela tinha ajudado, que morava na casa, que a ajudava em casa. Nossa, essa mulher ficou tão desnorteada! Ela já era a nossa paciente, porque lá nós fazíamos, desde a orientação, a coleta do PCCU, do preventivo, até a inserção de DIU. Nós fomos treinadas por umas enfermeiras americanas a inserir DIU. Nós éramos únicas enfermeiras na região que fazíamos a inserção de DIU. Mas nós fomos treinadas, fizemos o curso com as enfermeiras americanas. E nós tínhamos uma parceria tão, assim, ligada com os médicos, que não existia aquele pedestal: “Eu sou médico, tu é enfermeira”. Não. A gente só passava... no Programa da Mulher nós tínhamos um ginecologista que atendia duas vezes por semana, terça-feira e quinta-feira. E nós só passávamos pra ele quando a gente não conseguia resolver, aquilo que não competia à gente, como enfermeira.
(49:24) P1 - E a história dessa senhora?
R1 - E essa senhora marcava, porque ela pagava aquela taxinha pra ser ouvida, porque ela queria um acalento. Não era só ela, eram várias. Então, assim, foram vários casos que marcaram. Outro no Programa da Criança. Crianças desnutridas, assim, mesmo, que chegavam lá pele e osso, que diziam assim: “Não, essa criança não vai ter jeito”. E depois, não sei se você lembra, ela foi muito... saiu várias reportagens dela, a Doutora Clara, era uma japonesa, que criou a multimistura, lá na região. Então, até hoje existe, chama-se Seara, o nome da organização que ela apoiava. E essa multimistura era levada pra Fundação Esperança, pra gente trabalhar com essas crianças desnutridas.
(50:21) P1 - O que era a multimistura?
R1 - A multimistura era aveia, era uma coisa feita da folha de maniva, parece, se não me engano. Por isso chamava multimistura, que era a junção de várias coisas naturais, que fazia aquele composto nutritivo e dava pras crianças. E, realmente, nós tínhamos uma horta, lá na fundação, na parte do Centro da Criança, que a gente fazia a sopa, as alimentações, orientávamos as mães como fazer, entendeu? O jerimum, que ela tinha que fazer tudo do jerimum, que ela podia aproveitar tudo. A folha da maniva que a gente usa, a folha da taioba. Então, elas aprendiam a fazer a alimentação lá e começaram a fazer em casa. Então, as crianças não ficavam mais desnutridas.
(51:16) P1 - Imagino o seu coração de ver essas crianças nessa condição!
R1 - Nossa! Olha, se eu soubesse que você ia perguntar isso eu tinha trazido uma revista, que eu guardo, uma revista da fundação, com muito carinho.
(51:28) P1 - O que tem nela?
R1 - São fotos de trabalhos. Nos quarenta anos, nós fomos chamadas para vir para essa comemoração de quarenta anos da fundação.
(51:43) Com quantos anos a senhora entrou na fundação e ficou até quando?
R1 - Eu entrei na Fundação em 1981. Foi o ano que eu terminei o curso.
(51:51) P1 - Estava com quantos anos?
R1 - Eu estava com...
(51:55) P1 – Vinte e dois?
R1 - Não, ainda não estava com 22 anos. Estava, acho que 21, eu acho. Foi com 21 anos. Eu fiquei até 1986, final de... 1987. Até 1987, quando eu casei. Eu saí antes de junho, porque eu casei em junho, mas nunca perdi o vínculo.
(52:15) P1 – Então, foi de 1981 a 1987. São seis anos que mudaram a sua história.
R1 - Foram. Nossa! Na verdade, eu terminei em 1981. Foi o início de 1982, fiz o contato final de 1981, quando eles entraram de férias. Em 1982 eu comecei a trabalhar, desde 1982.
(52:36) P1 - Você voltava para casa nas férias e contava sobre tudo isso?
R1 - Nossa! Depois que comecei a trabalhar, só ia em período de férias, mesmo. Meus pais já vinham mais com a gente. Quando foi em 1987 eu pedi para sair, porque eu ia mudar para esse polo industrial, para essa mineradora que o meu marido trabalhava lá, mas eu nunca perdi o vínculo com a fundação. Todas as vezes que eu vinha, eu tinha que visitar, tinha que tomar café com o pessoal, ia para o refeitório. Um dia, a minha... assim: aí surgiu a oportunidade. Eles fizeram uma parceria com a UNB. Minto! Foi quando surgiu a faculdade de Enfermagem. Aí eu falei: “Vou fazer”. Aí entrei em consenso com o meu marido. Eu voltei para... já tinha os dois filhos e o meu menor tinha dois anos. Eu vim para Santarém, onde a minha família morava, para fazer a faculdade.
(53:30) P1 - Então, antes da faculdade, quando você casou, você foi para onde?
R1 - Fui para a Mineração Rio do Norte.
(53:36) P1 - Era longe?
R1 - Eram 12 horas de barco, de Santarém para lá.
(53:45) P1 - E foi convicta do casamento, apaixonada?
R1 - Sim, casei, aí fui embora. Lá tive os filhos.
(53:50) P1 - Teve filho rápido?
R1 - Tive. Eu achava que não ia ter. Eu tinha um problema, que diziam que eu não ia ter. Eu acabei me despreocupando e acabei engravidando. Em cem mulheres, uma engravida.
(54:02) P1 - Que problema?
R1 - Eu tinha uma retroversão uterina bem acentuada. Então, dificilmente eu engravidaria. Muitas mulheres não engravidam. E eu acabei engravidando.
(54:14) P1 - Qual que é o nome do seu marido?
R1 - Reinaldo.
(54:16) P1 - E quando você e o Reinaldo descobriram que estava grávida?
R1 - Nossa, ele ficou feliz da vida, né? Achava que era um menino, queria um menino. Acabou vindo uma menina, mas aí foi bem-vinda. E lá ficamos com os filhos até 18 anos, quando eles precisaram sair, para vir fazer para pré-vestibular, em Belém.
(54:33) P1 - Goreth, quando você engravidou, o que passou nessa cabeça?
R1 - Nossa, quando eu engravidei, eu já tinha entrado para trabalhar na escola, no sistema Pitágoras, porque lá era o sistema Pitágoras de ensino. E quando eu descobri que eu estava grávida, eu falei: “Meu Deus!”, mas aí fui. Aí trabalhei três anos na escola, como professora de educação infantil. Então, assim, eu mudei, né? Mas como eu tinha formação, acabei trabalhando. Quando eu... no terceiro ano a Vera, que era a minha ex-chefe, ligou: “Olha, vai surgir o curso de enfermagem, venha fazer e tal”. Eu falei: “Mas como é que eu vou deixar o marido, o filho aqui? Aí ela disse assim: “Tudo se ajusta”. Aí ela me incentivou. Falei: “Tá” e conversei com ele, eu falei: “Olha, eu vou fazer o vestibular. Se eu passar, passei. Ah, isso agora não tem jeito. Eu vou com o André, que é o menor, para a casa da minha irmã, até a gente estabilizar” - nós já tínhamos casa porque, quando a gente casou, ele já tinha casa - “E depois eu levo a Lara”. A Lara estava com seis anos.
(55:45) P1 – Então, você teve a Lara e depois o André.
R1 - É, foi. A Lara é a mais velha, essa que mora em Monte Alto. Não, a Lara estava com quatro anos e o André estava com dois. Quase cinco. A diferença é de dois anos, deles dois.
(55:59) P1 - Aí você se mudou para a casa da sua irmã, em Santarém?
R1 - Aí eu vim para Santarém, até a minha casa estava alugada. Nem era alugada, era uma cunhada que morava, para eu poder organizar a casa e ficar, porque eram quatro anos, eu não ia ficar quatro anos na casa da minha irmã.
(56:12) P1 - E o marido topou?
R1 - Topou. Aí ele trabalhava de turno. Aí, nas folgas, ele vinha para Santarém. Quando tinha um feriado mais extenso, eu ia. Vim primeiro com o André. Depois, para não atrapalhar a Lara na escola, eu trouxe a Lara. E assim nós ficamos os quatro anos de faculdade em Santarém. Também foi terminando, ele disse: “Terminando você volta”. Aí, quando eu voltei, terminei a faculdade, voltei para lá, falei: “Agora vou ter que ver alguma coisa na área de enfermagem, aqui”. Eu acho que não estava com seis meses que eu tinha voltado, acho que uns oito meses, aí ela me liga, a minha ex-chefe: “Goreth, nós fizemos uma parceria com a UNB, para uma pós-graduação em Enfermagem do Trabalho. Eu pensei em você”. Falei: “Vou conversar com o Reinaldo, mas possivelmente eu vou fazer”. Aí me matriculei. Como era mensal, você ia um final de semana a cada mês, eu falei: “Fica tranquilo”. Porque eu já tinha voltado também, com tudo de volta. Por isso que eu já perdi, mudei tanto na vida. E aí a gente foi. Reinaldo: “Está tudo bem”. Eu tinha uma pessoa que morava comigo, tomava conta das crianças. Aí eu vinha, afinal, todo mês eu vinha. Terminei. Quando eu terminei, ela disse: “Olha, nós vamos fazer (risos) outra, de Educação e Gestão Ambiental”. Mas, olha, eu acho que a gente não deve perder as oportunidades que surgem, porque tudo isso hoje me serve. Aí vim, fiz, terminei uma pós e fiz a outra, de Educação e Gestão Ambiental. Aí essa já foi pela fundação, mesmo. Quando nós terminamos a formação, a Fundação Esperança fechou uma parceria com a Mineração Rio do Norte, para levar cursos para capacitar os funcionários, qualificar os funcionários com cursos, entendeu? Então, na época, o que eles tinham? Era curso de Meio Ambiente, que eles precisavam para a área ambiental; era de Administração; Segurança no Trabalho; e um de formação de professores, para qualificar os professores. Aí disse: “Goreth, nós vamos só fazer a tua extensão para lá. Tu vais coordenar os cursos lá”. Fiquei quase cinco anos coordenando os cursos da Fundação Esperança, lá no polo da Mineração Rio do Norte. Então, a gente tinha um escritório, uma sala, sala de aula e eu coordenava os cursos, todos os cursos. Foi quando... isso já foi em 2005, a minha filha já ia fazer 18 anos e precisava vir para Belém, para se preparar para o vestibular, porque a gente se preocupava com a concorrência e tudo. E aí meu marido disse: “Olha, então vamos comprar...”, eu falei: “Eu não quero deixá-la na casa de ninguém”. Ele disse: “Vamos dar um jeitinho de comprar um espaço, para ela morar”. Eu tenho uma ‘irmã do coração’ que já morava aqui em Belém, na casa da minha tia, que ajudou a cuidar dela quando pequena. Eu falei: “Agora ela vai cuidar dela grande”. E aí a gente comprou um apartamento pequeno. Ela veio para Belém, isso no início do ano de 2005 e logo depois que ela veio, a Vale avisou que eles iam ser transferidos para cá, que ela estava montando um polo em Belém, porque na época ele era da área de navegação, sempre trabalhou na área de navegação. Então, eles estavam incorporando o que eles chamavam de Docenave, que era uma empresa da Vale, para a Vale mesmo, entendeu? E que eles iam, eles traziam os rebocadores para o porto daqui, da Hydro, a Alunorte e ela tinha, era a Vale aqui.
(01:00:02) P1 - A gente veio já para cá, hoje. (risos) Foi difícil, Goreth, essa época da faculdade, essa época das crianças pequenas?
R1 - Muito, muito difícil, porque o meu filho tinha dois anos. Eu tinha... principalmente quando chegou o período de estágio. E, quando eu voltei, a fundação... no período da faculdade eu não trabalhei, porque eles eram muito pequenos, então eu fiquei por conta deles e a faculdade. Mas, mesmo assim, eu não sabia dirigir, tive que aprender a dirigir. Eu tinha um carro velho que me dava tanto trabalho! Meu sobrinho fala comigo até hoje: “Tia,” - quando o telefone tocava dez horas da noite, ele atendia o telefone – “onde a senhora está?” (risos) O carro pegava, me deixava na mão, mas foi um guerreiro junto comigo. Então, assim, tinha que levar a menina na escola, tinha que levar a menina para médico, porque ele não estava, então eu tinha que me desdobrar. Então, não foi fácil. Então, tudo isso eu passava para os meus filhos.
(01:01:05) P1 - E a saudade, né?
R1 – É. Período de estágio tem uma coisa que me marca muito, que eu acho que pesou muito. Hoje eu tenho um filho que tem uns problemas de depressão, que ele sentia muita falta do pai. Então, o meu cunhado me dava muito apoio. E ele era um ex padre, que acabou casando. A minha irmã trabalhava também na catequese. Ele tinha saído do... tinha deixado, o celibato e foi, se encontraram e se casaram, mas nunca tiveram filhos. Então, ele que ia, muitas vezes, quando eu tinha que ir para o estágio, buscar o meu filho. Aí os meninos diziam: “Olha, o teu avô chegou”. Nossa, isso marcava! Ele queria o pai, que o pai estivesse ali. Então, assim, eu acho que eu tirei um pouco isso do meu filho e ele me cobra isso hoje. Apesar de adulto, ele me cobra, porque foram quatro anos. Em coisa da escola, torneio da escola, ele queria o pai, ele não queria o tio. O meu irmão mais novo passou a morar comigo. Então, às vezes, quando o pai chegava, em vez dele chamar pai, ele chamava tio, porque era com tio que ele convivia mais. Então, a vida nos cobra certas coisas. Nós temos escolhas a fazer, né? Nós fazemos escolha, mas lá na frente a vida também cobra.
(01:02:29) P1 - Mas você não desistiu, né?
R1 - Não. Eu falei: “Nós vamos vencer”. E a gente venceu. Quando eu comecei a fazer a pós-graduação em Enfermagem, surgiu uma vaga na fundação. Aí eles me chamaram para trabalhar. Eu não tinha nenhuma experiência como enfermeira ainda, tinha como auxiliar. Eu falei: “Eu preciso disso”. E a Vera, mais uma vez: “Goreth, você precisa. A vaga é sua”. Eu não contei duas vezes. Falei: “Só quero dois anos”. Conversei com meu marido, falei: “São dois anos, só”. Acabei voltando de novo pra Santarém.
(01:03:09) P1 - Sozinha?
R1 - Com o André, deixei a Lara lá.
(01:03:14) P1 - E ela ficou com quem?
R1 - Ficou com meu marido, a minha cunhada que morava comigo e mais uma moça, mas aí, enquanto eu ajustava, eu voltei de novo para Santarém, fiquei mais dois anos em Santarém, já trabalhando como enfermeira. Quando eu terminei os dois anos que eu tinha prometido, eu voltei para Trombetas. Foi aí que surgiu a parceria da mineração com a Fundação Esperança, que aí eu fui trabalhar, fui coordenar os cursos deles lá.
(01:03:37) P1 - E vocês conseguiram oferecer para os filhos de vocês uma infância e adolescência diferente também?
R1 – Sim. Totalmente diferente. Apesar de que lá na mineração eu sempre trabalhei muito isso com meus filhos, falei: “Olha, aqui é uma ilha de fantasia”, que a empresa dava tudo: você tinha uma casa boa, um clube com esportes que nem é da nossa realidade. Você tinha peteca, bocha, squash. Foi lá que a gente foi conhecer isso, que não é da nossa região.
(01:04:07) P1 - Essa cultura veio de onde?
R1 - Acho que mineira. Lá é uma pluralidade de cultura, porque tem funcionários de todos os lugares. Então veio de lá, do sul. Então, tem tudo isso lá. E eles tiveram a oportunidade de ter uma infância diferente da minha, mas com coisas também que eu também não tive. Então, eu conversava muito com eles, porque lá muito pobre não queria ser pobre. Achava que aquele mundo ia ser eterno. E eu falava pra eles: “Nós só estamos aqui de passagem. Essa vida não é a nossa realidade”. Então, período de férias, a gente sempre procurava viajar. A cada dois anos, umas férias a gente passava com a família, a gente ia pro sítio do meu pai e nas outras férias a gente procurava viajar um pouquinho, pra eles conhecerem o que era a realidade, o que é ver um pedinte na rua, entendeu? O que é uma pessoa trabalhar num porto, carregando... trabalhar em serviços de estiva. Então, eu procurava que eles... mostrar pra eles a realidade diferente do que eles viviam. A escola era dada, fornecida, custeada, na verdade, pela mineração. Então, era uma escola excelente, padrão muito bom e a gente não pagava. Clube, nada, tudo era a empresa que proporcionava aos funcionários. Então, por isso eu falava: “Aqui é um mundo de fantasia. Não se peguem a isso”. E quando eles completaram... ela completou os 18 anos, fiquei esse tempo, quase cinco anos, trabalhando com a coordenação dos cursos, lá. Quando ela precisou vir eu fiquei preocupada, mas como ela estava com a minha irmã, eu falei: “Não, você vai morar com ela, tá” O menino ainda ficou. Só que no meio do ano a gente já veio transferido.
(01:06:03) P1 - Vocês foram pra onde?
R1 - Pra Belém. A gente veio transferido, a Vale já transferiu, que meu marido entrou na Vale na época de concurso, ainda quando era estatal, depois foi que privatizou. Aí tivemos que vender o apartamento, que era pequeno, comprar um apartamento maior, pra poder dar pra família toda. Aí o impacto foi muito grande, porque eu sempre morei em lugar pequeno. Eles foram criados num projeto onde todo mundo se conhecia. Se acontecia alguma coisa: “Não, olha, é o filho do fulano, leva ele lá”. Assim, você ia para o clube, encontrava as meninas no vestuário. Você estava na reunião da escola, eram as mesmas mães. Você ia para o restaurante... você está entendendo? Então, era aquele mundo ali. Então, quando a gente chegou em Belém, com esse trânsito desordenado, que é uma loucura, falei: “Não vou...”. Eu já dirigia, porque aprendi a dirigir em Santarém, para poder melhorar minha logística com os meninos. Tive que enfrentar. Quando eu cheguei em Belém, falei pro meu marido... e meu marido viajava muito, a trabalho: “Olha, eu acho que eu não vou dirigir aqui, aqui é louco demais”. Mas aí eu falei: “Eu tenho que enfrentar”. Aí consegui. Falei: “Será que eu tenho que entrar numa escola, uma autoescola?” Falei: “Não. Aí eu comecei a estudar as vias principais, de onde saía, onde... aí fui me localizando. A gente morava numa área bem localizada em Belém. E aí, graças a Deus, eu fui... mas eu entrei, eu adquiri uma insônia, que eu tenho até hoje, né? Eu fiquei superprotetora com os meninos, porque diziam: “Nas universidades públicas têm muita droga”. Assim: nem querer dar dinheiro eu queria dar, para que eles não tivessem dinheiro sobrando. Sabe, eu fiquei com neura. Nossa, eu tolhia muito o meu filho, principalmente o menino, que hoje ele me cobra muito por isso.
(01:08:03) P1 - Mas era medo, né?
R1 - Era medo. Eu falo para ele: “Meu filho, eu posso ter pecado por excesso, mas eu só queria proteger vocês”. Então, a menina sempre foi mais determinada, assim, do que ele. Ela, mesmo quando pequena... é jornalista, minha filha, dizia assim, quando ela queria retrucar de alguma coisa: “Eu não estou respondendo, eu estou justificando”. (risos) Então, ela sempre foi mais determinada do que ele. Acho que eu acabei protegendo mais ele do que ela. E aí a gente veio para esse mundo louco, que é Belém e eu falei: “Meu Deus, o que eu vou fazer aqui?”
(01:08:44) P1 - Como que era a sua rotina, lá em Belém?
R1 – Aí, depois que eu aprendi, os meninos aprenderam a andar de ônibus, mas eu ficava, assim, preocupada. Aí eu comecei a levá-los na universidade, levava para fazer um esporte, fiquei nessa coisa e falei: “Não vou aguentar”, porque eu sempre fui muito ativa. Eu tinha uma amiga que já estava, que o marido dela era deputado estadual. Eu sou esquerda. A gente vem de movimentos sociais e tudo. E ela já estava em Belém, na época eles estavam fundando o Instituto de Floresta. Aí ela soube que eu estava em Belém, a gente marcou uma conversa, aí ela falou: “Olha, a gente está montando um instituto, quero você pra trabalhar comigo”. Como eu tinha feito educação, por isso que eu te falo: as oportunidades não devem ser desperdiçadas, porque a formação que eu fiz em Educação e Gestão Ambiental me facilitou a entrada no Instituto de Floresta. Aí eu fui trabalhar com ela. A princípio eu fui ser chefe de gabinete dela, mas ser chefe de gabinete não é uma boa experiência.
(01:09:56) P1 – Não?
R1 – Não. Meu Deus, você não tem mais vida! Você vive em função deles. Tinha um celular que tocava 24 horas, porque eles são cheios de reunião. Aí meu filho, na época, machucou o joelho jogando basquete no Remo, em Belém. Precisava fazer uma cirurgia. Eu cheguei pra ela: “Eu vou precisar sair. Meu filho vai fazer uma cirurgia e eu preciso dar assistência. Ela disse: “Eu vou dar os dois meses de recuperação do seu filho e você volta”. Aí eu disse: “Mas eu não quero mais vir pro gabinete, me coloca em outro lugar”. Ela disse: “Tá”. Era um instituto que estava sendo montado, que eles queriam deixar o instituto com um quadro efetivo, estavam preparando concurso. Aí, quando eu voltei, ela me colocou no Recursos Humanos. Não entendia nada de Recursos Humanos, mas vamos lá. Eu nunca fugi de desafios. Eu acho que isso aprendi do meu pai nordestino. E fui trabalhar no Recurso Humanos. Entrei num curso da Fundação Getúlio Vargas, de Recursos Humanos e nem concluí o curso, mas fiz até a metade, não dei conta mais, que era muita coisa, era filho, não dei. Mas eu fiz a formação até acho que a metade. Aí trabalhei três anos no Instituto de Floresta, na área de Recursos Humanos. Aí foi a época que mudou o governo. Eu subia muita escada, usava muito sapato fino, com isso eu adquiri uma... descalcifiquei o colo do fêmur, sentia muitas dores e eu falei: “Não dou mais conta de subir e descer escada, eu quero sair”. Aí pedi para sair, na época não era mais, foi quando formaram, criaram o polo da UFPA, que é o UFOPA, em Santarém. Ela ia ser a reitora, lá, mas ficou o professor (01:11:52), que era uma pessoa maravilhosa: “Não, Goreth, eu preciso de você aqui, eu não posso ficar só, eu tenho que ter pessoas de confiança ao meu lado”. Falei: “Professor,” - ele era da UFRA, da Universidade Federal Rural – “eu não vou poder ficar, pelo meu problema de saúde. Não é por outra questão” “Fique só até o final da nossa gestão” “Mas eu não estou conseguindo mais subir as escadas. Estou aqui a peso de remédio. Não estou produzindo. Eu sei o meu limite. Então, não vou lhe ajudar dessa forma”. Aí pedi para sair. Aí fui cuidar da saúde.
(01:12:26) P1 - E as crianças já não eram crianças?
R1 - Já não eram crianças, já estavam quase concluindo a faculdade. Os dois, assim que terminaram, entraram logo no mestrado.
(01:12:37) P1 – Ela entrou em Jornalismo, e ele?
R1 – Ele fez Engenharia Elétrica, mas não essa parte de eletricidade. A tese dele, de mestrado, já foi nessa área de antenas, ondas eletromagnéticas. Assim que ele terminou, que ele entrou no mestrado, ele foi para aquele projeto do Sem Fronteiras, ficou três anos na França.
(01:13:06) P1 – Médico Sem Fronteiras?
R1 – Não, não sei. Aquele... o Projeto Sem Fronteiras, que era de todas... é Sem Fronteiras? Esqueci o nome. É, da universidade. Que foi o Lula que instituiu, na época, para você fazer universidade fora, fazer estudo fora. Aí ele foi - ele também é muito focado, meu filho, não é por ser meu filho, mas ele é muito inteligente - estudando, eu sempre incentivei meus filhos a estudarem muito, não sei se eu fiz bem ou se não. Então, eu sempre os coloquei para fazer Inglês desde cedo, tudo aquilo que eu não tinha tido oportunidade, eu proporcionava para eles. Eles tinham inglês na escola, mas eu pagava o Inglês fora. Eles tinham informática na escola, eu pagava informática fora, porque eu sabia que era só o básico que eles recebiam na escola. Então, quando ele entrou na universidade, que ele se apaixonou por essa área, ele disse: “Não quero essa área elétrica, eu quero essa outra”. E ele tinha um professor que eu acho que era russo e ninguém gostava desse professor, porque ele era muito exigente. E o André conseguiu ter uma afinidade com esse professor, tão grande, que ele disse que ele aprendia muito com ele e acabou fazendo a tese dele nessa área. Ele já estava com a coisa... minto, quando surgiu a bolsa para os Sem Fronteiras, já estava fazendo, sem me falar, Francês. Aí um professor os incentivou, ele estudou Francês e ele foi para a França. Foi um grupo de alunos. Quando eles estavam lá, os alunos... é diferente o período de estudo. A escola viajava, a bolsa deles era muito boa, aí ele ‘cavou’ um estágio e foi chamado para uma empresa. Enquanto os colegas estavam viajando, ele estava estagiando numa empresa francesa. Era numa cidade mais afastada, não era na capital, mesmo. Aí ele, quando chegou o período de voltar, como ele estava fazendo um projeto, a empresa solicitou para o FPA que ele ficasse, até ele concluir o projeto e a universidade permitiu. Como aqui eles entraram em greve, ele terminou o projeto, quando ele voltou, ele ainda formou junto com os colegas. Quando ele estava para terminar, essa mesma empresa o chamou para entrar, como trainee. Faltava pouco tempo, eu acho que dois meses, para terminar. Eu falei: “Mas meu filho, você está quase terminando o mestrado”. Ele disse: “Mãe, que eu fique dois ou três anos fora, eu vou ter uma base muito maior do que o mestrado. Depois, se eu voltar, eu termino”. E foi o que ele fez. Eu, mais uma vez, na minha loucura de mãe, protetora, quando surgiu aqueles atos terroristas lá, ele já estava em Paris mesmo, ele falava para mim: “Mãe, se eu passar dez vezes” - nós, latinos, somos muito visados, por causa que foi muito forte, lá – “no mesmo lugar, nós somos revistados”. E aquilo começou a me dar uma angústia, sabe? Eu começava a lembrar daquele caso daquele mineiro que morreu em Londres, dentro do metrô. Eu falei: “Meu filho, vem embora. Tu estás sozinho aí”. Não tinha ninguém da turma dele. Ele era único que tinha ficado lá. Europeu não é que nem o brasileiro: “Ah, você está sozinho, sem família, vem pra minha casa”. Não. E o meu filho sempre foi muito... além dele não ser que nem a menina, assim, de muitas amizades. Eu comecei a me preocupar. Falei: “Meu filho, venha”. E ele já tinha começado o doutorado lá. Olha a minha loucura! Eu comecei a perturbá-lo, pra vir embora, falei: “Entregue tudo, vem, o Brasil pode até não prestar, mas aqui você tem paz”. Aí ele veio embora. Se fosse a menina, ela tinha ‘batido’ o pé e ela não teria vindo. Hoje ele diz que não valeu a pena ele ser tão obediente. (risos) Conclusão, veio. Quando ele chegou, o professor dele ainda estava na ativa e disse: “Não, você vai terminar o mestrado”. Terminou o mestrado. Na semana que ele ia defender, tem uns amigos da época de Trombetas, é Porto Trombetas o nome do lugar que a gente morava, que estavam em Manaus. Ele disse: “’Cara’, tem uma vaga na Samsung, tu não quer vir pra cá? Manda teu currículo, manda pra lá. O site é esse”. Ele mandou. Na mesma semana o chamaram, ele não me falou nada. Na época a gente estava saindo de uma sociedade que não tinha dado certo, estava tentando se ajustar financeiramente, o que, com certeza, pesou, isso, na decisão dele, ele não falou nada pra gente, que ele já tinha uma bolsa pro doutorado, senão eu não o tinha deixado ir, ele já chegou pra gente e disse: “Olha, fui chamado pra trabalhar em Manaus e vou” “Mas, meu filho, como assim?” “Não, vou. Eles vão me esperar. Me chamaram, mas vão me esperar”. Aí foi pra Manaus. Defendeu a tese dele e foi pra Manaus, pra Samsung, pra essa área e lá ele não foi muito bem aceito, porque aqui existe uma rivalidade muito grande com o paraense e o amazonense. Então, os gestores eram os paulistas, mas a maioria do grupo era amazonense, tinha gente de vários lugares. Então, quando ele chegou, um rapaz novo, salário alto, um cargo bom, eles sentiram como se eles tivessem sido lesados, que ele estivesse tomado a vaga. Então, foram três anos assim, que ele passou de muita hostilidade. Ele, como sempre focado nos projetos dele, desenvolveu um projeto, estava desenvolvendo um projeto para a Samsung, a Samsung: “Olha, você vai para o México, aprimorar esse projeto, vai ficar dois meses no México”. Quando eles souberam que ele ia, eles ‘quiseram a morte’, né? Aí foi. Quando o André ficou dois meses no México, quando ele voltou, já era uma nova chefia, já ‘contaminaram’ também, ele já estava com outro projeto em andamento. Tudo nessa área de potência de celular, de antena, essas coisas. Ele apresentou para a Samsung. Aí ele disse: “Agora você vai e termine, que você vai para a Coreia, para a nossa base na Coreia. Você vai aprimorar lá”. Aí ele falou: “Mãe, estou me preparando para ir para Coreia, ficar quatro meses na Coreia”. Falei: “Misericórdia, Senhor!” Tá. Aí terminou que estava fazendo o projeto, na semana dele apresentar o projeto, hackearam o projeto dele todinho. Aí eu acho que, assim, ele já estava, todos esses anos, com uma sobrecarga muito grande, ele desabou, entrou em depressão.
(01:19:56) P1 – Goreth, eu estou ouvindo muito a história do André. Eu sei que ela envolve muito com a sua própria história.
R1 – Sim, verdade. Porque é uma luta que eu tenho hoje, com ele.
(01:20:03) P1 – Você, nesse tempo, ficou em Belém? Vocês ficaram por bastante tempo em Belém?
R1 - Nós estamos... eu estou aqui, mesmo...
(01:20:12) P1 - Em Belém, você está falando?
R1 - Em Belém nós já estamos com 14 anos. Indo para 15 anos, em Belém. Foi 2005 que nós viemos para Belém. Eu vim em 2006, eles vieram em 2005. Eu vim em 2006 para Belém.
(01:20:24) P1 - Tá, então você foi em 2006 para Belém, ficou lá até quando?
R1 - Eu vim pra cá em 2013, mas, assim, meu marido já tinha saído da Vale, entrado numa franquia da Caixa, numa lotérica, que é essa lotérica lá do Líder, no Supermercado Líder, mas a gente tinha muito medo de ficar aqui. Então, a gente morava em Belém, ia e voltava. Ia e voltava.
(01:20:49) P1 - E você falou que, em determinado momento, você saiu do trabalho pra cuidar da tua saúde.
R1 - Sim.
(01:20:53) P1 - O que você foi fazer?
R1 - Aí eu fui fazer fisioterapia, mas aquilo me incomodava, porque eu não melhorava, melhorava só aquele período que eu estava lá, fazendo a fisioterapia, depois voltava. Aí eu resolvi montar uma loja de enxovais de cama e mesa e banho.
(01:21:11) P1 - Lá em Belém?
R1 - Lá em Belém. Montei a loja, ficou toda bonitinha, toda estruturada. Quando eu montei, olhei para aquilo e falei: “Isso aqui não tem nada a ver comigo. Vou vender”.
(01:21:23) P1 - Vendeu?
R1 - Vendi. Não me identifiquei, não era aquilo que eu queria. Nesse período que eu montei a loja, eu conheci uma senhora que trabalhava com aparelhos magnéticos, colchões magnéticos. Foi ela que me apresentou o colchão e aí eu comprei. Na época o pessoal dizia que eu era doida, era seis mil reais o colchão, mas eu comprei. Falei: “Olha, eu vou juntar o dinheiro. Quando eu tiver com o dinheiro, eu ligo pra você”. Fiquei três meses juntando o dinheiro e liguei para ela: “Pode mandar buscar”. Nessa época não tinha aqui a franquia filial, que Belém já tem. O mais próximo era no Maranhão. Mas eu comprei. Poucos dias eu comecei a aliviar as dores, comecei a sair das dores, porque é uma fisioterapia que você faz em casa. Aí eles foram me apresentando outros produtos, me apresentaram a cinta, a palmilha, que hoje eu uso tudo e hoje eu tenho uma qualidade de vida boa. Não tenho... olha, não tomo remédio. Para a dor, não. Para a coluna, não. Eu faço o meu controle tudo direitinho, atividade física até que ajuda, para fortalecer. Aí, vim pra cá. Ficamos nessa loucura, de vai e vir pra cá.
(01:22:43) P1 - Então, por que vocês vieram pra Barcarena?
R1 - Meu marido estava na Vale. Quando ele saiu da Vale, ele e o chefe dele entraram nessa licitação da Caixa, pra essa lotérica. Aí fomos trabalhar na lotérica, outra coisa que não tinha nada a comigo. E eu morria de medo. Por isso a gente não ficava aqui. Então, por exemplo: se a gente falasse com um funcionário que ia de balsa, a gente ia de alça. Se a gente dissesse que ia de alça, a gente ia de balsa. E eu falava pra ele: “Isso não é vida”.
(01:23:15) P1 – Qual era seu medo?
R1 - De assalto, porque aqui acontece muito, do próprio funcionário. Nós tivemos dois assaltos. Tivemos um aqui, quando era aqui no bairro, levaram 11 mil reais, levaram tudo da nossa funcionária, do nosso gerente, por duas vezes.
(01:23:35) P1 - Então vocês tinham uma lotérica que, claro, mexia com dinheiro e o medo era ser assaltado?
R1 - Era, era isso. Mesmo assim, aí nessa época a gente não aguentou mais ir todo dia e voltar para Belém. Pra você ter ideia, quando a gente veio para cá, nós compramos uma casa, reformamos a casa todinha, era dessas casas básicas, da Albras, reformamos a casa toda, mas eu tinha medo de ficar na casa, tinha medo de assalto. Aí a gente foi morar num bloco onde só mora gente de empresa, né? E, nisso que eu vim pra cá, que eu estava na lotérica, eu falei: “Olha, a lotérica é sua, não tem nada a ver comigo, eu vou procurar alguma coisa na minha área”. Aí eu fui numa escola, no IEPAM, que é uma escola técnica, falei: “Olha” - levei meu currículo – “se precisarem de mim, eu tô aqui. Aí me chamaram pra fazer um teste, eu fiz o teste, aí tá: “Você vai coordenar o posto de enfermagem e segurança no trabalho”. Aí coordenei, por quase quatro anos, também.
(01:24:31) P1 - Indo e voltando?
R1 - Não, aí eu já morava aqui. Aí foi quando eu resolvi mudar para casa, né? Mas ele continuou na lotérica e eu fui trabalhar na minha área.
(01:24:43) P1 - E os meninos ficaram em Belém?
R1 - Em Belém.
(01:24:45) P1 - Então, veio só você e o marido?
R1 - Só eu e o marido. Aí a gente só ia o final de semana.
(01:24:48) E como que era essa história? Porque ficou longe dos filhos...
R1 - É, mas aí ele morava no apartamento. Assim, a minha irmã estava lá. Aí, final de semana, às vezes durante a semana meu marido ia, ou eu ia, ou eles vinham pra cá, né? A gente ficou nessa vida.
(01:25:05) P1 – Então, você veio para Barcarena em 2000 e...
R1 - Eu acho que para Barcarena mesmo, para morar, em 2014.
(01:25:12) P1 - E antes disso você vinha e voltava?
R1 - Só ia e voltava.
(01:25:15) P1 - Como que era a cidade?
R1 - Olha, eu dizia que Barcarena mesmo... você conhece a Barcarena sede? Você assiste aqueles filmes antigos da Sessão Western? Eu dizia que Barcarena era igual aquela cidade.
(01:25:28) P1 - Por quê?
R1 - Porque ela era muito aquele estilo. Era chão, sabe? As pessoas não cuidavam da cidade. Hoje não, hoje Barcarena tem outro formato, outra ‘cara’. Aqui, a Vila dos Cabanos parecia um pouco lá, onde a gente... no projeto que a gente morava, porque a Vale... era característica da Vale. Isso aqui era privado, não tinha esses bairros no entorno. Então, quando a Vale resolveu entregar, municipalizar, entregou para o município, foi que começou a vir as invasões, né? Mas quando eu cheguei aqui já era municipalizado, já tinha... mas parecia muito, aqui parece muito com o lugar onde eu morava. Então, acabei me identificando.
(01:26:14) P1 – Então, você gostava de Barcarena, nesse começo?
R1 - Não, eu gosto daqui, porque o trânsito em Belém ficou cada vez mais impossível, gente. Mais estressante. Então, eu fugi mesmo desse estresse de cidade grande. Então, acabei me identificando aqui. Quando eu estava na escola técnica eu conheci uma pessoa que já prestava serviço para Imerys, com projetos sociais e aí ela me chamou para fazer um trabalho, que era de manhã, eu só trabalhava de duas horas até dez da noite, eu falei: “Tranquilo”. E aí eu comecei falar para as meninas da Imerys o trabalho que eu tinha feito na Fundação Esperança. Aí ela disse: “Poxa, você pode fazer um projeto de educação e saúde lá para a área de mina, para nossas comunidades em torno da mina”. Falei: “Tudo bem”. Aí fomos prestar consultoria. Eu montei todos os projetos. A princípio foi saúde, que eles queriam, dentro das comunidades. Só que, quando a gente chegou lá, que eu vi a realidade local, eu falei: “Olha, nós vamos ‘enxugar gelo’ aqui. Não adianta...”. Aí eu montei uma equipe: eu como enfermeira, tinha um médico, uma técnica de enfermagem, né? Eu falei: “Olha, não adianta vir pra cá trazer remédio, fazer uma consulta, trazer vermífugo, quando se a gente não tratar o que causa, que é a água. Eles precisam, a água é elementar”. Você imagina uma cidade ribeirinha, onde o açaí é nativo da nossa região e não tem um pé de açaí? O que acontece? Com o trabalho das mineradoras, temos o dendê, que fica mais em cima, mas que desce a água e contamina os rios, a escassez de peixe muito grande. Com o desmatamento também, da mina, não tem caça. Lá é uma região de quilombola, que eles nem são identificados como quilombola, mas eles são quilombola e outras comunidades comunitárias ao redor, população tradicional ao redor. Falei: “Não tem condição”. Você chega lá e eles estão comendo chibé. Você tinha adulto desnutrido.
(01:28:23) P1 – O que é chibé?
R1 - Chibé eles chamam a água com farinha e sal ou água, farinha e açúcar, se eles tiverem açúcar. Para se alimentar. Por quê? Porque eles não conseguiram o peixe, eles não conseguiram a caça. Quando tem o peixe, como eles não tinham como conservar o peixe, eles salgam o peixe e aí comem com aquele chibé. E aí a maioria dos idosos tinha pressão alta. Aí eu falei: “Gente, não tem condições. Vamos ter que trabalhar, criar um manejo de agricultura familiar”. Aí, como eles não queriam usar o termo agricultura familiar, eu falei: “Olha, então vamos criar um projeto de educação ambiental”. Aí criamos um projeto de educação ambiental para ser desenvolvido na comunidade, na escola. Eu falei: “Olha, na comunidade da vila” -porque tinha a vila principal, antes de chegar na área de minas, nas comunidades ribeirinhas mesmo - “nós temos adolescentes, crianças morrendo no rio, porque as crianças são ansiosas, não tem nada. Precisa montar alguma coisa para essas crianças, aqui”. Aí então sugeri, falei: “Vou montar um projeto de educação de esporte, tanto para as crianças, adolescentes, meninas, meninos e também para os idosos.
(01:29:43) P1 - E você fazia isso voluntariamente?
R1 - Não, aí nós fomos prestar uma consultoria. Nós tínhamos uma empresa, eu e meu marido, a gente foi prestar consultoria nesses projetos.
(01:29:53) P1 - E ele continuava trabalhando na lotérica?
R1 - Continuava. Aí depois eu falei: “Olha, vende isso, que isso é uma perturbação. O que você tem de lucro não vale a pena correr risco de vida. Pode vender. Eu não me identifico. Tua área é navegação. Não tem nada a ver com a gente. Então, vende”. Aí ele vendeu, aí ele recebeu uma proposta de uma empresa que prestava serviço para Vale, na época, que ganhou a concessão para gerenciar os rebocadores lá na Alcoa e estava precisando de uma pessoa para gerenciar, aí ele presta serviço pela empresa, lá. Aí ele fica vinte dias lá... 15 dias lá, 15 em casa. A vida foi sempre assim. Aí nós ficamos nesse projeto da Imerys, com a Imerys, três anos e meio. Eu tinha oito projetos. Eu coordenava oito projetos. Aqui, nos dois bairros: Parque Industrial e o Conde, que eles têm uma casa do Conde. Eu falo: “Olha, todas as empresas têm suas falhas, a gente sabe que as mineradoras deixam impactos muito grandes”, mas a Imerys mantinha duas casas e eu achava... porque dava oportunidade para a trabalhar com as pessoas, dava oportunidade para as pessoas, então, tinha uma casa chamada Casa Imerys. Lá nós tínhamos a atividade física, projeto de atividade física com os idosos; reforço escolar; artesanato com as senhoras; e a gente tinha uma parceria com o Senai, que dava aula de informática, atendimento ao cliente, rotinas administrativas e então ajudava as pessoas do entorno deles. E lá no interior a gente tinha o esporte que gente implantou, com as crianças, o mirim; com os adolescentes, era infanto-juvenil; com as meninas adolescentes; com os idosos; e horta escolar. E dentro das comunidades lá, ribeirinhas mesmo, em torno da mina, tinha saúde e educação ambiental.
(01:32:05) P1 - Você estava reproduzindo um trabalho que você tinha feito muito?
R1 - Isso. Trabalho que eu tive a minha base na fundação, que era a saúde comunitária, que a gente trabalhava também a educação alimentar, com reaproveitamento do que eles tinham. Aí foi quando a gente foi incentivá-los a terem hortas, fazerem as hortas. Eu incentivei o plantio de açaí. Eu tenho um tio que é produtor de açaí aqui na região metropolitana de Belém, Santa Izabel. Eu peguei duzentas mudas de açaí, conversei com o pessoal da empresa: “Olha, a gente precisa fazer isso”. Fizemos um projeto, aí eu já contratei um engenheiro florestal e um técnico agroflorestal. Aí a gente montou todo um projeto, o SAF e falou para eles: “Olha, nós precisamos de tantas áreas de terra aqui, para poder implantar - uma área consorciada - esse projeto”. Também eles não contaram conversa, limparam a área e aí nós reunimos a comunidade, incentivamos qual que era a importância daquilo para eles. A gente consegue trazer o açaí. Hoje eles tomam o açaí de lá, de onde a gente deixou. Aí eu levei duzentas mudas de açaí, vinte mudas de cupuaçu, aquelas goiabas grandes e fizemos um consorciado de plantios frutíferos para eles e a horta. Nossa, tenho fotos maravilhosas dessas comunidades!
(01:33:36) P1 - Goreth, esse trabalho das plantações era projeto de quem com quem?
R1 - Da nossa consultoria com a empresa Imerys.
(01:33:45) P1 – Então, ali você foi entendendo como funcionavam essas participações, né?
R1 - Sim, porque eu já tinha desenvolvido isso atrás, na fundação, você está entendendo? A minha base foi de lá. Então, quando eu cheguei aqui, que a gente ia para as comunidades lá em Santarém, na região amazônica, a gente via a mesma situação e começou a trabalhar o fortalecimento das comunidades. Quando eu cheguei aqui, eu vi o retrato de lá. Eu falei: “Não, precisa melhorar”. A única coisa que eu não consegui... e uma assistente social acabou me tirando de lá, não foi nem por produção, porque uma coisa que a gente tinha que trabalhar, que melhorar, além da alimentação, era a água. Eles tiravam água do rio. Uma casa de farinha super inadequada, sem estrutura nenhuma, sem higiene nenhuma e aquele tucupi, que é o que extrai da mandioca para fazer farinha, ia para o rio. As cascas ficavam ali, jogadas. A gente conseguiu trabalhar isso, na educação ambiental, mas o tucupi não. E contaminava, porque aquilo é tóxico. Então, as crianças viviam com diarreia, entendeu? Precisava cavar um poço artesiano. E um dia, no refeitório, conversando com o gerente lá da mina, perguntando como era que estava, eu falei: “Olha, a única coisa que precisa melhorar para estar 100 % é água”. E ele disse: “O que precisa?” Eu falei: “Um poço, que eu já solicitei” “Você já solicitou para as relações comunitárias?” Eu falei: “Já. Já descrevi, fiz o projeto, justifiquei. Ela disse que não tinha recurso”. Ele disse: “Não, não, não” - ele era peruano – “tem, sim. Vamos remanejar daqui para lá”. Falei: “Agora aqui já é você com ela”. Aí ela disse que eu estava passando por cima dela. Eu falei: “Não. Vocês me contrataram para fazer o trabalho. Eu tenho que apresentar resultado. Eu não posso apresentar os resultados, se vocês não me dão condições. Até aqui eu lhe apresentei. Hoje eu tenho as hortas da escola” - a gente trabalhava horta na escola, para subsidiar a merenda das crianças – “nós temos as comunidades fazendo. Eu tenho as consultas médicas. Conseguimos recuperar, fazer o controle da hipertensão dos idosos. Mas se não melhora a água, minha amiga, não vai. Vai voltar para estaca zero”.
(01:36:06) P1 - E vocês atendiam qual região de Barcarena?
R1 - Não, esse foi no Rio Capim, na região de minas do Rio Capim. O projeto de saúde e educação ambiental foi nas comunidades ribeirinhas das minas, de produção de caulim.
(01:36:22) P1 - Mas em Barcarena?
R1 - Não. No município de Ipixuna do Pará. Aqui eu tinha o artesanato, a educação de atividade física com os idosos e cheguei a trabalhar reforço escolar com eles. Eram cinco lá e três aqui. Então, eram oito projetos. Eu não parava mais em casa. Foi lá que eu adquiri isso aqui, porque quando você entrava na mina era chão, período de lama, sabe? Aí eu dirigia. Nem sempre o meu marido dava para vir. Então, eu dirigia a caminhonete traçada e patinava e o impacto disso me gerou essa hérnia.
(01:37:01) P1 – Hérnia onde?
R1 - Na região cervical. O impacto aqui, também. Na verdade, são duas.
(01:37:09) P1 - Você não parava, mas você estava se sentindo super realizada?
R1 – Muito, porque quando tu vê o resultado... são comunidades... hoje, o que eu lamento é que são poucas pessoas que têm esse olhar pelo outro. Então, se você conhecer a região do Rio Capim hoje, nós temos plantios de droga dentro das roças. Nós temos um índice de violência bem alto, lá. Nós temos prostituição infantil, porque lá é rota de caminhoneiro, entendeu? Então, nós temos N situações de vulnerabilidade que, se você for mapear e pesquisar pela Atlas, pela FAPESPA daqui, que é um órgão de pesquisa, toda nossa região norte, mas tem lugares que são bem mais gritantes. Por exemplo: aqui, nós somos um bairro vulnerável, entendeu? Nós temos aqui... o bairro é bem grande e lá pro fundo nós temos pontos de droga. Aí nós temos as mães que trabalham como diarista, elas me procuram: “Dona Goreth, preciso de uma atividade pro meu filho. Eu saio de manhã, só chego à noite. Quando eu chego em casa, à noite, o menino não está. Não sei o que ele fez durante o dia, se ele comeu, com que ele andou”. Então, esse projeto, que foi financiado pela Hydro, foi assim, nossa, você não tem noção do que nós recuperamos de meninos. E quando parou o projeto, eu falei: “Gente, preciso continuar com esse projeto”. Aí fiquei batalhando. Faço até tarde, faço edital pra cá, participo disso. Aí conseguimos. Com esse projeto nós ganhamos o selo Bicicleta Brasil, pelo Ministério das Cidades.
(01:38:56) P1 - Qual que o nome do projeto?
R1 - Monta Bike, que é a montagem que tirou, né? Era montagem e manutenção de bicicleta. Agora vai ser a Oficina Bike, porque agora nós já vamos... estou esperando sair o recurso essa semana, para montar a oficina aqui, para ter em contraturno. Vou ter uma turma de manhã, são vinte alunos, dez de manhã, dez à tarde. Quem estuda de manhã vem à tarde, quem estuda à tarde vem de manhã.
(01:39:21) P1 - Voltando um pouquinho ainda de quando você chegou para Barcarena, você viu, imagino eu, uma evolução na cidade, né?
R1 - Sim, já melhorou muito, mas era bem mais precária, a situação bem precária aqui. Quando nós viemos pra cá, nós fomos chamadas, tipo assim: foi um socorro de uma comunitária, que era funcionária da APAE e ela era merendeira lá no instituto que eu trabalhava. E, gente, eu falo com tanta empolgação, as pessoas falam: “Você fala com tanta empolgação”, eu falo: “Gente, mas não tem como não falar. Sabe, é aquilo que recupera a vida”. Sabe, é aquilo que você olha pra pessoa, poxa, você lembra a sua história, de onde eu vim, eu acho que eu cheguei muito... entendeu? Não tenho mestrado, não tenho doutorado, mas eu tenho uma história de vida que é muito rica e que eu passo isso pros meus filhos. Então, poxa, uma filha de um casal de agricultores e eu consegui me formar, fazer uma formação superior, me especializar, por que eu não ajudar outras pessoas a chegarem a isso, sabe? Então, meu trabalho, hoje, trabalhar com projetos sociais é um propósito de vida, mesmo. Falo aqui sem recurso, com recurso, o trabalho não para. Eu corro atrás, de alguma forma. As mulheres, eu tinha mulheres aqui com depressão, assim, bem séria e um dia uma pessoa me chegou e disse assim: “Dona Goreth, a senhora me fala que a senhora trabalha com mulheres vulneráveis, mas eu vejo gente lá da vila que mora numa casa boa, que tem carro, que é isso, que é aquilo...”. Eu a deixei falar, eu falei, virei para ela assim: “O que você entende por uma mulher vulnerável, por uma pessoa vulnerável??” Ela ficou assim, eu disse: “Uma mulher vulnerável não é só aquela que mora no casebre, aquela que tem a situação socioeconômica lá embaixo. Nós temos ainda situação de vulnerabilidade. E aqui nós atendemos, atendo gente da vila que mora numa casa boa, atendo gente da estrada, atendo gente da periferia. Por quê? Da vila, então, nós temos um alto índice de depressão. E que eu fui identificar isso, eu achava que não. Quando a Hydro, com a Sinergia, lançou o projeto das máscaras, na época da pandemia, que nos convidaram para ajudar a distribuir as máscaras, só nós distribuímos sete mil máscaras. E me deram como desafio a Vila, aqui e os outros bairros ao redor. Eu falei: “Gente, mas na Vila o povo pode comprar suas máscaras”. Foi quando eu me enganei, porque eu fui para a rua com povo, com as meninas que me ajudavam. E a gente foi não só entregar, a gente conversava. Foi quando eu identifiquei N casos de depressão. Eu falei: “Meu Deus, aqui precisa até muito mais do que quem está na periferia”. Você está entendendo? Então, aqui é um espaço aberto, um espaço acolhedor e isso me motiva, essa é uma situação das pessoas que me faz, me motiva a buscar recursos, para ajudar outras pessoas.
(01:42:43) P1 - Quando você começou a ter mais contato com a população de Barcarena, o que você mapeou? Eram pessoas locais, eram pessoas que tinham vindo para trabalhar? Como que era?
R1 - Eu mapeei as pessoas daqui e o que eu descobri? Aqui é um lugar bem vulnerável, porque aqui, como nós temos uma área portuária bem abrangente, a rota de pontos de droga, o tráfico de droga é intenso e eles vão se localizando nesses bairros mais distantes e eles ficam aliciando os jovens e os adolescentes no canto das escolas, no canto das quadras, das praças. Então, um menino filho de baixa renda, de um diarista, de um desempregado, de um pedreiro, quer um tênis bom, uma camisa boa, ele vê um colega com um celular bom na escola e ele não tem e ele vai encontrar fácil quem ofereça isso para ele: “Não, é só hoje, só faz entregar isso aqui”. E nisso ele vai pegando gosto e vai se envolvendo, sem ele perceber. E quando ele se dá conta, não tem mais volta. Quando descobre, a situação já está bem delicada. Então, o que acontece? Nós temos aqui um polo industrial, que as pessoas podem pensar assim: “Ah, todo mundo tem um bom emprego”. Não. Por quê? Porque as pessoas, aqui, têm um déficit de educação bem alto. Nós temos uma evasão escolar.
(01:44:22) P1 - Aqui é um polo industrial muito forte.
R1 - Forte, mas com índice de desemprego alto.
(01:44:28) P1 - Pras pessoas locais?
R1 - Principalmente pras pessoas locais. Porque, o que eles alegam? Que as pessoas não têm qualificação. Em parte, sim. Mas, em parte, eu acho que deveria ter um interesse maior em qualificar essas pessoas, para que elas fossem absorvidas por esse mercado. Eu ainda vejo isso muito distante. Nós temos, hoje nós já temos, com a formação da escola técnica, que mesmo com muito sacrifício, eu sei por que eu trabalhei na coordenação, em sala de aula e vejo o sacrifício que um pai faz para pagar uma escola de trezentos, quase quatrocentos reais, para um filho fazer uma escola técnica. Uma coisa que eu estranho hoje que, na época, lá no oeste do Pará, logo que surgiu o Senai, não era pago. Meu marido, meu filho, meu irmão estudaram no Senai, mas hoje é pago, não é verdade? Então, como é que um filho de pobre, uma pessoa que não tem uma renda fixa... eu ouvi isso de um pai. Tem um bairro aqui chamado Fazendinha, que ele é semirrural. Então eu estava... sempre vou pra lá fazer visita, distribuir algumas coisas. O pessoal do Senai estava fazendo divulgação de um curso. Era quase trezentos reais, duzentos e oitenta, uma coisa assim. Aí, dois filhos adolescentes, uma mocinha e um rapaz. Essa moça já até engravidou, já é até mãe. Ele disse: “Dona Goreth, olha aqui” - eu estava chegando e ele estava saindo – “eu queria que meus filhos fizessem, mas como eu vou pagar? Eu vivo de pesca, minha mulher ganha Bolsa Família. Ou eu como, alimento a família, ou eu pago o curso pra um”. Você está entendendo? Então, a falta de oportunidade expõe um quadro de vulnerabilidade muito mais acentuado. Então, eles precisam ter acesso. Eles precisam ser incluídos dentro desse polo. Se você for hoje, eu não tento dizer isso estatisticamente, mas (01:46:44) com certeza tem, mas se eu fosse fazer uma pesquisa, com certeza o índice de funcionários hoje é mais externo do que interno. Tem muita gente interna, mas ainda tem muita gente... porque tem empresas, por exemplo, que quando ganham a concorrência para vir para cá, às vezes eles já trazem todos os seus funcionários. Então, o povo precisa ser incluído mais incisivo nesse polo. E quem não tem, as pessoas de baixa renda mesmo, que não têm... que tem o grau de escolarização baixo, pior ainda. Então, por exemplo, nossas mulheres hoje. Eu tenho aqui dentro uma mini brinquedoteca, que eu atendo, que a gente assiste às crianças das mães que vêm para as aulas, as oficinas de artesanato, de costura criativa, por quê? Porque elas não têm onde deixar. Então, a gente está trabalhando para o empoderamento delas. Arteterapia, que ajuda a tirá-las do quadro de depressão. E o empreendedorismo sustentável, que a gente trabalha com reaproveitamento de tecido, de caixas e faz peças artesanais e vende, entendeu? Então, hoje elas já fazem. Quando a gente faz, a gente vende juntas, parte do dinheiro vai para elas, isso porque eu consegui três anos seguido participar de um edital do Banco da Amazônia, então a gente investiu em bastante material. Então, hoje, com isso a gente move até hoje. O que falta a gente compra, mas o que elas produzem hoje, que eu falei para você das sacolas, vou mandar para você a foto, parte do dinheiro vai para elas, que confeccionam e a outra parte eu compro material, para o projeto não parar. Com Sicredi, dois anos a gente já ganhou o recurso do Sicredi, hoje eu tenho máquinas aqui. Você está entendendo? Então, não dá para você fechar os olhos para a realidade das pessoas hoje, sabe? É por isso que nós temos um índice de violência muito alto. E aqui, eu vou te ser bem sincera, não coloque isso não, porque depois eu sei que vocês vão ajustar, mas eles ‘maquiam’ os resultados das coisas, que nós temos um alto índice de câncer, pela contaminação mineral. Aqui, o solo de Barcarena, a água é muito comprometida. Eu sei disso, que eu sou da área de saúde e tenho contato com unidades de saúde de Belém e, para que isso fosse abafado, eles incorporaram Barcarena como região metropolitana de Belém, porque até dois anos atrás Barcarena fazia parte do Baixo Tocantins, mas com o índice expressivo de câncer, eles incorporaram, chamaram o Poder Público local, para incorporar a região metropolitana de Belém, porque aí ele dilui.
(01:49:55) P1 - Goreth, em que momento você sentiu que você queria ficar em Barcarena, para fazer esse trabalho social tão ativo?
R1 - Quando eu iniciei o trabalho com a Imerys, para trabalhar diretamente com os projetos, que aí eu fui para as comunidades, aqui, periferias, porque são periferias e para a região ribeirinha, eu falei: “Meu Deus, eu acho que não importa o lugar, porque situação vulnerável tem em todo lugar, na minha cidade tem. Eu estou me preparando para voltar, porque minha mãe está idosa, minhas irmãs também, entendeu? Então, eu acho que a gente vai ter que envelhecer juntas. Mas eu estou preparando para deixar o povo aqui, preparando as pessoas para que continuem o trabalho, porque a gente é mortal também. Então, o trabalho tem que ter continuidade. Nós estamos hoje, olha: esse senhor é um senhor de bom coração, nós já estamos aqui vai fazer seis anos. A gente não paga aluguel.
(01:50:56) P1 - Aqui é o quê?
R1 - É a sede do Instituto Manilkara, que significa maçaranduba da Amazônia, que é uma árvore nossa. Então, é aqui que nós desenvolvemos os projetos. Ele cedeu. Nós temos um termo de cessão registrado em cartório, tudo bonitinho, mas já está na hora da gente... ele faz parte do instituto, mas ele tem esse olhar, entendeu? Mas a partir de agora eu falei para ele: “A gente vai pagar um aluguel, porque é mais do que justo”, mas a gente também está correndo atrás de um espaço aí, com a igreja, que tem uma área, para ver se a igreja cede. Eu já tenho a planta, para ver se a gente constrói a sede própria do instituto.
(01:51:39) P1 - E esse instituto continua sendo aquele que você trabalhava fazendo consultoria com seu marido? É o mesmo?
R1 – Não. Lá era uma consultoria empresarial, entendeu? Quando eu me deparei com todas essas situações, aí eu senti a necessidade de ter uma coisa mais estruturada, entendeu? Porque, como empresa, é raro você ter um edital que entra uma empresa.
(01:52:07) P1 - Aí você abriu uma associação?
R1 - Foi. Aí nós criamos. Eu conversei com alguns colegas, que também já trabalhavam junto comigo lá, no instituto, que era na época o instituto, a escola técnica. Eu falei: “Gente”. Com a senhora que nos chamou para cá, que era da APAE, aí ela disse assim para mim, ela me chamava de professora: “Poxa, professora, leve um projeto para nossas mulheres, lá”. Eu falei: “’Mana’, por mais boa vontade que a gente tenha de fazer qualquer trabalho, se a gente não tiver recurso financeiro, a gente não faz. Mas vamos ficar atentas”. Aí eu tinha uma colega que morava em Belém, que era da Funasa, ela disse: “Goreth, tem um instituto aqui que eu conheço a pessoa, ela trabalha mais na era hospitalar, mas ela nunca desenvolveu, o instituto dela nunca desenvolveu nenhum projeto social. E ela falando comigo, eu lembrei de ti. E tem um edital do Basa, do Banco da Amazônia. Tu não queres fazer o projeto?” Aí eu falei: “Olha, é sério? Eu gosto de trabalhar com pessoas sérias”. Ela disse: “Não, é”. Aí eu fiz o projeto, passou. Minha irmã, tive tanta dor de cabeça com essa mulher.
(01:53:11) P1 - Por quê?
R1 - Porque ela não repassou o recurso. O banco, porque o CNPJ era o instituto dela, o IDAS. E aí o banco passou e a comunidade me cobrando para iniciar o projeto, eu tinha que comprar material, porque você faz toda uma comunicação na comunidade. Poxa, incentiva comunidade a participar. Eu falei: “Misericórdia!” Ela tinha me pedido, o gerente dela não sabia fazer um documento, ela pediu para eu fazer e passar para esse e-mail. Por sorte. Foi quando eu consegui o e-mail da moça do Banco da Amazônia, que é da parte de projeto. Aí eu perguntei pra ela, pedi desculpa, mas eu só queria saber uma previsão de quando ia sair o recurso, pra iniciar o projeto. Aí ela me respondeu: “Eu não tô lhe entendendo, o recurso já saiu, já foi depositado duas parcelas e foi retirado”. Ela me mandou o extrato. Aí eu fui em cima da mulher: “Olha, o banco me passou isso, eu preciso iniciar o trabalho”. Ela: “Você compra as coisas no cartão”. Eu falei: “O quê? Nem pensar! Mande o seu gerente agora, eu estou aqui com a professora, junto, para comprar o material, para nós iniciarmos o trabalho”. Menina, aí nós compramos, eu comprei tudo que foi de material, porque foi a minha sorte. Até o último salário da professora eu tive que pagar. Aí tinha que prestar conta. Eu prestei conta da parte técnica, que era minha responsabilidade. Passei para o banco, ela disse: “Não, mas tem que ter a parte financeira”. Eu falei: “A parte financeira é com o CNPJ”. Foi uma luta para o banco, mas eles conseguiram. Aí eu já fiz amizade com a moça, ela disse: “Olha, o próximo...”. Aí foi quando eu conversei com os meninos: “Gente, a gente teve esse problema, ‘bora’ criar um instituto e tal”. Aí a gente foi, criou o instituto, fizemos o projeto de base. Aí dois anos, um ano foi através dela...
(01:54:55) P1 - Que ano que vocês abriram o instituto?
R1 - 2019.
(01:54:58) P1 - Na pandemia, perto da pandemia?
R1 - Perto da pandemia. Não, em 2019 ele foi registrado. A gente já vinha trabalhando, mas foi quando foi - é que foi toda uma burocracia para ser registrado legalmente – legalizado: 7 de julho de 2019.
(01:55:18) P1 - Foi um dia importante?
R1 - Foi, nossa! Mas a gente já tinha... desde 2000... ele foi legalizado em julho de 2020 e desde 2019 a gente já estava trabalhando.
(01:55:35) P1 - Você é presidente?
R1 - Sou presidente.
(01:55:38) P1 - Desde o começo?
R1 - Desde o começo. Foram quatro anos, depois chegou o período, aí eles pediram para eu ficar mais quatro anos, aí eu estou já há dois anos.
(01:55:48) P1 - E aí, quando você foi à frente dessa associação, desse instituto como presidente, você já estava não mais trabalhando?
R1 - Não, não. Logo que eu entrei nos projetos, eu saí do Instituto de Educação, porque demandava muito tempo, porque era coordenação. Então, quando eu faço uma coisa, eu gosto de fazer bem-feito.
(01:56:05) P1 - Aí se aposentou?
R1 - Aí eu aposentei. Mas eu aposentei agora, está com um ano e meio que eu aposentei.
(01:56:10) P1 - E aí, quando você virou a presidente do instituto, qual que era seu objetivo maior?
R1 - Era fazer a instituição crescer, atender o maior número de pessoas, beneficiar o maior número de pessoas e diversificar, porque foi uma instituição de Belém que nos ajudou a montar o nosso estatuto. Então, nós trabalhamos com o pilar da educação, da saúde e do empreendedorismo criativo. Então, nós pudemos atender nos três pilares. Então, na educação nós já temos as formações, os cursos que a gente está trabalhando. Da saúde a gente tem uma parceria com a UBS, que a gente sempre faz ação de saúde aqui. Mais agora, recente, eu já fiz um projeto para... já estou aguardando sair, que foi aprovado pelo Conselho, para os idosos, para a saúde dos idosos e a longevidade saudável. Hoje eu estou submetendo um CMDCA para um outro grupo de adolescentes, com aulas de violino... de flauta doce. Então, é esse o objetivo: incluir. Sabe, dar oportunidade para quem não tem. Sabe, é dar oportunidade de acesso à saúde, à educação, assim, à qualificação, acesso à cultura. Que quem está na periferia não tem acesso a essas coisas, gente. Hoje, por exemplo, vai ter uma... todo ano a Vale... eu sou apaixonada pelo trabalho da Vale, ela tem todos os defeitos. Mesmo porque assim: primeiro, porque tudo que a gente construiu foram os anos que meu marido trabalhou lá. E segundo a Vale tem o olhar - tanto que ela tem a fundação - comunitário bem aguçado. Ela consultava a comunidade lá, em Porto Trombetas e tentava... não sei hoje, como está a realidade, acho que mudou, com novos presidentes, mas na nossa época lá eles tinham um olhar comunitário muito legal, tanto que ela tem a Fundação Vale, que faz esse trabalho comunitário. A área de base, se fosse ainda a Vale aqui, os trabalhos comunitários estavam muito mais expressivos, porque onde ela atua, ela leva, ela quer que o município se desenvolva. Se você vê como é está o município de Oriximiná, que é onde Porto Trombetas faz parte do município, com ajuda da Vale! Então, hoje eu me dou ao luxo de, final do ano, novembro, quando ela faz a apresentação das orquestras, que ela banca, eu posso sair daqui e ir lá assistir, no Teatro da Paz. Mas quem é que um ‘cara’ da periferia, uma adolescente da periferia faz isso?
(01:58:53) P1 - Aqui em Barcarena não é mais Vale, então aqui em Barcarena como que funcionam os projetos em parcerias com as empresas?
R1 - Olha, aqui é bem fechado, sabe, assim, por exemplo: a Hydro tem a fundação, a Fundação Hydro, né? Essa já é a segunda chamada de base comunitária de projetos, de editais. Acho que é o terceiro, não, terceira chamada. Então, eles criaram o slogan a iniciativa Barcarena Sustentável. Às vezes eu tenho alguns embates nas reuniões, lá. Eu já até me acalmei mais, porque é só estresse. Porque assim, eu falei: “Gente, é uma publicidade bem ambiciosa”. Porque Barcarena é feita de periferias, área urbana, estradas, ilhas. Então, para você dizer que você quer tornar Barcarena uma iniciativa sustentável, você tem que chegar em todos esses lugares, não é verdade? Então, se eu abro um edital - esse é o meu ponto de vista – eu sei que todo esse leque para atender, eu quero tornar Barcarena sustentável e eu tenho todo esse leque de comunidades para atender. Aí eu lanço edital, esse ano que foi um pouquinho mais, eles lançaram para dizer esses projetos. Eu acho que quatro projetos só de geração de renda, onde eu sei que um dos gargalos é geração de renda. A infraestrutura, o primeiro que eles lançaram não deu muito certo, tiveram muito problema. Então, você não pode atingir. Eu acho que, se eles pegassem... tem uma organização aí que está brigando, porque eles têm um termo de ajuste pelos danos, que tem milhões aí, depositados. Só que o município também é sacana, o município também está segurando. E tem uma organização lutando aí para que esses recursos sejam liberados em benefício das comunidades. Que poderia ser feito isso logo, gente. Está aí a situação precisando, gritante e a gente não tem recurso para trabalhar. Se fosse feito isso por bairro, eu, se eu fosse Poder Público, eu falei: “Olha, nós temos um polo industrial. Então, nós vamos lançar um desafio, lançar um projeto: cada empresa vai adotar um bairro, para implementar um projeto social. Como a Imerys, na época, escolheu dois, que era ao redor da planta dela. Aqui só era a planta de beneficiamento do caulim. Então, no Conde ela tinha uma casa, que chamava a Casa do Conde, em Imerys do Conde e no bairro industrial, que é um bairro bem na frente da fábrica. E lá eles forneciam tudo isso para as comunidades. Não atendia? A proposta não era melhor? Aí não, eu estou falando do meu ponto de vista. Aí ela lança esse edital. Edital é edital. Vai ser selecionado lá. E aí as organizações, dentro dos seus territórios, nas comunidades periféricas, ribeirinhas, conseguem trabalhar. Eu é porque eu sou meio doida, eu vou atrás. Então, por exemplo, eu não participei. Eles vieram e falei: “Olha, eu não vou participar, você sabe por que, desse edital? Porque vocês viram que o projeto deu certo. Eu propus que a gente continuasse com o projeto. O que vocês me responderam? Que eu esperasse o próximo edital”. O primeiro edital foi 77 mil. Você sabe quanto foi o segundo edital? 35 mil. E eles querem um resultado exuberante. Eu falei: “Olha, não dá, não vou fazer meia-boca. Ou eu faço, ou não faço. Então, não vou participar”. E não participei. Aí saiu uma chamada do Ministério da Justiça, não era edital, são verbas de... é de Justiça, né? Não, são verbas que eles pegam dessas... de multas. Aí eles lançaram uma chamada pública, para as organizações participarem. Aí nós participamos e fomos selecionados.
(02:03:36) P1 - Qual que era esse?
R1 - Esse do Ministério da Justiça. A gente tinha que apresentar o projeto. Aí eu fiz para cá, para poder continuar, que é 55 mil, que vai dar para eu montar a oficina. Com 35 mil eu não conseguia. Falei não, porque aí eu vou ficar presa com um projeto que eu não vou conseguir desenvolver e não posso apresentar o mesmo projeto para outro financiador.
(02:03:58) P1 - A senhora que é de fora daqui de Barcarena, que não nasceu aqui em Barcarena, talvez você consiga ver de um panorama diferente as coisas. Você vê as comunidades daqui de Barca Arena sendo, de alguma forma, beneficiada por esse projeto também? Tem um lado positivo também?
R1 - Acho que conseguem ser, mas é uma minoria. É isso que eu estou falando para você: Barcarena é feita de comunidade de estradas, que contempla até comunidade indígena que foram remanejadas daqui para a implantação do polo, que remanejaram para comunidades aqui. Nós temos quilombolas, temos vários quilombolas aqui e credenciados mesmo, reconhecidos como quilombola. Aí nós temos aqui, que é uma periferia; nós temos comunidades semirrural. Se você vir a realidade de Fazendinha! Eu inda não fui para lá, porque eu não tenho recurso para, mas é triste a situação das adolescentes lá, sabe? As meninas são mães muito cedo. Aí você é uma criança, cuidando de outra criança. Então, assim, o meu olhar é assim, que poderia, com o polo que nós temos, com o índice de empresas que temos, as comunidades deveriam ser mais... ser olhadas, sabe? Serem mais beneficiadas. A gente tira, porque a gente tem as outras organizações, de outros bairros...
(02:05:24) P1 - Mas tem bons exemplos também, Dona Goreth? Eu super tô entendendo a dinâmica.
R1 – Tem. Por exemplo: nós aqui somos um exemplo, fomos beneficiados. O bairro foi beneficiado, Renascer foi beneficiado com projetos, entendeu? Deixa eu ver, qual foi outro? O Quilombo São Lourenço, o pessoal aqui do bairro Pioneiro, entendeu? Temos. Temos essas comunidades que foram beneficiadas e, quando eles conseguem dar, nossa, quanto retorno a gente dá de benefício, retorno pra eles, mostrando o benefício pra comunidade. Eu só gostaria que mais comunidades fossem beneficiadas, entendeu? Que fossem mais olhadas. Mas quando eles conseguem dar esse recurso, gera um benefício extraordinário pra comunidade.
(02:06:18) P1 - Me dá alguns exemplos desses benefícios, para eu conhecer também.
R1 - Olha, aqui nós já temos alunos daqui que fizeram o curso, que estão no mercado de trabalho. E meninos que nós tiramos lá da periferia, de áreas de risco. Nós temos o projeto das costureiras, que eles mantêm lá. Como é que é o nome do projeto deles, meu Deus? Não sei se você já conhece, o Estilo. Então, são mulheres dos bairros e que hoje já chegaram a formar uma cooperativa. Isso é maravilhoso! O Renascer, que eles apoiam a Comunidade Renascer, lá tem um centro comunitário muito bem. Em Itupanema, Comunidade Itupanema também recebe muita ajuda. Não só, recebe também da Hidrovias, a Hidrovias ajuda muito, sabe? Mas eu falo que aqui tem mais empresas que poderiam ajudar, mais comunidades, mais comunidades periféricas, mais ilhas, mais comunidades ribeirinhas poderiam ser mais beneficiadas, você está entendendo? Não apenas uma minoria. Mas tem e as que são conseguem dar um favorável. Tanto beneficia a comunidade, como é benefício para eles. Causa impacto positivo para a comunidade, pros moradores, os comunitários, mas muito mais para eles também. Pela visibilidade: “Eu estou desenvolvendo, fazendo o meu social dentro da comunidade X”, você está entendendo? Mas precisa que mais comunidades sejam contempladas.
(02:07:56) P1 - E isso talvez seja um fruto do resultado das lideranças, né?
R1 - Sim, sim. E, para chegar no que chegou, quando eu cheguei, que eu comecei a participar, eles tinham enfrentado muitas brigas, conflitos mesmo, entendeu? Quando eu cheguei, comecei a participar, eles já estavam mais na parte de negociar, mas o pessoal era de ir pra porta de fábrica. As lideranças dos bairros iam. Para chegar onde chegou foi luta. Não foi assim, dado de graça, não. Eles penaram na frente dessas fábricas aí, para serem reconhecidos, as lideranças comunitárias. Quando eu comecei a participar, não. Aí já tinha lugar para a gente reunir, já sentavam numa banca de negociação, já nos escutavam, porque nós já levamos o... todos os editais são formatados com as experiências que a gente leva, que a gente discute com essa secretaria que a Sinergia dá esse espaço, tem espaço para as lideranças, para a gente construir junto, você está entendendo? Tem, muito bom, tem esse lado positivo. A minha crítica, assim, não é nem crítica, é uma crítica construtiva, é que eu gostaria - eu acho que eu sou ansiosa demais - que os benefícios chegassem mais rapidamente em quem precisa, que o acesso fosse maior, entendeu? Para diminuir esse histórico de vulnerabilidade, o risco desses nossos adolescentes se envolverem com esse mundo negro. Isso é feito, os projetos sociais são ferramentas muito importantes, que conseguem realmente livrar. Sabe, hoje o Terceiro Setor não vai fazer o trabalho do Poder Público, mas ele caminha junto com o Poder Público, porque esse trabalho aqui, que as organizações fazem, é responsabilidade do Poder Público, mas ele não tem ‘perna’ para fazer tudo isso. Então, a gente já se junta nessa parceria, para desenvolver, para trabalhar por uma sociedade mais justa, mais competitiva, de mais acesso para todo mundo, sabe? Ah, eu consegui fazer uma faculdade, ter uma formação técnica, educar meus filhos e os outros, o que eu posso fazer? É isso que me pergunto e tento fazer o que está a meu alcance, para que eu leve essas pessoas a terem acesso, uma qualidade de vida melhor, entendeu? Serem reconhecidas, por exemplo, nossas mulheres. Poxa, ouvir - você precisa ver - relato delas, testemunho delas é fantástico. Sabe, é gratificante dizer: “Poxa” - pegar um guardanapo - fui eu mesma que fiz. Eu imaginava que eu não tinha capacidade de produzir isso”. Ver mulheres falarem: “Poxa, eu tomava tantos remédios e hoje, graças a Deus, eu estou bem”. Sabe, não tem preço isso. E é isso que me faz querer continuar, cada vez mais, buscando recurso, para trabalhar com as pessoas. Não é um trabalho, não é um interesse. Eu falo para eles: “Tem interesse em política?” Eu gosto. Porque, infelizmente, ela faz parte da nossa vida. Tento esclarecer as pessoas, abrir a mente das pessoas, sabe, em relação a tudo. Mas dizer que eu estou fazendo por... se eu quisesse, eu já tinha recebido o convite para ser vereadora. Eu falei: “Meu filho, estou ficando velha, doida não”, porque eu prefiro estar aqui, fazendo o meu trabalho, que quando chegar lá, ser ‘engessada’.
(02:11:52) P1 - De 2019 para cá, que você está como presidente do instituto, você foi vendo também essas outras comunidades, outros líderes aprendendo a discutir melhor, a negociar melhor?
R1 - Sim, sim. Porque a gente tem hoje esse espaço. Então, a gente conversa entre si, até foi uma proposta de visitar. Eu conheço algumas, que a gente acaba tendo afinidade. Por exemplo: a Renascer, que é a Antônia, eu sempre vou, a gente já se ajudou em alguns trabalhos; o pessoal do Pioneiro; tem uma comunidade aqui que chama Bom Futuro, elas me ajudaram. Eu ajudei montar um projetinho para elas, não sei nem como é que está, preciso voltar lá pra fazer outro, porque eu não consigo também atender todo mundo, mas elas querem fazer uma coisa de plantio. Aí eles ofereceram uma formação pelo Senai e a professora até me agradeceu. Porque, assim, como a gente vem de caminhada, a experiência nos ajuda a ajudar os outros. Então, no final eu tinha que elaborar um projeto e aí eu ajudei elaborar o projeto das meninas lá. É isso que a gente quer.
(02:13:04) P1 - Você acaba servindo também como uma consultora para as pessoas, pra caminhada, né?
R1 – Sim.
(02:13:09) P1 - A tua experiência é muito rica.
R1 - Eu tenho uma prima que é pesquisadora da UFAM, né? Ela é biomédica. E aí ela veio me visitar, em Belém, quando eu morava em Belém. Aí eu comecei falar do trabalho, abri o computador, mostrei tudo que eu tinha de foto e ela disse assim: “Meu Deus, a gente está na Academia, vai para campo para poder colher e fazer a tese. Tu já tem tudo pronto”. (risos) Eu falei: “Olha, realmente, eu tenho tudo”. Eu, para te ser sincera, as minhas coisas antigas de Santarém que eram mais precárias naquela época, mas hoje eu tenho tudo registrado.
(02:13:50) P1 - Dessas ações que você tem participado como presidente, qual delas tocou o teu coração, que ficou assim como um exemplo, uma semente para se repetir, para continuar?
R1 - São dois: o trabalho com as mulheres e os meninos. Porque quando eu vi, quando eu conheci a realidade de alguns adolescentes à beira, realmente, já se envolvendo e que a gente conseguiu resgatar, eu falei: “Não posso parar”. Quando eu vejo mulheres saindo do quadro de depressão extenso e hoje está bem, não consigo parar. Então, são duas coisas assim... esse de longevidade, olhar que nós temos vários idosos com comprometimento osteoarticular, que o município oferece fisioterapia a cada 15 dias, porque a demanda é muito grande e muitas vezes ele não vai, porque ele não tem um transporte. Se ele já tem dificuldade de locomoção, como é ele vai chegar lá? Aí o projeto que eu fiz agora foi para o Itaú, mas tinha que ser com a aprovação do Conselho, que foi aprovado, é para isso, para atender os idosos aqui. Aí nós vamos construir uma sala aqui, toda equipada, para trabalhar com os idosos. Então, minha luta é essa.
(02:15:10) P1 - Qual que é seu sonho, ainda hoje?
R1 - É ter a nossa sede, que é isso que eu estou correndo atrás, onde a gente possa... você não conhece Curro Velho. O estado Belém tem a Fundação Cultural do Pará, que tem o Centur, que é o centro de cultura e tem uma fundação chamada Curro Velho, que é anexo. Então, lá eles oferecem todos os tipos de cursos gratuitos, para a população de baixa renda. Prioridade de aluno de escola pública, para senhoras periféricas. Nossa, eu sou apaixonada por aquele espaço! Claro, não posso sonhar com um espaço daquele, que é um quarteirão inteiro, mas eu quero ter um instituto com a sede, com sala para arte, pra informática. Aqui é uma carência dos nossos adolescentes. Ter um espaço para cada um. Eu gosto... a experiência que eu tive com a Imerys, de ter até um consultório odontológico aqui, nossa, se você vê as nossas crianças! Então, esse é o meu sonho. Aí eu quero deixar estruturado e ir para minha cidade.
(02:16:16) P1 – Então, você quer deixar um legado.
R1 - Um legado aqui, para a comunidade, para não parar. Porque foi aqui que começou, a história começou aqui. Então, estou preparando as pessoas para continuarem o trabalho e que eu possa continuar, começar também lá, onde eu moro. Aí as meninas dizem, assim, porque o pessoal da fundação, quase todo já é aposentado e quando eu vou a gente marca um encontro: “Você faz tanta coisa boa pra lá e não quer vir fazer pra cá?” Eu falei: “Não, deixa aí, daqui mais uns três anos, se Deus quiser, vai me dar vida, aí eu volto. Aí já está na hora de voltar”. Porque eu vou esperar o meu filho terminar o doutorado, ver o que ele vai fazer da vida. E aí é o tempo também que eu organizo. A gente está em negociação aí com a paróquia, para... eles têm um terreno que é só mato, não faz nada e eu estou pleiteando, que eles... não quero dado. Eu falei: “Olha, faça um termo de cessão por 15 anos, porque por 15 anos eu consigo a construção de uma sede”. Entendeu?
(02:17:22) P1 - Para deixar em Barcarena?
R1 - Para deixar aqui, construindo a sede. Para ficar um polo do instituto aqui, mas numa sede própria. É isso que eu quero. Se Deus quiser nós vamos conseguir.
(02:17:34) P1 – Hoje, o que é muito importante para você no seu dia a dia, na sua vida, Goreth?
R1 - É o meu trabalho e a minha família. São duas coisas que eu não ‘abro mão’, apesar da minha correria de trabalho, mas agora em julho eu queria tanto ter visitado minha neta, que eu estou com uma neta de dois anos e meio. Eu não estou acompanhando as coisas. Minha filha grava vídeo dela na escola, manda. Eu morro de dó, né? Porque eles não moram perto, pra eu acompanhar. O meu marido foi um outro dia, que eles mudaram de casa, ele foi dar um apoio e eu não pude ir. Mas eu quero ver se em janeiro, se Deus quiser, eu faço uma visita para eles.
(02:18:16) P1 - Onde estão seus filhos?
R1 - A minha filha mora em Monte Alto, com meu genro e minha netinha. E o meu filho aqui. Eu só tenho um casal.
(02:18:23) P1 - Monte Alto, em São Paulo?
R1 - São Paulo, interior de São Paulo.
(02:18:26) P1 - Casou e ficou por lá?
R1 - É, eles moravam... os dois se conheceram em São Paulo, porque os dois trabalham em empresas em São Paulo. Aí, na época da pandemia, eles deram a opção de trabalhar home office. Mas aí eles ainda ficaram um ano aqui. Ela ganhou nenê aqui, ela completou um ano aqui, só que aí começaram a fazer as presenciais em reuniões e tudo, aí não tinham mais condições deles ficarem aqui. Aí eles foram morar na cidade dele, que aí fica mais próximo de São Paulo. Aí a gente que tem... ano passado ela veio passar o aniversário dela e da bebê, que é no mesmo mês, de outubro. Mas esse ano ela não vem. Aí, como eles não vêm, a gente vai em janeiro lá, se Deus quiser.
(02:19:06) P1 - E o seu filho mora com você?
R1 - Mora. Aí fica só nós dois aqui. Ele tem 35 anos. E meu marido, como tem esse contrato lá na Alcoa, ele fica 15 dias lá, 15 dias em casa. Eu falo: “Vamos trabalhar enquanto a gente ainda tem saúde e é ativo, né? Não adianta parar, não. E eu acho que, se eu parar, eu adoeço, porque eu desde 17 anos que trabalho. Então, não tem como parar.
(02:19:34) P1 - E onde está a sua mãe?
R1 - Minha mãe em Santarém. Minha família todinha mora em Santarém, aquela cidade maravilhosa. É lindo lá, Alter do Chão. Elas ficam me fazendo inveja: “Olha como está Alter do Chão, o Caribe brasileiro”. (risos) É linda a praia. A nossa região é muito rica. De artesanato, cultura.
(02:19:54) P1 - Você se sente parte de Barcarena, de alguma forma?
R1 - Sim, sim. Porque eles nos acolheram, né? Então, a gente mora aqui, participa aqui da igreja, da comunidade, da cultura deles, porque você vê que dentro de um estado tem culturas diferentes. Por exemplo: de Belém, aqui na região de Belém, eles usam o açaí como alimentação principal. Lá para a nossa região a gente tem o açaí como uma sobremesa, entendeu? Então, aqui eles comem açaí com a comida, né? Então, você vê, é diferente lá no oeste do Pará, mas não é assim, entendeu? Quer dizer, dentro do mesmo estado, nós temos culturas diferentes. Mas assim, a alimentação é igual: a farinha, a farinha de tapioca. A farinha de tapioca da minha cidade é melhor. (risos)
(02:20:55) P1 - O que te dá esperança?
R1 - Trabalhar por um mundo melhor. Eu acho que hoje a gente vive num mundo muito desigual, muito egoísta. Eu acho que gente precisa quebrar isso. Aí o meu marido diz assim: “Tu não vai mudar o mundo”. Eu falo: “Eu posso não mudar, mas eu tenho que dar minha parcela de contribuição”. Então, o que eu puder fazer, eu vou fazer. Eu acho que dá pra gente lutar por um mundo melhor. Dá pra gente evoluir, como ser humano racional, sabe? Porque hoje a gente vê que o ser humano está irracional. Falo, assim, questão ambiental, a questão do respeito pelo outro, a falta de empatia que um tem pelo outro. Eu acho que isso precisa mudar. A mentalidade política. Eu falo, discurso: “Porque não tem jeito”. Falo: “Tem, gente, nós somos educadores, vamos trabalhar nossas crianças, para que cresçam com uma mentalidade diferente. Não vamos dizer que não tem jeito porque, se eu disser que não tem jeito, eu vou entregar. Tem jeito, sim, tudo tem jeito, desde que a gente comece a trabalhar. E a educação é uma ferramenta indispensável”. Então, vamos começar a trabalhar dentro da nossa casa o respeito pelo outro, o respeito pelo ambiente que você vive, entendeu? A questão... quebrar... que hoje essa questão da troca política, meu Deus, dá horror na gente, né? Essa roubalheira, essa... assim, uma coisa que a gente não tem palavra, gente. Olha, então você precisa mudar. Eu acho que gente precisa trabalhar, para que as gerações futuras tenham uma mentalidade diferente do que a gente tem hoje. E só a educação faz, entendeu? Só a educação pode fazer. Então, essa é esperança, de lutar realmente por um mundo melhor. Se eu vivo aqui, eu tenho que fazer esse trabalho hoje, agora. E para qualquer lugar aonde você vai, você vai se deparar com situações de vulnerabilidade. Aqui na região norte você sabe que é muito maior o índice. E, gente, onde a gente for a gente tem que trabalhar. Sabe, é isso que eu penso. Essa é esperança. Eu tenho a esperança de um mundo melhor. Posso até não estar mais aqui, para ver. Mas, poxa, que mundo eu quero deixar para minha neta? Não sei se vou ter bisneta, mas minha neta eu já tenho. Então, que mundo eu quero deixar para ela? Por exemplo: no interior, hoje, te digo pela experiência que eu tive no Rio Capim, tem peixe que eles falam que não existe mais. Porque, por exemplo, os filhos e os netos não comem mais, você está entendendo? E se a gente não fizer alguma coisa, vai de mal a pior.
(02:23:53) P1 - Tem que dar as mãos, né?
R1 - Tem que dar as mãos, sabe? Não tem como você fechar os olhos para que você está vendo. Eu me sinto feliz fazendo os outros, ajudando os outros a serem felizes. Eu acho que não dá para você ser feliz vendo a pessoa do teu lado passando fome, passando necessidade, sabe? Dormindo no frio. Porque eu tenho, eu ‘ralei’ para chegar, mas eu posso ajudar outras pessoas a chegarem a ter pelo menos o que eu consegui.
(02:24:24) P1 - Está com 62 anos?
R1 - Estou com 64.
(02:24:29) P1 - Em 64 anos de vida, quais são os seus ganhos principais? Nem estou falando de nada material.
R1 - Olha, ver meus filhos formados, terem chegado a uma educação, ter conseguido dar essa formação para os meus filhos, vê-los encaminhados. Meu filho não está trabalhando, porque quem faz doutorado tem dedicação exclusiva para o doutorado. Ter uma vida estabilizada, graças a Deus e poder ajudar com o que eu tenho e ainda poder ajudar os outros. E acho que ainda posso fazer muito mais. Eu falava para o meu pai, meu pai com 98 anos: “Eu quero herdar essa genética da longevidade, mas saudável”. Eu falo para a pessoa: “Vamos cuidar da saúde”, mas eu não cuido. Meu maior problema é sono. Sabe, eu não consigo dormir cedo, porque eu acho que eu produzo mais à noite, entendeu? E o sono do dia não recupera. Eu sou da Saúde, eu sei disso. Então, tenho que me policiar, até porque a idade já está chegando e o corpo começa a exigir isso. Mas assim, fico... e também... não, material é o mínimo. A minha conquista é essa: ver meus filhos chegarem onde chegaram, poder ter dado aos meus filhos aquilo que meu pai não teve condição de me dar, mas me ofereceu oportunidade, para que eu proporcionasse isso para os meus filhos hoje. E poder ajudar outras pessoas fora. Eu tenho uma ‘filha do coração’, que veio lá do interior do interior. Hoje ela é gerente de um condomínio. Formou, só saiu da minha casa quando ela fez a primeira especialização dela, trabalho fixo. Ela está nesse trabalho desde que nós chegamos em Belém. Quando eu morava em Trombetas, ela trabalhava na minha casa. Aí eu falei: “Olha” - quando ela chegou na minha casa com 14 anos - “só fica comigo se você estudar”. Porque ela já vinha de uma amiga da minha irmã, que a irmã morava na casa, a outra morava na casa de um médico, mas que não tinham tempo para estudar. Falei: “Você só fica comigo se estudar”. Ela foi a pessoa que aproveitou todas as oportunidades que nós demos para ela. Quando eu estava na Fundação Esperança, ainda trabalhando sozinha, lá em Porto Trombetas, que aí a demanda de serviço foi aumentando, eu falei para a coordenadora: “Eu preciso de uma pessoa para me ajudar”. Aí ela já estudava, dei curso de informática, paguei curso de informática pra ela. “Então, pega uma pessoa pra lhe ajudar” O que eu fiz? Arranjei uma pessoa pra casa e a levei pra trabalhar comigo.
(02:27:08) P1 - Como que ela chama?
R1 - Edeíse. Quando viemos pra Belém, eu falei: “Olha, nós estamos indo pra Belém. Você quer ficar?” - porque ela podia ficar, pra trabalhar – “ou você quer nos acompanhar?” Ela disse: “Não, só se vocês não quiserem me levar”. Aí ela veio conosco. Eu falei: “Agora você procura uma faculdade, a gente paga até você conseguir um trabalho”. Começamos a pagar a faculdade para ela. Aí o chefe do meu marido morava dentro de um condomínio e estavam precisando de uma assistente administrativa e ele lembrou dela, está lá até hoje, hoje ela é gerente. Então, assim, eu fico muito feliz de poder também contribuir com o crescimento de outras pessoas.
(02:27:56) P1 - Aquela menininha que cresceu lá, naquela vila pequenininha.
R1 - Lá no interior.
(02:28:02) P1 - Podia imaginar que ia ter oferecido mestrado e doutorado para esses filhos e que ia chegar tão longe?
R1 - Não. Só o que tinha na minha cabeça é que eu não queria viver no interior. Eu não queria aquela vida de sacrifício. Isso eu tinha na cabeça: “Eu tenho que sair daqui”. Então, quando meu pai dizia: “Eu vou dar a oportunidade, mas quem der com as ‘burros n’águas’ não volte”, aquilo era tão forte na mente, que realmente só fez a gente seguir.
(02:28:31) P1 – E sua mãe, hoje, está muito orgulhosa.
R1 - Nossa, minha mãe fala sempre da gente! Noventa e três, lúcida. O maior problema dela também é visão, porque ela tem glaucoma, mas ela baixa as coisas do Youtube, ela segue médicos da linha natural. Ela fazia remédios caseiros, só que hoje ela não faz mais, por causa da visão dela. Era Ministra da Eucaristia, sempre foi muito envolvida na igreja e visitavam doente. Então, assim, a gente viveu nisso, sabe? Viveu com esse espírito de coletividade, de ajudar os outros. E foi muito rico, muito rico isso. São coisas que a gente leva para a vida toda. Eu passo isso para os meus filhos. Foi interessante, outro dia, que a minha filha tem uma senhora que trabalha com ela e aí chegaram lá falando: “Olha, agora tem a opção da doméstica criar sua MEI, registrar como MEI, que aí você se livre da responsabilidade”. Aí ela olhou, ela disse: “Mas se eu quero ser CLT, por que eu vou impedir do outro ser CLT? Eu sou CLT. Ela como MEI não tem a segurança que a gente tem. A não ser que ela tivesse um capital para empreender. Eu não vou fazer isso”. Eu falei: “Está certo, minha filha. Aquilo que a gente não quer pra gente, não deve desejar para os outros”. Eu criei meus filhos com essa mentalidade. Sim, com o pouco que a gente tem, a gente é feliz, graças a Deus. Tem os problemas? Muitos. Acho que toda família, só muda de endereço, mas tem. Mas a gente consegue driblar os problemas e vencer todos. Problemas vêm pra ser vencidos.
(02:30:15) P1 – O que te deixa feliz, hoje? O que você faz pra se divertir, pra relaxar?
R1 - Olha, ultimamente eu preciso... eu gosto muito de viajar, mas não tenho viajado, já está com um ano, mas eu gosto muito de viajar. Eu amo pôr do sol. E aqui é uma coisa que me apaixona o pôr do sol. Aí eu vou lá pro Caripi. Fico admirando aquele pôr do sol maravilhoso. Igual da minha cidade, Santarém, na frente da cidade, à tarde, meu Deus, é um pôr do sol lindo! E eu me identifico, acho que por isso. Eu amo o pôr do sol daqui, é muito lindo. Mas ultimamente, principalmente agora, como eu vou fazer essa cirurgia, então eu estou trabalhando intensamente todos esses projetos que eu puder, para ser aprovado, porque depois eu não vou poder (02:31:08). Então, estou trabalhando mesmo, até tarde. Hoje eu já vou submeter esse, nós já fomos aprovados nesse da bicicleta, que agora vai ser a Oficina Bike. Já vão atender. Estou pegando alguns novos, mas os que já sabem já vão ajudar os outros e também já vai, a gente vai fazer uma tabela de valores de acordo com a realidade da comunidade, para eles prestarem serviço. Nós tivemos uma semana, quando eles faziam o curso, já no término do curso, de trabalho de assistência comunitária. A gente não deu conta de tanta bicicleta! Aí era só de manhã. Aí eu tive que pagar almoço para eles ficarem aqui, para eles ficarem os dois horários e dar conta das bicicletas, arrumarem as bicicletas dos comunitários. Então, agora eles já sabem, a gente vai fazer, até para entrar uma remuneração para eles, até para incentivá-los. E a gente conseguiu também que eles, nesse edital, recebam uma bolsa de incentivos de cem reais. Não é muito, mas já vai ajudá-los. Esse que eu fiz agora, que eu vou submeter hoje, pro Conselho do Adolescente também, a gente está pedindo uma bolsa de incentivo.
(02:32:24) P1 – Você faz tudo isso de maneira voluntária, Goreth?
R1 - É, esses a gente não tem. E tô fazendo um, tô investindo numa formação de captação de recursos profissional e já me ajudou bastante. Hoje já sei elaborar os projetos bem delineados.
(02:32:45) P1 - Pra você, qual que é o seu melhor pagamento?
R1 - Ver o resultado das pessoas felizes, sabe? Ver que, aos poucos, a gente pode proporcionar acesso para aquele que não tem. Não tem coisa melhor. Se você for lá na Oficina Bike, o nosso professor tem uma loja de bicicleta e tem uma oficina atrás. Então, é lá que nós temos os três alunos. O outro não ficou. Ele estava com quatro alunos, só que um conseguiu trabalho, né? E aí ele está com dois. Se você vê o que esse garoto fala, a felicidade dele! Não tem preço isso. E chegar pra você e agradecer pela oportunidade. Eu ia buscar. Eu tinha alunos de uma comunidade chamada Massarapó, que foi... a gente trabalha em parceria, né? Então, eu fui no CRAS, aí o CRAS me indicou esses dois alunos, que vinham do Massarapó, dessa comunidade da população tradicional. Aí eles vinham no carro dos verdureiros, que vêm pra feira. Aí chegou um momento que eles não davam mais, porque eles vinham muito cedo, época de chuva. Se você visse o ramal que eles vinham, pisando em lama, aí os pais chegarem: “Goreth, não dá mais, não tem mais como eles irem pro curso. E eles estão muito tristes, porque eles estão gostando muito”. Eu falei: “Não, a gente vai dar um jeito, espera aí”. A gente não tinha... olha o meu desafio, o nosso desafio nesse projeto da oficina de bicicleta! A gente abriu a inscrição pelo fórum, né? Criou uma plataforma. E depois eles vinham aqui, pra fazer o diagnóstico socioeconômico. Eu tinha sete autistas, se inscreveram sete autistas. E eu falei: “Meu Deus, não estava isso no orçamento”. Aí eu precisava de uma professora especializada, uma psicopedagoga especializada em autismo. Não temos recurso pra pagar, mas vamos dar um jeito. Aí o instituto assumiu. Aí eu chamei: “Professora, a nossa situação é essa, quanto dá para você fazer? É só duas vezes por semana”. Ela disse: “Não, de jeito nenhum. A gente vai fazer”. Aí ela veio, fez o diagnóstico desses alunos, conseguimos chamar os pais que já tinham o diagnóstico fechado, laudado. Outros não. Encaminhamos, chamamos os pais, precisava fazer o laudo. O material teve que ser adaptado para esses alunos e aí foi um grande desafio. Eu falei: “Não podemos ‘deixar a peteca cair’, vamos fazer”. Ela disse: “Não, Goreth, a gente se ajuda”. Aí ficamos, todos eles concluíram o curso. Os alunos, a gente não tinha verba para transporte, mas aí eu encontrei em consenso com os pais: “Olha, vocês têm uma pessoa na comunidade que tenha carro, que consiga trazer, que a gente divida essa responsabilidade? Eu pago a metade, vocês pagam metade”. Então, o dinheiro tipo que entra para coordenação, que seria para o meu trabalho, eu invisto tudo em que precisa, porque aí eu não tiro do meu bolso. Aí, com esse recurso eu paguei a professora, eu paguei o transporte para os alunos não pararem o curso. Um desses alunos, porque assim: a gente tinha psicóloga que vinha, que dava, assim... abria a mente deles, para outras opções no mercado, isso aqui é só uma oportunidade que você vai ter. Eu tenho aluno que está fazendo Engenharia Mecânica, que futuramente pode ser um monitor nosso. Você está entendendo? Dois alunos. Um está fazendo Engenharia Mecânica e o outro está... não sei qual engenharia que ele está fazendo. Já está no mercado de trabalho também. Então, gente, não tem como, sabe, você não ficar feliz de ver um resultado desse.
(02:36:35) P1 - Te escutando, Goreth, eu escuto muitas vezes você usar uma frase que ‘você dá um jeito’, né?
R1 – A gente ‘dá um jeito’. Então, eu ia buscar lugares mais difíceis, onde eles, no inverno, não tinham como eles virem. Eu, no meu carrinho, pegava: “Não, pode deixar, que eu vou buscar”. Eu tinha dois idosos, idosos que estavam depressivos dentro de casa. A princípio era atender a partir de 18 a 21 anos. A demanda foi muito alta em 17 anos. Aí eu fiz um documento para a Hydro, pedi para flexibilizar. A gente pegaria 17 anos incompletos e deixava a idade máxima aberta. Falei: “Olha, tem uns idosos que querem apenas para sair da ociosidade. Vamos acolher essas pessoas”. Eles permitiram. Então, terminei com os dois idosos, um senhor de meia-idade que estava depressivo, com depressão, morava aqui perto e os adolescentes de 17 anos incompletos. Com 17 anos completos, que era só 18, que já iam caminhando pros 18, entendeu? Então, a gente vai (02:37:42) e eles não podiam vir, eu ia buscar. “Dona Goreth, não tenho como”. Esse senhorzinho vinha de moto, mas ele não tinha carteira. Aí um dia tentaram pegá-lo e ele ainda conseguiu voltar e disse: “Eu tô com medo” “Deixa, que eu vou lhe buscar. Então, sabe? Eu acho que tudo que você pode fazer como ser humano, pra ajudar o outro, por que não? Eu me sinto bem. Eu me sinto feliz, juro para vocês, não é demagogia, eu me sinto bem. Uma coisa que me faz bem, eu acho que os problemas são sanados. Porque aí você vai vendo que os problemas que você tem são pequenos, diante do que os outros vivem. E que dá para você amenizar um pouquinho a carga do outro.
(02:38:24) P1 - Tem alguma história que você gostaria de me contar, que a gente não chegou nela?
R1 – Ai, eu acho que eu já contei todas. São muitas histórias. Ixi, da minha vida regressa aqui... eu acho que as mais marcantes realmente foram essas aqui, de resgatar esses meninos que estavam já entrando nesse mundo negro da droga, de aliciamento.
(02:38:56) P1 - Mas da sua vida?
R1 - Nós estamos há seis anos só, aqui, sabe? E, assim, eu acho que a gente já construiu muita coisa, nesses seis anos de instituto. Porque eu sei que tem organização com dez, quinze anos, mas coitados, tiveram a dificuldade de registrar. Nós temos muitas organizações que nem registradas são, entendeu? Porque não é fácil. Tem custo alto, para registrar. Então, o que me deixa feliz... por isso que eu tento dar oportunidade para outras pessoas, porque todas as oportunidades que eu tive na Fundação Esperança, que me valem hoje para a minha vida, todas as formações que eles me permitiram ter, hoje eu aplico na minha vida. Na Saúde, na Educação, nas formações ambientais. Não existe saúde sem meio ambiente, não existe meio ambiente sem saúde. Então, elas estão atreladas. Eu acho a minha vida muito rica, a minha história muito rica, entendeu? Assim como me deram oportunidade de criar esse leque, sabe, de vida, eu gosto de ajudar as pessoas. E é isso que me motiva, é isso que me move.
(02:40:13) P1 - Como é que foi para você, hoje, relembrar, abrir esse baú de memórias?
R1 - Nossa, me fez voltar lá para o Rio Amazonas, andando naquelas canoas, vendo o boto pular do meu lado, sabe? Sentar, muitas vezes no chão, em cima de um tronco de madeira de um comunitário e ali comer junto com eles. São histórias, assim, muito marcantes. (choro) E ver que eles são tão felizes como eles vivem, no interior, que não tem grandes coisas. Vão ali para a roça, plantam, colhem, vivem com aquilo. Gente, eu sou muito grata a Deus, por Ele ter proporcionado vivenciar todas essas realidades, porque a área que eu morava era o interior, mas não era a área ribeirinha. Eles chamam de terra firme, né? Então, quando eu fui trabalhar em comunidades ribeirinhas, a gente vê que é uma realidade bem diferente, entendeu? A vida deles é diferente e que eles, os quilombolas, por exemplo, mantêm cultura lá do quilombo. Tinha um senhor que a gente ficava na casa dele, que o coisa da farinha, não sei se vocês já viram uma casa de farinha, o forno tinha quase trezentos anos. Foi passado de geração em geração, de quilombola para quilombola. Você está entendendo? Eu vivi isso. E ali, sabe que é feita aquelas chapas de... não é ferro, é aço, sei lá... intacto. E ela dizer que ela tinha recebido... a bisavó dela tinha recebido de presente de casamento, passou para a mãe dela, a mãe dela passou... você está entendendo? A gente ouve histórias muito bonitas.
(02:42:11) P1 - E contar sua própria história?
R1 - Pois é. Aí começa a fazer parte da tua história. Essas coisas você vai compilando e que começam a fazer parte da tua história.
(02:42:23) P1 - Mas foi bom, hoje, você contar sua própria história?
R1 - Nossa! Eu fico muito feliz de poder contar e dizer que eu vim lá do interior. Não tenho coisa da minha vida, sabe, de que eu pilei arroz, de que eu andava de madrugada, de que eu comia numa latinha, entendeu? Era o que meu pai podia me oferecer. E, mesmo assim, coitado, ainda vivia melhor do que os outros colegas. Você está entendendo?
(02:42:48) P1 - Acho que quando a gente revisita a nossa própria história parece que as pecinhas vão se encaixando.
R1 – Se encaixando, os quebra-cabeças vão se juntando. No fim, tu tem aqui um quadro em que tu juntou todas as peças. Tu tens uma imagem maravilhosa de todos os quebra-cabeças, de todas as peças que você montou, vindo do oeste do Pará. Eu acho que o ser humano nasce com um propósito. Como eu vim parar aqui? De Monte Alegre, vim para Santarém. De Santarém eu fui para Porto Trombetas, vim para Belém, de Belém vim para cá. Não foi por acaso. Acho que Deus me encaminhou, porque eu tinha um propósito. Eu acho que ainda tenho, entendeu? Então, eu quero deixar, tenho fé em Deus, é isso que eu coloco na mão Dele todo dia, não tenho nenhum pensamento egoísta de usufruir. Hoje, a minha... eu já fui assim, mais materialista, né? Como falo, acho que a vida em Trombetas nos fez, assim, ter um patamar de vida melhor, né? E claro, a gente tinha e comecei a casa toda cheia de cortina, cheia de tapete, cheia de... quando eu passei por tudo isso, eu fui saindo, até porque quando eu vim morar em Belém eu fui morar em um apartamento. Quem sai de casa... eu sempre morei em casa, foi uma tortura morar em um apartamento, mas o meu marido, como viajava, ele disse: “Não, não vou deixar vocês em casa, aqui é muito perigoso”. Eu acabei adaptando no apartamento. Também fui diminuindo as coisas. Aí minha irmã veio me visitar aqui. Aqui eu moro numa casa, não é tão grande a casa. Ela chegou, olhou, meio bagunçada. (risos) Meio bagunçada assim, não com aquelas coisas que eu sempre gostei. Ela olhou pra mim: “Você tem certeza que essa casa é a sua?” Eu disse: “Por quê?” Comecei a rir. Eu sabia o que ela queria dizer. Aí ela disse: “Não, eu fazia...”. Ela nunca tinha me visitado. Falei: “Minha irmã, já não tô mais naquela... sabe? Meu mundo é outro hoje, não quero mais essas coisas, sabe? Essas coisas são muito supérfluas, não vai me levar em lugar nenhum”. A moça que morou comigo, anos em Belém, quando eu comecei a trabalhar, começou, vinha e daí eu saía de casa pra trabalhar, vinha pra cá. Aí ela disse assim: “Cadê seus blazers?” Eu falei: “Pra que blazers?” Ela morou comigo na época que eu trabalhei no instituto, que trabalhava como chefe de gabinete. Disse: “Eu amava quando eu via a senhora sair toda...”. Falei: “Pois é, por isso que eu arranjei uma doença no colo do fêmur, de tanto andar de sapato alto”. Ela começou rir. Falei: “’Mana’, a realidade que eu trabalho hoje é totalmente diferente. Como é que eu posso ir para uma comunidade” – até usei um termo que meu pai usava – “toda emperiquitada?” Não, eles têm que sentir de igual para igual. Não posso ir pra uma comunidade... aqui a gente tem uma blusa, a camisa que gente usa, do projeto. Então, a gente tem que viver de acordo com a realidade que você está vivendo, o trabalho que você está vivendo, não é mais assim. E foi essa resposta que eu dei para a minha irmã. Eu disse: “Não, ‘mana’, eu cheguei naquele momento, mas hoje essas coisas não me interessam mais. Hoje eu tenho uma outra visão”.
(02:46:23) P1 - Goreth, por fim, que eu ficaria aqui dia inteiro, ouvindo a sua história: essa é a vida que você queria viver?
R1 - Sim. Quando eu sair, eu quero envelhecer lúcida, trabalhando em projeto social. Quero trabalhar por essa causa até eu não ter mais condição, mas é esse o meu propósito. Enquanto eu puder escrever, enquanto eu puder lutar, tiver vitalidade para lutar por quem tem menos acesso do que eu, eu vou lutar. Sem demagogia eu estou lhe falando. É isso que eu pretendo, hoje.
(02:47:06) P1 – Obrigada! Vai dar um jeito.
R1 - É, eu vou dar um jeito. (risos)
Recolher