O menino da Barreira.
Eu também conheci um menino da porteira. O cancioneiro brasileiro eternizou essa imagem em uma bela e triste canção, a história de um menino que abria a porteira para a boiada passar. Seus autores, Teddy Vieira e Luís Raimundo, desenharam com palavras a inocência de uma criança cuja diversão acabou por lhe ser fatal. O menino que, dia após dia, esperava a boiada como quem esperasse um espetáculo, movido pela simples emoção de ver os animais passando, teve sua existência delicadamente gravada na lembrança de tantos que, pela canção, mantiveram viva sua história.
Mas hoje, setenta anos depois, eu também encontrei um menino. Não um menino da porteira, mas um menino da barreira. Era um dia de chuva fina, uma chuva que caía com uma insistência melancólica, não apenas sobre o asfalto, mas também dentro de mim. Vi-o ali, parado no meio da garoa, encolhido, tremendo em sua camisa do Flamengo. Era quase um fantasma, um corpo pequeno, frágil, um corpo que se confundia com o ambiente ao seu redor, com o cinza da cidade, com o esquecimento. Seu corpo magro era a imagem viva da fome e do abandono, uma desimportância que o Estado parecia insistir em reafirmar e perpetuar.
Não me recordava de tê-lo visto antes nas redondezas da Chatuba. Ele parecia um estranho, um forasteiro em meio aos meus meninos marrons. Olhei-o de longe, preparando-me para aquele ralhar carinhoso que eu sempre usava com as crianças conhecidas. Mas ele não era uma delas. Teria entre nove e onze anos, talvez mais, embora fosse difícil definir sua idade: a fome e o abandono têm o poder de envelhecer os corpos infantis, de roubar-lhes o vigor e o brilho antes do tempo.
Observei-o por alguns minutos. Ali, de pé, em frente ao portão de minha casa, vi aquele menino imóvel, encarando a chuva e o frio com uma resiliência desconcertante. Ele parecia estar esperando algo, mas não para si, e sim para servir. Cada vez que um carro se aproximava, ele...
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O menino da Barreira.
Eu também conheci um menino da porteira. O cancioneiro brasileiro eternizou essa imagem em uma bela e triste canção, a história de um menino que abria a porteira para a boiada passar. Seus autores, Teddy Vieira e Luís Raimundo, desenharam com palavras a inocência de uma criança cuja diversão acabou por lhe ser fatal. O menino que, dia após dia, esperava a boiada como quem esperasse um espetáculo, movido pela simples emoção de ver os animais passando, teve sua existência delicadamente gravada na lembrança de tantos que, pela canção, mantiveram viva sua história.
Mas hoje, setenta anos depois, eu também encontrei um menino. Não um menino da porteira, mas um menino da barreira. Era um dia de chuva fina, uma chuva que caía com uma insistência melancólica, não apenas sobre o asfalto, mas também dentro de mim. Vi-o ali, parado no meio da garoa, encolhido, tremendo em sua camisa do Flamengo. Era quase um fantasma, um corpo pequeno, frágil, um corpo que se confundia com o ambiente ao seu redor, com o cinza da cidade, com o esquecimento. Seu corpo magro era a imagem viva da fome e do abandono, uma desimportância que o Estado parecia insistir em reafirmar e perpetuar.
Não me recordava de tê-lo visto antes nas redondezas da Chatuba. Ele parecia um estranho, um forasteiro em meio aos meus meninos marrons. Olhei-o de longe, preparando-me para aquele ralhar carinhoso que eu sempre usava com as crianças conhecidas. Mas ele não era uma delas. Teria entre nove e onze anos, talvez mais, embora fosse difícil definir sua idade: a fome e o abandono têm o poder de envelhecer os corpos infantis, de roubar-lhes o vigor e o brilho antes do tempo.
Observei-o por alguns minutos. Ali, de pé, em frente ao portão de minha casa, vi aquele menino imóvel, encarando a chuva e o frio com uma resiliência desconcertante. Ele parecia estar esperando algo, mas não para si, e sim para servir. Cada vez que um carro se aproximava, ele corria até a barreira improvisada, uma perna de três, pesada e cheia de pregos, que ele erguia com dificuldade. Ele a tirava, deixando o carro passar, e, agradecido, recolocava-a em seu lugar. Em troca, recebia alguns trocados miúdos, moedas que logo se perdiam entre os dedos enregelados.
Cinco minutos bastaram para que aquela cena inundasse minha alma de tristeza, de uma impotência que me esmagava. Resolvi me aproximar. Quando o vi de perto, o encanto do seu sorriso frágil me desarmou. Aquele menino, sofrendo com a chuva, o frio e os pés descalços, ainda conseguia sorrir. Era um sorriso que parecia perdoar o mundo, um perdão infantil que, em sua pureza, era capaz de desafiar qualquer lógica. Quem, naquela situação, conseguiria sorrir? Quem veria no outro um motivo para alguma alegria, se não uma criança?
Naquele instante, compreendi a grandeza da alma infantil, que se indigna e perdoa com a mesma facilidade, que se permite raiva, mas só enquanto ela durar, e que sabe esquecer tão bem quanto sabe se comover. Desejei, com toda a força, que eu pudesse ter essa mesma efemeridade nas minhas emoções, essa capacidade de sentir intensamente e de seguir em frente logo depois.
Aproximei-me dele, tentando entender o porquê de sua presença ali. Perguntei: — Você está aqui por quê, meu filho? — Tô na barreira, tio, tirando o pau para os carros passar. — Eu sei. Mas por que está fazendo isso? Ele me olhou, com aquele olhar que parecia carregar uma sabedoria que não deveria estar ali, e respondeu: — Hoje não tem comida no colégio, e tô com fome. Hoje é sábado. Meus irmãos também.
Ao ouvir essas palavras, percebi outras figuras pequenas, esqueléticas, se protegendo da chuva sob a marquise da igreja. O impacto daquelas poucas palavras foi um soco no estômago. Escola fechada, significava também fome. Para aquele menino, era mais do que um lugar de aprendizado; era sua única fonte de sustento.
Enquanto processava toda a situação, um passante se aproximou, elogiando: — Isso aí, é melhor trabalhar do que ficar fazendo bobagem.
Aquela frase soou como um eco insensível diante do que eu acabara de presenciar. Como explicar a alguém que não era trabalho, mas sobrevivência? Que aquele esforço hercúleo, para ele, significava apenas a possibilidade de aplacar a fome, de garantir uma moeda que se transformaria em um pedaço de pão para dividir com os irmãos?
Fiquei ali, observando aquele menino franzino que, em sua fragilidade, me parecia tão imensamente forte. Em poucos minutos de \\\"trabalho\\\", ele havia conseguido apenas 90 centavos. Nada mais. Senti-me pequeno, impotente e insignificante diante daquela realidade cruel. Mas, ao menos, pude oferecer a ele e aos seus irmãos um pouco de comida, uma ajuda breve e insuficiente, mas que naquele momento era o que eu podia fazer.
E, ao final de tudo, restou a lição: em meio ao abandono e ao descaso, aquele menino continuava sorrindo, perdoando um mundo que, impiedosamente, o mantinha na barreira, entre o frio, a chuva e a fome.
Jefferson Dantas.
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