Projeto Fundação Banco do Brasil
Realização Instituto Museu da Pessoa
Entrevista de Heloísa Pires Ferreira
Entrevistado por Paula Ribeiro
Rio de Janeiro, 07 de Julho de 2002
Código: MP_HV001
Transcrito por: Elisabete Barguth
Revisado por Jordana de Oliveira Pradal
P/1 – Boa tarde Heloisa, gostaria de começar o depoimento pedindo que você me forneça seu nome completo, local e data de nascimento.
R – 14 de Abril de 1943. Heloisa Pires Ferreira. Eu sou uma gravadora e artista plástica. Vim morar em Santa Teresa aos sete anos. Meus pais são do Rio. Nós moramos aqui bem perto do Morro dos Prazeres. Meu pai sendo um advogado, tendo aberto muitos sindicatos, né, estruturado. Ele estruturou o primeiro sindicato, ou melhor, a “Associação de Moradores do Morro dos Prazeres” .Meu irmão, que se chama Edgar Pires Ferreira, fazia sociologia na PUC-RJ [Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro] em torno dos anos 1960, não posso dizer precisamente. A água que eles usavam era buscada na minha casa.
P/1 – Que era onde Heloisa? Sua casa era onde?
R – Eu vou dizer ou lá em cima ou no Xororó. A minha casa ficava entre o Morro Dois Irmãos e o Xororó, na Rua Almirante Alexandrino, 1017. Atualmente é 1315. Eu não devia nem dizer o número, mas era 1017 na ocasião.E ali eles entravam dentro do terreno da minha casa pra pegar água. Minha mãe colocava uma bica dentro de casa pra eles irem com uma latinha, um por um, trazer água pra cá. Porque as pessoas não tinham como. Edgar, meu irmão conseguiu um dinheiro nem sei como. Ele que poderia explicar isso. Veio num domingo e, na marra, abriram uns balões. Ele pôs todo mundo pra trabalhar. O pessoal daqui pode dar esse depoimento. Eles construíram a caixa d'água, que foi uma coisa muito importante. De 1959 a 1985, fazíamos eu, junto com o Rogério Luz, Maria Lúcia Luz e o Doutor Marcini, o que vocês hoje fazem aqui. Fazíamos arte aos domingos, na Escola Municipal Julia...
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Projeto Fundação Banco do Brasil
Realização Instituto Museu da Pessoa
Entrevista de Heloísa Pires Ferreira
Entrevistado por Paula Ribeiro
Rio de Janeiro, 07 de Julho de 2002
Código: MP_HV001
Transcrito por: Elisabete Barguth
Revisado por Jordana de Oliveira Pradal
P/1 – Boa tarde Heloisa, gostaria de começar o depoimento pedindo que você me forneça seu nome completo, local e data de nascimento.
R – 14 de Abril de 1943. Heloisa Pires Ferreira. Eu sou uma gravadora e artista plástica. Vim morar em Santa Teresa aos sete anos. Meus pais são do Rio. Nós moramos aqui bem perto do Morro dos Prazeres. Meu pai sendo um advogado, tendo aberto muitos sindicatos, né, estruturado. Ele estruturou o primeiro sindicato, ou melhor, a “Associação de Moradores do Morro dos Prazeres” .Meu irmão, que se chama Edgar Pires Ferreira, fazia sociologia na PUC-RJ [Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro] em torno dos anos 1960, não posso dizer precisamente. A água que eles usavam era buscada na minha casa.
P/1 – Que era onde Heloisa? Sua casa era onde?
R – Eu vou dizer ou lá em cima ou no Xororó. A minha casa ficava entre o Morro Dois Irmãos e o Xororó, na Rua Almirante Alexandrino, 1017. Atualmente é 1315. Eu não devia nem dizer o número, mas era 1017 na ocasião.E ali eles entravam dentro do terreno da minha casa pra pegar água. Minha mãe colocava uma bica dentro de casa pra eles irem com uma latinha, um por um, trazer água pra cá. Porque as pessoas não tinham como. Edgar, meu irmão conseguiu um dinheiro nem sei como. Ele que poderia explicar isso. Veio num domingo e, na marra, abriram uns balões. Ele pôs todo mundo pra trabalhar. O pessoal daqui pode dar esse depoimento. Eles construíram a caixa d'água, que foi uma coisa muito importante. De 1959 a 1985, fazíamos eu, junto com o Rogério Luz, Maria Lúcia Luz e o Doutor Marcini, o que vocês hoje fazem aqui. Fazíamos arte aos domingos, na Escola Municipal Julia Lopes Almeida. Era por conta própria, ligada ao Clélio Assunção, e o dinheiro arrecadávamos das famílias de Santa Teresa, para termos materiais, filmes e etc. A gente conseguia a máquina filmadora com o dono da Mesbla. Buscávamos e trazíamos de volta pra termos alguma atividade cultural aqui com eles. O governo nos proibiu em torno de 1965,1966, nós não podiamos mais fazê-los.Um virou médico, outro filósofo, e ela era a mais velha. Maria Lúcia Luz era uma pintora, todo mundo a conhecia. Sobre o pessoal mais antigo; minha mãe costurava era Henriqueta Pires Ferreira, junto com a dona, os nomes me faltam. Elas costuravam e ensinavam o pessoal daqui a costurar. Tinha trabalho na casa da dona Maria Lira, junto com a sua mãe e a dona Iracema . Eram elas que ensinavam o pessoal. Eram muito mais velhas, hoje minha mãe devia estar com 90 e tantos anos. A cultura era outra, nós fazíamos arte com elas. Minha mãe ensinava costura e bordado, meio careta; nós questionávamos um pouco, embora ela fosse meio criativa, entendeu?
P/1 – Mas quem eram? Quem frequentava o seu curso de arte?
R – Todos eles aqui, às vezes eram 80 pessoas que iam, porque era gratuito. Entravam e todo mundo ia, era todos os domingos.
P/1 – Pintura? Aquarela?
R – Pintura, desenho. Passávamos filmes de arte que nós íamos buscar na Embaixada Americana e na do Canadá. Tinham ótimos filmes; a gente pegava e passava de graça e fazíamos debates sobre o que víamos. Dávamos barro, pintura, desenho, coisas livres; encenávamos pecinhas de teatro, coisas que davam pra fazer com o que conseguíamos.
P/1 – Mas o que motivava esses jovens a fazer essas coisas com a comunidade na época?
R – Eu tenho até um livro que publiquei há pouco tempo, eu não sei se foi por causa do meu pai....
P/1 – Como era o nome do seu pai?
R – João Antônio Pires Ferreira, foi um grande jurista. Um comunista. Ele abriu muitos sindicatos e teve toda uma atuação. Na Primeira Guerra ele atuou muito, mas me parece que foi na Segunda Guerra que ficou muito ruim. Não por tortura física, mas tortura mental. Ele se afastou, vamos dizer; ele foi ficando uma pessoa muito sofrida. Mas ele nunca negou assistência jurídica para nenhum daqui.
As pessoas presas no tempo da ditadura, eu me lembro que ele me pedia pra me vestir pra ir com ele nas delegacias, porque ele as soltava. Usava o seu saber pra essas causas.
P/1 – E tinha pessoas da comunidade envolvidas na esquerda e que na época foram presas?
R – Muitas! Eu não me lembro dos nomes, porque isso seria meu pai que poderia dizer. Meu irmão não tinha essa ligação, a ligação dele era outra, muito menos a minha mãe. Ela era católica e tinha outra formação. Meu pai é que era um intelectual, só que da esquerda. Eu de uma certa forma tenho uma necessidade muito grande, tanto que quando eu ganhei uma bolsa de estudos para Europa, fiquei lá um ano e meio; quando eu voltei tinha uma criancinha e a moça que trabalhava lá morava aqui. Era Benedita Vicente de Oliveira. De criança só tinha essa e em mais três casas aqui. Ela pode contar isso. Aqui era campo, aqui tinha vacaria, tinha porcos e o pai dela era uma espécie de guarda florestal. A mãe era curandeira. Ela foi trabalhar na minha casa, trabalhava pra mim quando a casa dela caiu. Um problema de construção e eu disse: “Benedita não é possível, alguém tem que te ajudar! ”. Eu não tinha recursos. “Alguém tem que te ajudar!” Fui tentar, porque eu conhecia Zoéde Águas Freitas, na época do governo. Eu tinha ligações com ela, por causa da Oficina de Artes do Brasil, e com Terezinha Lima. E aí Terezinha falou que não. Eles não podiam ajudar uma pessoa física, mas eles podiam ajudar a uma Instituição. Através da Benedita, com Zé Bernardes, eu falei: “Zé Bernardes, existia! ”, eu contei tudo pra ele. Quando eu vinha sozinha, eles desciam pra conversar comigo, quando eu vinha com engenheiro ou arquiteto, ninguém aparecia. Aí eu mudei a minha tática. Eles desciam pra conversar comigo porque eles conheciam a minha família, mas com estranhos sempre tinham medo. Sei lá, por causa de política. Então eu fiz o seguinte, liguei pra ele e disse: “No dia tal, vai chegar alguns caminhões de material”. Então nós abrimos mão dos engenheiros ou quem quer que fosse . Mandamos todo o material para que eles construíssem. Não essa obra que tem agora, mas aquela creche e aquela Associação de Moradores. Agora, a dos anos 1980, foi uma ponte que nós fizemos juntos com o Zé Bernardes. Eu particularmente não vinha quase aqui. Eu pude vir porque eu mexia com arte. Estava voltando. Criei uma oficina de gravura no SESC [Serviço Social do Comércio]. Eu não tinha muito tempo, mas eu disse: “Gente vocês tem que fazer essa casa”, essa casa que é hoje. “Isso tem que ser um centro cultural. Vocês tem que se virar, porque isso tem que ser...porque isso é muito perto. Mexer com arte! Todos têm que ter direito a arte, todo ser humano”.
P/1 – O que você se lembra desse Casarão?
R – Era uma coisa muito linda, mas eu não tinha nenhum envolvimento no sentido de ter frequentado nem de ter conhecido pessoas.
P/1 – Como ele era?
R – Belíssimo e por fora caindo aos pedaços, então acho que isso aqui tinha que ter virado alguma coisa, eu sei. Quando eu era menina, tinha uns rapazes que achavam que aqui era casa. Não, eu to contando o meu passado aqui em Santa Teresa.Esses rapazes parecem que moravam aqui e eram uma coisa de protestantes... mas eu nunca soube. Nessa ocasião, de 1980 e poucos, que deve ter sido 1981, 1982, 1983 , creio que foram esses 3 anos... Depois eu fiquei ocupada demais nessa oficina de gravuras, não tinha muito tempo e ainda mais porque eu achava que agora já tinham material. Eles se viravam, eu não precisava mais ficar fazendo ponte. A ponte já tinha sido feita, e eu não podia mais. Como moradora, se você tem os contatos pode fazer ligação. E se a ligação está feita você tem que cair fora, porque a tua festa já foi feita, eu acho que você entende.Então ela tem que andar pra frente, e você vai pra outra festa, mas eu gostaria que isso aqui virasse porque é muito bonito, e todo ser humano tem direito ao belo. É uma questão de vida. A árvore é muito linda pra todos, desde o muito rico ao muito pobre. Ela é uma coisa divina para todos terem acesso às outras coisas também.
P/1 – Deixa eu perguntar uma coisa, tem uma rua com o nome do seu irmão
R – Não, tem uma chamada Rua Marechal Pires Ferreira.
P/1 – A Pires Ferreira fica...
R – No bairro Cosme Velho. Ele era tio-avô do meu pai. E aqui em Santa Teresa, o Centro Cultural Laurina Santos Lobo era da minha família, também um tio-avô meu. Ele era um senador Pires Ferreira.
P/1-– Ah tá, então eu confundi porque eu sabia que tinha uma Rua Pires Ferreira, só que não sabia quem que era. Bom Heloísa, o que te trouxe hoje aqui no Casarão?
R – Eu tenho um grande amigo que é um crítico de arte, chamado Mario Barata, e a esposa dele que é a Pisciana Bonazola. Eles já estão idosos e são muito queridos meus. No ano passado, ele ganhou o prêmio de crítico do século XX. Tem 81 anos ou acho que vai fazer. Ele representa o Brasil fora do Brasil. Me ligou, porque eu vinha passear sozinha, e ele me trouxe aqui. Me pediu que eu o trouxesse aqui com a Pisciana e eu não posso dizer não , pois são idosos e doentes. Aí eu tinha que trazer. Viemos e quando a gente chegou aqui, tinha umas meninas sentadas falando que estavam resgatando a história de Santa Teresa. Então eu disse: “ Eu tenho um pouquinho a ver com a história desse Morro aí'.'
P/1 – Você disse: “Mário, senta aqui que eu vou”?
R – “Não dessa casa”, eu falei. Claro, mas desse morro, porque eu fui criada aqui. Posso entrar aqui. Eles disseram que estavam receosos porque eu subi de carro. Então eu disse: “Eu posso subir de carro aqui”. Acho que é um dos poucos lugares que as pessoas podem ter receios, mas que eu sinto que eu posso subir. Porque é no sangue, entendeu?
P/1 – O que significa o Morro dos Prazeres pra você?
R – É Santa Teresa! É minha infância! É a dor de você ter crescido, sabendo, por exemplo... A Escola Municipal Júlia Lopes de Almeida era uma escola e ao lado havia um terreno imenso e que eu “engoli” na época da repressão. Aquilo virou uma casa particular. Pertencia à comunidade e o governo vendeu a “preço de banana” para uma casa particular. Tinha que ser uma escola pública, entendeu? Tinha que ser quintal para criança brincar, como essa festa que eu vi ali hoje, que tinha uma criança mais linda que a outra, vestida de caipira. Isso era uma coisa linda, mas sabe em que ano? Você devia ser um neném. Isso foi em 1965, eu acho que foi 1966, 1967 que eu “engoli” aquilo. Então é isso, eu não tenho muito o que explicar à você .Não sou uma pessoa que me considere que eu seja rica. Posso me considerar rica “culturalmente”, entre aspas. Por um acaso tive uma casa que possuía acesso a muita coisa. Agora eu sou uma pessoa que têm que trabalhar pra sobreviver. Eu não tenho condição e muito menos para fazer algum trabalho político, eu nunca tive.
P/1 – Agora você tava falando do seu pai, do estatuto. Você se lembra como é que se deu? Quer dizer, ele orientou juridicamente aqueles jovens que estava formando a Associação?
R – Eu acredito que tenha sido assim porque quando ele morreu, arrumando as suas coisas, achei um manuscrito.
P/1 – Você ainda o tem?
R – Eu dei aqui pra Associação, eu vim e dei. Não era o Zé Bernardo o presidente, era um outro. E junto batido a máquina dele que devia ser a cópia. Deve ter sido entregue, porque as pessoas iam lá em casa. Ele frequentava esse bar, que deve ser do seu Joaquim, aqui na entrada do Morro na Rua Gomes Lopes. Esse bar era do seu Joaquim e ele era dali. Eu vou até contar um lance que aconteceu, não sei se vai dar tempo, que foi em 1965. Ligaram pra ele porque ele sumiu daqui. Aí disseram: “Não, eu não tô podendo vir porque eu fui assaltado”. “Como foi assaltado? Como?” “Fui assaltado ali pra cima, no caminho, e machuquei a perna”, “Mas como? o que roubaram? ” “Roubaram a minha carteira e o meu relógio”, “Mas a gente conhece a tua carteira e o teu relógio? ”. Então passaram uns dois ou três dias, ligaram pra ele dizendo que a carteira e o relógio dele tavam ali. Levaram lá em casa, porque ele estava doente, estava se recuperando. Aí levaram e com dinheiro. Então ele disse: “ Não, não tinha tudo isso”. Aí teve que devolver. Meu pai era todo correto, fez devolver e pegou o relógio dele, porque o nível de relações nossas aqui era assim.
P/1 – Tá bom Heloísa. Pra finalizar, o que você acha desse projeto de memória? De preservação da comunidade? E o que você achou de ter dado seu depoimento?
R –É lindo demais, eu fiquei muito contente e muito feliz. Eu acho que quando eu trabalhei nesse SES [Secretaria de Estado da Saúde] , eu publiquei junto com o SESC , é lógico, três volumes da História da Gravura do Brasil. Eu pacientemente fui entrevistando junto com um historiador. Foram 25 gravadores antigos, e publicamos os três volumes contando a história.Então eu acho que a história das nossas raízes tem que ser contada, tem que ser registrada, porque eu acho que isso que forma o povo, e é um orgulho pra eles. Um orgulho pra todo mundo. A gente vê a luta, porque é uma luta muito dura, eu não queria tá na pele deles, tá?
P/1 – Então eu te agradeço muito, super obrigada pelo depoimento.
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