Esta é a história de Maria Santina de Caruaru, minha mãe, que saiu de sua pobre casa no interior do agreste nordestino, com o dia ainda escuro, botou suas crianças dormindo na carroça e se foi pela estrada de terra seca onde se ouvia somente o trote do burro cansado. Ia ao encontro das boias frias que lhe garantiam um lugar no caminhão imundo e apertado que os levariam à cidade. Lá pegaria o ônibus para outra cidade, a da esperança do Rio de Janeiro, atrás do marido sumido que se foi com promessas de volta. Após muitos dias de exaustiva viagem de fome e angústia, finalmente chega a hora do encontro com José que, ao invés da alegria esperada, a recebe furioso pois a danada não tinha que sair do buraco que estava com os meninos. E, a partir desse dia, nada mais foi como imaginou sua vida longe da seca. O marido vivia nervoso, não havia dinheiro para botar comida na boca de tanta gente, e mais furioso ficou quando soube que Santina estava prenha novamente. De presente, ela ganhou mais uma surra. E de surra em surra, Santina morreu deixando os dois pequenos e mais o bebê recém-chegado, uma menina, à mercê de Deus. E o marido, talvez arrependido de seus atos, matou-se também pensando assim pagar os seus pecados. E aí começa a história de outra Maria – Maria Benilda, a pequena trazida de Caruaru por sua mãe Santina, que retorna para a cidade natal pelas mãos de um parente da mãe que, não podendo ficar com todos os órfãos, deixa o menino para outro parente e a pequena caçula para adoção. Apesar da pouca idade, Maria jamais esqueceria sua irmã pequena que viu crescer na barriga da mãe entre as surras presenciadas, por toda a vida em que estudou, cresceu, casou. Cresceu sabendo onde a menina estava e com quem estava, mas aprendeu que o assunto era proibido e que a pequena jamais poderia saber que também tinha irmãos. Essa era a regra da adoção, já que ela não sabia que fora adotada. E assim vivia Maria na angústia do...
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Esta é a história de Maria Santina de Caruaru, minha mãe, que saiu de sua pobre casa no interior do agreste nordestino, com o dia ainda escuro, botou suas crianças dormindo na carroça e se foi pela estrada de terra seca onde se ouvia somente o trote do burro cansado. Ia ao encontro das boias frias que lhe garantiam um lugar no caminhão imundo e apertado que os levariam à cidade. Lá pegaria o ônibus para outra cidade, a da esperança do Rio de Janeiro, atrás do marido sumido que se foi com promessas de volta. Após muitos dias de exaustiva viagem de fome e angústia, finalmente chega a hora do encontro com José que, ao invés da alegria esperada, a recebe furioso pois a danada não tinha que sair do buraco que estava com os meninos. E, a partir desse dia, nada mais foi como imaginou sua vida longe da seca. O marido vivia nervoso, não havia dinheiro para botar comida na boca de tanta gente, e mais furioso ficou quando soube que Santina estava prenha novamente. De presente, ela ganhou mais uma surra. E de surra em surra, Santina morreu deixando os dois pequenos e mais o bebê recém-chegado, uma menina, à mercê de Deus. E o marido, talvez arrependido de seus atos, matou-se também pensando assim pagar os seus pecados. E aí começa a história de outra Maria – Maria Benilda, a pequena trazida de Caruaru por sua mãe Santina, que retorna para a cidade natal pelas mãos de um parente da mãe que, não podendo ficar com todos os órfãos, deixa o menino para outro parente e a pequena caçula para adoção. Apesar da pouca idade, Maria jamais esqueceria sua irmã pequena que viu crescer na barriga da mãe entre as surras presenciadas, por toda a vida em que estudou, cresceu, casou. Cresceu sabendo onde a menina estava e com quem estava, mas aprendeu que o assunto era proibido e que a pequena jamais poderia saber que também tinha irmãos. Essa era a regra da adoção, já que ela não sabia que fora adotada. E assim vivia Maria na angústia do desejo secreto, o desejo de um dia juntar o que vida separou – seus irmãos. Em 1976, assistindo o encontro dos gêmeos separados na novela “Duas Vidas”, com o ator Toni Ramos, Maria tomou coragem e decidiu procurar a irmã caçula que, como soube, estava recém-casada. “Agora ela já é dona de sua vida e entenderá melhor a revelação de que foi adotada.” – assim pensava. Mas como dar essa notícia sem ser pessoalmente já que era grande a distância entre as cidades que viviam? Uma em Caruaru e a outra no Rio de Janeiro. Não havia dinheiro para uma viagem tão longa e de elevado custo. Pensou enviar uma carta. Não era má ideia, mas necessitava falar com ela, ouvir a sua voz. Por telefone? Até contar toda a história de suas vidas, a conta seria impossível de se pagar naqueles tempos. Em um estalo, optou em gravar uma fita cassete que seria enviada pelo Correios. E assim foi feito. Pensou antes em todos os detalhes, até o fundo musical com a música do Roberto que lhe tocava a alma e que tocaria também a alma da irmã separada ainda bebê. E gravou a longa história com todos os detalhes, regravou, tornou a acertar a gravação por muitas vezes até ter a convicção de que estava perfeita para ser enviada. Pegou o telefone trêmula. -Alô. Quer falar com quem? - Alô. Aqui é ... (engoliu seco e falou quase num sussurro) Maria Benilda. - E quem é você? - Você não me conhece. Sou sua prima de Caruaru. – O choro na voz é percebido do outro lado da linha. - Prima? Não sabia que tenho prima nesta cidade. E porque você chora? - Você assiste a novela “Duas Vidas”? - Sim. - Então entenderá o que tenho para te contar. Estou te enviando pelo Correios uma fita cassete gravada com a nossa história, a história de nossa infância. Quero muito te ver... Um silêncio se faz seguido do sinal de desligado. Está abalada, sem possibilidade de continuar. A menina caçula chora também. Seu coração diz que aquela moça é mais do que uma prima. Passa dias bisbilhotando a caixa de correspondência por mais de três vezes ao dia, ansiosa. Não dorme mais pensando no telefonema misterioso e na encomenda a receber, mais misteriosa ainda. Um dia, o rapaz funcionário do Correios, que já partilhava da ansiosa espera, chega sorridente sabendo que está trazendo uma encomenda especial. Vinha numa caixa fechada, bem lacrada. No interior a fita cassete. Com as mãos trêmulas da certeza que dali viria algo que mudaria a sua vida, introduziu a fita no velho gravador. Junto com a comovente revelação, veio o resgate de uma história e também o resgate dos laços que uniu os irmãos separados por uma tragédia. A fita cassete enviada através do Correios foi o marco de nossa história e o encontro com nossas raízes. Após receber essa encomenda, a minha vida não foi mais a mesma. Hoje voltamos a ser a família que nossa mãe provavelmente desejava. Guardei essa fita por muitos anos até que numa enchente ela se foi pelas águas. Por um momento meu coração ficou apertado, mas logo percebi que já não havia mais razão para ela continuar guardada, cumpriu sua missão. Autora: Vera Rocha, irmã caçula de Maria Benilda Silva.
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