MANOEL THIARDS
Nascera de uma tribo Bando na África Setentrional, éramos catequisados por Jesuítas portugueses. Lá aprendi a escrever e ler, ouvia a palavra de Deus e desconsiderava toda a nossa história que era apenas fruto das palavras dos anciões.
Meu pai um guerreiro respeitado por ser grande e muito forte, sempre campeão dos torneios da nossa tribo ou nas competições com as tribos amigas e vizinhas. Ele também era um dos líderes em obediência ao nosso Chefe Supremo. Tínhamos nossas leis e crendices que pouco a pouco eram derrubadas por aqueles que diziam querer nosso bem e dar-nos acesso ao mundo vigente.
Minha mãe uma mulher bonita de cor negra forte, cuidava da casa e fervorosamente se curvava as instruções e histórias contadas pelos Jesuítas. Éramos cinco irmãos entre a puberdade e a infância tendo a inocência pura a nossa maior virtude. Isso viria a ser nossa desgraça.
Tínhamos uma vida relativamente fácil e corriqueira dentro das normas tribais e com a aquiescência daqueles que nos ensinavam a respeitar as leis de Deus e o estudo sobre a vida dos brancos europeus e sua forma de interação entre as pessoas.
Em uma batalha eterna pelas terras ao longo do rio em que morávamos e tirávamos nosso sustento, defendendo nossa primazia, a vida de nosso povo e daqueles que nos traziam a palavra de Deus. Meu pai após grande feito cantado em verso e prosa pelos arautos tribais fora ferido em batalha e depois de muita reza, curandeirismo e unguentos falecera sendo enterrado segundo as leis cristãs em frente a nossa casa guardando-a para todo o sempre.
Conseguira afastar os invasores a custo de poucas vidas de nossa tribo, da vida dos brancos e padres que conosco viviam. Armado de um grande porrete que não podia ser levantado por um só homem invadira o campo de batalha tendo o corpo pintado em cores muito fortes em vermelho, verde e branco e como um deus na terra aterrorizara os rivais que julgavam ser ele enviado divino pela...
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Nascera de uma tribo Bando na África Setentrional, éramos catequisados por Jesuítas portugueses. Lá aprendi a escrever e ler, ouvia a palavra de Deus e desconsiderava toda a nossa história que era apenas fruto das palavras dos anciões.
Meu pai um guerreiro respeitado por ser grande e muito forte, sempre campeão dos torneios da nossa tribo ou nas competições com as tribos amigas e vizinhas. Ele também era um dos líderes em obediência ao nosso Chefe Supremo. Tínhamos nossas leis e crendices que pouco a pouco eram derrubadas por aqueles que diziam querer nosso bem e dar-nos acesso ao mundo vigente.
Minha mãe uma mulher bonita de cor negra forte, cuidava da casa e fervorosamente se curvava as instruções e histórias contadas pelos Jesuítas. Éramos cinco irmãos entre a puberdade e a infância tendo a inocência pura a nossa maior virtude. Isso viria a ser nossa desgraça.
Tínhamos uma vida relativamente fácil e corriqueira dentro das normas tribais e com a aquiescência daqueles que nos ensinavam a respeitar as leis de Deus e o estudo sobre a vida dos brancos europeus e sua forma de interação entre as pessoas.
Em uma batalha eterna pelas terras ao longo do rio em que morávamos e tirávamos nosso sustento, defendendo nossa primazia, a vida de nosso povo e daqueles que nos traziam a palavra de Deus. Meu pai após grande feito cantado em verso e prosa pelos arautos tribais fora ferido em batalha e depois de muita reza, curandeirismo e unguentos falecera sendo enterrado segundo as leis cristãs em frente a nossa casa guardando-a para todo o sempre.
Conseguira afastar os invasores a custo de poucas vidas de nossa tribo, da vida dos brancos e padres que conosco viviam. Armado de um grande porrete que não podia ser levantado por um só homem invadira o campo de batalha tendo o corpo pintado em cores muito fortes em vermelho, verde e branco e como um deus na terra aterrorizara os rivais que julgavam ser ele enviado divino pela força descomunal que usava para manusear a arma em suas mãos. Mas, fora ferido aparentemente sem gravidade e sem a percepção dos inimigos. Porém, deveria haver na ponta daquela lança que o acertara um veneno qualquer que atingindo a corrente sanguínea o fez definhar rapidamente sem que os brancos médicos e nossos negros curandeiros pudessem esboçar qualquer defesa.
Os meses se passaram, várias estações e neste meio tempo meus irmãos Manoel Sebastião, Manoel Joaquim e André, faleceram por doenças trazidas pelos homens brancos. Diziam os jesuítas que eles partiram para proteger o falecido pai por ordem do Criador, eles tinham respostas acalentadoras para todos os males e nós inocentemente aceitávamos tudo isso como normal.
Sobraram Joaquim Pedro e eu, ele coitado sofria de uma doença que o fazia desmaiar em qualquer lugar que estivesse sem um aviso prévio. Minha mãe cuidava dele com um zelo extraordinário.
Mais meses se passaram e principalmente os brancos colonialistas e os jesuítas iam sendo trocados e enviados para outras Missões. Muito poucos brancos comerciantes e pretos trabalhadores ficaram. A memória do feito de meu pai apagava-se continuadamente.
Meu nome dado por um frei que me batizara, dizia que Manoel era uma homenagem ao Rei de Portugal feito com todos os nascituros da aldeia, sendo o segundo nome o que realmente os diferenciava na tribo. Meu segundo nome conforme explicação dada na pia batismal era uma homenagem do Frei Jesuíta a um pretenso anjo com o qual ele tinha devoção e uma fé para atendimento de graças.
Tínhamos então um grupo de brancos novos e sem qualquer vínculo com o passado da aldeia. Eles chegaram e encontraram a aldeia arrumada e funcionando em nome de Jesus Cristo.
Eu comecei a observar que pessoas adoentadas começaram a desaparecer na aldeia, vinha saber que por morte súbita ou viagens para tratamento indicada pelo Doutor novo que chegara em nossa comunidade. Eu em tenra idade aceitava isso como normal e os mais velhos faziam vista grossa para esse ou aquele caso.
Até que um dia meu irmão desmaiara dentro da Igreja em pleno culto e minha mãe com outras mulheres o retiraram rapidamente tentando não deixar que os brancos percebessem o ocorrido. Porém, elas não foram rápidas o suficiente e alguns mais próximos ao local perceberam o que ocorrera.
Meu irmão fora levado para a tenda de serviços médicos porque demorara um pouco mais do que o normal para acordar. Esses males nunca duravam mais do que alguns minutos, mas desta feita o tempo fora excedido e deu chance que outros percebessem o ocorrido.
Na tenda considerado um homem doente e fraco para o trabalho ele foi retirado na madrugada por outros negros e enviado para o que seria um Hospital em cidade proxima. Minha mãe gritou, blasfemou, queria maior explicação e chorou muito conseguindo apenas saber que ele estava bem e aos cuidados de médicos competentes. Nos disseram que ele sumiria por uma noite e quando voltasse contaria com saúde o que acontecera. Doce engano, ardilosa mentira, nunca mais ouviríamos falar dele.
Um dia acordamos com um chamado de reunião na área central da vila, este chamado era para homens e mulheres de qualquer idade. Imaginei que seria uma palavra do nosso Chefe Tribal para novas atividades na tribo. Tínhamos bastante trabalho de lavoura e fornecíamos muita fruta e verdura para nosso povo vendendo também aos homens brancos e arredores. Tínhamos um bom conceito de povo ordeiro e trabalhador.
Os brancos começaram separando homens solteiros, casais com filhos pequenos, velhos saudáveis e mulheres viúvas ou solteiras sem filho. Eu ficara separado de minha mãe mas podia vê-la no grupo em que ela estava.
Essa operação durara toda a manhã e eles sabiam bem o que estavam fazendo, obrigando-nos a não ir para o trabalho e aguardar novas ordens. Feita a seleção conforme planejaram liberaram para suas tendas os casais com filhos pequenos e aqueles pais e filhos maiores foram incorporados ao grupo de homens solteiros.
Velhos e Senhoras saudáveis se juntaram a homens solteiros e mulheres solteiras respectivamente. Os liberados receberam ordens de entrar em suas tendas não saírem, não olharem para fora e se mantivessem calados sob pena de severos castigos divinos.
Velhos e Senhoras com problemas de saúde foram encaminhados para outra área aguardando exames que os levariam para a lavoura ou os encaminharia para o Centro Médico, nesta altura o terror de qualquer pessoa de nossa tribo.
Enfim homens e mulheres em condições de trabalho foram colocados em carroças e levados para o que seria um trabalho essencial programado pelo governo branco e pelos padres jesuítas.
Começamos a prever que o trabalho seria de muito suor e esforço e ao chegarmos ao cais do porto depois de vários dias de viagem terrestre, compreendemos que teríamos muitos dias no mar até o destino final e início das tarefas programadas. Estamos indo para o desconhecido e no escuro.
Nosso temor inicial era o enfrentamento com tribos que não aceitassem nossa presença e precisássemos de cobertura de homens armados brancos para conclusão das tarefas. Nossa ilusão iria se desfazer tão logo em alto mar descobríssemos que estávamos a caminho da escravidão. Rumo a um país distante e desconhecido para nós.
Nosso grupo se desfez na chegada ao porto de partida fomos colocados em três navios diferentes, sem critério algum eles nos separaram. Como eu estava ao lado de minha mãe fui parar com ela no terceiro navio. Os Tumbeiros como os negros alfabetizados o chamavam era mesmo uma tumba onde amontoados os escravizados morreriam em grande parte antes de chegar ao porto.
Ao entrar pude verificar que a maioria dos escravizados eram jovens como eu tinham entre 8 e 24 anos, todas as etnias e deficiências possíveis, do cego ao surdo, de chefes religiosos a príncipes e guerreiros, mulheres com bebes e grávidas. Os homens para o serviço braçal as mulheres para trabalhar em colheita ou na cozinha, as prenhas para dar mais mão de obra aos poderosos brancos.
Muitos chegaram ao porto na base do chicote e muitas agressões sofridas, mas nosso grupo era tão inocente que chegou em perfeita saúde e harmonia enganados que fomos desde sempre.
Padres jesuítas, brancos colonizadores, negros apátridas, todos ganhavam com aquele comercio nojento, onde pessoas eram metidas em cargueiros sem as mínimas condições de vida eram levadas para trabalhar até morrer em condições sub-humanas.
Os homens quase sempre nus permaneciam sentados em um chão repleto de fezes, urina que eram lavadas com agua do mar uma vez em cada quinze dias. As mulheres com as mamas a mostra tinham que ter um homem forte e disposto a lutar ao seu lado para não ser violentada tanto por negros escravizados quanto por brancos da tripulação do navio.
No nosso navio estavam negros sudaneses, gente da Nigéria e Costa do Marfim, nós bandos de outras tribos que vinham de Angola, Moçambique e Congo.
Uma viagem infernal que durou sessenta e dois dias, onde a fome a sede e as doenças consumiam o povo negro. Não havia nenhum tipo de higiene, navios com espaços escuros e sem luz, onde o Sol não tinha nenhum prazer em entrar. Os mortos sempre que por doença contagiosa eram lançados ao mar para manter limpo aquilo que eles brancos chamavam vida.
Eu me agarrava a minha mãe na tentativa de mantê-la a salvo dos negros sedentos de sexo e dos marinheiros que se divertiam vendo as mulheres sendo estupradas na frente de todos com gritos e aplausos daqueles que assistiam à barbárie. Os marinheiros diziam ao divertir-se que mulheres grávidas seriam um presente ao Senhor da Fazenda e assim eles mesmo escolhiam as mulheres e as vandalizavam obrigando-as as mais torpes humilhações.
Os homens eram obrigados a dançar nus no convés em dias de muito sol para que se mantivessem fortes e ativos. Os marinheiros faziam apostas naquele que melhor desempenhasse a dança ou mais tempo ficasse de pé.
Trocavam apostas em mantimentos entre eles ou mesmo agua. Aqueles negros vencedores ganhavam uma escrava para ser possuída sexualmente na frente de todos os marinheiros sendo que no fim tanto o homem como a mulher eram vítimas de grande quantidade de esperma que os brancos lançavam sobre eles aos gritos de gozo e satisfação. Essa atividade incentivada pelos Capitães tinha a finalidade de manter os marinheiros felizes e sem pensar em revolta ou algo semelhante.
Os negros que reclamavam eram acorrentados e seus desafetos aproveitavam para machucá-los fisicamente e até matá-los se a vingança assim o desejasse.
Minha mãe escondia-se o máximo possível, tentava passar despercebida e me carregava as vezes como se eu fosse um doente mental para evitar todas barbaridades que assistíamos sem nada poder fazer, todavia, não compactuávamos com as alegrias e diversões dos assistentes.
Uma noite fui agarrado por dois homens negros fortes que me arrancaram dos braços de minha mãe e me mantiveram preso enquanto um terceiro também negro montou sobre ela obrigando-a fazer sexo com ele. Ela se debatia e isso o encorajava mais, as pessoas foram acordando devido aos gritos de minha mãe e encorajavam o covarde a fazer mais e mais.
No fim ela cansada, cedeu como qualquer outra mulher já havia feito e ele a possuiu na minha frente enchendo meu coração de ódio. Eles se vingavam, por inveja daquela que nada sofrera até então. Mães, meninas e até meninos pequenos sofreram com esses monstros que eram encorajados pelos brancos.
Assisti outra vezes mulheres e crianças passarem por isso, vi minha mãe transformar-se em um trapo humano, perder toda a beleza e desejar morrer. Todas as noites havia alguém para ser estuprado. As tardes no convés os marinheiros brincavam de ejacular no dançarino e na sua escolhida. Até ela a minha rainha passou por isso e nada eu pude fazer. Eu chorava pela impotência e jurava poder me vingar um dia.
Deus com certeza não andava de navio e Jesus apesar de andar sobre o mar não vinha por estas paragens, talvez o alto mar fosse muito longe para as andanças do Criador e seu filho.
Um pouco antes da chegada aquela bela mulher, esposa do maior guerreiro de nossa tribo já não era mais a mesma. Muito doente e com erisipela espalhando-se pelo corpo, olhada com desprezo por aquelas que afortunadamente estavam sãs, grávidas de marinheiros ou de escravos, com doenças sexuais ainda não latentes. Ela veio a falecer em meus braços.
Tentei esconde-la dos demais, colocando-a de lado em posição de sono, dizendo que ela estava dormindo, porém eles estranharam o tempo muito grande de sono e resolveram averiguar. Visto que estava morta chamaram aos gritos os marinheiros para retirar dali aquele corpo já em início de decomposição.
Neste meio tempo, principalmente próximo a chegada do navio ao cais tivemos que enfrentar tempestade forte com raios e muitos trovões, ficávamos apavorados achando que as novas terras seriam amaldiçoadas e habitadas por terríveis monstros. E nem sabíamos o que nos aguardava.
Fomos catalogados, separados por sexo e daí separados por atividades que poderiam ser por nós efetuadas segundo os conceitos e experiências daqueles acostumados a receber o povo negro escravizado.
Chegamos então as novas terras, doentes e fracos, cheios de feridas e com vermes, magros tendo em vista a pouca comida e pouca agua recebida nestes dois meses de viagem. Fomos enviados para a limpeza de pele, cortaram nosso cabelo, fizemos a barba e por fim recebemos um óleo vegetal para passar na pele. Todos ao sair recebiam uma porção generosa de tabaco para mascar que funcionava como um estimulante dando ao pobre diabo uma aparência mais saudável.
Observei então que homens adultos tinham um tratamento melhorado e eram expostos para trabalhos braçais. Os preços obtidos na venda com certeza eram melhores. Homens altos e magros eram ainda mais valorizados pois seriam designados para além do trabalho serem reprodutores.
Observei que as mulheres também tinham uma forma de seleção, as magras serviriam nas casas coloniais as mulheres fortes e troncudas seriam encaminhadas para trabalhos na lavoura de quintal. As de fartas ancas e seios seriam as parideiras. Seus filhos eram vendidos ao desmame e podiam ter filhos tanto de escravos como também do Senhor dono da negra parideira, neste item poderiam ser filhos e amigos do proprietário. Nenhum direito possuía sobre o rebento que já nascia escravo.
Diziam os vendedores que por serem largas e com quadris espaçosos não sentiam dores podendo ter quantos filhos o patrão desejasse, elas não estavam liberadas dos serviços da casa, podendo trabalhar, cozinhar e costurar ou qualquer outra coisa que fosse necessário até a hora do parto que era feito por velhas que já haviam passado por esse mesmo destino.
As mulheres que perdiam o poder de gerar eram enviadas ao campo para servir aos homens trabalhadores da lavoura. As escolhidas pela paciência ou submissão ficam na Casa Grande para serem as aparadores de negrinhos.
Feita a seleção vinha a exposição e venda aos Senhores e Senhoras vinham a praça para procurar o tipo de negro desejado e em função do serviço a que destinava. Todos nós limpos e brilhando a luz do sol pelo uso do óleo que fora servido éramos examinados de todos os jeitos, incluindo a dentição e em alguns até o tamanho do pênis. As mulheres eram observadas pelo trato e pelos peitos leiteiros que podiam ostentar.
Alguns novos donos não tinham o hábito de ferrar a fogo o escravo comprado, porém a grande maioria dependendo da região e do trabalho a que destinava o pobre coitado mandavam marcar seu escravo escolhido logo após o pagamento evitando assim a fuga e perda do valor pago.
Os locais pelo corpo de marcação eram os mais diversos possíveis, marcava no rosto do escravo aquele patrão que já tivera muitas fugas, marcava no peito e nas costas aqueles que normalmente trabalhassem com o gado e qualquer outro lugar era sempre ao bel prazer do proprietário. Ouvia-se gritos e choros nos locais de pagamento e ferração dos escravos escolhidos.
Lembrava da religião dos freis Jesuítas e pensava que tanta atenção se dera para que a venda de nossa aldeia fosse na verdade lucrativa. Onde anda o Deus desses homens? Fomos enganados, usaram nossa inocência e nos venderam como gado para pessoas sem a menor consciência, não nos consideravam seres humanos e éramos para alguns menos que uma égua.
Estava então eu ali no meio de um grupo completamente desconhecido para mim. Negros com certeza de outro navio, ninguém se falava, talvez por medo, porém todos limpos e cheirando a cravo. Eu pensava somente em minha mãe linda e formosa de pele reluzente, naquela hora, ela iria brilhar mais do que aquelas negras peitudas que compunham o meu grupo.
O medo imperava, ouvíamos o grito que vinha dos desesperados que tinham sido comprados e eu olhava para as pessoas procurando marcas em seus rostos ou mesmo no dorso. Alguns já estavam marcados desde a captura, nosso povo veio tão docilmente que eles nos dispensaram de marcação.
Nossos deuses com certeza haviam nos poupados de tamanha maldade, já que o Deus deles não tivera pena de nossa Aldeia lançando-nos nesta miséria de vida mesmo tendo nossa obediência e devoção.
Aproximou-se de nós um homem branco de media estatura. Tratado como Dom Fernando, acompanhado de uma mulher também branca que vestia uma roupa grande e limpa de cor desconhecida por mim, que evitava sujar-se no meio daquela praça e de pobres molambos, depois eu soube que se tratava de um rico espanhol e sua esposa, comerciantes a procura de escravos de boa imagem para colocar-se a serviço de seu negócio de compra e venda de panos, sedas e pequenos objetos de uso da corte.
Com certeza eu ainda teria muito que aprender nessa nova vida. Eles estavam segundados de um preto feio com cara de poucos amigos que apontava aqueles negros que poderiam ser objeto de apreciação do casal.
O Sr. Pestana, como era chamado, trazia em sua corrente amarrada na cintura como um cacho de uva uma escrava de pouca idade e uma senhora gorda que depois em soube ser conhecedora dos segredos de forno e fogão e dos quitutes afros. As duas pobres coitadas de peito a amostra e pele reluzente caminhavam apavoradas atrás do feitor como vacas escolhidas.
O medo com certeza era do desconhecido e principalmente da marcação que viria após o pagamento efetuado. Todos sabiam que sairiam dali marcados a ferro e fogo para evitar a fuga e a confusão de compra no meio daquele mercado louco e malcheiroso. De repente eles pararam na minha frente, perguntaram meu nome que respondi ser Manoel Thiards, eles riram da minha explicação nervosa e a negrinha olhou para mim com aprovação discreta e tímida, baixou os olhos antes que o feitor ou Dom Fernando e sua mulher Dona Odete pudessem perceber alguma coisa.
Me perguntaram coisas sobre a minha história e sobre minha família, contei de nossa vida na aldeia e falei de minha mãe e seu sofrimento dentro daquele navio nojento e da diversão dos marinheiros. Com lágrimas nos olhos falei de nossa vida antes da grande enganação sofrida, na crença em um Deus único e do meu batismo cristão.
Em pouco tempo e breve relato selei meu destino com aquela família, eles pareciam estar satisfeitos com minha tenra idade e meu pouco conhecimento sobre a vida e suas agruras. Fui escolhido pelo Sr. Dom Fernando e sua mulher e atrelado ao cinto do Feitor Sr. Pestana.
Levados a sala de pagamento, aumentaram nossos temores ao ver sair daquele espaço negros fumegantes e cheirando a carne queimada, desesperadas criaturas em cachos como nós. Chegara nossa hora de ser ferrado e marcado. Pedia a Deus que não fosse no rosto. Que Deus eu poderia apelar se nem minha vida ele pudera poupar, estávamos ali abandonados a nossa sorte e vontade do nosso feitor.
Depois do pagamento e de trocas ajeitadas por nosso recente proprietário, fomos levados ao local de marcação e lá ficamos assistindo aos gritos, choros daqueles que nos precedam no fechamento das negociações. Chegaria nossa vez sem dúvida, tremíamos como varas ao vento. Queria chorar e não tinha força para tanto sofrimento.
Nosso feitor, negro forte com uma cicatriz no rosto, fruto de marcações antigas nos disse: - Nosso patrão e família, não tem o hábito de marcar a ferro e fogo suas propriedades vivas. Essa marca que trago no rosto é de um antigo dono de escravos de quem fui comprado a alguns anos.
Mas, vejam bem o que acontece aqui. Escravos fujões ou que cometam faltas consideradas graves terão seus rostos marcados a ferro e fogo indicando o pecado cometido e depois vendidos em breve oportunidade sem pena ao primeiro que oferecer qualquer mil réis para serviços imundos e malcheirosos.
Lembrem-se do que estão vendo aqui se quiserem ter uma vida decente e sem preocupações de maus tratos.
Fuga será sempre punida desta forma e faltas graves vocês descobrirão antes de comete-las. Sejam obedientes e não tenham pensamentos sujos e se livrarão destes castigos. Na Casa Grande aprenderão como se portar, receberão roupas novas e devem sempre se lembrar da bondade de seus patrões e até onde pode chegar minha maldade em caso de necessária reprimenda.
Na casa grande de dois andares que eu nunca tinha visto em vida moravam D. Fernando, sua esposa Dona Clotilde, a filha Maria Rosa e o filho Pedro que chamavam de Tito (de Pedritito), nos fundos da casa o feio e cara de mau Sr. Pestana (homem de confiança do espanhol comerciante de tecidos e rendas). Dom Fernando e Dona Clotilde viviam do comercio e levavam suas mercadorias as classes mais abastadas e principalmente a Corte.
Minha função maior seria acompanha-los carregando as mercadorias para que fossem apresentadas aos fregueses. Fora isso deveria servi-los em todos os seus desejos, acompanhar o menino Tito que tinha mesma idade que a minha.
Eu o considerava um amigo, ele me considerava um brinquedo grande, juntos andávamos pelas ruas do centro, hora carregando grandes embalagens, hora somente vadiando. Mas, eu deveria sempre estar atento para não o contrariar.
O castigo mais comum era a humilhação em frente a terceiros com tapas na cara ou palavras injustas que doíam como pedradas. Eu era um negro bonito e estava ficando cada vez mais forte como meu pai. Aos 16 anos eu carregava sacolas para a Dona que tinha um certo orgulho em me exibir aos seus clientes como exemplo de escravo bem-criado, limpo e bem-educado.
Sob a casa em um porão com chão de terra, viviam os serviçais negros, a cozinheira e arrumadeira chamada por todos como Maria Gorda, ela veio no mesmo dia que eu para substituir a antiga Preta Mãe que falecera por doença contagiosa que nunca me explicaram. Outra que veio conosco e que tinha verdadeiro pavor da presença do nosso Feitor era a jovem Angelita que na verdade tinha um nome afro mais que Dom Fernando batizara no dia que a escolhera no mercado. Jamais saberíamos seu nome verdadeiro.
O porão muito baixo e úmido não nos deixava ficar de pé e era para a cozinheira um tormento para entrar e sair o que ela somente conseguia fazer andando de quatro esfregando os joelhos naquele chão de pedrinhas.
Além de nós, encontramos lá um velho negro que era o xodó da família, ele tinha muitos anos de serviços e acompanhava D Fernando na loja comercial quando assim se fazia necessário. Ele também tinha muita dificuldade para entrar e sair da Senzala, porém não reclamava o que servia de exemplo para todos nós segundo o nosso feio Feitor, ele além de acompanhar tinha a função de manter tudo funcionando na casa e sempre em perfeito estado.
Nossas camas de enchimento em panos velhos e retalhos tinham a espessura de um dedo mindinho. Cobriam apenas o chão e deixavam para nossas colunas e dorsos as pedrinhas que o mau tempo sempre trazia. Combinamos que manteríamos limpo aquele lugar que nos servia apenas para dormir e nunca para ficar já que não tínhamos tempo para descansos durante o dia.
Como vivíamos na casa, tínhamos oficialmente uma refeição por dia, sempre a noite antes do recolhimento. Porém, a liberdade de dona Maria em comandar as comidas servidas na casa, servíamo-nos daqueles restos não tocados pelo Senhores e seus filhos em visitas sorrateiras que fazíamos a cozinha no decorrer do dia. Até o Senhor Feitor participava como uma maneira de comprar a amizade dele para conosco. A agua de beber era farta, servia também para disfarçar a fome quando não havia sobras que nos alimentasse.
Bem, eu crescia e ficava cada vez mais bonito e Dona Clotilde tinha o maior prazer em me exibir. Ele mandava fazer roupa e luva para meu uso e quando ia a Corte tinha prazer em me levar mostrando que eles tratavam como gente os pobres escravos, sua propriedade. Somente aqueles humilhados é que sabem seus dissabores.
Andar bem vestido em roupas limpas sem aparentes açoites não condizia com a verdades que suportávamos com medo de coisas muito piores que nos poderia acontecer conforme nos relatava o Senhor Sebastião – xodó da família de Dom Fernando Rodrigues e Parma.
Dona Maria me mandava tomar banho e fiscalizava para ver que estava realmente cheiroso segundo os conceitos de D. Clotilde. Ela me ajudava a vestir as roupas recebidas que sempre eram bem passadas e limpas por Angelita tendo elas a obrigação de me apresentar muito bem e eu em corresponder com apresentações corretas e dignas de um Cavalheiro. Eu achava aquilo muito engraçado, mas não tinha coragem de rir da situação. Seria castigado na certa.
Estava me tornando um homem e os olhares de Dona Maria não eram mais os mesmos. Ela agora me olhava com ideias diferenciadas, com risinhos e cara de avidez. Um dia ao me ajudar vestir as partes de baixo da roupa ela tocou sem querer em meu membro. Tive uma reação instantânea e ela o segurou com as duas mãos dizendo que eu não poderia ter aquela reação em frente as freguesas e que aquilo seria falta considerada grave. Dizendo então me ajudar ela abocanhou meu membro e o chupou até vê-lo gozar duas vezes, sorvendo todo o prazer que pudesse vendo-o desabar cansado. Amarrou então uma cinta de pano de modo a não permitir que em caso de nova reação pecaminosa fosse notado por ninguém aquele movimento.
Bom, eu estava protegido dos males da sociedade e feliz em me arrumar cada vez que a Senhora me requisitasse em acompanha-la. Isso aconteceu assim por uns três meses, agora aprendera e contar o tempo, já sabia o que era verão e inverno. Tenho certeza que a Senhora sabia o que estava acontecendo, porém ela fingia não se importar provavelmente sabendo que isso era uma maneira de manter o escravo na linha sem fazer feio diante dos clientes.
Um outro dia, Angelita veio trazer as roupas passadas e limpas muito em cima da hora do banho e ficou no quarto esperando que fosse terminada a função atribuída a Dona Maria Gorda. Ao me ver no banho ficou também excitada e pediu a cozinheira que a deixasse entrar naquela banheira. D. Maria que não queria perder a oportunidade de sempre poder chupar avidamente aquele membro grande e novinho consentiu desde que ela também fizesse o mesmo que ela.
E assim ganhei duas negras que me adulavam todos os dias. Depois soube pela menina que várias vezes ela fora abusada de várias formas por Tito e seus amigos, que Dom Fernando sabia e que incentivava, pois considerava isso uma forma de afirmar a masculinidade do menino.
O tempo passava e em várias ocasiões fui chamado a acompanhar Dona Clotilde a Corte ou a casa de grandes senhores e suas esposas para levar mercadoria que era apresentada e isso era uma festa para mim e para elas. Considerava difícil que a patroa não soubesse, para mim era como estivesse estampado na minha cara e na de Dona Maria.
Muitas vezes assisti terrivelmente assustado surras e chicotadas aplicadas nos troncos, em escravos que cometeram faltas na casa de outros Senhores, era uma coisa normal aplicar castigos físicos, eu agradecia a Deus não sofrer essa maldição e ter a vida tranquila que tinha. Sabia, porém, que isso era uma sorte que mais ninguém tinha e que era preciso preserva-la.
Tinha então como objetivo de vida assistir a morte do Senhor Sebastião e poder ocupar o lugar dele até que chegasse a minha hora. Aprendi melhor a falar a língua portuguesa, me fazer entender, a falar o castelhano de Dom Fernando e família.
Já não precisa mais de presença de Dona Clotilde e fazia as visitas sozinho, levando o grande fardo de tecidos e explicando da mesma forma que era feito nas visitas que eu fora espectador. Minha terra estava ficando cada vez mais distante em minha memória.
Após cinco anos efetuando sozinho estas visitas e vendas na Corte e em casas de Senhores de engenho ou Comerciantes de outros ramos como sapatos e de joias ainda de aparência jovem e sempre bem vestido, soubera do falecimento de Dona Maria Gorda e do aproveitamento de Angelita no negócio de Dom Fernando na loja diretamente envolvida.
Em épocas de vagas magras fui chamado pelo Patrão para conversar, achando que seria cobrado pelas fracas vendas, fruto da desorientação financeira do país, conhecendo bem mais meu local de trabalho e a região da Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro onde sempre vivi depois de deixar minha terra natal fui para tal reunião com o coração apreensivo.
Para minha surpresa o que ele me propôs era a Alforria imediatamente mediante a assinatura de um documento com uma dívida de oito anos pagas mensalmente com a venda dos produtos da loja, com liberdade da inclusão de outros produtos a minha escolha e expensas. No caso de falta de cumprimento dos artigos pautados, de qualquer falta grave, ou o não pagamento por mais de três meses da mensalidade acordada, teria que cumprir a condição de escravo novamente podendo ser vendido para suprir o eventual prejuízo causado.
Era um passo muito grande e que em caso de falha traria de volta tudo aquilo que havia odiado e com a novidade de estar em condições de ser ferrado fisicamente acabando de vez com as chances de liberdade. Teria que tentar ou morrer tentando.
Fiz um pacto comigo mesmo, pedi ao Senhor patrão as roupas por mim usadas e que não serviriam em outra pessoa, pedi para deixar Senzala e me comprometi em informar minha nova moradia a Dom Fernando e ao antigo Feitor. Trabalhar era preciso, não era mais uma questão de sustento, era agora uma questão de vida.
Carregaria comigo uma adaga árabe, presente de um cliente também espanhol para lembrar-me de que se falhasse teria que usá-la para evitar a morte em vida. Agora era viver, vender, pagar ou morrer.
E a luta começou...
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