E: Primeiro queria pedir-lhe que se identificasse, que dissesse o seu nome, o local e data de nascimento.
e: Ok. Eu sou a Isabel, tenho 63 anos, nasci no Porto e neste momento estou aqui por motivos vários. O motivo principal foi que eu tinha uma vida, tive uma infância, uma adolescência e uma educação muito nobre, muito satisfatória. Os meus pais se cá estivessem hoje iriam morrer de, enfim, por saber que estou aqui. Trabalhei 39 anos num hospital como técnica de radiologia, conheci muitos doentes, perdi muitos amigos, fiz muitos amigos. Neste momento tenho 5 amigos no coração, 5 só. Na altura tinha amigos e conhecidos, muitos, porque tinha uma vida muito preenchida, tinha uma vida... digamos com tudo. E neste momento, já não ligo a essa futilidade, já não digo a esses bens materiais, ligo a outros, desde que estou aqui. Perdi tudo, não por adições, nem por gastos, mas porque ajudei muito os meus filhos. Tenho 3 filhos, dei-lhes, portanto, casas próprias, fiz aquilo que podia dar, cá, etc. E neste momento, portanto, e nessa altura, que foi quando a minha mãe faleceu, há 5 anos, eu não estou aqui há 5 anos, estou aqui há um ano e meio, eu perdi a minha mãe, que ainda não consegui recuperar o luto da minha mãe, que era uma lutadora. O meu pai já faleceu há 42 anos, faleceu muito novo, mas a minha mãe era o meu pilar, a minha mãe era professora primária, era uma pessoa muito... muito sábia. Quando a perdi, fui-me muito abaixo, e cometi algumas loucuras, não más, mas loucuras não tão boas. E vim parar aqui, a este local, que eu desconhecia por completo. Via muita gente na rua, portanto, eu chamo de padecer e sofrer. E costumava sempre dar um contributo, eu não digo esmola, porque esmola é uma palavra muito... para mim é uma palavra muito... não diria feia, mas... sim. Eu contribuía, e nunca pensei que... chegar, não chegar... quer dizer, nunca dormi na rua, nunca..., mas essas pessoas tocavam-me muito, não me eram indiferentes, nenhuma delas. E fiquei sem a minha casa, tinha uma casa fabulosa, tinha... como disse, tinha tudo. E a minha irmã, tenho uma irmã mais nova que eu, 14 anos, que é psicóloga, tenho um irmão que é mais novo que eu, 2 anos, que é advogado, e... e eles trouxeram-me aqui. Aliás, foi a minha irmã que me trouxe aqui. Porque não havia nenhuma, digamos, nenhuma solução. Nenhum deles, nenhum dos meus filhos, tinha um local para eu ficar. Aliás, na altura, quando eu vim, ficaram... tive quase meio ano sem contacto com eles, porque eles tiveram vergonha da mãe, da mãe estar aqui. Não tinha visitas deles, não tinha telefonemas deles. A única que me acompanhou mais ou menos nesse período foi a minha irmã, que me vinha buscar, de vez em quando, para ir ver o mar, que eu adoro o amor, e para tomar um café, etc. Participei também... numa peça de teatro, que foi... com o [impercetível], que eu adoro teatro, adoro artes. Aliás, na minha adolescência, eu queria seguir artes, e o meu pai cortou-me as asas, dizia-me que não era uma profissão digna. Eu ainda tive um ano na faculdade de cinema, mas depois desisti e disse ao meu pai, na altura, que não era isso que eu queria. E depois tive um curso de tecnologia e, por incrível que pareça, por ironia do destino...
E: Foi parar a um hospital na mesma.
e: Fui parar no hospital, [risos] o que me satisfez bastante era uma coisa que eu gostava imenso, trabalhar. Na altura, também estava muito cansada e coincidiu com o período da minha mãe de ela estar doente, entretanto, pedi a reforma por invalidez e por... sei que vou ser penalizada. Estou à espera dessa solução, para poder sair daqui. Porque de outra forma, não consigo. Entretanto, o tempo foi passando, costuma-se dizer que o tempo cura e o tempo ajuda. Eu, neste momento, acho que o tempo ajuda. Também pode curar certas feridas. O meu coração fechou, continua fechado. É preciso uma chave muito especial para o abrir, isto em termos de namorados e dessas coisas todas. Mas, com o tempo, os meus filhos foram-se apercebendo que, de facto, eu fui uma boa mãe. Eu sou divorciada há 41 anos. Fui eu que cuidei deles, fui eu que lhes dei, portanto, os cursos e tenho 3 netos. Vou ter agora o quarto, que vai nascer em novembro. E sempre fui muito ligada à família, porque também fui educada com, digamos, com esses padrões. E tenho muito orgulho deles. Sempre tive. Apesar de haver aquele momento em que eles tinham vergonha da mamã, da mãe estar numa instituição, tinham vergonha. E depois começaram mais tarde a aperceber-se que, de facto, era uma situação que não havia hipótese, outra hipótese de... Nenhum deles tem um local para mim. Vou lá passar fins de semana, durmo no sofá, mas até podia dormir no chão, a mim não me mete confusão nenhuma, de todo. Fiz as pazes com o irmão. O irmão, como homem, era, digamos, o pilar, apesar de ser mais novo que eu, era sempre o pilar. E com os meus filhos e com os meus netos. Mas estive seis meses sem poder abraçá-los, sem sentir o cheirinho deles. E mesmo dos meus filhos. Neste momento as coisas estão a melhorar, no bom sentido, estão a melhorar mesmo. Já vou passar fins de semana a casa de uns, a casa de outros. A mais nova, que não tem filhos, que tem 27 anos, eles fazem uma diferença enorme, é a que é mais agarrada a mim, mas eu entendo, porque os outros têm filhos, os meninos têm atividades, têm o tempo mais ocupado, e a Catarina não. A Catarina não tem filhos, espero que não tenha tão cedo [risos], para bem dela, também. E é a que me tem, digamos, é a que vem mais vezes, a que está mais comigo, a que me envia mensagens amorosas, a que está mais comigo, a que, digamos, que me acompanha mais. Os meus irmãos, o meu irmão liga-me de vez em quando, porque ele também trabalha numa... É muito complicado, sai muitas vezes muito tarde. E às vezes lá me liga, saber se está tudo bem, etc. A minha irmã, pronto, é a que me é mais próxima, mas eles também vivem longe, eles vivem em Entre-os-Rios, é muito difícil, mas até se põem rápido cá. Agora, quando entrei aqui, no primeiro dia, dei um grito, antes de entrar, porque achei aquela porta horrível. Achei aquela entrada... Doeu-me muito, doeu-me muito. A minha irmã ficou ainda pior que eu, e eu tive que a empurrar para ela sair, para ela sair, para ela se ir embora. Depois mostraram-me o quarto, a cama, neste caso, onde eu iria ficar. Três noites não dormi, três noites cai abaixo da cama, porque a minha cama era muito grande, mas agora já estou habituada. Custou-me muito, durante três dias, não almoçava, não jantava, via pessoas que, pronto, não me identificava com elas, mas ao longo do tempo, fui vendo que nós somos seres humanos, somos pessoas, e cada um tem o seu problema. Alguns já foram lá para trás, muitos outros continuam a vivê-lo o que dá pena, porque nós temos de lutar por aquilo que queremos e por aquilo que merecemos. Eu não merecia, mas... se calhar, ou porventura, vim a merecer, estar aqui. Louvo estar aqui porque fez-me ver o mundo de outra forma, ver as pessoas, sobretudo, de outra forma. Eu sou uma pessoa muito sensível, eu não queria chorar, e noto que há pessoas aqui que... fiz uma certa amizade. Nós aqui não devemos fazer amigos. Mas eu já fiz alguns. Porque há sempre uma pessoa que tem mais conivência com as nossas atitudes, com os nossos valores. Vim reencontrar uma pessoa que já não via há imensos anos, há imensos, imensos anos, e uma pessoa educadíssima, que as nossas famílias até se davam bem. E vim reencontrá-la aqui, com muita pena minha, também. E fui fazendo assim aqueles amigos, não de coração, mas... também sou uma pessoa de trato fácil, e comunico com as pessoas, mas... temos de ser seletivos. Porque se não formos seletivos, isto sou eu a pensar, sou eu a pensar, se não formos seletivos, podemos nos magoar. Porque as pessoas podem aproveitar... aproveitaram-se muitas vezes, de mim, de cigarros, de dinheiro, etc. e eu dava, dava, dava... Isto agora não pode ser. Porque eu tenho de pensar na minha vida, tenho que juntar o máximo que posso, para poder dar o salto e para poder ter o meu canto. As minhas coisas, algumas das minhas coisas, estão guardadas numa box, que é uma das minhas filhas que me paga, essa box mensal. É lógico que eu não vou levar tudo, porque o cantão que eu tinha não dá, vou ter de vender muitas coisas. Dar não dou, porque já dei muito e não obtive nada em troca, mas eu também não era dar para obter, mas a vida hoje em dia mostrou-me, e com a maturidade que tenho, que as pessoas não merecem. Ou se dou é para venderem, ou se dou uma peça de roupa, não vejo, vejo noutra pessoa, se vejo..., portanto, prefiro dar aqui para as doações, do que dar às pessoas, porque as pessoas não valorizam essas coisas. São coisas que eu compro, roupa que eu compro, com muito gosto, que eu gosto, e gostava que as pessoas também, que as pessoas dizem "ah que gira camisa, ou que gira t-shirt, e essas calças, e não sei o que". Pronto, então, olha eu tenho mais duas ou três, e posso-tas oferecer, e não vir a pessoa com isso depois... comecei a, digamos, a cortar. Aprendi muito aqui. Aprendi a ser mais humana. Eu sou humana, mas os meus valores foram tomando um patamar mais alto. Degrau a degrau, eu fui vendo que isto aqui é uma passagem. Ninguém está livre de vir aqui parar. Mas levar isto sempre como uma passagem, e apanhar os melhores valores, os melhores conteúdos, aquilo que é bom para nós. É lógico que é impossível sermos, ou ignorar aquilo que se passa com as outras pessoas, porque essas pessoas convivem connosco, não é? no dia-à-dia. E é completamente difícil uma pessoa ignorar. Sei que há muitas pessoas que ignoram, mas eu não consigo. Eu sou capaz de me preocupar se a outra pessoa gritou, ou houve problemas. Isso mete-me muita confusão, e tento... até faço assim, que é para abaixar o volume, porque não gosto, sinceramente, não gosto. Agora, o meu objetivo de vida é mesmo sair daqui e recomeçar. Não ligar a... Lógico, tenho os meus livros, tenho uma coleção de livros, os meus quadros, e gosto imenso de pintar, tornar a visitar os meus museus, tornar a visitar Serralves, essas coisas todas que vocês sabem. E gosto muito de estar com pessoas jovens, porque trazem... fazem-me recordar coisas boas que eu tenho. E têm uma certa luz positiva, porque as pessoas da minha idade e as pessoas mais velhas só falam de doenças, só falam de tristeza, e porque o mundo está assim, e porque o mundo está... eu gosto de pessoas novas, gosto de... de luz. E... basicamente é isso. Vou lutar comigo. Já lutei comigo própria muitas vezes. Já bati assim, já pus a mão na alma, como eu costumo dizer, muitas vezes. Mas já sei aquilo que quero e aquilo que não quero. O principal é aquilo que eu não quero. O que eu quero eu sei, e aquilo que não quero também sei. E acho que vou conseguir chegar lá.
E: Sim... Vou regressar um bocadinho atrás.
e: Ok.
E: Já mencionou várias vezes a importância da sua família e do ambiente em que cresceu... ia-lhe perguntar, por um lado, se conhece a origem da sua família? Onde é que veio a mãe, o pai?
e: A minha mãe era de Braga. Vivemos lá há alguns anos. O meu pai era [impercetível] em Lamego, era de Lamego. Tínhamos casa em Ponta da Barca. Isto já quando os meus pais casaram, já, a minha mãe casou muito nova com 19 anos, tiveram em África. Eu fui... Eu quando... Engraçada esta história. Quando os meus pais vieram de África, eles foram de barco, na altura era aquele barco Maria, Santa Maria, ou qualquer coisa. E vieram depois de avião e eu já vinha dentro da barriga da minha mãe, eu fui feita em África. Foi uma infância com todos os valores. Com toda a educação. Na altura e... Eu acho. E transmitia aos meus filhos e aos meus netos. Eu cuidei do meu neto mais velho durante três anos. E também aliás, os meus filhos e os meus netos, são... digamos... há ali uma linha de continuidade. Tive uma infância feliz. E os meus irmãos também. A minha irmã não era nascida na altura, mas também teve. Uma adolescência incrível. Que fui a todos os festivais e mais alguns. Tanto aqui no Porto como fora. Cinema, tudo cultura. O meu pai... o primeiro livro que me ofereceu para eu ler, disse-me assim, olha, está aqui um livro para tu leres, tinha eu 13 anos, "Doutor [impercetível], e eu li o livro. Já o reli. Esse livro, neste momento, está em casa da minha filha, porque foi passando... de geração em geração. E... espero que o meu neto, neste momento, está a ler outro tipo de... de leitura. Mas espero que a minha neta o leia também com o mesmo carinho com que eu li. Está lá. Com a dedicatória do meu pai. Depois fui para o liceu, chumbei no 9º ano, por faltas, para ouvir os Pink Floyd. Uau! Tudo completo. Depois liga a diretora de turma, o meu pai diz-me... "15 faltas de matemática, mas ela é uma aluna na na nana". Pôs-me de castigo, ele, na altura, estava a fazer uma obra em Santo Tirso. E pôs-me de castigo. E eu "tudo bem, eu visto o fato". Na altura, ainda não se usavam os capacetes, não é? de proteção, e eu fui, na boa. Ele disse-me que era o mês inteiro, eu estive lá 3 dias, mas fui ele depois foi-me lá buscar. A minha mãe ia-me levar o almoço. Os empregados eram amorosos. Não me deixavam ... "menina, sente-se aqui no banquinho" e eu disse "não, não. Eu quero é andar aí com o cimento na mesma como vocês" e mandava ali à balda, mas pronto. Digamos que foi o castigo mais... assim a sério que eu tive.
E: Que costumes é que tinham, enquanto família, além das leituras, que já percebi que também eram algo...
e: Os costumes? Era muito maria rapaz. Fazíamos cabanas. Porque na altura, nós morávamos ali, onde é agora a VCI. Na altura aquilo era uma bouça. Então, eu era a rapariga, era tudo rapazes. Eu era a única rapariga. E fazíamos... brincávamos aos índios. Com as varetas dos guarda-chuvas fazíamos as setas. Eu cheguei a fazer asneiras. E depois vinham fazer queixa ao meu pai, claro eu era a maria rapaz. Sei lá, carrinhos de rolamentos. Era muito maria rapaz. Divertíamo-nos à brava. Na altura não havia computadores. Não havia telemóveis. Havia aqueles copinhos que a gente punha um fiinho e pronto. E lembro-me de uma das primeiras surpresas que eu tive no Natal, que foram uns patins em linha. Patins em linha não. Patins de...
E: Aqueles de quatro rodas, não é?
e: Com quatro rodas. E que o meu pai me ofereceu, que ele dizia que era o pai natal. E quando eu quando descobri que não era o pai natal, fiquei desgostosa. E dormi com eles durante uma semana. Porque eu queria muito, ter uns patins. E sei lá. Coisas maravilhosas. Eu era sempre a última a terminar as refeições. Nós tínhamos uma empregada que era chamada Emília. Eu chamei-lhe, a alcunha dela era Emília Bombeiro, porque ela ficava ali à espera que eu terminasse as refeições e então tínhamos um vaso enorme com uma planta e eu aproveitava ela distraída e punha... para sair rápido da mesa. E ela então ia fazer queixa ao meu pai. E eu então tratei do assunto, que não quero comentar, e a Emília Bombeiro, passado uma semana, foi embora. Ela encerava aqueles corrimões das escadas. E eu, então, punha-me lá em cima e vinha parar até cá em baixo. E era, era uma menina muito mal comportada. E ela fazia queixinhas e eu não gostava e pronto.
E: E os amigos eram os amigos da zona?
e: Os amigos sim, os vizinhos. Porque eram casas com quintal, com traseiras. À frente tínhamos um pátio. Atrás tínhamos um quintal. Tínhamos uma figueira, muito linda, enorme. E depois tínhamos os amigos, de época, que ainda hoje permanecem. Éramos vizinhos, éramos amigos. A leitura foi-me incutida muito cedo. E eu adorei. Tanto da parte do meu pai como da minha mãe. Aliás, aos domingos de manhã, ia com o meu pai ao Carlos Alberto ver a música clássica, concertos de música clássica, que havia. O meu irmão, que não gostava, mas eu ia sempre. Íamos passar férias juntos, a família. O meu pai também era muito virado para a família, mas tinha umas certas regras. Nós não podíamos ir para a mesa sem fazer este gesto, das mãos limpas, e as unhas, e só depois é que nos sentávamos e pedíamos para sair, eu não pedia porque eu era a última.
E: Mas não gostava de comer, era?
e: Eu era muito pisca, ainda hoje sou um bocadinho pisca. Demorava muito tempo. Mas estávamos muito bem. Nunca vi discussões entre o meu pai e a minha mãe. Sei que eles ao fim de semana iam sempre ao cinema. Era bom porque ficávamos em casa e era... Mas nunca tive... Nunca soube o que era isso, felizmente. Nem com a minha família, nem com pessoas próximas. Nunca soube o que era isso. Amavam-se mesmo. E era um amor bonito. Era uma família muito bonita. Tenho muitas saudades deles. Mas a vida é mesmo assim.
E: Contavam-lhe histórias?
e: O meu pai contava muitas histórias de quando esteve em África. Era muito saudoso. Primeiro foi o meu pai, e depois... com as saudades, passado uma semana voltou. Depois foi a minha mãe, e pronto. A minha mãe contou-me muitas histórias também. Dizia-me que o pôr-do-sol de África, que é esquecível, o cheiro de África... Aliás, ela quando faleceu disse-me que gostava tanto de voltar a África. E o filme da minha vida é "África minha". Não me perguntem porquê, mas há ali certas... Eu nunca conheci África, mas há ali certas imagens e a música, e paisagens, que me fazem lembrar muito dos meus pais. As histórias eram histórias, banais. Contar historinhas na cama? Não. Eu lia era aqueles livrinhos com uma lanterna que era porque o meu pai tinha uma mania de fechar as persianas e eu detesto, queria ir sempre lá depois abrir mais um bocadinho. E havia aquela educação, aquela permissão de bater à porta, de cada um de nós, não havia chaves, mas havia sempre aquela atitude -"Posso?", ainda hoje faço isso aqui. Foi bom. Foi ótimo.
E: O que mais gostava de fazer quando era criança?
e: Eu gostava de fazer coisas… que fiz coisas que fui parar muitas vezes ao hospital. Tínhamos cães e o meu pai um dia resolveu fazer uma... comprou uma casota, daquelas de barro, e então lembrou-se de fazer um telhado de zinco e estava a fazer aquilo e eu andava para lá a correr, e corri e abri aqui esta parte. E continuei a correr, com sangue, e continuei a correr. Entretanto o meu pai pega em mim, ok, hospital, outra vez. Na altura não havia máquinas de lavar e a minha mãe e a Emília Bombeiro tinham daquelas barras de sabão e partiam aquilo aos cubinhos, para fazer lá, para pôr na água, para a roupa. E eu "Ei que fixe", na altura não dizia "que fixe", "Aí que bom, queijo!". E comi 3 ou até 4 pedaços de sabão, pronto lavagem ao estômago. Pronto era assim. Fazia assim umas coisas um bocado...
E: Era mesmo uma maria rapaz [risos]. E como é que ia para a escola? Era longe da sua casa?
e: Não. Era perto. O meu pai ia-me levar e ia-me buscar. Outras vezes ia a minha mãe, mas era mais o meu pai. Engraçado que na altura quando saíam os livros e o material escolar eu e o meu irmão íamos sempre com o meu pai comprar o material escolar, ainda me lembro do meu compasso Kern, ainda o tenho, já passou para os meus filhos, já passou para o meu neto, mas depois foi-me devolvido. Era preto, depois tinha uma... era tudo em veludo. Era o melhor que havia. E depois também íamos às compras do outono. Comprar as galochas, comprar as capas para a chuva, comprar essas coisas todas. Eu e o meu irmão e era sempre o meu pai.
E: Tinham esse costume também?
e: Era.
E: E tem alguma lembrança da escola?
e: Tenho da capa que o meu pai me comprou, em vez de ter um capuz, tinha um lencinho. E eu chegava à escola e tirava o lencinho porque não gostava [risos]. E uma vez, deu-me uma escorregadela de propósito, porque a capa eu lembro-me era ao xadrez, xadrez verdes e apertava assim com umas moldas, e eu não gostava daquilo, ficava um bocado esquisito. E então fiz por cair para estragar aquilo tudo para nunca mais usar aquilo, mas foi de propósito. E pronto, nunca mais usei, usei outra coisa qualquer.
E: E da escola? Qual é a primeira lembrança que tem?
e: A professora Carla, que era a minha professora primária, já faleceu. Porque o meu pai ia sempre saber, se eu era bem comportada, se tatata, se na hora do recreio estava sempre nas grades a ver e não sei quê, e eu sabia. E na altura do liceu era igual, mas eu estava bem. Na altura, do liceu. O meu pai na altura tinha um Citroën, um Boca de Sapo e eu detestava aquele carro, tinha vergonha daquele carro, e as minhas colegas diziam "olha o teu pai está ali" e eu pirava-me porque eu tinha vergonha, ele quando era oportuno ia-me buscar. Porque depois a casa já ficava mais longe que era no António Nobre. Depois houve o 25 de Abril, depois começou a ficar misto e ele sempre com aquele receio, da menina. Mas sempre ali presente. Eu comecei a fazer teatro, trabalhei com um tio meu, que é mais novo, que é do segundo casamento da minha avó paterna, que é o Fred, que agora está em Miami, não é na Seiva Trupe, na altura já não me recordo, mas era mais recente, e esse meu tio dizia "ó José", o meu pai é José, "Deixa-a, ela tem jeito, deixa-a ir", "Só se for contigo", "Também eu vou com o tio". Comecei a aprender, aquele cheiro do palco, as cortinas, mas eu fazia isso como hobby. E comecei a apaixonar-me cada vez mais, cada vez mais, cada vez mais. Andei na Árvore, na Cooperativa Árvore, três anos. As pessoas começaram a dizer "ah ela é fabulosa e não sei, deixem-na seguir" e o meu pai pimba tirou-me. Começou a ver que era muita coisa e é por isso que eu digo que ele cortou-me as asas.
E: Portanto queria ser artista, não é?
e: Gostava imenso. Gostava muito. Por isso é que eu digo que as pessoas... Não é preciso ter um diploma, mas fazer aquilo que gosta. Aliás, eu fiz aquilo sempre que trabalhei no hospital, mas fiz sempre aquilo que gostava. Mas ter assim uma profissão mesmo, de estar ali com eles, os textos, o palco, tudo, o próprio ranger das cadeiras, tudo isso é fascinante para mim. E ele pronto ele só me deixava ir... De outras vezes, no liceu, fazíamos peças. Era aqui, moi je, que conseguia organizar. E era incrível que eu via sempre ao fundo, no final do espetáculo, ao fundo do meu pai, com a sua posição, com as mãos nos bolsos e eu assim "não acredito nisto", e vinha-me dar um abraço, no final. Ele, no fundo...
E: Era orgulhoso disso.
e: Mas não era isso que ele queria, que eu seguisse. Mas ele estava lá. Quero desfazer-me em lágrimas de orgulho, de contente.
E: Então falou da juventude, teve também...
e: Ai, a juventude foi demais.
E: Como é que era assim, o grupo de amigos? As festas?
e: Tínhamos muitos amigos. Tínhamos muitos amigos, lá está, os amigos de...
E: Do bairro, vizinhos.
e: Vizinhos, outros não. Éramos prai 15 ou 16. Eu lembro-me do meu primeiro concerto, que foi em 75, pós 25 de Abril, que foi o Genesis em Cascais. Ah, depois havia uma coisa dele, quando eu queria ir a qualquer lado, tinha que pedir permissão ao meu pai. Só que eu dizia assim "ó pai, eu amanhã, no fim de semana, vou!" e ele dizia "como?" e eu voltava a repetir, "nananana vou!", ele disse "vais? Não, não vais." e eu disse "ah, isso é que vou", "Não vais", "Mas vou". E andávamos nisto. E eu acabava por ir, com um certo... Tatau dele, mas acabava por ir. E o meu pai queria, mais tarde, ele disse-me "se tu me pedisses, eu deixava-te ir a tudo", "Pai, mas eu nunca te pedi e consegui ir a tudo", havia assim um... Sim. Mas... Concertos, música, cinema, nós fazíamos um... um ciclo de cinema que era... a estreia, que era no Trindade, na altura, que era à meia-noite, mas eu aí já tinha 17, 17 anos. Depois havia aquelas... que eram as matinés, nós fazíamos assim, completo. Depois aqueles ciclos, todos, que eram os filmes... musicais, os filmes... do Ingmar Bergman, os filmes... europeus, tudo, tudo, eu vi tudo. E depois, contava mais à minha mãe, a minha mãe era mais fascinada com essas coisas, o meu pai também, mas o meu pai era mais música. O meu pai era mais virado para a música. Aliás, foi com ele que eu aprendi a saber escutar música clássica. E a saber porque é que Wagner toca assim, porque é que Liszt toca assado, porque é que Puccini, que é o meu favorito, é tão melancólico, é tão... Ele ensinou isso tudo. Eu fico-lhe muito grata, isso e mais algumas coisas.
E: É importante o cultural, está sempre muito presente.
e: Muito presente.
E: Mesmo nos momentos de efervescência, juvenil, está ligada aos concertos, ao teatro, à cultura,
e: Sim, sim, sim.
E: Então, depois disse que foi para a faculdade, entrou em medicina...
e: Estive só um ano.
E: Mas desistiu, e depois o primeiro trabalho já foi como técnica de radiologia?
e: Sim, sempre. Sempre no mesmo hospital.
E: Assim, que funções é que...
e: As funções eram, portanto, era fazer... Na altura ainda usávamos aqueles coletes de chumbo.
E: Ok.
e: Que eram muito pesados. Foi na altura em que eu casei, mais ou menos. Depois, anos mais tarde, mais tarde, tive o primeiro filho. Fazíamos, portanto, raio-x. Tínhamos serviço de escala ao fim de semana. Éramos escalados ao fim de semana para fazer serviços. E era onde ganhávamos mais dinheiro. E éramos escalados por um chefe de equipe. Mas foi sempre aquilo que eu fiz. Depois, mais tarde, anos mais tarde, já veio a tomografia, o TAC, a ressonância magnética, a mamografia e a ecografia. Depois trabalhava como cada um tipo de médico, e cada paciente levava um [impercetível]. Eu tinha que ter os exames prontos, para o utente, que tinha consulta marcada para aquele dia ou para aquele médico e tinha que ter o complemento da radiografia, do raio-x, da mamografia, etc. para o médico ver, era aquilo tudo. Trabalhei como médicos ótimos, muitos já partiram, alguns não. E foi assim, mas gostava muito daquilo que eu fazia. Fiz muitos amigos. Ainda os tenho, no meu Facebook. Colegas de trabalho, amigos, doentes, que se tornaram amigos. E tenho saudades. Mas era muito cansativo. Depois, entretanto, surgiu a doença da minha mãe, e foi então que eu para ficar mais perto da minha mãe, aluguei um apartamento para ficar mais perto dela, para lhe dar assistência, dormia muitas vezes com ela, porque ela já não estava bem psicologicamente. E eu como tinha mais capacidade, ficava eu com a mãe. Portanto, o meu irmão não, nem a minha irmã, ficava eu. Até que depois, ela deu entrada no IPO, no dia 30 de dezembro de 2017, e faleceu em maio de 2018. Em abril, ainda fiquei lá, com ela, dormi lá, algumas vezes, com ela. Foi nessa altura que eu então pedi a reforma, porque não estava com cabeça.
E: Foi cuidadora da sua mãe também...
e: Fui. Companheira, cuidadora, fazia-a rir, fazia palhaçadas para ela se rir. E assistir à partida dela foi muito doloroso para mim. Muito doloroso. Muito mesmo. Muito. Isso aí eu já não quero falar.
E: E alguma vez se mudou? Ou ficou sempre aqui a viver? Viveu alguma vez fora?
e: Tive um ano em Lisboa. Não, dois anos em Lisboa, na formação. Detesto Lisboa, porque é muito agitado e depois as pessoas vivem muito a noite. É muito agitado, para mim não dá. Mas fui obrigada, para tirar o curso. E não, de resto, não vivi, mas viajei muito. Viajei imenso.
E: Alguma viagem que a tenha marcado assim...?
e: Cuba. Cuba porquê? Porque... Isto nos anos 80. Porque nós turistas podíamos frequentar a praia. E os cubanos estavam em cima de um muro. Não podiam frequentar o muro, a praia, nem os bares, nem nada. Isso mexeu um bocado comigo. Porque eles vivem lá, nós somos os turistas. E eles não poderem usufruir daquilo que é deles, mexeu um bocado comigo. A viagem que eu gostei mais foi aos Açores. Na altura de uma tempestade, de um nome qualquer. Nós íamos ser levados assim pelo vento, nem era preciso empurrar. Gostei muito. Não conheço a Madeira. Conheço Londres, conheço Uganda, conheço França, mas isso já foi com os meus pais, mas depois voltei. E quando se volta, já com uma certa maturidade, vê-se as coisas de outra maneira. A primeira viagem que fizemos foi com o meu pai e os meus irmãos, foi a Paris e depois fui a outros locais de Paris, às zonas mais... lá está mais ligadas à arte.
E: Como é que foi chegar a Paris?
e: Primeira vez?
E: Que idade é que tinha?
e: Tinha prai 11 anos. Foi olhar assim para a Torre Eiffel e ver assim "fogo, olha tão feia, tão... Tão monstruosa". Os meus pais já lá tinham estado e olhar assim, mas depois fomos ao Louvre, mas estivemos só uma hora. Aquilo não dá, não dá para andar só uma hora. Depois quando lá fui, o meu irmão adorou e eu "Paris não, gostei mais de Londres". Não sei, identifiquei-me mais. Mas Paris mais tarde também me identifiquei. Uma das cidades que eu adoro e que ia mais vezes era Barcelona, porque... e Figueira, visitei o Museu Figueira, que é o meu pintor preferido, que é o Dali, Salvador Dali; e Barcelona, pelo encanto dos monumentos, é um fascínio e os restaurantes. Itália, Milão é para as compras, Florença é lindo, Veneza não, não visitei. Ai tenho muitas, depois levava... Quando era mais nova, levava então... as saudades que eu tenho desse meu jipe, levava os meus filhos, íamos para o Gerês, passar assim um fim de semana, íamos lá para baixo. Lá para baixo para o Alentejo para o Algarve. E é engraçado que eles agora estão a fazer a mesma coisa com os meus netos - "Olha, a avó esteve aqui, neste sítio. A avó também esteve aqui. A avó também esteve acolá", pronto, essas coisas. Isso a mim dá-me um certo prazer, um certo orgulho. Porque levei-os e eles agora também levam os deles.
E: Mencionou que foi casada, ainda muito jovem, quando casou.
e: Casei com 18 anos.
E: E dois anos depois nasce ...
e: O Tiago.
E: O primeiro filho. Como é que foi ser mãe?
e: Foi maravilhoso. Custou-me imenso porque tive dores de parto. E foram três cesarianas. Eu não sabia. Foi muito doloroso. Eu lembro-me que estava a fazer a minha cama e de repente sinto... pronto, e disse "o que é que será isto? Vou tomar um banho". E tomei banho e voltei a vestir-me. Já tinha tudo pronto. O Tiago nasceu no dia 3 de dezembro. Estava um frio de rachar. Já tinha tudo pronto, já me tinham dito para fazer o saco, para pôr as roupas, todas aquelas coisas todas, eu levei tudo a mais, tudo a dobrar, a duplicar. E, entretanto, comecei a sentir umas dores mais fortes, aqui atrás, liguei ao meu ex-marido, na altura, que trabalhava numa empresa de engenheiro... e também é pintor. É pintor mesmo, tirou o curso, mesmo nas Belas Artes. Mas, na altura, trabalhava numa fábrica de eletrónica, de computadores. Eu ligo-lhe assim "olha, não me estou a sentir muito bem, estou a sentir assim umas dores" e ele disse "olha, eu agora não posso ir para aí, liga à Teresa" - que era uma amiga nossa, em comum - "porque eu agora não posso", Ok. Eu liguei à minha amiga e ela, toda apavorada, "para, não saias de casa, porque não sei quê, patata patata, patata", opa "Mas eu estou bem". Ela lá veio e deixou-me ficar na maternidade. Mas eu sempre naquela que me vinha embora. Fui examinada e não sei o que e dizem-me "olhe, a senhora não está com dilatação nenhuma, mas já está em trabalho de parto. Vai ter que ir para a sala dos expectantes" e eu "Expectantes? Isto é para esperar!" - "E vai vestir o pijama ou vai vestir não sei o que" e eu está bem, sempre com o meu saquinho, disse "olhe, mas eu acho que me vou embora, porque eu não estou com dores nenhumas, isto vem e passa, e ele "não, não, não, vai já subir". Despedi-me da minha amiga, ela muito chorosa. E então, estive na sala dos expectantes. Mandaram-me virar de lado, puseram-me um cinto aqui, para me ver... Eu tinha aquelas contrações, mas nada. Fui para a sala de partos. Vi outros bebés a nascer. E o meu não nascia. Então veio o médico. Na altura, já não me recordo o nome dele. O meu filho vai fazer 41 anos. E disse-me, esta menina tem que ir já para o bloco, porque já está aqui há muitas horas. Ainda me lembro de ver aquelas... e levar aquela máscara, que na altura ainda era... e pronto e nasceu o meu filho, por cesariana. Quando acordei, no dia anterior, comecei a olhar para os lados e vi duas pacientes com os bebés e eu não tinha o meu bebé, entretanto vem uma enfermeira e traz assim uma cabecinha, com muito cabelinho e diz-me "olhe este é o seu bebé. É o seu filho." e pôs-mo assim no .... Eu despi-o todo, examinei-lhe os dedos, os olhos, o nariz, está tudo bem. Ele era muito comprido, 54 centímetros. Eles são muito altos. E depois agarrei-o assim e ele começou logo a procurar-me... e pronto, dei-lhe o leite. Levantei-me de uma cesariana, pus os pés primeiro, depois quando me levantei, senti assim uma tontura enorme, mas lá consegui, virei-me ao contrário e vesti-o com a roupa que trouxe e pu-lo na alcofinha, antes de fazermos a viagem. A segunda já foi planeada, a cesariana, porque não faço a dilatação, já foi planeada e a terceira também. E depois ainda fiz uma histerectomia total, porque tive um tumor no útero, maligno, mas felizmente passou. Fui bem tratada e depois tive um problema na mama direita, fiz uma biopsia, mas o doutor, portanto, ao biopsiar, extraiu o nódulo, que era uma coisa muito mínima. E nunca mais tive problemas, até. Eu também não sou muito de ir aos médicos, não quero saber, deixo andar.
E: E como conheceu o pai dos seus filhos?
e: Fazia parte da malta. Ele era mais velho que eu, seis anos, era meu vizinho. Fazia parte da... ainda hoje nos damos muito bem. O nosso divórcio foi de acordo e foi por incompatibilidade de feitios. Damo-nos muito bem, por causa dos meninos - eu chamo sempre por meninos, são sempre os meus meninos - às vezes, quando há festas em casa dos filhos, ele está presente, ele tem uma companheira, mas não a leva, por respeito, está presente. Sempre tivemos uma boa... uma boa comunicação entre nós. A família dele também é impecável comigo. E a minha impecável com ele.
E: Como é que foi o casamento?
e: O casamento foi... o meu pai não gostava dele, por ele ser ligado às artes e por ele ser meio esquisitoide, para ele era tudo esquisitoide. E foi o meu primeiro homem, o meu primeiro namorado, o meu primeiro marido. E não caso mais. Foi pelo civil e depois pela igreja e fui vestida de anos 30 e ele também, não fui vestida de noiva, porque perdi a virgindade aos 18 anos e acho que não merecia ir vestida de branco, porque branco é pureza e aquelas coisas todas e também, como era anti essas coisas, fui à Bonnie & Clyde [risos] e toda a gente gostou.
E: E na igreja também gostaram.
e: Gostaram! E os amigos e familiares. Alguns torceram assim um bocado o nariz, mas pronto já sabiam qual era o meu... e já me conheciam tão bem. Foi assim. Era um pau de virar tripas.
E: Ainda é.
e: Já fui, já fui mais [risos] Mas eu quando vejo fotografias e quando revejo eu penso assim "Pá, eu fui mesmo um máximo".
E: Muito inovadora
e: Mas fui, estava demais!
E: Já foi dizendo mais ou menos como é que descreve hoje a sua vida... Eu perguntava-lhe, quais são as coisas mais importantes para si, hoje?
e: Hoje? O amor próprio. Porque, como lhe disse, coloquei a mão na alma muitas vezes. Houve vezes que ia lá e não extraia nada. Amor próprio. Respeitar. Saber respeitar os outros. E que me respeitem. Respeitar os outros como eles são. E que me respeitem como eu sou. Não fazer juízos de valor por uma camisa mais amassada ou por pensar desta forma. Respeitar. Respeitar e respeitar. E viver um dia de cada vez. E saber aproveitar um momento. Porque, às vezes, eu costumo dizer que a felicidade não é eterna. A felicidade são momentos. Eu, quando estou com os meus netos, aproveito ao máximo aquele momento, porque sei que não os vou ter tão cedo. Eu, quando estou com os meus filhos, ou quando estou com alguém de quem eu gosto, ou quando estou a ler um livro, porque é que eu releio os livros?, cada vez que releio, é diferente, de uma maneira diferente e é um momento bom para mim, é feliz para mim. Por isso é que eu digo, as pessoas dizem "ah, eu sou muito feliz", não acredito. Para mim, existem momentos de felicidade. Agora a tristeza já pode ser eterna. Morre-se de tristeza, sabia? Não se morre de felicidade. De tristeza pode-se morrer, de felicidade não. Assim como nós podemos chorar de felicidade e tristeza, mas ninguém morre de felicidade, morre-se de tristeza.
E: Como é que descreve a sua vida hoje, aqui na cidade?
e: Melhor, muito melhor. Este jardim, por exemplo, não me era desconhecido, mas era muito raro, passar aqui por este jardim. A primeira vez que fui a este jardim, fiquei... Como é que eu vou explicar sem magoar as pessoas que lá estão, fiquei... não fiquei admirada, mas fiquei assim, mais ou menos um bocadinho chocada. Porque vejo pessoas deitadas na relva. Vejo pessoas a consumirem álcool e outras substâncias. E... Sinceramente, não... Não é de todo o meu mundo. Posso passar lá. Passam lá pessoas sem qualquer tipo de... mas... evito um bocado. Aliás, os meus filhos quando me vêm buscar. Dantes, não vinham aqui buscar-me à porta, porque tinham vergonha e então o nosso ponto de referência era ali no Pingo Doce e às vezes esperavam por mim, algum tempo, e olhavam para o jardim e viam que aquilo tinha um certo mau aspeto, etc. e perguntavam-me muitas vezes se eu frequentava aquele jardim. E eu disse, "ah, fui lá uma ou duas vezes" mas "ó mãe tem cuidado porque ali...", eles sem saberem... e eu disse "não, eu posso ir lá, posso passar lá e não fazer nada. Portanto, não é por aí.", mas... eu, para manter os meus filhos comigo, faço tudo aquilo que eles, não... não é pedem, mas tento agradar-lhes. Porque eu não os quero perder. Quero que eles me... Cada vez se agarrem mais a mim. E tento... tento fazer as coisas direitinho. Não por eles, mas por mim, mas também por eles, para que eles não tenham uma má. Nunca tiveram, só tiveram quando eu vim parar aqui, tinham vergonha da mãe estar aqui. E não vieram durante seis meses. Estive sem contatos com eles. Mas agora não, agora as coisas estão a melhorar.
E: E vão melhorar agora, com certeza. Esses são os objetivos, não é, que tem, de conseguir arranjar um sítio para si...
e: Um sítio.
E: Sair daqui.
e: Sair daqui. Não ir para um quarto, porque eu tenho 63 anos. Já estou a caminho dos 64. E acho que um quarto não faz sentido para mim, porque... Eu sempre fui muito independente. Sempre gostei de estar... sozinha, ter as minhas coisas e ter o meu cantinho. Ter os meus livros. Ter a minha música. Ter o meu canto. E só com...a minha reforma, estou à espera de ser chamada, vou ser penalizada, mas já é uma grande ajuda, posso ter esse cantinho. Não aqui no Porto, porque aqui é muito difícil, é tudo muito caro. Já andei com os meus filhos a indagar, talvez em Braga, que é mais acessível. E gosto muito de Braga. Braga é muito bonito. É muito mais barato. E eles vivem todos em Valongo, é caríssimo. Ou então noutro sítio qualquer, menos no Porto, porque é tudo muito caro. E foi o que eu disse, o longe se faz perto.
E: Sim...
e: Eu gostava de ficar perto deles, para dizer "olha, eu hoje fico com os meninos para vocês irem ao cinema, ou irem sair com os vossos amigos", que era o que eu mais gostava. Mas eles também podem vir para a minha casa e ficarem como ficavam antes, ao fim de semana eles iam e eu ficava com eles. E expectativas de futuro é isso. É isso que eu quero. Acho que mereço. Não faço mal a ninguém. Nem às moscas, só faço assim, não as mato, como vejo muita gente a matar, não faço, mas as moscas de facto são um animal um bocadinho... Nunca fiz mal a ninguém. Fiz mal a mim própria. Reconheço que fiz mal a mim própria. Quando... Quando magoo alguém com palavras, ou verbalmente falando, passado 10 ou 15 minutos eu vou ter com a pessoa e peço-lhe desculpa. Porque não vivo com o mal dos outros. Eu não me sinto bem. E quando posso ajudar alguém, ajudo, se puder, se não puder. Mas se puder, com uma palavra de conforto, com o que eu puder ajudar. Se eu puder, ajudo. Porque eu estive em situações aqui, que foram 6 meses, que não tive ajudas de ninguém. Não pedia nada a ninguém e foram 6 meses muito dolorosos para mim. E eu não gosto de pedir. Prefiro ficar sem do que pedir. Mas já vejo nas coisas de outro prisma. Nós, todos nós, precisamos de ajuda, ou um alento, ou uma maçã, ou um cigarro. Eu sou fumadora há 40 e tal anos. Qualquer coisa. E se eu puder... Agora posso dar, dou. Mas na altura, quando precisei ninguém me deu nada... Mas não é por aí, mas está aqui.
E: Gostou de contar a sua história?
e: Gostei.
E: Obrigada por ter partilhado connosco.
e: Obrigada eu por vos ter conhecido. Desculpem lá, mas eu sou assim, sou muito emotiva. E tenho aqui pessoal fabuloso, meninas fabulosas, e meninos. Ajudaram-me muito. Desabafei muito com eles e aprendi, degrau a degrau. Chamavam-me Dona Isabel e eu "não, por favor, Dona Isabel? Fogo que velhota!".
E: Eu comecei a tratar por Isabel, porque eu nunca imaginei que tinha 63 anos!
e: Obrigada [risos] E foi sempre, foi sempre por aí e ouviam-me, quando eu estava menos bem, não ia ter com elas, elas vinham ter comigo "Então, Isabel, o que é que se passa? Vamos conversar um bocadinho", porque eu tinha vergonha de me expor. Até que comecei a falar, com elas, com eles. São todos educadíssimos. Mas desde... Eu também sou. Também sou como eles, desde as senhoras da limpeza, desde as senhoras do refeitório, desde... São todos uns queridos para mim, todos, sem exceção. E é a minha casa. Esta agora é a minha casa. Eu já disse, quando sair, que venho cá visitar as pessoas que eu levo aqui, são poucas, mas são boas.
E: Obrigada. Não sei se quer acrescentar alguma coisa?
e: Não, acho que... acho que foi tudo dito.
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