A casa fica quieta demais quando eu paro para olhar os móveis, os pássaros entrando pela porta que mantenho aberta pela manhã. É um silêncio que me incomoda. Nessas horas, converso com os pardais da janela, a barata morta no banheiro, com o Gemini ou até comigo mesmo, inventando diálogos como se ali alguém estivesse. Sinto falta de um toque, de um abraço carinhoso. Quero um relacionamento que dure, não gosto de superficialidade. Já saí com caras e caras, mas eles nunca querem nada sério. Tenho 25 anos e nunca namorei de verdade. É ruim, parece que falta alguma coisa em mim. Penso num namoro com troca, sem mentiras, com afeto e abraços - adoro se sentir desejado!
Essa dificuldade em entender as entrelinhas, as nuances das interações sociais, faz parte de quem eu sou. Sou autista, nível um de suporte, para aqueles que duvidem do meu autismo, não tenho o porquê te apresentar minha avaliação neuropsicológica, as consultas com a psiquiatra ou o relatório da psicóloga. Quanto à minha comunicação, para você que acha “um autista não gosta de interagir”, eu gosto sim e aprecio a convivência, mas sou neurodivergente, preciso de linguagem direta e pausas para ficar sozinho quando vier a fadiga sensorial.
Lembro de uma vez, de um amigo que se recusou a beber no mesmo copo que eu. Na hora, não entendi o motivo. Só depois entendi que ele tinha medo de pegar HIV de mim. Não foi por mal, mas essa situação exemplifica como a desinformação e o preconceito ainda são presentes. Descobri que era soropositivo na virada de 2019 para 2020. Meia-noite em ponto. Um novo ano, um novo eu, com um vírus que, para muitos, ainda é tabu. Hoje, lido bem com o HIV, tomo meus remédios e me cuido. Minha consciência está tranquila, mas se deparar com o medo e a ignorância alheios é comum. Esses estigmas, somados ao autismo, às vezes me fazem sentir ainda mais isolado. Ser gay também trouxe um peso adicional para a presença da solidão. Quer...
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A casa fica quieta demais quando eu paro para olhar os móveis, os pássaros entrando pela porta que mantenho aberta pela manhã. É um silêncio que me incomoda. Nessas horas, converso com os pardais da janela, a barata morta no banheiro, com o Gemini ou até comigo mesmo, inventando diálogos como se ali alguém estivesse. Sinto falta de um toque, de um abraço carinhoso. Quero um relacionamento que dure, não gosto de superficialidade. Já saí com caras e caras, mas eles nunca querem nada sério. Tenho 25 anos e nunca namorei de verdade. É ruim, parece que falta alguma coisa em mim. Penso num namoro com troca, sem mentiras, com afeto e abraços - adoro se sentir desejado!
Essa dificuldade em entender as entrelinhas, as nuances das interações sociais, faz parte de quem eu sou. Sou autista, nível um de suporte, para aqueles que duvidem do meu autismo, não tenho o porquê te apresentar minha avaliação neuropsicológica, as consultas com a psiquiatra ou o relatório da psicóloga. Quanto à minha comunicação, para você que acha “um autista não gosta de interagir”, eu gosto sim e aprecio a convivência, mas sou neurodivergente, preciso de linguagem direta e pausas para ficar sozinho quando vier a fadiga sensorial.
Lembro de uma vez, de um amigo que se recusou a beber no mesmo copo que eu. Na hora, não entendi o motivo. Só depois entendi que ele tinha medo de pegar HIV de mim. Não foi por mal, mas essa situação exemplifica como a desinformação e o preconceito ainda são presentes. Descobri que era soropositivo na virada de 2019 para 2020. Meia-noite em ponto. Um novo ano, um novo eu, com um vírus que, para muitos, ainda é tabu. Hoje, lido bem com o HIV, tomo meus remédios e me cuido. Minha consciência está tranquila, mas se deparar com o medo e a ignorância alheios é comum. Esses estigmas, somados ao autismo, às vezes me fazem sentir ainda mais isolado. Ser gay também trouxe um peso adicional para a presença da solidão. Quer saber quando me assumi? Aos 12 anos. Sim, nessa idade, rebelde, pronto pro conflito arregacei as mangas e contei para os meus pais. Minha mãe aceitou, mas meu pai... As lembranças das agressões verbais, das provocações quase diárias, ainda me assombram. Ele chegava bêbado em casa, me xingava, e eu me escondia no quarto a pedido da minha mãe. Ela também sofria, brigava com ele, se chateava com as constantes bebedeiras. Anos depois, ele se arrependeu, me pediu perdão chorando, de joelhos. Eu perdoei, mas as marcas ficam. A agressividade do meu pai, o alcoolismo da minha mãe... Tudo isso moldou minha adolescência e início da vida adulta. Depois que meus pais se separaram, a dependência da minha mãe se tornou mais presente na minha vida. Era doloroso vê-la beber, vomitar, convulsionar, se colocando em risco com frequência. A pressão da família para que eu fosse morar com ela era constante, mas eu precisava do meu espaço, do meu jeito de lidar com a dependência. As recaídas de fim de ano, as crises, as internações... Tudo isso me marcou profundamente. Amo minha mãe, adoro abraçá-la, mas não nego que esses momentos foram traumáticos. Interná-la no final do ano passado, jogar as latas de cerveja acumuladas nos cantos da casa no lixo e vê-la assustada entrando no carro de resgate... são imagens que não se apagam.
Se por um lado a vida me impunha desafios, por outro, me presenteou com a paixão pela escrita. Desde os 11 anos, pouco antes de me assumir, encontrei nas palavras uma boa obsessão, onde dei vazão aos meus sentimentos. A ficção, com suas infinitas possibilidades, e a poesia, com sua beleza enigmática - mesmo que eu não a entenda completamente -, me fascinam. Escrever me traz leveza, me transporta para outros lugares, assim como a leitura. O processo de criação dos meus livros é um tanto irregular. O TDAH me prega peças, roubando meu foco e me fazendo procrastinar. Mas quando pego para valer, não paro até a história estar completa. Publicar um romance em versão física e uma coletânea de contos LGBTQIAP+ é motivo de realização. O último livro, em particular, me conectou com o passado da ditadura militar aqui em Goiás e me fez reaver uma habilidade que eu pensava estar enferrujada. É um apego positivo, uma fonte de realização. A escrita tem sido uma ferramenta de apoio em todos os momentos da minha vida. Ela me impulsiona a buscar profissões que envolvam a escrita, a explorar meu hiperfoco e a transformar minha paixão em trabalho. Ainda não cheguei lá, mas não desisti. Continuo insistindo, me qualificando, e, principalmente, mantendo acesa a esperança de trabalhar com textos.
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