Caçula de uma família de classe média paulistana, imigrante, felizmente, ao Rio de Janeiro aos 4 anos de idade, no final dos anos 1950.
Mãe, do lar e pai, engenheiro de produção de uma fábrica têxtil. Família silenciosa, entediada, desarmônica e sem válvulas de escape. Nada de música, livro algum, pouquíssimos bibelôs, desencanto total.
A mãe, de uma doçura escondida, era uma romântica frustrada, fadada a um casamento árido, matemático, sádico mesmo. Lembro-me de suas histórias delicadas, com que embalava os sonos infantis... Ela as inventava com os elementos que sabia que eu adorava. Tadinha, era infeliz até não poder mais, mas se esforçava muito para esconder das filhas as desditas de seu martírio.
Cresci neste deserto amoroso e artístico, com o consolo dos programas de televisão que, naqueles dias, desvendaram grandes nomes de nossa cultura, seja musical, teatral ou ainda das famosas telenovelas.
Não sei porquê, mas sempre estudei em colégio de freiras, ao contrário de minha irmã que conseguira se classificar para o tão concorrido colégio estadual.
De tanto mudar de escola, também não sei por qual motivo, acabei transitando muito de amizade e posso dizer, sem medo de errar, que cresci acostumada à solidão que a própria família alimentava.
Junto e indissociado a mim, Monteiro Lobato equilibrava a solidão, a falta de gargalhadas, com seu Sítio e através das aventuras com a deliciosa Emília. Acompanharam-me largamente, encompridando a infância e a fantasia.
Já no ensino Clássico, com meus 15 anos, conheci Célida, uma menina que me apresentou um universo diverso e real. Ela era a filha mais velha de um casal de amantes que tinha feito 4 filhos. O amor existia e eu testemunhava a alegria de uma casa que cantava, emocionava-se, lia e discutia ideias deliciosamente. Célida era pintora, assemelhada a Botticelli na sua delicadeza. Além disto, escrevia poemas lindos e tinha um humor contagiante e...
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Caçula de uma família de classe média paulistana, imigrante, felizmente, ao Rio de Janeiro aos 4 anos de idade, no final dos anos 1950.
Mãe, do lar e pai, engenheiro de produção de uma fábrica têxtil. Família silenciosa, entediada, desarmônica e sem válvulas de escape. Nada de música, livro algum, pouquíssimos bibelôs, desencanto total.
A mãe, de uma doçura escondida, era uma romântica frustrada, fadada a um casamento árido, matemático, sádico mesmo. Lembro-me de suas histórias delicadas, com que embalava os sonos infantis... Ela as inventava com os elementos que sabia que eu adorava. Tadinha, era infeliz até não poder mais, mas se esforçava muito para esconder das filhas as desditas de seu martírio.
Cresci neste deserto amoroso e artístico, com o consolo dos programas de televisão que, naqueles dias, desvendaram grandes nomes de nossa cultura, seja musical, teatral ou ainda das famosas telenovelas.
Não sei porquê, mas sempre estudei em colégio de freiras, ao contrário de minha irmã que conseguira se classificar para o tão concorrido colégio estadual.
De tanto mudar de escola, também não sei por qual motivo, acabei transitando muito de amizade e posso dizer, sem medo de errar, que cresci acostumada à solidão que a própria família alimentava.
Junto e indissociado a mim, Monteiro Lobato equilibrava a solidão, a falta de gargalhadas, com seu Sítio e através das aventuras com a deliciosa Emília. Acompanharam-me largamente, encompridando a infância e a fantasia.
Já no ensino Clássico, com meus 15 anos, conheci Célida, uma menina que me apresentou um universo diverso e real. Ela era a filha mais velha de um casal de amantes que tinha feito 4 filhos. O amor existia e eu testemunhava a alegria de uma casa que cantava, emocionava-se, lia e discutia ideias deliciosamente. Célida era pintora, assemelhada a Botticelli na sua delicadeza. Além disto, escrevia poemas lindos e tinha um humor contagiante e inteligente.
Passei a frequentar a casa dela todas as tardes. Havia um quarto, onde ficávamos, que além de uma estante cheiinha de livros, tinha uma rede nordestina ( seus pais eram do Piauí) e almofadões jogados ao chão.
Ela me descortinava o mundo maravilhoso das artes. Simon and Garfunkel com sua sonoridade quase religiosa, os poetas brasileiros com as \"história dos vestidos\" ( Drummond), os escândalos de Salvador Dali, as mil e uma histórias de Sartre e Simone de Beauvoir... Ah, quanta coisa havia para descobrir saindo do \" Sound of Silence\" que era a minha casa paterna!
Então, comecei a engatinhar no mundo da escrita. Criei meu diário, onde rabiscava minhas aventuras adolescentes, junto a esboços de algum poema que eu conseguisse espirrar. Passei a economizar minha mesada para a compra de fascículos de Gênios da Pintura, Mitologia, Mestres da Música que eram vendidos nas bancas de jornal . Assim eu me alimentava do melhor que a humanidade já produzira. Depois de completadas as coleções, eu as encadernava e as expunha nas magras estantes de meu quarto. Tornei-me frequentadora de livrarias e até hoje vivo um jogo mágico na descoberta de livros que se oferecem a meus olhos e espírito, engordando o meu saber.
Célida foi embora para os Estados Unidos e eu a perdi para sempre no mundo real.
Entrei para a PUC. Faculdade de Letras. Lembro que grávida de alegria e êxito, anunciei a meu pai minha vitória e ouvi: \" Vou pagar a faculdade ( uma das mais caras do Rio) porque é minha obrigação, mas acho que você deveria fazer Prendas domésticas\" Bah!
Finalmente saí da casa paterna, ganhei o mundo, a vida livre e farta. Experimentei tudo de todas as maneiras, como ensinava Fernando Pessoa, casei inúmeras vezes, fui feliz, infeliz, mas sempre dona de meu nariz, que continua sempre enfiado entre as folhas de um bendito livro.
Sou professora de Literatura e exerço o magistério com muita alegria há 42 anos. Assim sendo, sou testemunha viva do desenrolar das gerações na história do meu querido Rio de Janeiro.
Meu pai não me castra mais há 20 anos. Consegui dar uma vida feliz pra minha mãe depois da morte do marido e continuo grata à Célida por ter me introduzido no mundo encantado das artes e da filosofia.
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