Difícl escolher uma história para contar. Parece que são muitas, e nenhuma ao mesmo tempo. Não que haja segredos a guardar, ou apenas momentos desinteressantes. Mas parece que traduzir em palavras uma lembrança é deixer que ela fuja um pouquinho de mim e ganhe vida própria. O que contar? O que não contar? Será que isso realmente interessa a alguém? Como não invadir as histórias das pessoas que cruzaram minha vida ao longo do tempo e que se entrelaçaram nas minhas próprias histórias? Revendo minha linha do tempo, tentando escolher, o que salta aos olhos, para mim, é que duas das pessoas mais importantes de minha vida, meus avós, pais de minha mãe, só apareceram na morte. E então me ocorreu que a importância deles em minha vida se construiu nos pequenos momentos, no cotidiano, nas simplicidades do dia a dia. Nenhum grande evento, nenhum marco de grande destaque, nada que mudasse o rumo da minha vida. Mas uma presença constante que só se mostrou para mim em toda a sua importância na ausência. Por isso, comecei a pensar neles e nesses grandes pequenos momentos do dia a dia que fizeram deles pessoas tão importantes para mim. Pouco me lembro de quando era pequena. Minha primeira lembrança é de meu pai chegando em casa com um presente, um ursinho que tocava música quando a cordinha era puxada. Eu me lembro das pernas do meu pai andando da porta até o meio da sala, do quadrado colorido em suas mãos, do sorriso que ele deu quando eu vi o ursinho, que eu guardo até hoje. Eu ainda não tinha três anos quando ganhei aquele ursinho. Mas minhas outras lembranças dessa primeira infância, distante que só, são todas com os meus avós. Tanto minha avó como meu avô me visitavam toda semana desde que eu nasci, e pelo que me lembro, quando ficaram mais idosos e nós começamos a visitá-los ao invés de eles irem até nós, ainda assim nos víamos toda semana. Vovó sentava comigo para brincar de desenhar, de colorir, de fazer comidinha. Uma...
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Difícl escolher uma história para contar. Parece que são muitas, e nenhuma ao mesmo tempo. Não que haja segredos a guardar, ou apenas momentos desinteressantes. Mas parece que traduzir em palavras uma lembrança é deixer que ela fuja um pouquinho de mim e ganhe vida própria. O que contar? O que não contar? Será que isso realmente interessa a alguém? Como não invadir as histórias das pessoas que cruzaram minha vida ao longo do tempo e que se entrelaçaram nas minhas próprias histórias? Revendo minha linha do tempo, tentando escolher, o que salta aos olhos, para mim, é que duas das pessoas mais importantes de minha vida, meus avós, pais de minha mãe, só apareceram na morte. E então me ocorreu que a importância deles em minha vida se construiu nos pequenos momentos, no cotidiano, nas simplicidades do dia a dia. Nenhum grande evento, nenhum marco de grande destaque, nada que mudasse o rumo da minha vida. Mas uma presença constante que só se mostrou para mim em toda a sua importância na ausência. Por isso, comecei a pensar neles e nesses grandes pequenos momentos do dia a dia que fizeram deles pessoas tão importantes para mim. Pouco me lembro de quando era pequena. Minha primeira lembrança é de meu pai chegando em casa com um presente, um ursinho que tocava música quando a cordinha era puxada. Eu me lembro das pernas do meu pai andando da porta até o meio da sala, do quadrado colorido em suas mãos, do sorriso que ele deu quando eu vi o ursinho, que eu guardo até hoje. Eu ainda não tinha três anos quando ganhei aquele ursinho. Mas minhas outras lembranças dessa primeira infância, distante que só, são todas com os meus avós. Tanto minha avó como meu avô me visitavam toda semana desde que eu nasci, e pelo que me lembro, quando ficaram mais idosos e nós começamos a visitá-los ao invés de eles irem até nós, ainda assim nos víamos toda semana. Vovó sentava comigo para brincar de desenhar, de colorir, de fazer comidinha. Uma vez, o pipoqueiro passou na rua tocando seu sininho, em Água Santa, e eu quis porque quis pipoca. Minha mãe disse que não, que não podia, que ele estava longe e que não poderia sair para comprar. Minha avó estava em casa conosco e resolveu procurar o pipoqueiro para me comprar pipocas. Lembro-me bem de sairmos andando pela rua, de mãos dadas, com minha avó perguntando às pessoas para onde tinha ido o pipoqueiro. Pegamos uma rua de subida, que para mim, nos meus três, quatro anos, era muito alta, e lá estava ele, com seu carrinho parado no meio-fio. Minha avó começou a abanar os braços, fazendo sinal para ele, dizendo que queria comprar pipocas e que ele esperasse. E ele esperou. Eu ganhei minha pipoca, e me lembro de minha mãe comentando com minha avó que nós demoramos para voltar, e perguntando por que ela tinha andado tanto, que não precisa, que não tinha que fazer minha vontade daquele jeito. E minha avó dizendo que não custava nada fazer minha vontade, e que a gente tinha aproveitado para passear. Minha avó gostava de fazer as vontades das pessoas, especialmente se envolvesse comida. Nos domingos, quando íamos visitá-los, vovó fazia questão de colocar uma farta mesa de lanches. E sempre tinha presunto e manteiga (que eu chamava manteiga de verdade, em oposição à margarina), coisas que não tínhamos em casa porque eram muito caras na época para os meus pais comprarem, mas que eu adorava, e vovó fazia questão de ter nos dias em que eu fosse lá. Vovô era como ela. Ele trabalhava em uma empresa de assistência técnica da Brastemp no bairro de Água Santa, onde eu morava, e toda semana ia lá em casa nos visitar, levando uma caixinha vermelha de passas. Nas horas vagas, ele tocava violão e fazia teatro. Sempre que os visitávamos, ele tocava Cantiga por Luciana para mim, e um tanto de outras músicas, que ele prometia me ensinar a tocar quando eu quisesse. E como eu me arrependo de não ter querido nunca. Teriam sido ótimas lembranças de meu avô para guardar as aulas de violão. Ele era muito divertido, estabanado, e tinha sempre uma história nova para contar, alguma trapalhada no estilo Jerry Lewis para nos fazer rir. Ele foi assim, alegre até na tristeza, até morrer.
Bom, esses fragmentos de história são feitos de saudades: das pessoas que eles foram, dos avós que foram para mim, das lembranças que não construímos por falta de tempo, por contingências da vida, por esquecer que a vida é finita e achar que sempre dá para fazer amanhã.
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