Lara Nós, pais que perdemos um filho, sofremos um dano moral profundo e irremediável e sentimos para sempre uma falta irreparável. Ao mesmo tempo temos em nossos corações um grande espaço tomado por um amor único. Se podemos continuar amando é porque o nosso coração se alargou. “Lara passarinho, voa, tão levinho pelo céu azul... Uma bailarina dança e chora a Vida, levantando os braços para o céu azul...” (poema feito por sua avó Eulália lembrando a bailarina da caixinha de música que você ouviu dentro da minha barriga e nos seus poucos dias de vida) Depois que minha filha morreu fui, acompanhada de minha mãe, à Itamambuca, uma praia a dez quilômetros de Ubatuba. A casa foi amorosamente emprestada por Lucia e Guacho, amigos que vejo tão pouco, apesar de ser-lhes tão grata. Lá pude, de alguma maneira, começar a me recuperar. Passava os dias como uma espécie de zumbi, mas ia melhorando. Em muitos momentos, não podia falar. Então, fui escrevendo, escrevendo sem pensar. Muitos desses escritos estão neste relato, foram recolhidos das folhas desorganizadas dos cadernos. Quando me mudei de São Paulo e me instalei definitivamente no meu sítio na Mantiqueira, surgiu a necessidade de retomar os escritos. Essa retomada foi como uma terapia e atendeu um vago desejo de que o relato pudesse servir de testemunho para alguém ou para os médicos e enfermeiras que cuidaram da minha filha. Mandei o relato para o meu obstetra e ele pediu autorização para endereçá-lo, ao seu critério, para profissionais ligados ao berçário e à UTI Neo...
Continuar leituraLara Nós, pais que perdemos um filho, sofremos um dano moral profundo e irremediável e sentimos para sempre uma falta irreparável. Ao mesmo tempo temos em nossos corações um grande espaço tomado por um amor único. Se podemos continuar amando é porque o nosso coração se alargou. “Lara passarinho, voa, tão levinho pelo céu azul... Uma bailarina dança e chora a Vida, levantando os braços para o céu azul...” (poema feito por sua avó Eulália lembrando a bailarina da caixinha de música que você ouviu dentro da minha barriga e nos seus poucos dias de vida) Depois que minha filha morreu fui, acompanhada de minha mãe, à Itamambuca, uma praia a dez quilômetros de Ubatuba. A casa foi amorosamente emprestada por Lucia e Guacho, amigos que vejo tão pouco, apesar de ser-lhes tão grata. Lá pude, de alguma maneira, começar a me recuperar. Passava os dias como uma espécie de zumbi, mas ia melhorando. Em muitos momentos, não podia falar. Então, fui escrevendo, escrevendo sem pensar. Muitos desses escritos estão neste relato, foram recolhidos das folhas desorganizadas dos cadernos. Quando me mudei de São Paulo e me instalei definitivamente no meu sítio na Mantiqueira, surgiu a necessidade de retomar os escritos. Essa retomada foi como uma terapia e atendeu um vago desejo de que o relato pudesse servir de testemunho para alguém ou para os médicos e enfermeiras que cuidaram da minha filha. Mandei o relato para o meu obstetra e ele pediu autorização para endereçá-lo, ao seu critério, para profissionais ligados ao berçário e à UTI Neo Natal do hospital em que minha filha nasceu e morreu. O seu comentário foi, quase precisamente, o seguinte: ‘apesar do conteúdo fortemente emocional do seu relato, ele não contém nenhuma inverdade. Se você me autorizar, gostaria de dá-lo para algumas pessoas lerem. Para outras, vou dar como lição de casa’. Este obstetra fazia parte do Conselho para elaboração do novo Berçário e UTI Neo Natal do referido hospital que, como se verá, trata-se do Hospital Israelita Albert Einstein. Escrevi no meu caderno de sítio no dia 27 de agosto de 1995: “Entro hoje no sétimo mês de gravidez. A barriga pesa, tenho contrações enquanto ando, elas me obrigam a parar e respirar. Tive muito trabalho no último mês para colocar a casa em ordem, abrir espaço para o bebê e arrumar o quarto para uma eventual empregada. Todas essas mudanças vão me preparando. No próximo fim-de-semana, estarei no sítio para arrumá-lo e ser alugado. Fiquei sossegada com essa iniciativa. Não poderia deixá-lo fechado durante três meses, mesmo com o Paulinho ali cuidando da horta e a Dona Maria da casa. É preciso manter vida lá dentro. É preciso gente para comer as verduras da horta. Quero levar o bebê para o sítio durante a licença-maternidade. Lá o ar é bom, tem silêncio, a água é boa e não há luxo. Vai ser bom para mim e para ele. Posso conseguir alguém para me ajudar na casa e na roupa”. “Acabo de passar pela conversão do útero. Senti quando aconteceu. O que há de tão grandioso em algo tão natural? Durante a gravidez, ocorrem muitas conversões. Antes, eu pensava com a cabeça. Agora, penso com o corpo. Quando se engravida, como eu, aos trinta e nove anos, é como se o corpo tivesse que relembrar, animar memórias em repouso, re-aprender. A gente tem que lembrar de coisas que sempre soube. Porque só estava esquecido, não desaprendido. Por isso essa dupla sensação não conflitante de tamanha ignorância em tanta sabedoria e... onipotência”. Menos de três meses depois, escrevi no mesmo caderno: “Ainda tenho que levar a mão ao peito para sentir se o coração bate. Às vezes, não sei se estou viva, apesar de andar, falar, rir, chorar. Tentei tanto respirar por duas, fazer bater dois corações, sarar por duas, que já não sei se existo nem por meia de nós...” “Eu tenho a força das ascendências negra, portuguesa, espanhola; da convivência com índios brasileiros, da visão da seca nordestina e das estradas que percorri. Força que não podem tirar de mim. Agora eu tenho a força da Lara. Da Lara azul, da Lara passarinho. Tenho a força da síndrome da Lara, da sua “aberração”, como diziam alguns médicos. Da Lara de arranjo cromossômico raro. “Se ela é um arranjo, é ikebana”, disse Lucia Rosenberg. Lara fora dos padrões. Única, exclusiva. Minha Lara, inconfundível Lara. Lembro tão bem dos pezinhos da Lara...” Início de Novembro de 1995 Lara foi filha de cada segundo, depois de cada minuto. Depois, filha de cada hora, de cada período e dia. Depois de sofrer pelos segundos, minutos e horas, compreendi: Lara era a filha do tempo sem tempo, do agora, nesse instante, para sempre. A filha comemorada a cada dia, todos os dias. “Bom dia, Lara, minha filha. Meus parabéns, que menina bonitinha Parabéns por mais um dia, Lara Que menina corajosa”. Era assim que eu cumprimentava Lara na UTI. Juro que verdadeiramente alegre, apesar das lágrimas que insistentemente corriam pelo meu rosto. O tempo me angustiava. Só me acalmei um pouco quando pensei assim: não existem seres na natureza, que vivem apenas um ou dois dias? Neste espaço de tempo, que para nós é tão curto, esses seres vivem a vida inteira deles que, lá no seu universo, pode equivaler a cem anos nossos. Então, no mundo sindrômico da minha filha, na sua configuração de alguma forma normal para ela, ela viveria tudo que tivesse para viver. Então, pensei, eu vou estar ao seu lado a sua vida inteira. Mas era muito doloroso ter que comemorar mais um dia de vida da Lara e era sempre, ao mesmo tempo, um grande contentamento. Ainda me pergunto como pode caber tanta dor e sofrimento em tanta alegria e amor. É dilacerante e a experiência mais difícil da minha vida. Conviver com a morte celebrando a vida. Ou celebrar a vida na morte, ou sei lá. É limite. Meu Deus, Lara, como gostaria de ter você junto de mim agora Eu imaginava que a última coisa que suportaria era um filho que não pudesse se comunicar de forma alguma: uma vida inerte e sem expressão. E até para isso me preparei. Nós queríamos você, Lara, como você quisesse ou pudesse vir para nós. Se você tivesse vida vegetativa, eu te colocaria sobre meu corpo para dele usufruir calor. Colocaria incenso para você conhecer o perfume, boa música para você ouvir e faria tudo para que você tivesse pelo menos alguma boa lembrança dos seus poucos meses de vida. Oito meses em média, disseram. Fossem quantos fossem. A única coisa que posso afirmar é que nós tínhamos comunicação. Eu sei que você me reconhecia e que também gostava de mim. Era meu cheiro, minha voz, meu específico calor? Como você decodificava esta que é sua mãe? O que te fazia despertar, quando eu chegava na UTI e virar-se na minha direção? Mas, Lara, você se foi. Os médicos me disseram que é uma reação normal mães terem sentimentos de rejeição em relação aos filhos sindrômicos. Eu não tinha tempo para isso. Chorei muito porque era uma síndrome que eu desconhecia. Lembro-me que um dia, no hospital, o obstetra observou que eu estava reagindo bem e aceitado você como poucas vezes se vê. Nem me ocorreu não te aceitar. Você me escolheu, você se escolheu. Nesse dia, diante do espelho do banheiro do hospital, olhei para mim e me perguntei se eu queria que meu filho tivesse nascido normal. A pergunta não tinha mais lugar. Eu já estava apaixonada. Fim de Novembro de 1995 Estou na praia de Itamambuca neste fim de ano em que tento renascer. Quem sabe o mar, a areia, o vento, o rio... Faço esforço para não naufragar e não sucumbir à tentação desse fosso profundo que me separa hoje da vida. Como posso estar assim deprimida se Lara é luz e vida? Se através dela conheci o amor sem igual? Sou mãe. Preciso agora ser minha própria mãe, apesar de estar com minha mãe, zeladora, ancorada, ao meu lado e cuidando de tudo. Não há outro afazer para ela neste momento, posso agora entender. Estou quieta, porque procuro palavras e não encontro. Não tenho palavras. Estou cansada e tenho uma tristeza tão densa que posso cortar com faca e comer. A tristeza tem raízes fundas. É uma imensa árvore antiga. Às vezes, converso, rio, leio, escrevo, passeio e durmo. Ponho a mão no coração: ele bate Que estranho... estou viva. Mas como é isto? Estou na beira do abismo e não há o que eu possa fazer, senão continuar. Lembro de Isabel Allende no seu livro “Paula”: “Não quero estar viva por fora e morta por dentro”. Estamos mortas, mas não estamos zumbis. Passamos pela experiência limite, a mais dolorosa, para um ser humano e se, mesmo mortas, sobrevivemos, é porque temos uma alma vívida; uma alma que sangra. Ainda tenho secreções. Já menstruei, de forma um tanto hemorrágica, e continuo com as secreções. Estou cansada. Choro, sangro. Minha barriga é a de uma mulher grávida. Minhas olheiras vão e voltam. Ontem, me olhei direito no espelho, sem vaidade alguma que possa me despertar para uma nova vitalidade. Estas olheiras se pregaram ao meu rosto, fazem parte já de uma nova fisionomia? Tenho mais cabelos brancos, achei que era minha imaginação, até que Tia Maria notou. Nada muito evidente, só real. Nesta viagem, esqueci de trazer meus brincos e meus anéis, não localizo meu pente, e por isso não me enfeito nem me penteio. Tomo banho e corto minhas unhas, me preocupo por ter trazido roupas que ainda não me servem, sequer pensei nisto, então uso as poucas que ainda têm o conforto da gravidez. Meu umbigo está largo e fundo, a pele da minha barriga despregada, a cicatriz da cesariana escura e só agora meus pelos pubianos começam a crescer. Não tenho mais as dores de cabeça que me acompanharam durante a vida de UTI até uns quinze dias depois da morte da Lara. A febre não voltou mais. Não sabia que uma febre pode fazer a gente viver ao lado da gente mesma, numa espécie de delírio. Tenho flashes daqueles dias, pedaços de histórias e de conversas de minha mãe ou minha tia ao telefone, atendendo as pessoas amigas. Não lembro com quem falei nem sobre o quê. Na verdade, não lembro mais como era minha vida antes. Lembro que nasceu Lara, significativamente designada, para mim, minha família, meus amigos, para ela mesma e para este mundo que, se não nos enlouquece de todo, também não contribui para nossa lucidez. Lara nasceu designada também para seu pai que, entretanto, sequer soube da vida dela e se privou de conhecer seus olhos expressivos, seu narizinho bem feito e sua boca pequenininha, lindamente desenhada. Lara, de rim policístico e coração mal formado. Lara, defeituosa de corpo e perfeita de espírito. Lara, a pequena Lara, que poderia ter cabido na palma da sua mão. Lara que recebeu mais amor nos seus breves dias de vida do que muitos que se vão velhos e secos de afeto. Daqueles dias de febre, lembro bem apenas da minha mãe cuidando aflita de mim e me dando periódicos banhos mornos quando eu acordava suada e com os lençóis molhados. O obstetra, preocupado, mandou-me para o único laboratório que atendia no domingo para fazer exame de sangue, mas não era nada. (No fim da praia há um rio. Em contraste com o mar que aqui é bastante temperamental, o rio é de uma paz desconcertante. Mas eu sei - por já ter viajado e nadado em outros rios - que além da sua aparente placidez há correntezas fatais). “Não existe ninguém mais idoso que uma criança morta” Algumas enfermeiras estranharam e sorriram desconcertadas para mim. Não cheguei na UTI e falei, como sempre: “Bom dia, Lara, minha filha, menina corajosa Parabéns, Lara Mais um dia” Não. Nos seus dois ou três últimos dias de vida, você não era mais uma menininha, um serzinho pequeno e frágil para o qual eu pedia, implorava, ordenava: “Não morra, não morra”. Você era um outro alguém, uma Lara que eu ainda não conhecia. Não era mais uma criancinha, mas uma velhinha. Eu passei a te cumprimentar de acordo: “Bom dia, Dona Lara, como vai a senhora?” E as enfermeiras estranhavam. Só me referia à Lara assim: Dona Lara. Senhora. Ela se transformara numa velhinha de alma velha. Os seus olhos “viam” e “percebiam”. Sabiam. Não sei explicar isso, mas foi assim. Cheguei a comentar com minha mãe: “Mãe, a Lara agora é uma velhinha”. Será que se uma pessoa vive pouco, mas esse pouco significa a vida inteira dela, a alma envelhece nesse pouco tempo como se tivesse vivido noventa anos? Será que entre o nascimento e a morte - não importando o tempo que isso demande - a alma vive tudo o que tem para viver? Será que a minha amiga Stella, que morreu com vinte e três anos, tinha uma alma de oitenta em algum outro tempo que desconhecemos? Pensei que só eu tivesse percebido o envelhecimento da Lara, até que minha mãe me mostrou o lindo texto de Chuang Tsé sobre sua filhinha morta que termina assim - “Não existe ninguém mais idoso que uma criança morta” e que minha cunhada me contou um sonho que teve com a Lara uns tempos depois da sua morte. Nesse sonho, Lara está deitada em uma longa mesa de mármore, que lembra aquelas de altares de igrejas. Aliás, o próprio lugar parecia uma enorme igreja, com janelas em arco. Minha cunhada diz que na porta foi recebida por uma mulher com fortes traços orientais, que indicava para o suposto “altar”, sem imagens, sem bancos, velas, flores e outros adereços característicos de templos. Lá, só havia o “altar” com um bebê coberto com um pano branco. Ao redor do corpinho, havia muita gente. Mas o clima não era de velório, embora o “cenário” o levasse a crer. As pessoas estavam alegres, sorridentes, conversavam muito. Parecia uma animada reunião ou encontro. Minha cunhada foi então se aproximando do “altar”. Ao chegar perto do corpo, a Lara abriu os olhos e lhe estendeu os braços. Minha cunhada sabia que era a Lara. A expressão do olhar era a mesma da única vez em que ela a viu na UTI. Então a tomou nos braços. Sentiu que a menina estava fria e tentava aquecê-la com a mão por baixo do pano branco, com a intenção de reanimá-la mas, mal aquecia as pernas, esfriava os pés. Mesmo sem entender o que estava acontecendo, minha cunhada ficou contente ao vê-la pelo menos meio-viva. A Lara movimentava a cabeça e o olhar. Daí, começou a apresentar a menina aos presentes - ela lembra-se nitidamente da Tia Maria no meio de tantos (des)conhecidos. Para cada pessoa que era apresentada, a Lara dizia algo, que minha cunhada não entendia ou lembra. Foi em um desses momentos que a Lara virou o rosto para ela. Surpresa, ela viu que a carinha miúda da criancinha tinha se transformado no rosto de uma velhinha... Disse algo que a memória não registrou... Ainda Novembro de 1995 Trabalhar em agências de publicidade tem me ensinado mais sobre a vida e as pessoas que qualquer literatura. É uma mesa redonda diária de sentimentos, valores éticos e percepções por vezes nada agradáveis deste fim de mundo numa metrópole. Aprendi mais sobre insatisfação, ansiedade, dinheiro e solidão. Algumas pessoas acreditam que são seres especiais e privilegiados, mas me parecem zumbis que perderam o contato com a alma. Seus cérebros foram lavados e não tiveram a competência de impedir, sequer de perceber. Não sei se têm momentos de lucidez; mas se os tiverem, o que podem fazer? Eu fui lavada, por dentro e por fora. Sofrendo do mesmo processo de lavagem cerebral dos meus pares, já não sei quem sou, para que servem as horas do dia e o que faço com o dinheiro que me pagam. Tirar férias uma vez por ano e pegar um charter para Cancun. Com a morte da minha filha, sinto que preciso reencontrar o valor da minha vida. Não posso e não quero retomar o que vinha vivendo: acordar, tomar banho correndo, maquiar com ou sem vontade, mal tomar café, pegar trânsito, se enfiar num escritório com ar-condicionado que impede abrir janelas e receber vento na cara, não saber se chove ou faz sol, almoçar a eterna comida de restaurante (quando dá tempo), sair tarde da noite, pegar trânsito, chegar cansada em casa, dormir... acordar no dia seguinte, tomar banho... A Lara me ensinou que a vida é uma grande aventura. Não podemos desperdiçá-la com a desculpa da sobrevivência. Considero o trabalho uma das coisas mais importantes da vida e gosto de trabalhar, o que tento fazer com a mais estúpida e renitente ética. Por quê eu levo tão a sério? Por causa da empresa que me paga? Por causa da minha imagem junto aos clientes? Não “visto camisas”. Visto a força do trabalho e da minha energia. Não gosto de ser escrava, nem robô. Não gosto que abusem do meu tempo e da minha saúde. Não gosto quando pensam que são meus donos. Se eu não tiver tempo e disposição para ler, pensar, comer em paz, fazer trabalhos manuais, não trabalho bem. E, pela primeira vez, eu não estava trabalhando bem. Estava me desrespeitando e não à empresa que me pagava. Acontece que em agências de publicidade trabalha melhor quem trabalha até tarde da noite, quem doa seus fins de semana e suas férias. Mas sempre se pensa nos ganhos indiretos, e mais poderosos, que o dinheiro: a promoção pessoal, a imagem no mercado, o reconhecimento da empresa. Em alguns casos, em detrimento dos filhos, dos amigos, do amor, do encontro consigo mesmo e da satisfação. Substitui-se a aventura da vida com todos os seus encantos e imprevistos por... o quê? Não. Preciso respirar. Não quero passar refratária, mole, fria, lisa como margarina por uma experiência tão forte. Não posso voltar a viver como se não tivesse conhecido a Lara. Como se nada fosse, como se eu mesma fosse a mesma de antes. Assim o Destino me impede de voltar: é para frente que devo seguir. É só para lá que posso ir. Não sei para onde, nem para quê, nem por quanto tempo, mas vou. Lara, vou para o sítio e vou levar você comigo. Vamos mudar de vida. Preciso desesperadamente da natureza, única cura que imagino para mim. Montanhas, estamos com saudades. Pássaros, nos aguardem. Borboletas enfeitem nosso mundo. Vizinhos da roça, recebam-nos como a um de vós. Todos estranham eu ter direito à licença maternidade de quatro meses. Se minha filha morreu, não sou mais mãe. Como posso usufruir a mesma lei que protege mães cujos filhos mamam de três em três horas e dão tanto trabalho? As pessoas desconhecem que a licença existe para a recuperação da mulher, seja qual for a circunstância. Não fazia ainda quinze dias que a Lara tinha morrido e já havia colegas me perguntando quando eu retornaria ao trabalho. Ouvi o seguinte conselho de uma colega, com a melhor das intenções, uma semana após a morte da minha filha: “Você devia voltar para o trabalho o quanto antes, para distrair a cabeça”. Distrair a cabeça... e o que faço com o resto do corpo? Leite ainda escorre do meu peito Qual a receita, a norma, o manual para distrair-me inteira? Não desejo nem distração nem esquecimento. Não quero me aturdir com nada. O tempo, minha amiga, só o tempo. Aqui, numa praia ou aí, num escritório. Para distrair a cabeça tenho minhas leituras, minhas madeiras, minhas pinturas e todas as bobagens que faço. Tenho especialmente o não fazer nada. A atividade profissional não pode me ajudar, neste momento. Este é um privilégio de quem faz o que faz por vocação e de quem ganha para fazer o que gosta. Não acredito que é este o caso de quem trabalha no marketing, na criação publicitária e na pesquisa de mercado. Acredito que o trabalho com prazer e sensação de plenitude pertence aos que estão ligados às atividades essenciais da vida: plantar, construir, curar, ensinar e filosofar. Ou seja, pertence aos agricultores, cozinheiros, arquitetos e pedreiros; aos médicos e enfermeiros; aos professores e filósofos em geral, como os matemáticos, físicos, religiosos e artistas: músicos, pintores, escritores, poetas, artesãos. O resto é bobagem. Só alcança a verdadeira dignidade (embora tanta indignidade lhe seja imposta) o trabalho que resulta em comida, moradia, saúde, conhecimento e ligação cósmica com a vida. 16 de Dezembro de 1995 Me sinto pior hoje do que no dia em que Lara foi enterrada. Quanto mais o tempo passa, mais se aprofunda a dor de não ter Lara para amar, Lara para cuidar, Lara para sofrer junto. Enquanto ela estava sendo enterrada, eu estava cuidando dela. Pagar conta de médicos, era ainda cuidar de Lara, ir ao cartório lavrar o óbito, era cuidar de Lara; devolver a mamadeira do Banco de Leite do hospital, desalugar a bomba de tirar leite que usava em casa; desmontar o berço, tirar suas roupinhas da cômoda cor-de-rosa... Tudo isso era cuidar de Lara. Agora, acabou. Sou somente eu. Entretanto, essa filha exclusiva, defeituosa, original, essa Lara, habita agora em mim com sua luz perene. Um grande presente da vida e da natureza que Deus me tirou. Ai que dor, assopra, assopra, que arde. (Tenho uma inegável vocação para ser só. Ter convivido tanto tempo comigo mesma não me fez nem mais nem menos feliz, nem pior nem melhor. Só depois que senti uma vida dentro de mim, além da minha, vislumbrei o que é não estar só). 17 de Dezembro de 1995 Desde que você veio morar no meu peito, te levo para onde vou. Enquanto tento ouvir as coisas que você sabe, vou mostrando as que eu sei. Hoje tive alento para encher o carro de tralhas, me despedir dos amigos e da família e ir para o sítio com você. No caminho, fiz uma visita para o seu padrinho, que gostou da surpresa. Enquanto na pequena varanda do apartamento ele me serve um suco e mostra a paisagem, vou conversando com você: “Você lembra dele, Lara? Do seu padrinho? É meu amigo há tantos anos... Olhe para ele, aqui com os filhos e contente”. E continuamos juntas pela estrada. Olha ali adiante, à direita, Lara, que bela casa. Não se pode passar por ela sem admirá-la. É de um rosa tão esquecido que se confunde com outra cor qualquer. Assim como as janelas, outrora verdes, eu suponho. É uma bela casa, minha filha, mas não se deixe iludir. Casas assim são para serem vistas no relance de um olhar ao longe. A experiência me faz saber que de perto elas se transfiguram. No pátio, há pneus velhos, um poço desativado, cascas de laranja e uma guilhotinada cabeça de boneca com um só olho. A parede que parecia ser rosa é agora de cor indefinida mesclada com respingos de chuva e barro. Sujamos os pés na terra que sai dos degraus de tijolo rachado da entrada. De tantas janelas, esperava-se mais luz no interior, que é sombreado a ponto de nos impedir uma descrição mais detalhada. Há paredes rachadas e postigos quebrados. O tempo passou por aqui, mas o descaso dos poucos móveis de madeira dispostos sem outra pretensão que a da lida diária é aconchegante e a cozinha recende a massa de pão, manteiga batida e lingüiça. A madrugada se impregna de lenha e café. Nesta casa se pode dormir, minha filha. Não se sente cheiro de mofo, mas de lã velha e palha. No acolchoado que nos cobre sentimos o calor da paina. Ao longe, ouve-se o barulhinho de uma mina que brota ou de uma cachoeira quase seca pelo verão. Assim, nem tudo é silêncio na noite da casa. Ela sussurra. É um sussurro tão insistente que só pára de incomodar quando a gente se dispõe a acordar, sentar na cama e prestar atenção. A casa diz assim: aqui vivemos, morremos, renascemos... aqui vivemos, morremos, renascemos... De manhã, tudo é novo de novo. Um dia o sol doura o rosado e ilumina o olho da boneca. Outro dia cria sombras sinistras por todo o pátio. Outro dia ofusca tanto que ficamos desorientados e mal distinguimos poço, pneus e cascas de laranja. Não podemos contar com nada definitivo. Prosseguimos nesta viagem. Veja, Lara, entramos na estrada velha. Ali depois da curva há um bambuzal. Ele refresca, enfeita a estrada e a enche de mistérios. Quando Bia passou por aqui, de tão cansada, pediu para ficar. Ela queria ser a louca do bambuzal, a referência da vida na estrada. As pessoas diriam: “Para chegar na minha casa, é fácil: conte vinte quilômetros a partir da louca do bambuzal”. Mas nunca o cansaço é tanto que nos leve a ficar por ali, no meio da estrada, na sombra protetora e misteriosa do bambuzal. Lara, a partir deste ponto já não se pode, nem se quer, correr por esta estrada. É aqui que ela é mais bonita e mais perigosa, e a vagareza imposta torna-se embriagante. Observe os morros e os vales, minha filha, e sinta os rosas, lilases e roxos que eles refletem além dos verdes. Veja como essas grandes manchas vão se transformando durante o nosso trajeto, revelando novos entornos. Veja como é feminino esse desfile de morros arredondados. Esta é a Mantiqueira, Lara, a montanha que chora. Ainda é dia, minha filha, mas logo mais já se poderá ver, com sorte, bichos pela estrada. Lebre, paca, quati, preá. Com mais sorte, pequenas capivaras. Numa noite sem lua, vim com seu pai passear e olhar estrelas. Aqui neste ponto pelo qual passamos, vimos um animal morto. Ele parou o carro, descemos e ficamos matutando: filhote de quê bicho seria aquele? Era um bebê, desoladamente só e abandonado. Não soubemos dizer que animal era aquele, mas era tão bonito que meu coração se encheu de tristeza. Fomos embora dali. Eu esqueci do bichinho morto até o dia em que retornei sozinha ao sítio. Quando passei de novo por este lugar lembrei-me do animalzinho e subitamente soube com clareza que se tratava de um filhote de paca. Ele era tão bonito e me transmitiu tanta doçura Uma dor tão grande me invadiu que comecei a soluçar, e o meu pranto era tão desabalado que mal conseguia enxergar o caminho. Eu soluçava alto e não entendia o que estava acontecendo comigo. Chorei pela carne que comemos e pela minha hipocrisia de não matar, mas comer, frangos. Chorei pela crueldade de nós, homens, e sem pensar me ouvi gritar: assassinos Assassinos Podia sentir no meu corpo o pavor de um animal acuado por aquele gigante sem compaixão que lhe anunciava morte iminente. A dor da pancada, ou da bala, ou da faca. O desespero de deixar a família sem avisar e o espanto da violência sem por quê. Gritava desculpas e a dor não passava. Foi uma crise tão intensa que julguei estar louca e tive a falsa certeza de que nunca mais comeria carne na vida. Cheguei exausta ao sítio, sem compreender direito o que havia acontecido comigo. Não sei porque lembro disso, minha filha, mas me ocorre agora que a tristeza que senti quando vi o bichinho morto foi uma tristeza grandemente premonitória. E que o choro de tempos depois, quando passei sozinha pela estrada, era o lamento doído e precoce do que haveria de nos acontecer. Você é meu filhote, minha cria. Do abandono da morte na estrada à sua breve vida... Você foi levada pela luz dos anjos e com eles habita em parte, porque outra parte mora no meu peito. Neste peito que teimava pingar leite quando você já havia morrido. Sofreu o seu corpo como o da pequena paca? Existirá o céu das pacas filhotes? Vocês podem brincar juntas? Vocês amam os animais aí? Chegamos, Lara, e este é apenas o recomeço. É a primeira vez que venho ao sítio desde que você morreu. Estivemos juntas aqui na gravidez e fiz tantos planos. De te ver de joelho ralado e encarapitada em galho de árvore. De ouvir o riso cristalino de criança feliz nas cachoeiras do rio. Planos de transformar o laguinho num tanque de água corrente para você brincar com patinhos, barquinhos e bonecas. Planos de te ver junto com a tua vizinha Tainara, bebezinha como você. Fiz tantos planos, Lara. Planos de ficar chateada pelo trabalho de te cuidar e de te dar pequenos chacoalhões em momentos de raiva. Planos de te ver dormir e de sorrir enquanto dormia, de cantar músicas de ninar, até anotei letras que não conhecia, para ensaiar. E de te deixar ouvir a velha caixinha de música, coincidentemente tocando “Tema de Lara”, com a minúscula bailarina de plástico... Na roça, ninguém me perguntou sobre você, sobre o que havia acontecido e sobre como eu me sentia. Acolheram-me apenas e disseram: “a gente estava com saudade”. Tamanha delicadeza, não espero encontrar na cidadezinha. A apenas quatro quilômetros daqui, esboça-se um mundo diferente. Lá, encontrarei pessoas que moraram em São Paulo. Boas pessoas, interessantes, mas tenho certeza que algumas perguntarão: “Mas o que aconteceu? O que ela tinha?” Receberei os pêsames e os “sinto muito pela morte da sua filha”, “fiquei tão chateada quando eu soube...” Eu faria o mesmo. Mas também encontrei na cidade pessoas que não sabiam que você havia morrido e vinham me perguntar sobre o meu bebê - é menino ou menina? - e que, ao saberem da sua morte, abaixavam a cabeça e diziam: “desculpe por ter perguntado”. Na roça, o entendimento foi de coração para coração e um convite para participar da novena de Natal. Fui e gostei. Foi na Igreja de Santa Bárbara, que não passa de uma capela singelíssima na beira da estrada. Éramos talvez vinte pessoas: mulheres, crianças, bebês e uns dois ou três homens. À luz de velas (na capelinha não havia luz elétrica), lemos textos religiosos, cantamos e rezamos. Voltamos para casa como fomos, a pé, em bandos, conversando pela estradinha de terra afora. O grupo diminuindo, na medida em que cada um ia chegando ao seu sítio. Tainara no colo da Neusa ou da avó, meninos iluminando o caminho com pequenas lanternas. Decido que amanhã irei novamente à novena e que não há o que eu possa fazer de melhor. Chego em casa. Como estou cansada. A tristeza não me tira a fome. Pelo contrário, tenho um desejo insaciável de algo que não sei, como numa paixão. E de uma forma misteriosa aqui estou ainda eu, viva. 01/11/95, dia de Todos os Santos, 10:00 hs da manhã No meu sonho, chego ao Isolamento da UTI do berçário de alto risco e vejo Lara deitada de costas sobre uma superfície dura. Ela está nua e bem quietinha. É a primeira vez que a encontro fora da incubadora, do aparelho de oxigênio e sozinha, sem enfermeiras ou médicos em volta. Sinto alegria: finalmente vou poder pegar minha filha no colo Faço, ansiosa, o gesto delicado, mas quando toco no seu corpinho, percebo horrorizada que ela está gelada e morta. Acordo com um grito. Lara morre nesse mesmo dia, por volta das 13:00 hs. Pouco depois do sonho (eu já estava me aprontando), telefonam do hospital pedindo minha presença urgente. Eu havia deixado minha filha na madrugada, já gemente. Um gemido triste, e tão fraquinho, que para ouvi-lo era preciso encostar o ouvido na abertura da incubadora. E por ser tão tristemente fraquinho, era insuportavelmente dolorido. Pedi o auxílio da enfermeira e do médico plantonista: minha filha está sofrendo O médico disse que o gemido não era nem de dor nem de sofrimento, mas um som provocado pela passagem de ar pelo pulmão, por uma respiração difícil. Não. Era um gemido agonizante, de despedida, de quem já não pode mais. O sonho se realizou. Pude pegar Lara no colo. Praticamente morta. Os médicos cumpriram o acordo que, a meu pedido, o obstetra havia feito com a equipe da UTI. Que não permitissem que minha filha morresse sozinha, isolada de tudo e de todos dentro daquela incubadora. Que, no momento em que percebêssemos que ela estava de fato indo embora, a colocassem no meu colo, para morrer comigo. Cheguei a tempo, graças a Deus. Tive o privilégio de compartilhar com minha filha da sua morte. Quando achei que tinha chegado a hora, pedi que a tirassem. Relutaram, queriam mais tempo. Mas havia só insanidade ou norma hospitalar na luta contra a morte da Lara. Que a deixassem em paz. Esperei cinco minutos mais. Pedi novamente: “Doutora, está na hora de tirar a Lara da isolete”. Ela olhou para o médico, para a enfermeira e tacitamente todos concordaram. Tiraram a Lara, peguei-a no colo, querendo com meu calor dar-lhe o conforto possível. Chorei, beijei sua testa, mãozinhas, acariciei seus pezinhos e falei. Não lembro mais bem o quê. O quanto a amava, o privilégio de tê-la conhecido e de ter sido escolhida por ela, o quanto ela havia me ensinado e que ela se fosse em paz e que eu sentiria muita, muita saudade. “Como eu gostei de te conhecer, Lara. Eu vou sentir saudade, minha filha”. Por um momento, senti que meu coração ia parar e tenho certeza que por pouco não parou. Até hoje não entendo como não morri; a vida é forte. Espero que tenha ajudado minha filha a morrer. Não é possível que não morra melhor quem morre abraçada àquele amor. A doutora falou comigo. Demorei a entender. Perguntou se eu tinha religião. O que eu havia de responder? Assim como vou a uma novena de Natal católica, recebo passes na espírita Seara Bendita, faço cursos e participo de cerimônias de cura no centro de Dharma do budismo tibetano. Não entendia a pergunta. Vagamente compreendi quando ela falou em batizado. Concordei. A enfermeira a batizou. Rezamos o Pai Nosso, única oração católica que realmente compreendo em sua força mântrica. Rezamos, os médicos, a enfermeira e eu. Não havia ninguém da minha família comigo; é proibida a entrada no “Isolamento”. Lara, batizada, foi colocada de volta na ‘isolete’: os médicos pediram (deve ser alguma questão ética deles) e eu não tinha forças nem discernimento para dizer sim ou não. Minha filha foi tirada praticamente morta dos meus braços, novamente roubada de mim. Minha mãe pôde então entrar. Ela de um lado, eu de outro, acariciando a pequena menina que se preparava para uma viagem tão grande. O coração da Lara, monitorado ainda pelo aparelho, foi se desligando, desligando. Os pontinhos se espaçando na máquina. Eu de olho grudado. Lara morrendo. E eu vi. Tive o merecimento de ver. Sei que minha filha foi bem acompanhada. Foi-se, e no momento senti como se cortassem um segundo cordão umbilical, invisível, etéreo, mas muito, muito mais forte e profundo. Senti uma sensação física forte. Alguma coisa se despregou de mim e partiu junto com ela. Sei da dor que minha mãe sentiu, porque sei do amor que ela sentia pela neta. A doutora chorou, a enfermeira, o médico com olhos úmidos e emocionado. Lara, você tocou o coração frio e habituado do hospital? O que será que você ensinou para todos nós, para cada um de nós em particular? O que de fato aprendemos com a sua morte, logo com a sua morte, que não foi nem inesperada nem súbita, e para a qual todos - minha família, médicos, enfermeiras - vínhamos nos preparando? Seu tio só pôde vê-la novamente depois de morta, assim como minha cunhada e minha tia. Antes que eles entrassem, ainda fiquei com você morta no colo, embalando, embalando eu mesma. Passei você para o colo da minha mãe. Esta é uma imagem que nunca vai se apagar. Saí da sala. Por trás do vidro, víamos uma senhora de cabelos brancos, sozinha numa sala nua, sentada de costas para nós, com a neta morta no colo, que segurava com extremo carinho e dor. Mas essa mãe e avó é uma rocha, se não me esqueço. Colocada de volta à mesa fria - tal como eu havia visto no sonho - você recebeu suas últimas visitas. Minha tia entrou e chorou por você e pela necessidade de abandonar os planos de renovação de vida que havia feito através de você. Tive um gesto de desespero. Peguei você de qualquer jeito, levantei-a bruscamente da mesa, abracei-a forte e tinha vontade de gritar: é minha, afastem-se todos Vou levá-la comigo Tanto que você me foi roubada. Pela recusa do seu pai. Pelas leis insondáveis da natureza que te fez diferente dos sobreviventes. Pelas normas da medicina e da enfermagem, em que a Mãe de UTI é uma intrusa que não tem poder nenhum sobre o seu filho, ficando vinte e quatro horas por dia lutando contra o instinto de cuidar da cria, tomando cuidado para não causar nenhuma antipatia com o corpo médico e com a enfermagem, com medo que lhe tirem seu ínfimo e parco direito de pelo menos estar ao lado do filho, ou com o medo maior que não cuidem bem dele. A Mãe de UTI, que fica ali de pé, recém operada, horas seguidas, ao lado da incubadora, sem o direito de limpar um xixi do filho, de trocar uma fralda, de limpar uma remela, de aliviar o desconforto dos tantos fios que prendem seu filho ao monitoramento da vida. A Mãe de UTI A Mãe de UTI se sente sempre atrapalhando. Ela é um apêndice no espaço, fica no caminho das máquinas que entram para fazer os exames nos nenês, pedem, todo momento, para ela sair, por um motivo ou outro. Ninguém lhe explica nada antes dela entrar naquele outro mundo. São tantos os médicos e enfermeiras, tantas trocas de turnos, que ela nunca sabe quem é quem. Plantonistas, o tempo todo. E a Mãe de UTI tem que ser esperta, memorizar os nomes, distinguir as pessoas daquele exército, saber os dias de plantão deste ou daquele médico, desta ou daquela enfermeira. Só depois de muitos e muitos dias, a Mãe de UTI, apesar de recém operada, cansada, sofrida e mal dormida começa a distinguir as especialidades dos médicos, a enfermeira-chefe mais compreensiva e humana. Quem não lhe dá atenção e para quem vale a pena perguntar as coisas. Só que ela pergunta, a cada dia, para alguém diferente. E, às vezes, quem ela ainda não conhece vem lhe falar do seu filho, lhe dar notícias sobre o andamento do tratamento. E a Mãe de UTI fica sem saber como, ou por quê, aquela pessoa sabe tanto assim. Depois de mais uns dias, ela descobre que basta a pessoa ler o prontuário e pedir informações à enfermagem. Quando a Mãe de UTI começa a entender tudo isso, seu filho morre ou recebe alta. A Mãe de UTI tem que ser também maliciosa. E, para uma coió como eu, certas situações são constrangedoras. O chefe da UTI aventou a possibilidade de instalar um cateter na Lara, já que estava ficando cada vez mais difícil manter suas veias para a aplicação do soro. Segundo ele, este procedimento estava sendo adiado, por ser benéfico por um lado e prejudicial por outro (um canal aberto a infecções). Eu seria avisada quando a necessidade surgisse. Um dia, ao visitar minha filha, vejo que ela está com o tal cateter. Segundo o chefe da UTI, não havia dado tempo de me avisar. Muitas horas depois, vejo um cartão em cima da incubadora: um desses cartões de apresentação. Achei que alguém o havia esquecido ali. Como até o final do dia eu não me manifestei com relação ao cartão, uma enfermeira, antes de abandonar o turno, se aproximou para me dizer que o médico que havia deixado o cartão era o que havia instalado o cateter e que era para eu lhe telefonar que ele gostaria de me explicar o procedimento. Como o chefe da UTI já havia dado explicações, não liguei. Para mim, o médico do cateter era mais um dos plantonistas do hospital, mas a chefia da UTI havia chamado um especialista particular, sem relação com o hospital ou com o convênio médico. O cartão era para eu entrar em contato para pagar. Quando resolveram que seria interessante para prognosticar o problema da Lara realizar um teste genético, vieram me consultar. A argumentação era a de que, tendo-se certeza da síndrome de que era portadora, teriam mais dados sobre a evolução do seu quadro e isto implicaria em um tratamento mais adequado. O teste foi feito, mas minha filha morreu antes que se pudesse fazer qualquer coisa com o resultado (Lara morreu de infecção generalizada ou septicemia, embora no atestado de óbito conste “cardiopatia congênita complexa, choque cardiogênico e prematuridade”). Não, o teste serviu para alguma coisa. Serviu para confirmar a síndrome que dois médicos já tinham certeza que a Lara era portadora. Vi a expressão de vaidade no rosto da geneticista: acertei Mães de UTI com filhos portadores de síndromes raras: cautela Esta é uma área médica ainda em desenvolvimento, interessa à ciência e faz a felicidade de alguns poder estudar casos assim Fazem-se exames toda hora, explicam o caso para grupos de jovens médicos. Sabe-se lá se a essas alturas o prontuário da minha filha e os resultados de seus exames não estão sendo usados como matéria para engrossar estudos, com ou sem minha anuência. Ela não está morta? Quem se importaria? Bom, o argumento que foi apresentado antes da Lara morrer para a necessidade do teste genético sofreu pequena modificação depois que ela morreu. O mesmo exame foi-me apresentado como absolutamente necessário para que eu pudesse ter um aconselhamento sobre eventual futura gravidez. O mesmo teste, que antes era muito importante para tratar da Lara, passou a ser muito importante para tratar de mim. E achei mesmo importante: não queria correr o risco de ter outro filho que passasse por tanto sofrimento, embora fosse improvável que viesse a ter outro, não só pela idade, como pela ausência de um companheiro. A médica geneticista colocou-se à disposição para ser minha conselheira. Mas eu também não fui avisada que ela estava me dando um atendimento particular, em que contavam o exame genético da Lara, as horas despendidas no hospital sobre esse assunto e o tal aconselhamento. Como poderia saber, se ela era mais um dos inúmeros plantonistas da UTI e eu não estava pagando nenhum dos outros? Como poderia saber, se quando eu lhe pedi que fosse a médica particular responsável pela Lara (intermediária entre a UTI e eu, de forma que eu tivesse sempre alguém a quem me dirigir), ela recusou com aparente honestidade, argumentando que não poderia oferecer um atendimento nem melhor nem maior do que o que já era dado pela equipe de plantonistas, incluindo-a? Quando, depois de tudo, perguntei porque ela não havia me informado desde o início que Lara e eu estávamos recebendo um atendimento particular, ouvi a seguinte resposta esclarecedora e supostamente ética: “Em momentos como esse, a pessoa está tão desorientada, que não dá para abordar esses assuntos. Além disso, como é para o bem do tratamento, a pessoa raramente diz não”. Concordo com a filosofia e com a psicologia. Com certeza eu teria dito sim. Mas pelo menos teria sido informada e tratada com certa dignidade. Ou, no mínimo, teria sido respeitada no direito de cidadã e consumidora: ser informada do preço daquilo que estou comprando, antes de pagar. Como eu estava no hospital sem o pai da minha filha, marido, companheiro, namorado ou qualquer figura masculina que se parecesse com alguma dessas coisas, fui tratada como se estivesse de fato sozinha. O que não era verdade, e disse isto à médica: “Se você achava que eu não tinha condições emocionais, poderia ter falado com alguém da minha família, já que todos os dias estavam todos lá, me acompanhando. Por quê você não falou com minha mãe, meu irmão, minha cunhada ou minha tia? Por que você pressupôs que eu teria dinheiro para pagar?” Será que em nenhum momento ocorreu-lhes que, exatamente por não ter companheiro, assumir compromissos financeiros poderia ser mais difícil para mim? “São todos príncipes na vida”. Algum tempo depois da morte da Lara, recebi um comunicado de que havia faturas para eu pagar no caixa do hospital. Fui ver. Na da geneticista, havia um total. Referente a quê? Não havia nenhuma descrição do que eu estava pagando. Quanto para o exame? Quanto para as horas dela? Quanto para sei lá mais o quê? Achei caro, independente de qualquer coisa, e liguei para ela. Justificou: tanto para o exame, o resto para as consultas particulares no hospital e o aconselhamento genético (que ainda estava por fazer) no seu consultório particular. Continuei estranhando: então, quanto você está cobrando a consulta? Era mais do que os médicos cobravam em geral, principalmente se comparando com o preço do meu obstetra particular, que me dava sempre um atendimento atencioso, bem mais de uma hora por vez. A médica me apresentou outro dos seus argumentos impressionantes: o preço do médico tem que fazer jus aos longos anos de formação e à necessidade de estar sempre estudando e pesquisando, ainda mais na área de genética. Ora Eu também estudei bastante, fiz até a pós-graduação e, na minha área profissional, também temos que estar sempre atualizados. No entanto, não tenho a desfaçatez de apresentar isto como argumento de preço aos meus clientes: faz parte do meu trabalho, é inerente à minha profissão. Então, eu dispensava o aconselhamento genético que, de qualquer modo, ainda não havia sido feito. Quanto abateria no preço? Mas não havia abatimento possível: fazia parte do “pacote”. E se eu quiser fazer com outra pessoa, em outro momento? Sem chance. Ela estava “estudando” os exames e o aconselhamento fazia parte de todo o trabalho. Lá fui eu, me sentindo chantageada já que ela estava de posse de uma das coisas mais poderosas desse mundo: informação. Sobre minha filha e sobre minhas chances de ser mãe novamente. Pois bem: foi o aconselhamento genético mais ridículo que eu já vi, embora não tenha visto nenhum outro antes. Aconselhamento genético quer dizer: perto dos quarenta anos, é aconselhável fazer exames genéticos no início da gravidez - descrição rápida dos disponíveis no mercado. Ponto. Sim, eu sabia. Ou que médicos eram aqueles que haviam me atendido durante a gravidez? Não fiz os exames por opção. Para uma mulher da minha idade (na época 38 anos, quase 39), a opção era: fazer o exame do líquido amniótico correndo o risco de 1% de aborto provocado pelo exame ou o risco de 1.5% de ter um filho com Síndrome de Down. Por causa de 0.5%, não quis correr o risco maior de perder um bebê saudável. E conscientemente assumi o risco, inclusive o de ter uma criança Down, porque havia resolvido que não abortaria se fosse este o caso. Mesmo assim, procurei um instituto de genética que fazia um exame de sangue (analisado na época nos EUA) que indicava a probabilidade estatística do risco de Síndrome de Down. O resultado foi favorável: não havia chance de eu ter uma criança com essa síndrome, como de fato não tive. O mais importante não foi respondido com clareza: eu poderia ter outro filho? Um filho saudável? Havia alguma coisa que indicasse que o melhor seria não tentar de novo? A Lara havia nascido sindrômica por algum problema que eu carregava? A tal médica aconselhou: o mais seguro seria adoção. Meses mais tarde, pedi ao meu obstetra que esclarecesse isto para mim. Ele foi investigar e me trouxe a resposta. O tipo de exame realizado na Lara, por “trissomia livre”, indicava que nós havíamos sido vítimas de um “acidente genético” (não sei se é o termo correto), de uma probabilidade estatística existente na população. Não se sabe bem por que, mas de tantos em tantos, não sei quantos mil nascimentos, um é vítima dessa síndrome específica. Sim, eu poderia ter outro filho, um filho “normal”, saudável. Apenas, da próxima vez, deveria fazer os tais recomendados exames, em função da idade. Ainda assim, penso: se um desses exames aponta um problema, faz-se o aborto? Qual o drama maior: abortar um filho desejado ou ter uma criança “anormal”? Não consigo pensar, por exemplo, na possibilidade de não ter conhecido a Lara. Os médicos certamente me teriam aconselhado o aborto. Eu talvez tivesse feito. Mas como poderia não ter conhecido a Lara, agora que a conheci? Entretanto, se engravidasse agora, faria os exames e, se fosse o caso, abortaria. Não suportaria ver outro filho passar pelo mesmo sofrimento. Nem sei se suportaria o meu próprio sofrimento. Não sei o que faria. Em tempo, antes que esqueça: quando me dirigi ao caixa do hospital para pagar as contas, estava abatida e injuriada. Antes de me identificar, e pedir minhas contas, desabafei com o funcionário do caixa: veja o senhor, vou pagar por coisas sobre as quais não fui sequer consultada, não me perguntaram se teria dinheiro, nem me explicaram no que exatamente consistiam tais pagamentos; a gente tem convênio médico e nessas horas percebe que só serve para quando não se tem nenhum problema de saúde; quando eu fui questionar a médica, o senhor sabe o que ela me respondeu?... Etc. O homem do caixa concordou. Disse que era mesmo um horror. Que ele via tantos casos ali. Que, dos médicos do hospital, salvam-se, na sua opinião, uns 10%. “Sabe em que setor do hospital isso é pior?”, perguntou-me o homem do caixa. “Não, em qual?” “No berçário, onde as pessoas ficam desesperadas e concordam com tudo para salvar a vida do bebê”. Agradeci e saí do hospital passando mal, enjoada. Eu também não entendia por quê o hospital servia de intermediário na cobrança de serviços médicos particulares. Estes serviços deveriam ser pagos nos consultórios, e não no Caixa do hospital. Eu não estava pagando o hospital, mas o Dr. “X”, a Dra. “Y”. Creio que é uma forma dos médicos nos manterem à distância e evitarem nossos questionamentos. Recusei esse esquema e paguei diretamente aos médicos. Sei, por experiência anterior que o poderoso mundo de branco ainda é - por enquanto - inatingível. Estou falando de um dos melhores e mais renomados hospitais do país, o Albert Einstein. Fico pensando o que não haverá de acontecer nos demais... Telefonei para o médico do cateter e disse: não posso pagar o seu preço, só a metade, serve? Serve, respondeu o médico. E para a geneticista, eu disse, no final do tal aconselhamento genético: “tudo que você me falou eu já sabia”. E ela abaixou o preço, retirando justamente o equivalente àquela sessão absurda e frouxa de aconselhamento. Eu acredito mesmo que os geneticistas podem ser médicos mais pobres que os das outras especialidades. Se não atuarem também em outras áreas, certamente têm poucos clientes. Afinal, não é toda hora que nasce uma criança sindrômica ou que adultos descobrem que carregam problemas genéticos. Resumindo, para pagar desde o obstetra particular (este sim, escolhido por mim) até os “extras” explicáveis e inexplicáveis, pedi dinheiro emprestado à empresa onde trabalhava e a um amigo. Ainda assim, meu caso foi um dos mais brandos entre os que existiam naquela UTI. Tinham pais em situações bem piores. E, mesmo assim, não pude pagar um lugar no cemitério para a Lara que, por enquanto, faz companhia a um casal de velhinhos, num túmulo de família generosamente emprestado. É bem verdade que tive que lançar mão de um estratagema para que minha filha tivesse direito ao convênio, embora eu pagasse, na época, o melhor plano executivo de empresa. Só depois de uma semana descobri, horrorizada, que ela não estava coberta pelo convênio. Argumento: meu obstetra havia sido particular. O que tem uma coisa a ver com outra? Na minha visão, o relevante é que ela havia sido atendida por neonatologista do próprio hospital, não particular. Lara era uma pessoa, eu outra. Eu dei entrada naquele hospital através de médico particular, ela não. Não fosse pelo artifício legal obtido com a ajuda de um santo médico (que até agora não havia entrado na história, mas que eu nunca vou esquecer, não só pela coisa do convênio, mas porque de fato atendeu minha filha e estava presente na hora da sua morte), estaria trabalhando os próximos anos para pagar a conta. Eram R$ 3.000,00 por dia x 15 dias que a Lara ocupou lugar na UTI: R$ 45.000,00, além dos tais atendimentos “extras”. Convênio médico é capítulo à parte e tão indigesto, que não tenho vontade de falar sobre o assunto. Bem verdade que recebi o apoio do departamento pessoal da empresa em que eu trabalhava. Apoio fundamental, sem o qual não sei o que eu teria feito, já que não tinha cabeça para deslindar os meandros obscuros do convênio. A pessoa jurídica obtém muito mais concessões do convênio que a pessoa física. O que sei dizer é que somente agora, um ano depois, pude ter uma crise ao lembrar do que vivi quanto a essas questões. Acho que durante todo esse ano não deu para pensar em tudo isso. Tive que direcionar minha energia para a sobrevivência do meu ânimo de vida e para restabelecer minha saúde física e emocional. Mas, relembrei. Chorei um choro convulsivo por todas as humilhações que sofri naquele hospital. Senti-me humilhada: é esse o termo. A gente passa toda a vida trabalhando e vivendo com o possível de integridade e honestidade, e não encontra eco, contrapartida em lugar algum. O mundo pertence aos espertos. (Não esqueço o dia em que descobri que os vice-presidentes da empresa em que trabalhava pagavam três vezes menos imposto que eu, mera funcionária, embora ganhassem “n” vezes mais. O mundo é dos que sabem manipulá-lo...) Então, as coisas se processam assim: Você acaba de passar por uma cirurgia, vai trôpega pelos corredores carregando por debaixo do pijama a sonda de xixi, cheia de dores, para ver seu filho, que você tanto desejava levar para casa, dar de mamar e banhar e não encontra ninguém para te receber e orientar: como seu filho será atendido, o que você pode ou não fazer na UTI. (Vi uma mãe entrando pela primeira vez na UTI para ver o filho que tinha nascido na noite anterior. Após muito tempo, parada ao lado da incubadora, com as mãos para trás, perdida naquele mundo novo, olhando desoladamente para o filho, uma enfermeira lhe explicou que poderia tocá-lo e acariciá-lo. Tímida, mas imediatamente, ela abriu as portinhas da incubadora. A enfermagem pode não saber, mas essa mãe perdeu um século de tempo. Seu filho morreu naquele mesmo dia). Você paga caro um convênio médico que não funciona a contento quando você precisa dele. Te tratam como uma imbecil que não pode ser informada direito das coisas, por que está passando por um “momento difícil”, fazem discriminação por que você não tem marido... Aliás, este é outro capítulo interessante da historinha: cadê o marido? Cadê o marido? Pois é bom saber: à beira do ano 2000, o mundo gira, gira, e não sai do lugar. Lá, naquele hospital, os maridos, companheiros ou pais assumidos, podem entrar na sala de parto e vivenciar, junto com suas mulheres, o nascimento dos seus filhos. Mas se você é uma mãe fora desse contexto, esqueça, você não pode ter a certeza do apoio de alguém que você gosta e confia. O benefício é exclusivo das mulheres que têm seus filhos de acordo com o figurino. Exclusivo e discriminatório. Será que esta situação justificaria um processo? Quem sabe as mulheres que passem por isto, no futuro, aceitem a sugestão e possam até arrancar de uma instituição hospitalar preconceituosa, indenização que as ajude a criar seus filhos... A mulher não tem o direito de escolher a pessoa com quem ela quer compartilhar aquele importante momento: é o fim Meu irmão ou minha mãe ou o padrinho da minha filha - não, não podiam me acompanhar. Acaso não está contido em tal medida um julgamento moral? Não fosse por minha amiga e psicóloga conhecer e ser paciente do obstetra - que permitiu que ela me acompanhasse durante o parto - eu teria ficado lá, assustada e sozinha, naquela sala estranha, rodeada de gente que eu nunca tinha visto. Pois eu afirmo que é fundamental para a parturiente a companhia de uma pessoa querida. Ainda mais num caso como o meu, em que se sabia de antemão que a criança já estava entrando em sofrimento, que se não fosse tirada a tempo, morreria e que, nascendo, poderia não conseguir respirar. A mesma restrição discriminatória se estendia à UTI. Ao casal, permitia-se a permanência no recinto, e assim os companheiros podiam revezar com as mulheres cansadas. Mas eu não podia contar com ninguém: nem com minha mãe, nem com meu irmão. A Lara praticamente não conheceu ninguém mais da família. Nenhuma das outras pessoas que também a amavam puderam compartilhar a UTI comigo. Por que, nesses casos, a mãe não pode designar uma pessoa que a ajude a cuidar do seu filho na UTI? Qual a diferença formal se essa pessoa é ou não o pai? Não pode ser uma avó ou um tio? Por que essa discriminação no interior de uma instituição nem moral nem religiosa, mas de cura e acolhimento? Eu, que vivi maritalmente com um alcoólatra, teria sido bem recebida se tivesse dado entrada naquele hospital acompanhada de um. Ninguém se incomodaria com o fato de eu estar gerando filho de alcoólatra - com grandes chances de ter uma infância traumática e ainda de herdar um componente genético predisponente ao alcoolismo. Ninguém se importaria, mas eu teria direito a acompanhante na sala de parto. Como eu resolvi que não me casaria de novo, mas queria ter um filho, tive. Com a anuência do pai da criança, um homem saudável, embora omisso e covarde. E por isso fui discriminada. Não que o fato em si merecesse muito da minha atenção, a estas alturas da minha vida. Penso mais no grande número de jovens solteiras e grávidas que além de serem maltratadas pela família e pela comunidade ainda correm o risco de serem discriminadas nos hospitais. O Berçário de Alto Risco (ou das crianças “anormais”) Berçário de Alto Risco é o que recebe as crianças prematuras e as que, embora de nove meses, nasceram com problemas de saúde. O outro berçário, das crianças que nasceram a termo e saudáveis, é chamado, na linguagem do dia-a-dia do hospital, de “berçário dos normais”. É comum ouvir uma enfermeira avisar que está indo até “os normais”. O estranho é que existe uma publicação do Berçário de Alto Risco - destinada aos pais de prematuros - cujo objetivo é o de orientá-los sobre o desenvolvimento dos bebês e tranqüilizá-los de que a criança prematura é normal. Diz a publicação: “Muitas pessoas famosas pelo seu desempenho nasceram prematuramente como Winston Churchill, Isaac Newton, Anna Pavlova, Mark Twain e Albert Einstein”. O próprio Albert Einstein foi prematuro. Quase por missão, me ocorre, o Hospital Albert Einstein deveria aperfeiçoar o atendimento da prematuridade, inová-lo, fazendo jus ao homem que inspirou o nome da instituição. As palavras são importantes. Como se sente uma mãe, por exemplo, ao ouvir um médico falar do seu filho como uma “aberração”? Se este é o termo correto e científico, deveria ficar restrito aos congressos. De todas as definições de “aberração” (erro, distorção, defeito, deformidade, anomalia, fenômeno monstruoso) gosto mais daquela que diz assim: “fenômeno natural que se nos mostra sob formas desconhecidas ou incompreensíveis”. Na natureza, existem “n” aberrações: aberração cromática, aberração geométrica, aberração de esfericidade, dos sentidos, da luz, até aberração planetária. É só olhar no dicionário. Se existem tantas aberrações naturais, o que é aberração? Aberração é algo que não conseguimos explicar? Um fenômeno que expõe nossa ignorância? A UTI do Berçário Eu não entendo de UTI, nem sou obrigada a entender, não coloco em dúvida que ela tanto salva vidas como mata. Falo como mãe e afirmo: se esta é a única forma de se proceder a determinados tratamentos, falta muito, mas muito mesmo, para uma UTI ser aceitável. Na revista Veja de 1 de março de 1995, há um artigo intitulado “A filial do inferno chamada UTI”, com o subtítulo “Ao fugir dela, o senador Darcy Ribeiro fez-lhe a mais eloqüente das denúncias”assinado por Roberto Pompeu Toledo. Permito-me transcrever trechos. “Já não basta pedir a graça de ser poupado do câncer e da Aids, do enfarte, do derrame, do aneurisma, da hemorragia interna, da septicemia e do esmagamento do crânio. É preciso rogar ser poupado do câncer, da Aids, do enfarte, do derrame, do aneurisma, da hemorragia interna, da septicemia, do esmagamento do crânio e da UTI. A UTI é a cura que virou doença, o doutor que virou monstro. É a tecnologia a serviço da morte intranqüila. O lugar onde se sofre só e amarrado, com tubos fustigando os orifícios do corpo, ouvindo os gemidos de outros pacientes ou a azáfama do enfermeiro na hora em que enfim parecia que se ia ganhar um pouco de paz. (...) Não bastasse a morte, há os adereços horrendos da morte - a dor, a angústia. Não bastassem a morte, a dor e a angústia, há agora a ameaça da morte na UTI. Contra esse avanço das trevas, ainda bem que há cavaleiros andantes luminosos como o senador Darcy Ribeiro. (...) O último grande serviço prestado por Darcy Ribeiro foi fugir da UTI. Ele não agüentava mais, como explicou numa entrevista publicada por Veja, seis números atrás: “Fiquei na sala da UTI com tubo no nariz, tudo na traquéia, sangue, soro, gente chorando, gente gemendo. Um horror total”. Darcy Ribeiro sofre de câncer na próstata. Pedia ao médico para tirá-lo da UTI e o médico não deixava. Então, num gesto destemido (...), com a cumplicidade de um amigo, conseguiu uma cadeira de rodas e escapou. Foi uma eloqüente denúncia, a mais eloqüente talvez, dessa tenebrosa ante-sala da morte travestida de avanço da ciência que é a UTI. Antes, morria-se em casa. (...) Seguiu-se, em nome da ciência, a morte no hospital. Depois, em nome de mais ciência ainda, inventou-se trancafiar o paciente nesse hospital do hospital, que é a UTI. Dali não se pode sair. Um cérbero vigilante não deixa, não um cérbero com três cabeças, como o porteiro do inferno grego, mas vestido de branco. A alegação é de que, se sair, o paciente morre. Darcy Ribeiro, no entanto, escapou para a vida (...)”. Eu sonhei com uma UTI de berçário totalmente diferente. Falava dos meus planos para as outras Mães de UTI. Tentava visualizar novas cores para um mundo cinza e branco. Primeiro, as coisas pragmáticas do dia-a-dia: cadeiras à altura das “isoletes” para mães recém operadas e abatidas se sentarem enquanto acariciam e vigiam com os olhos as suas crias e os angustiantes aparelhos sonoros que monitoram suas vidas. Uma cadeira, uma simples cadeira. Não tem espaço? Façam UTI maiores e mais bem planejadas. Teve momentos que eu fiquei disputando uma vaga numa das duas ou três cadeiras que eram usadas pelas enfermeiras, pelos médicos e por nós. Vejam: apenas um dia após a cirurgia, você, porque deixou de ser parturiente, deixa também de ser considerada paciente do hospital, já que tem que ficar horas em desconforto se quiser ficar perto do seu filho na UTI. Não creio que custaria muito um lugar destinado às mães para que pudessem pendurar e guardar seus pertences: bolsa, casaco, guarda-chuva, sacola. Cheguei a colocar minhas coisas no chão e a pedir emprestado um espaçozinho no armário das enfermeiras. E no corredor do Banco de Leite? Você marca hora para tirar e armazenar o leite. Tudo bem. Mas às vezes ocorre duas ou três mães se juntarem na porta, num corredor de passagem que se situa na curva de uma escada. Ficam em pé, esperando. Não poderiam dispor de um banco para se sentarem e eventualmente conversarem com alguma calma enquanto esperam a vez? Um grato parêntesis para o Banco de Leite Na minha sofrida experiência hospitalar, foi o setor que melhor funcionou naquele período, em mais de um sentido. Não existe momento, para uma Mãe de UTI, mais nevrálgico: o de tirar o leite para o filho doente. É um misto de muitos sentimentos: dor de não poder estar amamentando o filho, tristeza do distanciamento físico, esperança de que o filho possa melhorar tomando o seu leite. É, ao mesmo tempo, uma forma efetiva de aproximação do filho. No meu caso, nunca sabia se a Lara poderia tomar o meu leite, em função das suas condições de saúde. Mas ia tirá-lo com toda a esperança. Ele é analisado, pasteurizado e guardado para o momento em que possa ser utilizado. Você entra na sala de ordenha, limpa as mãos, lava os seios, põe um avental próprio e esterilizado, touca nos cabelos, máscara. Aí você é atendida pelo que eu chamei de fadinhas: as fadinhas da ordenha. Eram três, todas semelhantes em vitalidade, brilho dos olhos e faces rosadas. Todas miúdas, mas com jeito de camponesas vigorosas e felizes. Elas são receptáculos dos nossos sentimentos. Para elas, desnudamos o peito, o peito cheio, dolorido, e sem o uso natural. São elas que fazem massagem nos nossos seios para chamar o leite e é com elas que aprendemos, nós mesmas, a tirá-lo. É um momento de muita fragilidade e força. E é o único momento, na vida de uma Mãe de UTI, em que ela pára, tem que parar para conseguir tirar o leite e, de certa forma, descansa. Descansa até quando chora enquanto faz a ordenha. Chora porque parou um pouco, chora porque aquele leite pode ficar sem uso, chora porque é uma máquina que lhe suga o seio, chora porque enquanto tira o leite pode estar acontecendo alguma coisa com o seu filho na UTI, chora porque o stress e a tristeza fazem minguar o leite. Chora. A Mãe de UTI chora. E as fadinhas do leite têm uma função preciosa que exercem com uma leveza e sensibilidade impressionantes. Não sei quanto ganham, mas eram ouros naquele hospital. Não é por acaso que existem algumas fotos de crianças penduradas num cantinho da parede. São dadas pelas mães agradecidas, que tiveram a felicidade de levarem seus filhos para casa. Depois da ordenha, as fadinhas servem um suquinho doce, normalmente de maracujá. O efeito físico e afetivo desse suco é muito bom. Eu o recebia como um carinho, ou como um prêmio por ainda ter conseguido manter um pouco do leite. Voltando à UTI Voltando aos sonhos de uma UTI humana. A mãe sempre tem a impressão de que o seu filho estaria melhor se estivesse no seu peito, dormisse no seu colo, sentisse o seu cheiro, o seu calor e o seu coração. A Mãe de UTI acredita que ela seria mais eficaz na cura do seu filho que todos aqueles aparelhos juntos. Mas isso não é possível. Então ela fica ali do lado usando a força do pensamento e do amor. Em cada carinho que pode fazer no filho através dos vãos da incubadora, acredita que suas mãos esterilizadas de todo o mal vão aliviar o sofrimento daquela criança. Então eu sonhava. Por que não poderia existir uma sala especial, em que a mãe se desnudasse, e toda esterilizada deitasse numa cama, e sobre seu corpo fosse colocada a criança, por pelo menos algum tempo por dia? Mesmo que para isso fosse preciso construir uma máquina - mais uma máquina - que, descendo sobre seu peito, cobrisse a criança e lhe fornecesse o oxigênio necessário e todos os demais monitoramentos. Havia apenas uma enfermeira-chefe que nos deixava pegar os filhos no colo. Escondido. Escondido de quem ou de quê? Na calada da noite, quando há pouco movimento. E a gente não podia sair contando, toda feliz, que havia estado com o filho nos braços. Dizia ela que, por observação, depois que a criança passa alguns momentos junto à mãe, a reação ao tratamento é melhor e, especificamente, fica muito mais fácil “pegar a veia” da criança para colocar o soro. Quando alguém, nessas condições, põe o filho no teu colo você recebe essa permissão como um favor. Não sente como parte do tratamento. Mas eu insisto - ouçam o que as mães têm a dizer. A expressão do filho no colo se suaviza e ele esboça algo semelhante a um sorriso. Talvez esse leve sorriso - que um médico do hospital ponderou que do ponto de vista da medicina não quer dizer nada, apenas um rictus sem sentido nem significado - seja exatamente isto: um rictus espontâneo, uma contratura instintiva que expressa conforto e reconhecimento. O fato é que mais ou menos um mês depois da Lara ter morrido, liguei a televisão, infelizmente já no fim de um documentário da TV Cultura sobre o Projeto Canguru: um projeto experimental de UTI de berçário de prematuros, em um hospital de uma cidade do interior, se não me engano, de Pernambuco. Meu queixo caiu, e morri de inveja daquelas Mães de UTI. Elas eram preparadas para participar do processo, tinham funções no tratamento do filho e, sempre que possível, o filho lhe era colocado sobre o corpo, aconchegado por uma faixa de pano, tal como as índias carregam seus filhos. Mães Cangurus. Mesmo por alguns momentos, se tivessem condições a criança e a mãe, isto era feito. Havia quarto coletivo, anexo ao berçário, com várias camas para as mães descansarem. Lugar para guardarem suas bolsas, absorventes, pentes, dentifrício. Dignidade. Resultados obtidos pelo projeto: recuperações mais rápidas, queda do índice de óbitos, altas médicas em menos tempo, menores riscos de infecção em função da permanência mais curta em ambiente hospitalar. O que mais me chamou a atenção no programa foi a expressão das Mães de UTI do Projeto Canguru: vivacidade e esperança. Menos depressão e angústia. Elas estavam ali para ajudar, tinham uma função importante e reconhecida, faziam parte dos esforços pela cura de seus filhos. Havia um clima de cumplicidade entre médicos, enfermeiras e mães. O grande objetivo de todos era ver as crianças sãs e fora da UTI. (Lembro-me de um dia em que uma jovem médica plantonista da UTI me disse: "Talvez, para sua filha, o melhor seja realmente morrer do que ter uma vida curta e muito difícil". Olhei para ela com calma, sentindo-a ainda mais jovem do que era, e respondi: nem você, nem eu, que sou a mãe, somos capazes de saber o que é melhor para a Lara). Quanto à assepsia da UTI: é rigorosa, em regra. Mas nem um afamado hospital foge às exceções da regra. Toda vez que alguém vai sair da UTI do berçário, seja mãe, médico ou enfermeira, tem que abandonar o avental utilizado. Na volta, tem que proceder novamente a toda esterilização das mãos e dos braços. Não se reutiliza o avental abandonado e se desdobra outro, passado e esterilizado. É recomendado o uso de máscara quando se está resfriado ou gripado. Há um tambor para receber os aventais usados e outro para receber lixo - seringas, agulhas, fraldas e lençóis sujos de xixi e coco. Mas... Uma médica que estava passando por todos os nenês, estava gripada de dar pena, fungando e espirrando, sem máscara. Certo dia comentei com uma médica que a Lara fazia movimentos de sucção. Achando um bom sinal, perguntei se era possível dar-lhe chupeta. Pela posição em que a Lara ficava na UTI era geralmente uma das últimas atendidas pelo plantonista que fazia a ronda pelas isoletes. A médica já havia manipulado todos os bebês, cada um com um problema diferente. Antes que me desse conta ela estava com o dedo na boca da Lara, com a intenção de testar o seu movimento de sucção. Enfim, acabara de receber a notícia de que a Lara havia contraído uma infecção de origem imprecisa, causada pelo cateter (que às vezes funciona como um canal de entrada para agentes infecciosos) ou pela baixa imunidade dela ao crescimento natural das próprias bactérias e germes. Perguntei à médica se ela estaria descartando a possibilidade de uma infecção hospitalar. Não, ela não descartava, mas achava improvável, embora admitisse que às vezes a criança é tão manipulada que torna difícil um controle rígido de todos os fatores. Foi justamente no momento dessa explicação que vi uma enfermeira jogando um lençol cheio de coco no meio dos aventais. Interrompi a médica para apontar: "e isto, é certo?" Ela respondeu com sinceridade: "Não, não é". 19 de Janeiro de 1996. Finalmente, depois destes dias de calor intenso e sol ardido, troveja na noite e o pé d’água promete ser daqueles. Embora estejamos todos cansados da chuva pesada e ininterrupta do final do ano, já está na hora de chover de novo. As tempestades são assim. Vão se armando sorrateiramente até deixar o ar tenso e nossos corpos pesados e indolentes. Depois que chove, alivia, e então podemos reclamar de novo de tanta chuva e ansiar por mais dias quentes e secos. Foi assim comigo ontem, numa antecipação do desabafo climático de hoje. De manhã, aproveitando a ausência do Paulinho, que não pode vir roçar nem plantar os cedrinhos ao longo da cerca, fui tomar um banho de rio e, na cachoeirinha, fazer massagem nesse meu corpo ainda longe de se recuperar, agora com pequenos vasos, uma inédita celulite, estrias e uma barriga tão grande que me perguntam de quanto tempo estou grávida. Desde sempre, para sempre, tenho vontade de dizer. Assim que entrei na cachoeira e senti o choque da água gelada no corpo, desatei a chorar. Um choro longo, gemido, uivado. Um choro ancestral de fêmea ferida feito de memórias, e vísceras. Depois, me abandonei. Sentia a estranha sensação de enormes asas translúcidas. A sensação era tão forte e as asas, tão “visíveis” para mim, que quase poderia ter me sentido ridícula, não estivesse sozinha e fosse tudo absurdamente verdadeiro. Tive ainda outras percepções. Ao voltar para casa deitei e dormi. Um sono enfim tranqüilo. Na verdade, desta vez vim para o sítio por causa de um sono profundo que experimentei aqui pouco antes do Natal, antes da família chegar. Tinha esperanças de vivê-lo de novo. Mas aquele sono veio para minorar o cansaço, por pelo menos um dia, de um corpo mal dormido e machucado. Este sono de agora veio para minorar o cansaço da alma. Aqui me encontro, sob a luz dos lampiões, com a chuva batendo no teto, o rio rugindo lá embaixo e, pouco mais adiante, o esqueleto molhado de um boi morto. Aqui me encontro, só, e cada vez mais forte. Até desenhei o caramanchão que pretendo construir próximo ao rio, para estender redes e ler... Manipulação ou tortura? Minha filha não foi “manipulada” (termo muito usado na UTI), mas torturada. Imagine você: deitado, cansado e doente, com dificuldade para dormir por causa do desconforto geral, das luzes que nunca se apagam (perturbando os ciclos biológicos), do ruído dos aparelhos de monitoramento, do oxigênio, das pessoas que vem e vão, falando em torno de você. Tudo isto é para te ajudar, mas que ajuda infernal Mesmo assim, seu sono começa a vir, e você aproveita para descansar um pouco. Mal você dorme, alguém abre a janela da caixa transparente em que você reside e troca sua roupa. Meia hora se passa, você volta a sentir o calor do sono chegando. Outro alguém abre a caixa e tira sangue do seu pé. Reabrem a caixa, “pegam sua veia”, perdem sua veia, acham sua veia mais uma vez, instalam o soro. Em algum momento tudo se estabiliza e você volta a sentir a necessidade vital de dormir e, quando isso começa a acontecer, a tortura recomeça. Alguém instala a aparelhagem de eletro em você, outro chega com o ultra-som. Acabou. Daí a um pouco, voltam a te tirar mais uma amostra de sangue para testar níveis de sódio, potássio, etc. Nos teus pés há fios, nas tuas veias, soro, no teu pescoço, catéter, em torno da tua cabeça, capacete de oxigênio. Ruídos e luzes em torno de você. A noite não chega nunca, nunca chegará, a não ser, a da morte. Teu corpo pede conforto, sossego, alimento e calor. Você está realmente cansado e precisa de um sono reparador, mas não te deixam dormir. (E cobram uma fortuna por isto...). Quanto tempo você demora para começar a ficar doido e cada vez mais doente? E, para um bebezinho prematuro que pelas leis da natureza ainda deveria estar no escuro morno do útero, aconchegado em líquido, num mundo sem máquinas e sem barulhos altos? O stress a que um bebê prematuro é submetido em uma UTI é incalculável (ainda mais em casos complicados como o da Lara). Isso não parece pauta de reflexão médica, por que muitos médicos acham que a criança “não sofre” como a gente imagina. Eles acreditam que o bebê não conhece o sofrimento que pensamos, que nós tendemos a projetar sobre o bebê o sofrimento tal como o conhecemos. Mas a vida tem regras básicas que, se desrespeitadas, concorrem para o prejuízo da saúde: sono e suficiente conforto físico e emocional fazem parte destas regras. E elas absolutamente não são respeitadas na UTI de berçário que conheci. Serão respeitadas em outros hospitais? “Inicialmente as horas de sono do bebê prematuro são maiores que o bebê a termo - 15 a 22 horas por dia. Tem longos períodos de sono e pequenos períodos despertos”, ensina a mencionada publicação do Berçário de Alto Risco, sobre prematuros. E mais adiante: “Os melhores ingredientes para o desenvolvimento do seu bebê são o amor, o contato físico, o carinho e a atenção”. O filho de uma colega Mãe de UTI era menos manipulado, talvez porque o seu quadro dependesse de uma evolução sem grandes interferências (viva, querido Antonio) e eu achava que ele era um sortudo. Dormia horas seguidas, como é natural para um bebê prematuro, enquanto outros eram continuamente manipulados, e ficavam visivelmente irritados. Enquanto Lara pôde, apesar de tão pequenina e magra, manifestou o seu desconforto, esperneando e tentando, com uma força surpreendente, arrancar o soro e os fios que a ligavam às máquinas. 20 de Janeiro de 1996 O dia amanheceu nublado e a terra toda molhada. Deixo-me ficar na cama, curtindo as dores saudáveis do corpo que sofre as conseqüências da massagem da cachoeira. Levanto-me para passar um café, sem o qual não me entendo. Pela janela entra o aroma refrescante do poejo. Novamente da maneira mais desavisada, caio em prantos lembrando dos sofrimentos físicos que passou minha filha, tão pequena Como lembrou Igor (marido da minha prima Jesuína, que acolheu Lara no túmulo da sua família), o Homem engatinha sobre a face da Terra, diante da especialização das abelhas e de outras espécies que vivem no planeta há muito mais tempo. Pode ocorrer ainda que não dê certo como espécie. Fico por aqui pensando que talvez fosse melhor para o Planeta, se isso ocorresse. Aí não haveria mais UTI’s e outras formas de tortura que o homem tem inventado ao longo de sua história... Não haveria pequenas meninas sofrendo imensos desconfortos que mais se assemelham a torturas medicinais meticulosamente estudadas. Aceito que muitos sobrevivam exatamente por existirem tais torturas, mas afirmo que há algo perverso nisto tudo e que deve haver outros caminhos de cura a serem propostos e outros métodos e planos quando a cura for, praticamente, impossível... Quando a entubaram - ela que era um dos poucos bebezinhos prematuros não entubados, porque surpreendentemente tinha um bom pulmão - reagiu prontamente: dali a cinco minutos arrancou o tubo. Não o recolocaram. Um médico disse: quando o próprio bebê arranca, então é por que a entubação não é necessária. Engraçado: às vezes, o bebê não sente nada, ele não conhece exatamente o sofrimento que conhecemos; ele nem passou ainda pelo pleno processo de mielinização Outras vezes, o bebê é tão esperto e inteligente que sabe se precisa ou não do tubo de respiração. O fato é que não recolocaram o tubo e já viram a violência que é entubar alguém? Se não era, no caso, absolutamente necessário, por quê a entubaram? Guardei o que pude dos exames realizados na Lara, o hospital colocou-os à minha disposição. Farei um inventário de quantos exames foram feitos por dia, além de todos os inumeráveis procedimentos de rotina. Outra coisa que jamais entendi: por que tanta azáfama durante o dia, tanto monitoramento, tanto exame, como se os procedimentos e manipulações constantes fossem essenciais para a sobrevivência da criança, se à noite praticamente não acontecia nada, além da rotina de monitorar aparelhos e manter os bebês limpos? Por que tanta gente de dia e tão pouco à noite? Acreditem: houve uma madrugada que cheguei a uma UTI deserta. Isto mesmo: não havia ninguém lá. Bebês e as máquinas. Eu, apavorada. E se alguma criança tivesse uma apnéia? Foram alguns poucos minutos. Mas não são mesmo alguns minutos que fazem a diferença entre a vida e a morte, principalmente numa UTI? Um dia pedi à médica geneticista (enquanto supunha que ela atendia a Lara apenas como plantonista do hospital), que me recomendasse texto sobre bebês prematuros. Obtive um texto, simples, de poucas páginas, que xeroquei no hospital para mim e as outras Mães de UTI. Algumas delas agradeceram, dizendo que a leitura do texto havia ajudado muito. De fato, por quê o próprio hospital não deixa à disposição das Mães de UTI textos deste tipo, esclarecedores e informativos? Afinal, muitas mães vivem ali com seus filhos por trinta, quarenta e até mais dias. Lembro bem que o texto colocava a necessidade de respeitar, e promover, o descanso do bebê prematuro. A sugestão do texto era de que fossem aproveitados os momentos de manipulação necessária - como troca de fralda ou instalação de soro - para realizar os demais procedimentos. Assim, a criança teria mais tempo para dormir e recuperar-se. Ficaria estabelecida uma rotina, e não uma tortura que impede que um bebê prematuro exerça sua função: dormir. O texto e os fatos: quantas discrepâncias e contradições Não conheço detalhes do Projeto Canguru, mas apreciei a iniciativa de se fazer uma UTI mais humana e, portanto melhor para as mães e as crianças. Uma UTI melhor implicaria em menos gastos para o hospital e para os convênios. Tendo, as crianças, alta mais cedo, haveriam mais leitos disponíveis. Mais delicadeza e dignidade. Os prematuros que morressem, morreriam melhor. Suas mães teriam a certeza de terem feito mais pelos filhos. Então, por que hospitais de grande envergadura não repensam e colocam em prática o que é preciso para se humanizar a UTI e assim aumentar-lhe a eficácia? E os aparelhos da UTI? Ah, os aparelhos Estranhos e misteriosos aparelhos Torturam também a mãe com sua linguagem cifrada e seus alarmes que nunca querem dizer coisa alguma. Vivem apitando fora de contexto. A enfermeira se aproxima, aperta um botãozinho e tudo volta a funcionar como antes; nisto, seu coração já quase parou. Me explicaram: os aparelhos são muito sensíveis, coisas à toa detonam o alarme. Uma enfermeira alerta: não fique olhando para os aparelhos, deixe isso com a gente. Mas como? Eles estão lá, na cara da gente, esotericamente dizendo coisas sobre seu filho Por que não dão logo uma explicação rápida sobre a função deles? Quanto custaria uns minutos de explicação em uma UTI de R$ 3.000,00 por dia? O Isolamento Existe ainda outro fato que me causou, e causa, perplexidade. Enquanto Lara esteve na UTI do berçário foi, como descrevi, manipulada ao extremo, até à exaustão. Todos os exames e procedimentos foram feitos como se pudessem salvá-la e como se a equipe confiasse na possibilidade dela sair do hospital. A partir do momento em que contraiu infecção, esse empenho parece que se esvaziou de sentido. Transferida para o Isolamento, e com poucas chances de sobrevivência, tudo era silêncio. Ela foi isolada para morrer. Todos sabíamos disto. Claro que esforços têm que ser despendidos com crianças que ainda podem sobreviver. Mas não estávamos numa enfermaria de guerra, em que a opção é exatamente esta: vamos trabalhar naquele, que este já está quase morto. Não reclamei, então. Senti alívio. Achei que ela finalmente poderia dormir. (Mas era tarde). Lara agora poderia dormir, mas nenhum sono seria reparador para ela, pois o desconforto e a fraqueza eram grandes e ela só fazia gemer. Não havia alternativa, senão a de dormir para sempre. O único momento verdadeiramente humano e cúmplice entre mãe, bebê e equipe foi o da morte. Obrigada, Doutora W. Não era uma questão da vida ou da morte, mas da vida possível Claro que fizeram o que foi possível pela Lara do ponto de vista médico e técnico, segundo a visão atual da medicina. Mas como não sou profissional da área, é como mãe e observadora que tenho coisas a dizer. O trabalho da medicina na UTI está preparado para a vida e a morte “comuns”. Não está preparado para situações estranhamente intermediárias, como a da Lara e outras crianças sindrômicas, cujas vidas cometem a transgressão de anunciar, em si, a morte. São vidas de prognóstico difícil que a experiência clínica comprova serem breves. Se uma criança nasce prematura, mas cromossomicamente normal, tem grandes chances de sobreviver sem seqüelas, embora o espectro da morte a ronde, pela apnéia, baixa imunidade, imaturidade do pulmão, etc.. Mas crianças como Lara, consideradas “aberrações”, nos colocam contradições penosas: trazem, em configuração singular, a vida que prefigura a morte, mas é ainda vida que teima em esgotar todas as suas possibilidades, como vida completa em si. Não sabemos, ainda, lidar com isso. Como tratar tais crianças? Elas fogem ao padrão de normalidade a partir do qual se estabelecem os procedimentos e tratamentos da medicina. Para elas, estes não deveriam ser inteiramente convencionais; deveriam, de algum modo, ultrapassar normas-padrão. Num caso como o da Lara, que de antemão se sabe ter média de vida de oito meses, o que está em questão? A questão da cura não tem sentido, que ainda não se curam “desarranjos” cromossômicos. Ajudar na luta pela vida é questão relativa: a morte já está prognosticada. Talvez a melhor forma fosse considerar a existência da “vida possível”. Qual é a “vida possível” para esta criança? Como podemos ajudá-la a viver todo o tempo de vida? Certamente não é impedindo-a de dormir. A “vida possível” só pede consolo e compreensão. Bom senso e delicadeza. Sensibilidade para os limites. Até onde podemos ir, sem ofender a fragilidade da vida de uma criança com esses limites? Não é ilusório utilizar todos os avanços da medicina (parece que “todos”, o tempo todo...) para tratar crianças assim? Aparentemente, este enfoque é o melhor e único possível do ponto de vista das instituições que oferecem seus serviços médicos, do corpo clínico que cuida diretamente da criança e até dos parentes que a querem ver “tratada” com todos os recursos disponíveis. Mas seria essa opção a melhor do ponto de vista dessas crianças singulares? As manipulações, os exames, as intervenções, os procedimentos a serviço da tecnologia médica dita sofisticada deveriam, nesses casos, não ser excluídos, mas reduzidos ao mínimo - dentro de critérios de seletividade especial - visando a reduzir, ao máximo, o desconforto dessa criança tão especial. Instituições, corpo clínico e parentes deveriam estar entrosados no esforço para promover o bem-estar possível a essas vidas marcadas pela exceção. Bem-estar físico e emocional - a finalidade mais humana dos procedimentos médicos - talvez seja o que de melhor possamos, no momento, fazer por essas crianças. O que não seria pouco... No dia da sua morte A enfermeira que cuidou de você nas suas últimas horas sugeriu que eu mesma a levasse, embrulhada num pano grosso e branco, para o necrotério. Seria uma chance de ter você mais tempo. Mas eu tive medo. Medo de sair correndo com você daquele hospital e correr, correr, correr... Procurando um paraíso inexistente para nós duas, em que a normalidade não fosse regra e em que o direito à vida fosse condição incontestável e inabalável da existência infinita. Um paraíso repleto de síndromes, em que eu fosse a aberração permitida. Véspera do Natal de 1995, no sítio Colocamos velas por entre as árvores e as flores do jardim e ficamos observando seus efeitos da varanda. Vistas assim, pareciam pequenas fadas, cada qual com uma personalidade distinta. Demos-lhes nomes. Depois, “qualidades”. Encontramos a vela da inteligência, a da humildade, a da amizade, e a Neusa denominou uma delas de “esperança”. Começou a chover e vimos a inteligência se apagar, a humildade extinguir-se, as qualidades irem sumindo, sumindo, até que restou a “esperança”, renitente, heróica, paciente. A “esperança” ficou lá, convivendo com a chuva por longo tempo. Cansados de tanta resistência, entramos em casa e ceamos, enquanto a “esperança” continuava a iluminar o jardim. Por fim, apagou-se... Nessa mesma noite acordo com um grito, penso que seja de outra pessoa, percebo que era meu. Acordei, assustada, jurava que todos na casa tinham acordado também. Tive muitos sonhos nesta noite, lembrei-me deles de madrugada, mas, como vem ocorrendo voluntária e sistematicamente, fiz questão de esquecê-los. Relembro claramente apenas dois: Lara já era grandinha, uns dezessete anos, e ambas gritávamos e lutávamos para ficarmos juntas. Pessoas me puxavam para um lado, a Lara, para outro. Ela gritava: "Mãe Mãe" E eu respondia desesperada: "Lara Lara" Estendíamos as mãos uma para a outra e lutávamos, mas não havia jeito. Não lembro de sentir aflição e desespero maiores. Foi então que acordei com aquele grito horrível. Em outro sonho, minha amiga Elisa (e madrinha da minha filha) me dizia: “Mas, Renata, você está viva” E eu respondia tranqüilamente: “Não, eu estou morta”. Ela insistia: “Como assim? É claro que você está viva” E eu dizia: “Vou te mostrar, eu estou realmente morta”. Aparecemos num cemitério, eu estou pondo flores no túmulo em cuja lápide se lê o meu nome. Digo: “Está vendo? Estou mesmo morta”. No dia da morte Lara, no amanhecer daquele dia, o tio Beto e a Neusa tiveram sonhos relacionados com a sua morte. O sonho que o Beto me contou era mais ou menos assim: você estava no Isolamento da UTI, sozinha, sobre uma mesa. Eu tentava desesperadamente abrir a porta de vidro que nos separava e não conseguia. Vencida, pela impossibilidade, caio no chão, encostada à porta. Nisto, o Beto vê uma figura de mulher ao seu lado. Com um pano ela cobre você e a própria cabeça e então ambas desaparecem. No sonho da Neusa ela estava num carro, que o Beto dirigia por um sítio, e ainda de carro passeavam por uma horta, mas uma horta de hortênsias, que pareciam repolhos. As passagens eram muito estreitas, algumas íngremes, com curvas acentuadas. Neusa pediu para seguirem a pé. Ela encontra, ao lado de uma rocha alta, velas e pedras pequenas coloridas. Quando abaixou para tocá-las, viu as pernas de uma mulher magra ao seu lado, que se adiantou e lhe estendeu a mão cheia de pedras e velas, para que ela escolhesse. Neusa preferiu as pedras coloridas, mas não chegou a pegá-las. Estava assustada, e não via o rosto da tal mulher. Ela se lembra apenas que as pedras eram lindas e brilhantes. Ao acordar, teve certeza que aquele sonho tinha um significado triste, o que comentou com o Beto. Os dois souberam que, naquele dia, você nos deixaria. Na véspera da sua morte, sua avó sonhou e registrou: “Lara e eu estamos numa espécie de ilha circular, suspensa em pleno espaço. O céu é cinza claro, levemente enevoado. Lara está deitada sobre a grama, dormindo. Sentada a seu lado, seguro-lhe a mão. Sobre a grama há margaridinhas a perder de vista, e tão pequeninas que penso: elas podem servir de sombrinha às formigas. Acordo”. Anteriormente, a avó sonhou e escreveu: “25 de Outubro de 1995. Três homens excepcionalmente altos, amorenados, caminham juntos pelo corredor do hospital, dando a impressão de uma disposição física incomum, de uma grande vitalidade. Chegam ao saguão, param sob uma espécie de arcada. Vestem-se com roupas sóbrias, formais, incluindo gravata. Estranho o fato, pois os reconheço como sendo os “anjos gigantes” que me apareceram em outro sonho. Os homens me olham agudamente, acenam levemente com a cabeça, saem pela porta do hospital. Acordo com a sensação de que vieram me anunciar a morte da Lara”. Na madrugada de 03 de novembro, um dia depois do seu enterro, sua tia Maria sonhou: “No meu sonho, vi Larinha deitada em cima de uma mesa, a qual estava coberta com toalhas brancas. Eu me sentia muito aflita, pois a via sozinha e queria juntar-me a ela. No entanto, era impedida por uma muralha invisível que bloqueava minha passagem. Vi então surgir, do meio de uma intensa luz, uma bela silhueta coberta por um manto etéreo que, de costas para mim, dirigiu-se até a mesa e com muita suavidade pegou a Lara nos braços. Voltou-se então para mim e vislumbrei seu belíssimo rosto. Sorridente, ela balançou a cabeça num gesto de negação. Compreendi que a Lara não estava só, como eu imaginava”. 13 de Janeiro de 1996 Nós temos a mania de nos perguntar “porquê isso aconteceu comigo”? Qual o nexo entre minha vida passada e o acontecimento recente? É Castigo, Destino, Deus me pondo à prova? O que fiz para merecer isto? Talvez tudo não passe de acaso. Irônico acaso de cara feia. O problema é este: aceitar o acaso. A ausência de significado. Você sofre pelo vazio. Ou simplesmente é o que é; o que, num dado instante, passa a ser inevitável na cadeia de elos de que é feita nossa vida. Sempre houve poesia na minha vida. Bem, na vida não sei. Mas dentro de mim. Apesar de tudo ou por causa de tudo. De repente, a poesia se foi. A poesia desapareceu Acho bonitos a vaca branca ao lado da pedra escura e do mato verde. Gosto de estar aqui ouvindo o canto dos passarinhos. Mas, onde o encantamento? Outros pais e mães Ao longo desses meses, fui procurada por pais e mães que perderam filhos, mostrando-se solidários e procurando uma oportunidade de conversar com quem passou pela mesma dor. Quando ainda estava grávida, um executivo da empresa em que eu trabalhava perdeu um dos gêmeos que haviam nascido há pouco mais de um mês. Tempos depois, voltou para o trabalho, com mais cabelos brancos, e muito abatido. Na época, eu não podia entender essa transformação. Depois que minha filha morreu, almoçamos juntos. Conversamos e choramos. Disse-me que sua mulher tinha vontade de reunir, num grupo de mútua ajuda, pessoas na mesma situação. Uma ex-colega, que hoje tem duas filhas moças, perdeu, há muito tempo, uma menina de nove anos. Disse que ela sabia que eu só poderia ser compreendida por quem também tinha perdido um filho e que a procurasse sempre que quisesse. Essa mãe viveu à base de remédios e terapia por muito tempo. Desde que minha filha morreu, tenho problemas de memória; é com dificuldade que acho as palavras e lembro de fatos e compromissos. Um dia, eu estava conduzindo uma reunião de grupo de pesquisa, quando uma das convidadas confessou não estar conseguindo participar direito do trabalho, porque sua cabeça não andava muito boa e não se lembrava bem das coisas, o que vinha ocorrendo desde que seu filho de quatorze anos morreu num acidente de bicicleta. Depois da sessão, procurei-a para dizer que eu estava passando pelo mesmo processo. Aproximou-se de nós outra senhora, mãe de três filhos. Contou que nunca esqueceu a filha que perdeu. Perguntei quantos anos tinha a menina quando morreu. “Dez dias”. Ficou com os olhos cheios de lágrimas. Perguntei há quanto tempo isso tinha acontecido. “Vinte anos”, respondeu. 16 de Janeiro de 1996 A morte é também uma experiência olfativa. Minha experiência atual é exemplar. Cheguei ontem ao sítio e vi muitos corvos perto do rio. Procurei com os olhos o bicho morto e não o encontrei. Uma brisa delatou para o olfato o que a visão não havia esclarecido: havia de estar por ali o bicho morto, tal o cheiro que dele exalava. O “cheiro da morte” me invadiu, já o tinha sentido antes e foi fácil reconhecê-lo. É preciso enterrar com urgência o animal. Hoje me indicaram o lugar: atrás daquela árvore na margem de lá do rio. Foi um boi que morreu, talvez picado por cobra. Os corvos ainda não comem mas há dois dias rondam o lugar. Lúcia e Nilson acabaram de passar por aqui a caminho do seu sítio e perguntam se estou bem. Lúcia quer saber se estou me sentindo acompanhada por Deus e toda a “equipe”. Respondo sorrindo que sim, esvaziada de qualquer tipo de fé. Sinto-me só. Triste e só. Aguardo a chegada do Marcos e da Walquiria. Marcos não vem, imagino, porque ele dá voltas, se enrola e a gente fica sempre sem saber. Chegaram. Aconteceu que o Marcos achou a cidadezinha depois de se perder em alguma curva da Mantiqueira. Encontrou afinal a amiga, esta que escreve e às vezes submerge na terrível impressão do nada. “Nada”. Esta palavra, na língua brasileira, é quase alegre e sonora demais, fica sempre parecendo um “nada” meio cheio. Em francês, não, o “nada” é rústico, primal. É perfeito o efeito rascante e ríspido do “rien”. Tomei providências. Fui à casa do fazendeiro falar sobre a necessidade de se enterrar o boi, cujo cheiro já é insuportável. Além disso, o animal está perigosamente à beira do rio, havendo o risco de contaminá-lo. Uma senhora me atendeu e, sem dar muita importância para o que eu considerava um grande problema, simpaticamente sorriu e mostrou querer, mais que discutir o assunto, me conhecer melhor e bater um papinho: “Como é seu nome mesmo? Vamos chegar, entre para tomar um cafezinho...”. Mas eu insistia na necessidade de enterrar o bicho. Ela ponderou, sempre sorrindo, que não havia a menor necessidade disso, que o cheiro passaria logo, que os corvos dessem conta do trabalho. Fui embora sem saber o que fazer. Na manhã seguinte, para minha surpresa, o dono da fazenda e mais dois homens desceram a cavalo até o rio. Dezenas e dezenas de corvos assustados debandaram para as árvores. Eu não havia percebido até o momento o número, inacreditável, de corvos que estava por ali Fiquei observando: os homens vieram com uma canga que com certa dificuldade amarraram na parelha de bois. Depois amarraram o boi morto para puxá-lo, mas a parelha rebelou-se, foi trabalhoso dominá-la. Provavelmente, pensei, incomodam-se com os corvos e com o cheiro do companheiro morto. Querem fugir dali, como eu daqui, para um improvável e misterioso lugar. Finalmente, deslocam o boi para longe da beira do rio, mas não o suficiente, no que me diz respeito. Antes, ele estava invisível. Agora o vejo das janelas e das portas da cozinha e da sala. O vento bate mais diretamente nesta direção e a cozinha é invadida pelo cheiro acre e adocicado, difícil de descrever. Aguardo que o enterrem. Mas que nada. Um homem tira o facão da algibeira, corta o couro do boi ao meio, vira-se e retira-se com os demais. Mal os homens se vão, os corvos iniciam o trabalho. Integra-se à ceia um cão negro que se instala na barriga aberta do bicho e sai dali saciado, muito tempo depois. Corvos e cachorro não têm relação amigável apesar de dividirem o mesmo prato. Passa assim o primeiro dia e, depois, mais dois. No terceiro, o serviço estava completo. O que vejo agora é um esqueleto. Mas a esperança de que o cheiro se fosse durou pouco. Parece ter-se impregnado à natureza, à minha cozinha e ao meu nariz. Faz parte do meu sítio, da Mantiqueira toda. Penso com questionável satisfação que, por não ser boi, os vermes irão me comer, mas não corvos e cães intrometidos. Penso em Lara. Gostaria que ela se tivesse volatizado. Bem, uma parte dela volatizou-se e a outra, pretendo trazer para o cemitério desta pequena cidade, já que a lei não me permite plantá-la sob a figueira do meu jardim. 14 de Junho de 1996 Há aqui mais coisas para contemplar. Em São Paulo eu contemplava as pessoas. As pessoas do escritório, sempre as mesmas pessoas. Já não conseguia contemplar os prédios, o caos urbano e a poluição. Muitas vezes, ia descansar o olhar no jardim do museu vizinho, no horário de almoço da empresa. Durante algum tempo, quando em trânsito do escritório para casa ainda podia observar a rabugice alheia, prisioneira do tempo e do automóvel. Até que eu mesma me tornei o objeto rabugento da contemplação de algum outro olhar, se é que ele ainda existia. Aqui não. Pessoas, natureza e animais se alternam como caleidoscópio na paisagem mutante que se descortina ao meu olhar. Às vezes tenho a impressão de que sou contemplada pela montanha, tão íngreme e alta se ergue sobre mim. Meu dia é longo, minha rabugice fica fora de lugar. Ainda resmungo para não perder o hábito de sobrevivência na metrópole. Resmungo: tenho que voltar a trabalhar. Resmungo: tenho que ir a São Paulo na semana que vem. E resmungo: tudo por causa do dinheiro. Este era um bom momento para ser despreocupadamente mantida por alguém. Afinal, tenho tanto para fazer, tanto para descobrir, tanto para reorganizar. Ontem foi um bom dia, hoje foi um bom dia, amanhã será um bom dia. Como deve ser insuportável conviver com esse otimismo sagitariano que me acomete de tempos em tempos Mas veja, quem fala no bom dia é uma mulher ardida de dor. Não adianta assoprar, não adianta fingir, não adianta assobiar para distrair. A dor é. A dor está. Não vai passar, mas vai melhorar. Já estou com mais saúde. Fumo menos. Não me sinto mais intoxicada com a comida. Como pouco. Sinto falta de frutas, amanhã vou comprar. Não vejo a hora de colher rúculas. Semeei espinafre. Tenho setenta pés de alfacezinhas. Couve, beterraba, almeirão, mandioca. Gengibre. Cresce na horta o pé de mixirica que o Beto plantou, o de uvaia também. A horta vai virar pomar. Tenho saudades de amanhã nesta noite solitária e fria. Meus pés não podem tocar o chão da cozinha. Enquanto escrevo apoio meus pés na cadeira em frente. Sobe gelo pelas pernas. Minha cama amanhã estará mais quente. Mudo-me afinal para o mezzanino, que guarda o calor do dia no telhado baixo e forrado e não recebe o frio do chão. Amanhã. Depois que aspirar o pó e expulsar o cheiro de naftalina. Amanhã. Amanhã é um Sábado. Ontem foi dia de Santo Antonio. Não botei nomes de rapazes no pé da roseira; não planto rosas. Não botei seus nomes na tigela com água. Não escrevi seus nomes em papeizinhos que dormiriam debaixo do meu travesseiro. Não sei quem virá. Não sei se o aceitarei. Não sei quem serei quando o momento chegar. 17 de outubro de 1996 Faz um ano que você nasceu. Comemoraríamos seu primeiro aniversário e você já estaria do tamanho do anãozinho do jardim. Mas eu passei o dia fazendo placas de cerâmica e lutando contra a dor e a saudade. Sentindo uma necessidade imensa de dar e receber amor, nem filial nem fraterno, mas de mulher e homem. Sinto necessidade de um ombro para apoiar minha cabeça e de um abraço cheio de paixão. Amor pelo filho continuo sentindo como mãe que continuo sendo. Só agora consigo “desengravidar” e, em poucos dias, minha barriga desincha e meu corpo espicha. Minha gravidez durou um ano e nove meses. Apareceu uma cachorrinha, abandonada, apelidada por mim de “sem terra”. Adotei a infeliz, que morre de medo de gente, como eu. Agora, há poucos dias em casa, não sai do meu pé. Dou voltas ao redor da casa, ela dá voltas atrás de mim. Estava tão maltratada e deve ter apanhado tanto, que não se podia chegar a menos de três metros dela. Foi se acostumando com as pessoas, e neste pouco tempo, já recebe carinho de qualquer um, imagino que até de ladrão. De que me adianta uma cadela assim, morando sozinha num sítio? Ela não late para ninguém. Imagino que a função mínima de um cachorro de sítio é latir para alertar quanto a aproximações. Mas que nada. Pensei que fosse muda e me ocorreu que dupla fantástica nós formamos: a dona meio surda, a cachorra, muda. Até o dia em que ela deu dois latidos: para uma galinha choca E cá está Tonica, como foi apelidada pelo meu irmão, ou Luana, como apelidou minha cunhada ou, simplesmente, Sem Terra. Os meus ouvidos chiam sem parar. Tenho horríveis espasmos faciais que me constrangem social e profissionalmente. Viro o rosto, escondo com as mãos. Decorrem do meu tumor no ouvido. Os espasmos repuxam e entortam minha boca e o olho esquerdo. As tonturas passaram, também eram provocadas pelo tumor. O esforço para ficar equilibrada dava tanto cansaço que tinha que me deitar algumas vezes por dia. 19 de Novembro de 1996 A Lara agora me faz falta pela essência. Embora seu espírito me faça companhia, sinto falta dela. Não sei como seria se ela estivesse aqui. Não sei se daria conta, com minha desorganização, egoísmo de divorciada e indisposição para cozinhar. Criei uma nova vida e a vida de “executiva” - mala pronta, roupa que não amassa, aviões, projetos lidos em táxis, hotéis e reuniões sem fim - ficou tão distante que parece ter pertencido a outra pessoa. Não tenho vontade de ir para São Paulo, nem de trabalhar em novos projetos, nem de pagar contas em São José dos Campos. O prazo do seguro-saúde venceu. Preciso alinhar o carro, cujo licenciamento também está vencido, assim como a carta de motorista. Venceu o cartão do banco. Salvaram-me dois talões de cheque perdidos numa caixa da mudança. Outra salvação foi a notícia de que chegou minha devolução do imposto de renda: uma quantia preciosa na atual circunstância. Preciso marcar consultas com otorrinos recomendados para ter mais parâmetros sobre a provável cirurgia que, no entanto, não quero fazer e da qual fujo a três anos. Não quero ficar surda nem com paralisia facial. Não tenho estômago, não tenho forças, não tenho dinheiro suficiente, odeio hospitais, não posso nem sentir o cheiro. Escrevo cartas de despedida como se considerasse a possibilidade de morrer. Falo para as pessoas, nestas cartas, o que não consigo falar-lhes pessoalmente. E, entretanto, a vida é curta, mesmo vivendo-se oitenta anos. Para quê deixar assuntos pendentes, emoções represadas? Para quê estas cartas? Pretendo envelopá-las, fechá-las bem com os clássicos dizeres “para ser aberta após minha morte”, deixá-las em mãos confiantes e torcer para que não sejam entregues logo. Afetivamente estou mais ligada aos meus vizinhos de roça que aos meus “pares” da cidadezinha, por mais simpatia que tenha por algumas pessoas. Elas também vieram de fora, mas são amigas há muito tempo e formam uma turma. Sou forasteira na roça e na cidade. Mas tenho que ficar aqui porque já não sei para onde voltar. Dos meus bons e antigos amigos, Marilisa mora a um século em Paris, Elisa (a madrinha) mora em Santos, Inigo (saudades) nas Ilhas Gran Canarias, Marcos (o irmão adotado) e Walquíria estão se mudando em breve para Cabo Frio. André (o padrinho), que já morou fora de São Paulo por tanto tempo, voltou à cidade por circunstâncias e mesmo assim instalou-se no fim dela, na boca da estrada que percorre nos fins-de-semana para ver os filhos em Ubatuba. Nenhum dos amigos veio morar por aqui. Alguns permanecem em São Paulo, como a Carminha, que já veio me visitar e a Dora Algodoal, que ainda não veio, assim como a Fátima, o Marcelo e a Aninha. Os amigos de profissão não têm tempo, mesmo assim Bia, Ciça, Ângela, Peter e Cristininha, já passearam aqui. Vera ainda não veio por medo do inverno e vai acabar perdendo a oportunidade de mais um verão. Penso em breve receber Sidinea, Alice “san”, Leda e Ciça, só preciso me organizar e convidá-las com antecedência. Ainda não veio a outra Elisa. Ainda pretendo receber o Sampaio. Kátia costuma visitar familiares numa cidade próxima, mas até agora não combinamos direito uma esticada até aqui. Próximos, tenho meu irmão, minha cunhada, minha mãe, minha prima Fátima (que vejo pouco, mas que gosto muito), Lúcia (parteira ritual) e Nilson (o homem lá de cima), Jorge. O Jorge, meu porto seguro, acaba de se mudar para a Suíça, onde pretende ficar por longos anos; sem ele, fiquei sozinha nesta cidadezinha. Mas tenho o aconchego dos meus vizinhos, a corajosa Dona Maria e Neusa, o belo Carlão, o sensível Jamil e o Seu Alcides, por quem senti desde o primeiro momento admiração, gratidão e amor de filha. Tenho os meus outros vizinhos, a doce Dona Terezinha e seus filhos, o casal amoroso ao meu lado, Seu Élcio e Dona Durvina, o Seu João Português e Dona Terezinha. São três Terezinhas. Tem a Terezinha do Zé Gordo, que me faz companhia nas festas da roça, quando tomamos umas cervejas, rimos e comemos rúculas. Tenho o meu afeto pelo Paulinho, filho de uma das Terezinhas. Quando me mudei para o sítio, perdida, triste e só, foi ele, quase sem falar, mas sempre presente, a pessoa que mais me ajudou. Cuidando da horta, das plantas e concretizando minhas idéias (um banco de pedra na beira do lago, um canteiro só de forrações floridas, uma cerca de bambu ornamental...) ele me ajudou a enraizar. Eu abria a janela e ele estava ali. Depois da lida, de banho tomado, me visitava. Escrevi-lhe, num cartãozinho de Natal: “Nos momentos difíceis e tristes deste ano, sua presença e companhia foram muito importantes para mim. Quero que saiba que entendi sua consideração e carinho e que gosto muito de você. Te desejo um ano cheio de amor e saúde. Obrigada”. Tenho agora esta cadela sorridente e muda. Os pássaros que se aproximam cada vez mais na proporção em que o sítio se distancia de um pasto desértico. Tenho as borboletas, o barulho das seriemas e do rio. Tenho, fundamentalmente, as montanhas. Bom, tenho ainda as horrorosas aranhas e as ainda mais horrorosas “baratas de bananeira”, voadoras e enormes, bicho nojento e horripilante. Quanto às cobras, elas levam a vida delas e eu a minha. Tenho a descoberta de que sou velha aos quarenta anos. Às vezes, sinto aquele conforto de quem já viu, ouviu e viveu muito, e coisas que nem existem mais. Tenho a descoberta de que sou uma menina. Às vezes, sinto aquela alegria desavisada e a ingenuidade de quem tem muito para viver. Tenho este fogo permanentemente aceso sem ninguém para queimar, apesar dos voluntários que às vezes querem entrar nesta fogueira. Tenho esta saudade demorada de um jovem médico que conheci em outra vida, e este sono cedo, contra o qual luto até não agüentar mais. Tenho apego a uma frase que ouvi certa vez: "o verdadeiro budista não deixa a dor se transformar em sofrimento". Lara: tenho a mim mesma, este ser desalojado e tantas vezes estranhamente feliz. 1998 Meu coração alargado aconchegou João Pedro, um bebê já com cara de menininho. Quando me mudei para a Mantiqueira, com o coração grande, mas sangrado, não podia imaginar que dois anos depois eu teria um filho tão bonito, perfeito e saudável como o João Pedro, ainda mais na minha idade. Seu pai, Paulinho, plantava e cuidava da minha horta, do mandiocal, da plantação de milho, inhame, abóbora. Plantou as flores que gosto de olhar e que enfeitam este mundinho ao meu redor. Tudo que ele planta dá. E foi assim que plantou João Pedro em mim. João Pedro é como aqueles bebês de revista, rechonchudo. Eu o chamo de ‘ bebê delicioso’, porque é isso que ele é, e ele acha graça e ri. Lucia Rosenberg, quando vem passear no seu sítio nos fins de semana, sempre dá uma paradinha para ver o meu filho. Afinal, lá estava ela de novo, na sala de parto, segurando minha mão. Ela diz que o João Pedro não é um bebê, é um “ponto turístico”, uma “parada obrigatória”. Ele é muito boa gente. Quando ele era bem bebezinho e eu ficava embevecida olhando para ele depois de dar de mamar, eu me sentia feliz por ter dois filhos: um tão etéreo e outro tão real. Um tão celeste, outro tão terreno. Lara é ar e fogo, volátil e distante; João Pedro é água e terra, concreto, e próximo. Por isso, em meio às minhas ansiedades, cansaços, nervosismos e medo do futuro, muitas vezes me sinto completa. Como costumo dizer: "Lara foi um caso de paixão; João Pedro é um caso de amor".
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