P/1 – Então, Lelis, pra começar vou pedir que você fale seu nome completo, o local e a data de nascimento. R – Lelis Ribeiro, o nome. Nasci no dia quatro de novembro de 1970, aqui em Eldorado. P/1 – E você conheceu os seus aavós, Lelis? R – Muito pouco. Eles faleceram eu tinha dois anos, de dois pra três anos, os meus aavós maternos. Meu avô paterno também conheci muito pouco, mas a minha avó paterna ainda é viva, com 90 anos. P/1 – E você tem lembranças de infância de ir pra casa deles...? R – Sim, bastante. Minha aavó morou sempre em Santos, então era motivo pra gente ir à praia, nas férias. Daí depois ela mudou pra cá, minha avó – que eu tô falando da mãe do meu pai, que é russa, ucraniana. Daí ela mudou pra Eldorado e morou num sítio aqui também, a oito quilômetros da cidade, então era sempre motivo pra gente estar indo pro sítio, passear, essas coisas... P/1 – Você falou que ela era ucraniana, você tem histórias que ela te contou...? R – É, algumas, umas coisas bacanas que é do tempo da Primeira Guerra ainda, que o pai dela era do Exército Russo, o Exército Branco, que eles chamavam. E o comunismo naquela época começou a crescer e eles tiveram que fugir de lá, porque eles não concordavam muito com as idéias do comunismo, então dentro do próprio exército da União Soviética, antiga União Soviética, tinha uma briga do Exército Vermelho e do Exército Branco e eles vieram embora pra cá. Mas ela conta que era um lugar muito bonito, a cidade em que ela vivia, que era a cidade de Kiev, que foi até atingida pelo acidente de Chernobil e tal. E eles vieram pra cá com muita dor no coração, assim, porque era um lugar que eles gostavam muito, que tinha muitas igrejas bonitas, muitas praças, ela lembra disso, que ela era muito pequena. Então foi muito dolorido deixar aquela terra pra eles. Mas depois que vieram pra á se adaptaram e tal. E ela tá...
Continuar leituraP/1 – Então, Lelis, pra começar vou pedir que você fale seu nome completo, o local e a data de nascimento. R – Lelis Ribeiro, o nome. Nasci no dia quatro de novembro de 1970, aqui em Eldorado. P/1 – E você conheceu os seus aavós, Lelis? R – Muito pouco. Eles faleceram eu tinha dois anos, de dois pra três anos, os meus aavós maternos. Meu avô paterno também conheci muito pouco, mas a minha avó paterna ainda é viva, com 90 anos. P/1 – E você tem lembranças de infância de ir pra casa deles...? R – Sim, bastante. Minha aavó morou sempre em Santos, então era motivo pra gente ir à praia, nas férias. Daí depois ela mudou pra cá, minha avó – que eu tô falando da mãe do meu pai, que é russa, ucraniana. Daí ela mudou pra Eldorado e morou num sítio aqui também, a oito quilômetros da cidade, então era sempre motivo pra gente estar indo pro sítio, passear, essas coisas... P/1 – Você falou que ela era ucraniana, você tem histórias que ela te contou...? R – É, algumas, umas coisas bacanas que é do tempo da Primeira Guerra ainda, que o pai dela era do Exército Russo, o Exército Branco, que eles chamavam. E o comunismo naquela época começou a crescer e eles tiveram que fugir de lá, porque eles não concordavam muito com as idéias do comunismo, então dentro do próprio exército da União Soviética, antiga União Soviética, tinha uma briga do Exército Vermelho e do Exército Branco e eles vieram embora pra cá. Mas ela conta que era um lugar muito bonito, a cidade em que ela vivia, que era a cidade de Kiev, que foi até atingida pelo acidente de Chernobil e tal. E eles vieram pra cá com muita dor no coração, assim, porque era um lugar que eles gostavam muito, que tinha muitas igrejas bonitas, muitas praças, ela lembra disso, que ela era muito pequena. Então foi muito dolorido deixar aquela terra pra eles. Mas depois que vieram pra á se adaptaram e tal. E ela tá viva até hoje, 91 anos P/1 – ...E essa infância como é que era? R – Ah, era bacana. A gente morando aqui no interior, não tinha praia, apesar da gente sempre ter contato com natureza, com rio, com mata, com bicho... Isso sempre fez parte da vida da gente... O mar era uma coisa fascinante, totalmente diferente Então: areia, mar, era uma coisa bem gostosa a gente poder passar uns dias lá nas limpas praias, ainda naquela época, de Santos. P/1 – … E você tem irmãos? R – Sim, eu sou o mais novo da família, eu tenho um irmão e uma irmã mais velhos. P/1 – Eu queria que você contasse, descrevesse um pouco, como era a sua casa de infância aqui de Eldorado...? O que é que você lembra...? R –É, a minha casa de infância é exatamente a mesma casa em que eu moro hoje, tá? Na verdade eu nasci lá, fui feito lá e ela tem uma coisa bastante especial pra nós, porque é uma casa onde eu não tinha vizinhos na frente. Tinha os vizinhos na lateral e na frente o meu vizinho é o rio, o Ribeira, eu moro na frente do rio. Então eu atravesso a rua, eu já desço e já tô no rio. E atrás é um quintal muito grande, é um quintal de 60 metros por 40, quase de largura, aliás, por 20 de largura. E sempre com muita árvore, com muita fruta. Coisa de infância mesmo de interior: jabuticaba, goiaba, de tudo que você possa imaginar Então foi uma infância com muita liberdade. A gente sempre brincando na rua, em cima das árvores. A gente brincava de pega-pega subindo nas árvores, pulando de uma pra outra. E toda a criançada daquela rua brincava assim. Sempre com campos de futebol improvisados nas planícies. E chutando bola pro rio pra ver quem é que ia buscar... Esse tipo de coisa muito ligada a território, à terra, à nossa idéia de habitação, à casa, lugar de viver... Sempre teve muito ligada à terra, em ter um espaço que realmente é seu, que você sente que você pode trazer pessoas, pode transitar... P/1 – Conta um pouco mais dessas brincadeiras, da infância...? R – Então, a gente brincava muito com isso, com a natureza mesmo. A gente brincava... Uma das coisas que a gente mais gostava de fazer, eu e meus colegas, era atravessar a ponte e ir pra outra margem do rio, a margem esquerda, pra cortar frutas no mato. Então tem uma fruta bem específica daqui, que é a brejaúva, que é um coqueiro, na verdade, da família dos coqueiros, mas ela tem as folhas com muito espinho, a folha e o caule dela, e é um espinho muito dolorido quando fura a gente. E ela dá um cacho grande cheio de coquinhos e aí tem que quebrar isso depois na quebra, pra comer a castanha que tem dentro dele. Isso era uma coisa que a gente fazia bastante. E sempre tinha um risco de cair a folha com espinho em cima da gente, então era uma coisa arriscada. Mas a gente saía, estudava de manhã e aí de tarde, duas horas da tarde, a gente saía pra fazer essas coisas e voltava só anoitecendo. E os pais não ficavam preocupados, porque sabiam que a gente tava fazendo coisas sadias, seguras, apesar de tudo. Uma outra coisa muito legal que a gente gostava de fazer era pegar camarão. A gente tinha uma peneira dessas que o pedreiro usa pra peneirar a areia. E meu pai adaptou uma pra gente no formato retangular, então eu descia em frente à minha casa, perto da ponte, e dali até uns 200 metros subindo a margem do rio, eu e mais dois colegas, a gente ia pegando camarão no capim, na beira do rio, levantando, pegava, colocava numa sacolinha e tal, e isso quando era umas quatro e meia da tarde, a gente chegava em casa com a sacolinha com bastante camarão, limpava isso tudo, limpava o camarão, e a minha mãe fazia uma farofa com farinha, camarão frito e alfavaca – o nome do tempero que ela usava, sei que era bem marcante o sabor Então nosso café da tarde, muitas vezes, era uma farofa de camarão, era chique E a gente que pegava o camarão Isso tinha naquela época, mas hoje não tem muito mais. Nem o camarão, nem a criança pegando o camarão. E aí era jogar futebol, brincar de carrinho, fazer estradinha no quintal com enxada... Sempre muito ligado à terra, à água, chuva – quando chovia era uma festa A gente saía fazendo guerra de lama, uns jogando lama no outro... E escorregando ali – tinha um barranco que descia de um campinho até o rio e quando chovia ficava bem liso, então a gente subia com umas placas de madeira e a gente descia escorregando naquilo... P/1 – Lelis, você começou a falar um pouco agora da sua mãe e do seu pai... Fala um pouco pra gente então da relação com a sua mãe, com seu pai... O que eles faziam...? R – Tá, o meu pai era bem interessante porque meu pai sempre foi autônomo. A minha mãe era professora, ela se aposentou cedo, então eu tive muito tempo com ela. Logo depois que eu nasci ela já se aposentou, então ela ficou muito em casa, eu tive uma ligação muito forte com ela, assim, de tudo Onde ela ia eu queria ir atrás, então era uma coisa muito de apego mesmo Meu pai era caçador até um tempo, ele foi caçador, ele andava pela mata caçando animais e comprando animais que outros caçadores matavam. E ele fazia taxidermia – ele empalhava os animais. Taxidermia artística não científica. Ou ele curtia a pele dos animais – jaguatirica... Então eu cresci vendo tudo isso: jaguatirica, tatu, jacaré... E dentro da minha casa isso. Às vezes o pessoal levava isso vivo pra casa e a gente ficava com esses bichos lá, em alguns lugares trancados. E a gente nunca via meu pai matar, mas depois que ele matava, a gente via ele tirando o couro... Já comecei a estudar a anatomia da fauna brasileira ali. . E depois, lógico, isso se tornou uma atividade. Isso na década de 70, até o comecinho da década de 80. Aí começou a ficar proibido. Começou a ser proibido esse tipo de atividade, daí ele começou a ir parando aos poucos, não tão rápido. E ele começou a trabalhar mais com reforma de estofado, que era outra coisa que ele fazia muito bem Eles ensinaram a gente, acho que a melhor herança, da gente sempre ser um profissional o melhor possível, não importa a profissão que você escolha, eles faziam e ensinaram muito isso P/1 – Na infância que lugares vocês frequentavam na cidade, fora o rio, que lugares vocês iam...? R – A praça, que fica na parte alta da cidade, era uma coisa bem de interior mesmo: tem a pracinha e num extremo você tem a igreja católica, no outro você tem a prefeitura, a câmara, o fórum, é tudo ali... Então ali, numa fase já mais, assim, na adolescência, pré-adolescência, a gente frequentava muito a praça à noite, com a turminha, pra dar uma voltinha na praça à noite... Ali que a gente conhecia as namoradas, dando volta na praça... Tinha que tomar cuidado. Porque ali já tinha igreja, fórum, tudo junto... Se você não tomasse cuidado já casava também . Muitos casamentos aconteceram ali, na praça. A praça foi o cupido da cidade Mas realmente, assim, era uma frequência mais noturna. O lugar que a gente mais frequentava mesmo era a nossa frente ali, a beira do rio era muito bonita, é? Porque tinha uma praia, no verão sempre formava uma praia muito grande de pedra, de seixo, e realmente a molecada não ficava em casa, de tarde tava todo mundo jogando bola e logo depois do futebol já ia tomar banho no rio, então era muito isso A gente fazia muito isso realmente. Ão frequentava muito as outras áreas da cidade. P/1 – E o período escolar, você estudou aqui em Eldorado mesmo? R – É, na minha época não tinha pré-escola. Nem prezinho, nada... E até por eu ser filho de professora, então a gente já tinha aula em casa, antes de entrar na escola, a minha mãe me deu muita aula, de semi-alfabetização, assim, eu lembro que vinha até um colega, filho de uma das vizinhas nossas, que vinha, frequentava a aula junto comigo, assim, com a minha mãe. E aí eu entrei, estudei no Viana, que era uma escola que tinha aqui e ainda tem, da primeira até à oitava série. Aí depois disso, ela aprendeu isso com o pai dela, o meu avô, Leoncio, que a herança que ela tinha que deixar para os filhos era o diploma, a chance de poder estudar. Não tinha muito dinheiro, fazenda, e bens, mas isso ela queria deixar. Então ela fez o que foi possível, ela se esforçou muito, ela com meu pai, e conseguiram que a gente, eu e meu irmão fossemos estudar fora. A gente foi pra Curitiba, então eu fiz o Ensino Médio já em Curitiba, numa escola técnica, chamada Cefet. Na época era só escola técnica, não era universidade. Aí eu fiz então da primeira à oitava aqui em Eldorado, e o Ensino Médio no Cefet, fiz um curso técnico em eletrotécnica. Mas eu fiz mais porque meu irmão já fazia. Meu irmão mais velho já tava na escola, já fazia. E eu não sabia o que queria da vida ainda na área profissional e acabei fazendo o curso de carona com ele, mas depois que eu me formei eu decidi que eu gostava de biologia mesmo, talvez até por toda essa infância que eu tive, é? E bicho, sempre em contato com animais, então eu quis fazer biologia, mas fiz também na Federal, fiz Federal do Paraná, lá em Curitiba também. Escola pública, bastante sacrifício dos meus pais, a gente também sempre estudando e fazendo estágio com bolsa. Sempre fui bolsista do CNPQ, desde o segundo semestre da faculdade eu já consegui entrar no estágio com bolsa. Então era daquele tipo, aquela coisa bem, assim: não muito fácil. Uma que ficar longe daqui era muito difícil pra gente. O maior impacto pra gente era esse, era ficar longe daqui de Eldorado, a gente tinha um apego muito grande à terra e sentia muito essa diferença. De morar numa cidade grande, tal, barulho, carro, agitação, muita gente e ao mesmo tempo ninguém do seu lado, porque você não conhece ninguém, ninguém te conhece... Então você tem umas sensações às vezes absurdas de você ver muita gente junta e você não poder contar com ninguém, então a sensação é essa, que você tem. E aqui não, aqui você vê pouca gente, mas todo mundo te conhece e você conhece todo mundo. Então você nunca se sente sozinho aqui. E lá a gente sentia muito isso. Então isso era uma coisa que dificultava, a gente não tinha dinheiro pra gastar normalmente. Então bicicleta pra ir pra faculdade, só comia no RU – no restaurante da universidade... Então essas coisas, sempre foi assim, e sempre trabalhando junto, ajudando pra poder se formar. P/1 – Você tá falando um pouco desses impactos, e no período da CEFET você já teve que morar lá em Curitiba...? R –Já. Já foi um trauma o primeiro dia porque eu fui com 15 anos pra lá. Logo que eu terminei o ensino fundamental aqui, então a primeira vez em que eu fui foi no dia 17 de fevereiro de 86, tá, eu lembro dessa data. E eu fiquei logo de cara um mês direto lá, foi muito, muito sofrido E todos os feriados e férias que tinham, a gente vinha pra cá, era a alegria era fazer a mala pra vir pra c;a e a tristeza de fazer pra voltar. Mas isso foram quase nove anos que eu levei, porque foi o CEFET mais a universidade, apesar de serem nove anos, a gente nunca se acostumou. Sempre era uma festa quando podia voltar pra cá e uma tristeza no domingo a gente arrumando a mochila pra pegar o ônibus na segunda de manhã ou domingo à noite, as vezes. P/1 – E lá vocês moravam onde? R – Em república. A gente tinha várias pessoas daqui, vários jovens daqui que faziam essa opção de Curitiba, de estudar lá. As famílias conseguiam fazer. E a gente se juntava lá pra poder pagar um apartamento e vivia rachando as despesas... Sempre morando em quatro, cinco pessoas em um apartamento pequeno, numa área não muito nobre da cidade, mas suficiente pra passar bem. P/1 – E que outros impactos a cidade trazia de diferença pra Eldorado? R – Uma coisa que eu achava muito interessante é que até hoje na verdade, eu não me acostumo quando eu vou ao Curitiba, eu vou muito porque é a cidade maior que tem perto da gente, e quando precisa de um recurso médico ou um equipamento que não dá pra comprar pela internet, a gente acaba indo lá. Mas uma coisa que realmente eu não me acostumo são os prédios, daí eu me sinto um bicho de mato realmente, porque eu ainda sou daquele tipo que olha pra cima admirando os edifícios, mas não só pela loucura da engenharia do ser humano, mas de como as pessoas conseguem viver. Eu já vivi também nessas caixinhas de fósforo, que a gente fala, porque é uma coisa muito estranha Aquilo que eu falei no começo: da gente ter a casa da gente na terra, com quintal, com rio na frente, muro que a gente pula pra ir na casa do vizinho, brincar com colega, a gente não saía nem na rua, a gente pulava o muro pra brincar com o colega ao lado. Então essa coisa a gente sentia muito estranho na cidade: como é que as pessoas conseguem morar em um apartamento, aonde você não tem nada nem do seu lado, nem em cima, nem embaixo, én? Ê tem gente embaixo de você, gente em cima... E você pega... Eu lembro que eu morei num prédio quando eu fazia CEFET, era bem na frente da escola, a gente escutava o sinal da escola do apartamento. E descia, pegava o elevador, e o elevador era uma coisa muito absurda, que a gente achava A gente entrava no elevador e via um monte de gente, a gente ia exprimido no elevador, e ninguém sequer se olhava, evitavam os olhares. Não sei se é assim em toda cidade grande, mas Curitiba tem uma fama de ser uma cidade meio antipática, mas não é muito verdade isso também. Mas rolava isso, a gente entrava no apartamento não tinha “bom dia”, não tinha “boa tarde”, ninguém se olhava, ninguém se conhecia, então você era sempre um estranho... E isso eu senti bastante na cidade, um impacto... Outra coisa que eu acho que eu comparo com o dia-a-dia nosso aqui e que não é tão legal é a área cultura. Então uma cidade como Eldorado, apesar de eu gostar daqui e ter toda uma tranquilidade, a gente não tem cinema, a gente não tem teatro, a gente não tem show, então isso faz falta, porque quando eu morava lá eu fazia muito isso, porque mesmo sem dinheiro eu sempre dava um jeito. Então Curitiba tinha um programa que chamava “Teatro do Povo”, lá no Guaíra, que é o maior teatro da cidade, que aos domingos eles apresentavam, às dez da manhã, os espetáculos que estavam em cartaz durante o final de semana, eles apresentavam de graça no domingo às dez da manhã, só que você tinha que estar na fila às oito da manhã, às vezes era um quilo de alimento que você levava... Mas eu não perdia um Então assisti coisas fantásticas, coisas que eu nunca imaginei que eu fosse assistir na minha vida: uma orquestra sinfônica tocando ao vivo, Carmina Burana, vi coisas assim: Boca Livre, João Bosco, sabe, Shangai... Mesmo coisas que eu nunca imaginei na minha vida que eu fosse ver ao vivo Teatro mesmo Balé Vi Balé Bolshoi, eu vi balé clássico, então, nossa, era uma coisa muito bacana E isso realmente faz falta nas cidades pequenas como a nossa, não tem, o máximo que tem é quando a prefeitura organiza um rodeio na cidade – que eu acho horrível, eu detesto, ficar montando em bicho, chutando bicho num monte de luzes e som alto, acho que é uma festa primitivíssima, super primitiva mesmo Comparável à Briga de Galo e Touradas na Espanha, é bárbara pra mim, não faz sentido Mas é a hora em que eles trazem músicos pra fazer show. Mas aí eu vou por aspas nesse músico, me permitam . Mas trazem todo tipo de música, então a gente às vezes nem vai, porque não compensa ir, são músicas que tocam na rádio, por isso que eu também nem tenho rádio em casa. Então também nem dá, o tipo de música que vem pra cá não é do tipo que eu gosto de escutar, então eu também não vou nos rodeios, então não tem muita opção... P/1 – ...Você tava falando do tipo de música, e tava falando dos seus vínculos... Eu queria que você falasse um pouco das suas preferências, dos seus gostos, como é que...? Se foi em Curitiba... R – Não, não, foi aqui. O meu pai, na verdade, ele tem um dom pra música. Ele não desenvolveu, não chegou aprender a tocar algum instrumento a fundo, mas ele sempre teve muito ouvido – que a gente fala. Ouvido absoluto: ele identifica notas e coisas muito interessantes. E a gente sempre gostou muito de música porque ele ouvia muita música em casa. Nos vinis, nas vitrolinhas antigas. Então eu ouvi muita dessa coisa de orquestra, não as clássicas: Beethoven, Mozart, não essas coisas... Mas ele ouvia muito Big Band americana, desde do Ray Conniff, a Billy Vaughn, Billie Gulliver, a gente ouvia muito isso e gostava. Aí eu lembro que já na adolescência meu irmão foi estudar estudar em Curitiba em 83, e quando ele veio em 83, ele trouxe uma fita cassete do Pink Floyd, o último disco inclusive do Pink Floyd com a formação original, que foi o The Final Cut, e eu ouvi a primeira vez e achei fantástico, um troço de outro mundo e comecei a correr atrás e comprei todos os vinis que eu pude do Pink Floyd. E ouvi, e ouvia: Led Zeppelin... Gostava dessas coisas, ACDC, tal... Coisas que meu pai entrava às vezes no meu quarto e falava assim: “Pô, o cara tá passando mal, que é que é isso, que é que ele tá gemendo desse jeito?” . Então aquele conflito de gerações que sempre existiu... Mas foi uma referência legal. E aí depois, mais tarde, eu comecei a conhecer MPB mesmo, assim, e comecei a me interessar por isso também... Foi um colega daqui, inclusive, que me mostrou uma música no violão em um festival que a gente organizou quando era adolescente ainda. Foi uma brincadeira que a gente fez e chamava Movimento Água Corrente, que era tentar trazer os artistas locais pra tocar em praça pública, aqui na pracinha mesmo... Eu devia ter uns 16, 17 anos nessa época, e aí a gente começou a fazer isso e aí um colega meu, o Bastião, que a gente chama de Preto, ele tocou uma música do Elomar que chama “Saga da Amazônia”. É uma música só no violão e voz, e é uma história na música muito bonita Essa música inclusive me influenciou pra biologia também, a letra dela me marcou bastante, foi uma coisa muito importante na minha vida a letra dessa música. E a partir dela eu comecei a me interessar por MPB. E uma coisa que abriu uma janela pra mim também, não sei nem se eu posso falar isso, foi uma novela, tá? Uma novela na televisão, eu não lembro quantos anos eu tinha na primeira vez em que passou essa novela, mas foi uma novela na Rede Manchete chamada “Pantanal”, e por a gente gostar muito de bicho e planta, foi uma oportunidade da gente conhecer um pouquinho do Pantanal através das imagens da novela, que era uma novela diferente. Era uma novela que além do romance, daquela coisa comum a todas as novelas, inovou a televisão brasileira porque mostrava muitas cenas de animais E uma trilha sonora fantástica, muito bonita Então desde a abertura da novela até toda a trilha era muito bonita Então ali também foi um marco na minha vida, aquela novela, porque dali eu conheci Sá & Guarabira, que é uma dupla que eu adoro. Conheci Almir Sater, músico de raiz, e o Marcus Viana, que era o que fazia a trilha sonora instrumental e a abertura da novela, que pra mim é o maior músico do Brasil, Marcus Viana, Sagrado Coração da Terra. Então a gente não tinha como ter influência de outro lugar morando numa cidade dessas... Quem mora numa cidade grande tem contato com todos, com tudo, aqui a gente não tem isso. Então a televisão é uma porta importante de abrir o mundo. E continua sendo até hoje, infelizmente, porque hoje ela tá diferente, assim, ela tá bombardeando os jovens com todo tipo de coisas e coisas boas passam muito pouco. Então as influências de hoje são diferentes. Mas também não dá pra julgar, porque o que é bom pra mim pode não ser pro outro. P/1 – ...Lelis, você comentou agora da fita cassete... Teve alguma outra coisa, um outro aparelho que... “Quando eu fui no cinema foi incrível”... Em Curitiba, ou quando você falou do teatro...? R – É, eu acho que todos... Tudo que eu vi fora nesse tipo de ambiente foi bacana. Bacana pelo todo, pelo comportamento do público, pela interação, de ver como que as pessoas... Depois mais tarde, já casado, eu tive a oportunidade de levar a minha esposa em Curitiba, a gente tava lá e ia passar no Teatro Guaíra o Carmina Burana, que era uma apresentação com a participação da Orquestra Sinfônica do Paraná e tal. Então era um coral de vozes masculina e feminina, uma coisa assim... E ela nunca tinha entrado num teatro também Ela era paulistana, nasceu em São Paulo, mas veio pra cá e não teve também essas oportunidades assim. Então eu levei ela a primeira vez em que ela entrou num teatro pela primeira vez na vida dela. Então o ambiente do teatro: nas cadeiras, o formato de auditório, na dimensão daquilo... E justamente pra assistir uma das coisas mais bonitas que estava em cartaz no mundo naquela época Esse espetáculo era muito bom Então, assim, o que eu pude proporcionar pra ela , o que a gente viveu naquele momento acho que foi, talvez, o mais marcante Porque eu pude... É sempre legal quando você vê um filme bom e você indica pra alguém, você quer que as pessoas assistam. Então eu pude dividir com ela, assistir ao vivo nós dois, assistir aquele momento foi uma coisa bem bacana Talvez o que mais tenha me marcado na coisa do teatro, cinema, foi ter visto a peça com ela P/1 – ...E você começou a falar um pouco da esposa... Quando você a conheceu? R – Foi em 96, aqui em Eldorado mesmo... Acho que foi 95... Ih, isso aí vai dar um rolo, se eu não lembrar . Acho que foi em 95, em junho de 95. Ah, foi aquela coisa que eu te falei: andando na praça, não tem como fugir disso . Foi andando na praça, dando as minhas voltinhas e aí... A gente começou a ficar – na época já podia ficar Aí dois anos depois a gente casou. Na verdade quem casou a gente foi o Rio Ribeira, porque a gente casou em 97, então a gente fala que ele é o nosso padrinho de casamento. Porque a gente não casou de verdade, a gente se juntou. Mas minha mãe é muito católica, muito religiosa. E os meus irmãos, a minha irmã e o meu irmão, são casados certinhos na igreja, no civil, no religioso... Então eu sou a ovelha negra. Não casei nem na igreja e nem no civil, fui casar ano passado na verdade no civil, por uma outra necessidade. Mas, na época, em que a gente tava junto já, teve a enchente aqui em 97, em Eldorado, que foi a maior enchente da história E a minha casa onde eu moro, onde eu morava na época e onde eu moro hoje, ficou inundada, ficou só o telhado de fora. A minha esposa morava em outro bairro pra cá, onde o acesso também ficou inundado. Ela trabalhava aqui na cidade e tinha que ir pra lá de noite. E minha família acabou se mudando dessa casa que tava inundada, por uma casa na praça, que é na parte alta da cidade e que também é da família, é dos irmãos da minha mãe essa casa. Então a gente ficou hospedado nessa casa em que não mora ninguém, é uma casa que tá vazia. E nesse meio tempo eu consegui convencer minha mãe que minha namorada, que ficava difícil dela ir pra casa toda noite, e que ela tinha que dormir em casa com a gente. Porque a enchente tinha causado tudo isso... Então não era culpa nossa, entendeu, era culpa da enchente E minha mãe e meu pai estavam tão perturbados com toda a situação da enchente que nem perceberam... . Quando eles perceberam ela já tava morando com a gente e a gente já tava com aliança no dedo . Quando eles viram a gente já tinha mandado fazer aliança e já tava morando junto e eles aceitaram numa boa A gente tá junto há 15 anos já também, bem gostoso, uma vida boa P/1 – … Você começou a falar um pouco da enchente de 97, conta um pouco como é que foi o processo...? R – É, a enchente aqui é uma coisa normal, não é como nas grandes cidades em que elas ocorrem repentinamente, a enchente do Ribeira, ele é um rio que normalmente ele tá a um metro e meio na medida lá na régua, ele chegou em 97 a 14 e 70, quer dizer, ele subiu muito além do normal Foi a única vez nos meus 40 anos, pelo menos, que aconteceu isso, que ele chegou tão alto. Mas mesmo assim ainda dá tempo da gente sair, porque a cidade vizinha que fica acima avisa a debaixo. Uma vai avisando a outra de como tá o rio, o nível, a gente vai se programando aqui... 97 foi uma coisa absurda, porque realmente ninguém conseguia acreditar que pudesse chegar onde chegou. A gente teve uma enchente grande em 83, que foi a época que teve a enchente em Santa Catarina, e depois surgiu a Oktoberfest por causa disso...Então teve no Vale do Itajaí e aqui, que ela chegou a, se não me engano, a onze metros, onze metros e pouco... Eu lembro, assim, que ela chegou a contornar a minha casa em 83. Em 95 teve outra muito parecida com essa, tá? Que chegou também a ilhar minha casa, não entrou água na casa mesmo, mas entrou em volta dela. Então isso era o máximo que a gente conhecia que o rio podia chegar. E logo em 97 que... Dois anos depois, em janeiro de 97, veio essa maior, que foi uma coisa que a gente já tinha se prevenido para o caso dela ser igual a de 95 e de 83, mas não a de 97... Então a gente realmente perdeu muita coisa... Tudo que ficou em casa: discos... Eu perdi meus vinis, minhas capas de vinis, álbum de fotografia da família... Isso a gente sentiu bastante do casamento dos meus pais... Fotos que não eram digitais, que não estavam na memória de nenhum computador, só na nossa... Não tinha um negativo pra gente mandar fazer ampliação... Então foi uma parte da história da nossa vida, da nossa família, que a gente perdeu mesmo. Não tinha como... Mas é isso, a gente vive... Escolheu viver ali, não sai dali, se vier de vez em quando uma enchente: tudo bem, vem A gente dá um abraço no rio e ele volta de novo, não tem problema, a gente aprende a conviver com ele... P/1 – Certo. Agora eu vou voltar ali, pra falar da biologia, porque você em algum momento decidiu por biologia, e a CEFET e a faculdade... Você falou vários motivos, mas como você tomou a decisão: “Vou fazer biologia”?. R – É, biologia, na verdade eu sempre gostei da área. Dessa coisa da natureza e tal. Então, na verdade foi numa conversa com um professor, enquanto eu fazia o CEFET, no ensino médio, meu professor de biologia, na época, assistindo as aulas dele mesmo, eu falei: “Pô, é isso mesmo que eu curto.”. Mas daí conversando com ele falou: “Você pode fazer agronomia, você pode fazer zootecnia, oceanografia, biologia...”. Várias coisas que tinham a ver com bicho e com natureza. E aí eu comecei a estudar e a ler sobre os assuntos. E aí decidi: “Não, é isso aqui que eu quero, gosto da biologia”. Realmente fiz não tanto com a intenção de ser professor ou ser pesquisador, não tinha isso muito claro na minha cabeça naquela época, eu fiz simplesmente com a vontade de entender onde eu nasci e onde eu vivi... Eu nasci nesse meio da mata, vendo planta, vendo bicho, vendo rio... E eu sempre tive a curiosidade de saber como isso funcionava. E já quando se começou a falar da questão ambiental, de biologia, aí aumentou meu interesse, porque eu vi que alguma coisa não estava em ordem. Assim, as coisas estavam mudando de uma forma estranha, que isso poderia ser uma coisa ruim... Eu assistia muitos programas lá do Carl Sagan, o “Cosmos”, que passava na televisão; depois do Jacques Cousteau, aquelas coisas... Então eu falava: “Poxa, o cara tá dando um alerta”. E isso há 30 anos atrás, e ninguém faz nada Então eu queria entender, e me interessou E quis me interessar por isso e nunca aceitei muito a idéia de que pra desenvolver um lugar, uma região, uma cidade, você tem que necessariamente destruir tudo, você vai causar impacto, óbvio que você vai causar impacto. Se você precisar fazer uma roça de feijão, você vai ter que tirar madeira, as árvores, e plantar, lógico Mas justamente eu acho que nós temos sabedoria, inteligência e tecnologia pra tentar minimizar esses impactos e tentar fazer as coisas acontecerem. Hoje, onde a gente mora, é a última mancha de Mata Atlântica do estado de São Paulo, é a maior área contínua de Mata Atlântica do Brasil, o Vale do Ribeira. Então isso tem um preço. O preço de ser também a região mais pobre do estado de São Paulo, por coincidência. Então nós temos área mais rica em natureza e a mais pobre em recursos, em dinheiro; uma população que não consegue estudar, que não tem acesso às coisas que não tem emprego; os municípios são muito pobres, a arrecadação das prefeituras é muito baixa, eles não conseguem fazer muita coisa, muitos equipamentos também pra os jovens... Então é um processo em cadeia. E eu sempre apostei na idéia de que não precisamos adotar os modelos do resto do país e destruir tudo e plantar cana ou soja. Até porque aqui não permite, a geografia é outra. Temos muito morro, terreno muito acidentado. Então é isso, mas eu acho que a biologia foi mais pra entender mesmo. E hoje eu sou professor de biologia mesmo. Hoje eu dou aula de biologia aqui numa escola em Eldorado, quer dizer, é o meu emprego, meu trabalho. Onde eu nasci hoje eu consigo trabalhar com os jovens e tô fazendo um trabalho assim. P/1 – E, Lelis, fala um pouquinho: você á aula hoje em dia e você tá com outros projetos...? R – É, eu trabalhei um tempo, na verdade seis anos, na prefeitura com o cargo de comissão na área do turismo, como Diretor de Turismo. Eu entrei meio sem querer nisso. Eu entrei na área do turismo, até meio amarrado com o que eu acabei de falar anteriormente. Que foi justamente a idéia de uma proposta de desenvolvimento pra região, onde você não tivesse que destruir. O turismo, na verdade o ecoturismo, a proposta dele é bem essa assim, pelo menos na teoria é uma proposta que visa desenvolver um segmento do turismo onde você depende da natureza, então você depende do rio limpo, da cachoeira, da caverna – que nós temos aqui tudo isso. Você depende de estimular a conservação da natureza, você depende de políticas públicas que ajudem isso. Ou então depende de resgate histórico-cultural, de comunidades tradicionais que nós também temos aqui. Então eu enxerguei no ecoturismo uma coisa mágica, falei: “Poxa vida, esse troço além de gerar recursos, gerar emprego, gerar riquezas pra região nossa toda, ele ainda estimula tudo isso: a conservação da natureza, a conservação ambiental, cultural, resgate cultural... O resgate das pessoas daqui, a valorização das pessoas daqui”. Porque ele diz que você tem que gerar renda pra as pessoas daqui, isso é ecoturismo. Então eu comecei a trabalhar com isso. E aí passei uma parte grande da minha vida dedicada mais ao turismo do que à biologia. Foi tentando organizar a comunidade daqui pra investir nisso, porque não fazia parte da cultura das pessoas daqui trabalhar com turismo. Então descobrimos novas cavernas, novas cachoeiras, fizemos várias expedições de dias no mato, essas coisas... Que eu adorava fazer, agora fazia e ainda ganhava pra fazer isso, era ótimo Então foi uma fase bem legal que eu tô... Na verdade eu nunca vou me desligar dessa fase: também sou guia de turismo, fiz curso de monitor ambiental, então eu também trabalho nos finais de semana, nas férias, eu também trabalho como guia. E é um trabalho realmente muito bom, eu adoro fazer isso. Eu adoro levar os urbanóides pra mata, fazer com que eles tenham uma experiência diferente do que eles tem no dia-a-dia deles lá na grande cidade, que eu sei como é que é barra lá. Então quando eu pego uma família, às vezes, pai, mãe, duas, três crianças e levo pra uma caverna, ou pra uma cachoeira, uma coisa que eles nunca viram... E a gente encontra uma cobra às vezes no caminho, e a gente pega a a cobra e mostra ali ao vivo, sabe? Então esse impacto que causa nas pessoas desse contato, a gente percebe que todo mundo tem essa necessidade de ter esse contato mais direto com a natureza, isso faz bem pra as pessoas Elas superam obstáculos, superam medo, superam lendas que tem na cabeça delas, alguns preconceitos até em relação a isso. E depois acabam entendendo... É uma parte da educação ambiental. Porque eles voltam pra lá entendendo mais da natureza, a importância dela, tudo. É isso... P/1 – Entendi. E tem mais uma questão: você sempre falou do rio e você tem um projeto hoje em dia, que na verdade é um projeto que envolve o rio... Queria que você falasse um pouco sobre o rio... R – Então o Ribeira é assim: a história todinha da região, não só do meu município, mas do Vale do Ribeira inteiro, está relacionada ao rio. As primeiras pessoas que vieram pra cá foi atrás do ouro, isso em 1600 e alguma coisa, então foi antes do garimpo em Minas Gerais. Isso a gente não vê nos livros de história, das escolas, assim, então aqui o ouro foi achado e garimpado antes de Minas. Então eles trouxeram escravos pra cá, tal, toda aquela coisa... E entraram pelo Ribeira, entraram de Iguape pra cá... Foram fundando as vilas, os vilarejos, com escravos minerando e tal... E depois quando eles descobriram ouro em Minas, os grandes fazendeiros meio que abandonaram os escravos aqui, ou então venderam os escravos pra fazendeiros menores a preço de banana. Porque lá em Minas tinha mais ouro, era mais abundante, só que levar escravo daqui pra lá era muito caro. Então era mais barato deixar seu escravo aqui e comprar um novo lá do que você transportar. Então nisso alguns escravos conseguiram fugir, se revoltaram, rebelaram, e formaram comunidades escondidas aí, rio acima. Normalmente em locais de difícil acesso, que hoje são as comunidades quilombolas, reconhecidas por lei, com direito à terra, com uma série de direitos que eles conquistaram. Então o rio teve essa importância na colonização. Aqui em Eldorado, a cidade não era aqui antes, era dois quilômetros rio acima, lá que foi fundada a cidadezinha de Xiririca, na época, Xiririca com xis, que é uma palavra com origem indígena, mas ela é onomatopeica, ela se refere na verdade ao barulho que a água faz quando passa nas pedras, nas corredeiras, então é como se fosse aquele “shhhh”. O barulho que a água faz, o xiriricar da água, como se fosse isso. Então a cidade chamava Xiririca, a vilazinha de Xiririca. E lá de 1807 a 1809 duas grandes enchentes aconteceram e acabaram com a cidadezinha, entendeu? Então o fazendeiro que era dono dessas terras daqui onde a cidade é hoje, ele doou essas terras daqui e a cidade se mudou pra cá por volta de 1816 a 1830, entre esse período, foi uma mudança gradual, não foi uma mudança imediata. Então entre 1816 a 1832 a cidade foi se mudando pra cá. E aí, lógico, na praça construíram a principal construção de uma cidade é sempre a igreja, com uma torre e voltada pro rio, a frente da igreja era pro rio, porque justamente era onde chegava tudo e saía tudo da cidade, o rio tinha essa importância. Depois com a estrada se desenvolvendo e tal, na década de 50, um prefeito que tinha aqui, que era o Jaime Paiva, tio do Marcelo Rubens Paiva, ou avô do Marcelo Rubens Paiva... Ele fez uma obra e transformou, mudou a frente da igreja pra cá, voltada pra estrada, pro progresso, vamos dizer assim, com duas torres mais imponentes, uma igreja mais bonita pra alguns. E na verdade a gente sente que a cidade deu as costas pro rio. Então apesar dele fornecer a água pra cidade toda, lazer, pesca pro pessoal que gosta, tudo... A cidade meio que virou as costas. E quando acontecem os problemas, como é o caso da ameaça das hidrelétricas, que pretendem construir nesse rio, ou mesmo da mata auxiliar que foi removida para plantio de banana e que hoje está assoreando o rio e está agravando o processo das enchentes. A gente tenta mobilizar as pessoas pra reagir contra isso, a gente não consegue muito sucesso. Então em 99 a gente formou um grupo de colegas, eram dez colegas, e a gente formou uma ONG chamada “Pé no Mato” e a gente começou a fazer uma brincadeira: um evento onde a gente queria levar as pessoas pra remar no rio. Então a gente subia até a Vila do Batatal que fica a 20 quilômetros rio acima, o Batatal. E de lá a gente descia de caiaque, remando o caiaque e canoas, e barcos de apoio e tal, até a cidade aqui. É um passeio onde a gente fornecia lanche, ia barco de apoio, bombeiro junto, ambulância por terra, era toda uma estrutura... A prefeitura sempre foi parceira nesse processo... E o primeiro evento tinha 20 e poucas pessoas, 28 pessoas. O segundo teve 40 e poucos; o terceiro teve 80; e assim foi, até que no ano passado a gente fez a sétima edição nesse evento e a gente colocou quase 300 pessoas remando no rio. Então esse grupo, assim, pra nós foi um sucesso todo esse processo. Porque realmente hoje muito gente teve uma outra visão do rio, uma visão de dentro da água, o que ele proporciona, o que ele fornece pra gente, a importância mesmo pra as comunidades do Vale, em termos de clima, em termos de tudo, de fertilidade do solo e tudo mais... P/1 – ...Então do evento ano passado que tinha sido um sucesso pelo número de pessoas que chegou a participar... R – ...Isso. Então a gente na verdade acho que conseguiu nosso objetivo de trazer as pessoas de volta pro rio. E de despertar esse interesse no rio. A gente acho que conseguiu, tanto que é o evento mais cobrado na cidade hoje. A gente sai na rua e o pessoal fica: “E aí, quando é que vai ter a canoagem?”. E chama Taça Xiririxa de Canoagem. A gente pos o nome pra resgatar o Xiririca. Que a gente tentou resgatar esse nome pra cidade uma vez, mas não deixaram, quase lincharam a gente . A gente queria fazer um plebiscito pra ver se podia voltar o nome Xiririca. E aí o pessoal não quis, prefere Eldorado, que aí é uma alusão ao período do ouro e tal. Mas a gente acho que cumpriu o objetivo com a canoagem, e aí o grupo fez um projeto também pro Ministério da Cultura, pra Ponto de Cultura, e acabamos aprovando um projeto que é um projeto de três anos que a gente tá trabalhando nele ainda, e a idéia do projeto, chama “Um Rio de Cultura” o nome do projeto. E a gente pegou todo o trecho do Ribeira, desse rio que corta o município de Eldorado, que dá 83 quilômetros, todas as vilas, os aglomerados urbanos e vilas que ficam às margens do Ribeira, dentro desse limite do município a gente tá indo lá e buscando material desde contos, histórias, lendas, músicas, poesias, ritos religiosos, eventos esportivos... Todo tipo de manifestação cultural das pessoas que moram ali, mas que o tema dessas manifestações sejam o Ribeira, que o tema central das manifestações sejam o Ribeira. Então a gente tá na coisa da pesca... É muito legal, tem um pessoal que usam uns equipamentos de pesca muito interessante, a rede de espera, alguns instrumentos de pesca bem interessantes. E estamos tentando resgatar tudo isso pra virar um documentário em DVD de mais ou menos meia hora. Aí no segundo ano a gente vai passar esse material pra todas as comunidades, vai fazer pequenos saraus. Onde a gente vai estar mostrando isso pra eles participarem também. No terceiro ano a gente vai com todo o material reunido a gente vai editar um livro e uma exposição fotográfica itinerante. A gente quer que essa exposição passe também por todas as comunidades em que a gente trabalhou. E que a tiragem do livro que a gente projetou que seja suficiente pra pelo menos abastecer as bibliotecas do Vale do Ribeira. Fazer um lançamento em São Paulo também, pra mostrar a região... mas é isso. P/1 – Lelis, pra terminar queria perguntar se você tem um sonho hoje, um projeto pessoal...? R – Ah, todo mundo tem. Se não a gente para de viver. Na verdade tenho vários sonhos Muita coisa. Um sonho acho que já tá realizado que é a idéia de morar aqui. Que eu, assim, se fosse continuar vivendo, eu queria continuar vivendo aqui onde eu nasci. Se eu fui um dos poucos que tive essa oportunidade de estudar fora e de alguma forma... Não digo melhorar, mas agregar alguma coisa, algo que eu já conhecia daqui e tal, a troca de experiência com outras pessoas, contato com outras pessoas e tal... Eu me vejo na obrigação, de já que eu tive essa oportunidade, mas eu também tive o privilégio de ter tido a minha infância aqui, com tudo que eu falei pra você que eu tive e eu acho fantástico, né? Toda a minha infância... Então é meio que uma obrigação pra que eu voltasse pra cá e de alguma forma com o que eu aprendi lá fora, que eu ajudasse aqui a melhorar, entendeu? Na verdade essa que foi a idéia. Então na verdade teria sido muito mais fácil pegar um emprego no Instituto Ambiental do Paraná, ou ter feito um concurso pro Ibama e ter ido embora lá pro Pará. Mas não teria muito sentido, tudo o que você faz aqui você faz pra você e pra quem tá do seu lado. Qualquer passo que você consegue melhorar na sua cidade, você sente que as pessoas que te viram, e que cresceram com você estão sendo beneficiadas ou não, então os impactos são mais diretos. E isso é muito gostoso, é muito legal escutar um pai falar que o filho dele melhorou na escola porque você deu uma força, entendeu? Então essas coisas simples, assim. E o sonho mesmo é isso: é que a cidade acorde, que as pessoas aprendam a viver mais em harmonia, se respeitando e tal, e trabalhando juntos pra cidade melhorar – melhorar nesse sentido das pessoas terem qualidade de vida, pararem com esse individualismo, com essa coisa de você só pensar em você. Na verdade, é o que a gente vê acontecendo nas cidades grandes, e é o que já tá acontecendo aqui. Quer dizer, as pessoas que tem um pouquinho mais de dinheiro, acabam sendo vítimas da violência, então, quer dizer, não adianta você resolver a sua vida, você tem que resolver a sua vida e de todo mundo que tá do seu lado, mas não dá pra fazer sozinho... Então eu realmente acredito no turismo, eu nunca deixei de acreditar no ecoturismo como opção pra cidade, que depende realmente de uma mudança cultural, de um envolvimento da comunidade daqui nisso, mas depende muito do poder público, tanto do municipal, como do estadual, principalmente Então enquanto o poder público não realmente adotar medidas e ações, realmente, de verdade, pra desenvolver essas áreas e outras que podem ser desenvolvidas aqui, a coisa não vai pra frente. Então esse é o sonho. P/1 – Eu deixei de te perguntar alguma coisa que você queria dizer...? R – Não. Eu acho que não... P/1 – Então tá certo, obrigado R – Tá legal...
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