Claquete:
Entrevista de Roberto de Mello (Di Melo), entrevistado por Jonas Samaúma, Rozana Miziara, São Paulo, 16 de junho de 2025.
Projeto Conte Sua História e Vidas Musicais. PCSH.
P1:
Muito obrigado por você aceitar o nosso convite para estar nessa entrevista. Eu gostaria de a gente fazer uma abertura desse momento, você ou tocando uma canção, ou falando um poema, que seja significativo.
R:
As duas coisas.
P1:
As duas. Maravilha!
R:
Então vamos a partir daqui. Essa cadeira é ruim para tocar pra caramba, por causa do braço. Vamos tentar. Estamos aqui. Tem alguma coisa que tá batendo.
P1:
É o microfone. Não é?
R:
Não. É o colar. É isso aqui, peraí. Filho da puta. Pronto, deu certo.
Nem precisei ir ao altar
Pra desfrutar
Do teu paraíso
Fizemos juras e promessas
Quantos beijos, quantos risos
Tantos abraços apertados
Ficamos juntos enamorados
Quantos presentes foram trocados
Flores e frutos e achocolatados
Então de repente
me vi ausente
dos carinhos teus
Fiquei tão triste
Porque meu mundo
emudeceu
Foi o teu adeus
Fiquei chorando
pelos dias meus
Se tu voltares
vou jurar por Deus
Farei meus gostos
combinar com os teus
Sentimento meu
terei meus olhos
para olhar os teus
terei meus pés
para caminhar com os teus
E não me diga adeus jamais
pelo amor de Deus
Amor de Deus
– É uma poesia:
Era, por assim dizer, uma vez
uma silhueta feminina
de uma tez de mulher
porém menina que trajava azul
e olhou para mim
Não sei se para marcar minha sina
Ser de tudo inverso
um bem ou ruína
Me aproximei
já não estava em mim
Rosei, sorri, me aconcheguei
Foi tão belo e tão forte o que senti
que até então não sei dizer
se foi real ou se sonhei.
Mil vezes já me perguntei
porém não me respondi
se tudo que estava ali
era um monumento
ou simplesmente
mulher-instrumento
Mulher-monumento
é bela esgueira de toda faceira
parece esculpida, nada tá ruim
Mulher-instrumento sem sentimentos
se perde no tempo, é interesseira
de aparência formal bem normal
mas não é verdadeira
No sentido, mulher stricto senso
não é amiga nem companheira
muito menos medianeira
portanto não é massa
maredeira, madeireira
nem mansa como o cume da palmeira
nunca fará lembrar sua suada e cachoeira
e jamais chegará à flor de laranjeira
São outros segmentos da mulher-instrumento
Ela é gélida, ela é fria, para ela tanto faz
se é paz ou luz que irradia
Tão dura e rara a beleza
se é noite ou se é dia
Ou já nasceu desalmada, totalmente vazia.
P1:
Maravilha! Como foi que nasceu esse verso?
R:
Esse é em especial. Eu comecei a pensar um livro de ideias, de memórias, e houve uma periodicidade que eu estava escrevendo muito, estava imbuído nessa história, e essa é uma cutícula, não partícula, é uma cutícula do livro. E eu crio, recrio e recrio o tempo todo. É uma fonte, graças ao Todo-Poderoso, eterna, infinda de ideias. Umas mais rebuscadas, outras nem tanto, mas o bom é dar prosseguimento ao trabalho em si, em voga. É por aí. Como diria Baluim, de Baluim para ver é preciso olhar, e o pavê já é uma questão de se saborear.
P1:
E, Dimelo, pensando nessa coisa das memórias, Qual é a memória mais antiga que você tem? A primeira coisa que você lembra em vida.
R:
Uma vez, trovejando, e eu numa bacia tomando banho e chorando. E depois eu fui para a cozinha e tinha um porco enorme, um barrão, e eu subi em cima da mesa com medo e gritando. Aí depois teve o primeiro romance. Também Ana Íris era filha de baiana com um alemão, uma das coisas mais bonitas do mundo que meus olhos já viram. E aí eu me apaixonei severamente aos 13 anos e pirei. que havíamos marcado nos encontrar em Boa Viagem. E, nesse ínterim, o pai voltou para a Alemanha, voltou ao trabalho e a levou embora. Eu pirei, fiquei muito revoltado e tal. Depois que eu soube dessa história toda, eu fiz a primeira música para ela. Era uma coisa... Deixa eu ver se eu lembro. É mais ou menos isso. Mas não vamos falar disso, que eu choro... Vamos fazer outra coisa. Depois eu... tem a primeira, tem a segunda, aí eu faço a sequência.
P1:
Eu ia falar para você falar um pouquinho dos seus parentes, seus pais, seus avós.
R:
Minha avó era africana e trabalhava para um português. Muito rico. E ela era uma negra bem apanhada. E como ela passou a vida dela cuidando dele, ele achou por bem domesticá-la. E aí terminou se envolvendo com ela, tiveram vários filhos. Eu sou um dos netos. E o cara jogou na mão dela, ela herdou do cara, terras de, não sei se vocês conhecem, Pernambuco, de Camaragibe a Buraco Fundo. Eram terras da minha avó. Mas ela muito bonachona e muito trouxa, muito boba. Mão aberta, peito aberto. Levaram tudo embora. Mas está rolando algumas coisas aí, me ligaram, disse que tem uma herança e tal. Não estou preocupado com isso, que eu vou à luta. E eu disse que jacaré que não batalha vira bolsa de madame, ou boot de burguês. Estou conseguindo agora sobreviver de música. Durante um longo tempo, eu estava amarrado a uma editora, Corisco, Arlequim. E o cara pegava o dinheiro, embolsava e não repassava. E foi assim durante muito tempo. Imagina, eu com um disco, esse Clariô, tocando só para divulgação escolar. Colocaram três mil compactos na rua. E o que puseram na rua de vinil vendeu tudo. Tinha no disco do Wando, aquele que tem... Moça, me espere amanhã. Eu tinha uma música chamada Volta. No final...
Volta, a porta está aberta
A noite está deserta
Eu necessito, volta
Me faz tua presença
Tristeza me revolta
Teu ar me acalenta
Minha alma se conforta
volta, espero piamente
o teu sorriso ardente
teu beijo que sufoca
Quero te ter presente
te chamo sem resposta
Já estou pregado
atento a cada momento
ao bater da porta
e sem tua presença
já não sei viver
Nada mais importa
Prefiro morrer…
Isso vendia muito Jair Rodrigues:
Eu me vi de paspalho
Tal qual um pirralho
pichado de otário
assim com cara de palhaço
marquei pelo traço
e dancei num compasso sem fim
Eu não sabia de nada
Entrei em onda errada
E nela quase me afoguei
Pensando estar certo
Me vi num deserto
E só Deus sabe que chorei
Quando eu olhei
Ao meu redor eu via abutres
esperando o meu fim
Foi que me manquei
E dei um samba na viola
Um verso de esmola
Pra essa gente que tentou
zombar de mim
– Vendia, mas vendia, vendia, era uma coisa de doido.
Eles estavam no auge. E fui receber o trimestre de direito autoral, tinha onze cruzeiros. me sentia assinando realmente o atestado imbecil. Se tivesse a ideia, o comportamental de hoje, eu ia constituir um advogado, ia para cima, ia rever meus direitos, não sair de quebra a quebra. E não me arrependo de nada. Faria tudo novamente, só que com outras ideias. E assim foi durante um bom tempo.
Aí, quando foi ter a história do Pico da Neblina, a advogada que estava cuidando dos direitos disse, olha, eu não vou pagar para a editora, porque eles comeram a grana do Capinam, que ela era advogada do Capinam. Disse, olha, eu quero pagar diretamente para vocês. E ela mesmo conseguiu, não sei como, porque nem o Caetano conseguiu sair dessa editora. Chico Buarque ainda tá preso lá. E ela conseguiu me tirar dessa editora, já por na Warner. A Universal, que tinha comprado a EMI/ODEON e os direitos passaram para a Universal. E agora as coisas estão disseminando, fluindo e fluidificando. O som está rodando no mundo. O Kilariô, além da história do Ayrton Senna, que a música entrou porque ele gostava da música. E todo mundo gosta dessa música. Criança de três anos canta o Kilariô.
Aqui e lá fora foi feita uma pesquisa a nível mundo, que Kilariô é uma das músicas mais tocadas, via mundo mesmo. E, para mim, é uma glória. O advogado está começando a ver também lá fora. Aqui a Universal pagou tudo, o Drake mandou uma grana de cara e fez um contrato de 87 contos. 87 para mim, fez um contrato de 85 para mim e 25 para a gravadora. A gravadora quis questionar, disse, pára com isso. Não se desfaz o contrato, foi que ele fez, deixa como está. Eles gostam de morder o dinheiro do artista, é uma loucura isso…
P1:
Aproveitar que você falou do Kilariô. Você não quer tocar ela para a gente ter a honra?
R:
O Kilariô, deixa eu lhe falar, a história…
P1:
E aí contar a história!
R:
O Kilariô é uma música que normalmente eu não toco. Eu deixo que a banda toque. Eu só toquei para gravar. Depois eu esqueci. Entrou na era do esquecimento. Eu canto e aí o que acontece?
Mas eu toco algumas coisas do disco, mas eu gosto mais de tocar as músicas novas, pelas quais estou apaixonado, entendeu? Tem cada música do caralho. E o novo disco, já estou pensando agora, nesse segundo semestre, começar a bolar as coisas. Tem muita música boa. Muita, muita, muita. Kilariô. Kilariô, raiou o dia, eu vi chover. Eu estava no Japão, imagine, eu tava muito doido, eu era maluco demais da conta. Eu fui para ficar três meses, aí aprendi com um lutador um truque, você saía 24 horas, carimbava o passaporte e voltava. Mais três meses, eu tava nessa. Só que eu estava de rabo preso aqui. E, nesse dia, eu estava muito, muito, muito doido, não sentia o pé no chão. Aí me deram um comprimidinho, eu peguei um Scansen, que é o trem rápido, fiz baldeação no vapor e fui parar numa cidade minúscula, menor ainda que Harajuku, que é o local onde os artistas se encontram no Japão. E aí eu estava doidíssimo, colocaram um, entrei em fossas, me colocaram comprimidinho cor de laranja embaixo da língua, e quase de manhã, raiando no dia, sai um sol dentro do mar, uma coisa estupenda, belíssima, louquíssima.
E aí eu olhei:
“Clareou, raiou o dia, eu vi chover em minha horta”.
Aí saiu a música. Kilariô e Minha Estrela são músicas que eu fiz no Japão. Por falar nisso, a empresária de Adriana Calcanhoto reuniu todo mundo, Júlia Mestre, Théo Bial, filho do Pedro Bial, Felipe L, Josyara, Dora Morelenbaum, um monte de gente. E eu encerrei, cada um cantando uma música, e eu encerrei o disco cantando Minha Estrela. Diz que como, para o imorrível... Eu como? Falo o quê? Para o imorrível, nada é impodível. Ela colocou podível e impodível o nome do disco que está circulando. Está aí, está tocando bem.
Então, o Emicida gravou, a Liniker gravou, o Pretinho da Serrinha gravou, gravei também com o Rashid. Estou enfronhado aí no meio da rapaziada pop toda. E... jacaré que não batalha, vira bolsa de madame, eu boot de burguês.
Mas estou me sentindo assim no meu melhor momento, lotando todos os lugares que vou, graças ao bom Deus. A minha banda de São Paulo faz estardalhaço. Como teve agora 50 anos desse disco, olha, décadas. Naquela história do aprimore-se e emancipe-se, a coisa tá rolando, rodando o mundo. Estou gostando, to no meu melhor momento. O show, se você for agora, você pira, geral. Um público lindo, produzido, descolado, só gente muito bonita no pedaço. Tenho olhado público de muita gente e digo, meu público… Supimpa de pampa, bonito, gente ultrapassando a barreira da beleza, engravidando corações, coisa boa. E, pô, não tem tempo ruim. Eu falo que, para a música, a linguagem musical e a linguagem amorica, não tem tempo ruim. É sem barreiras e sem fronteiras. Tenho assim doze músicas confeccionadas com Geraldo Vandré. Cada musicão incrível. Tenho música inédita com o Baden Powell. Fiz música em homenagem a ele. Tenho música com o Jair. Ele gravou duas músicas minhas. Tenho mais uma com ele. Tenho com o Wando. E estou assim, direto. Criando, recriando e recriando. Sempre. É dádiva divinal. O bom Deus me elegeu com uma linguagem nova, moderna. Imagina:
Estando como estava
aparentemente normal
Estando aprochegava chegava
brilhantes e vislumbres, etc
Seu charme estonteava
e seu perfume era colossal
Qualquer um suspirava
Sua turbina era algo irreal
Lhe perguntei como está
e me respondeu
Tudo bonitinho
quentinho, fofinho
cheirosinho
gostosinho
e lavadinho
Pronto para turbinar
Latam, Latam, Latam
para voar e voar e voar
Confesso que pirei
porém não banderei
gatinho, lancei meu miau
Eu que era crau
Motoca fez vum-vum
Paramos lá na apendal
lhe cangoteei, língua entrelacei
o que lhe amassei foi trilegal
uma, duas, três, folgamos na horizontal.
Ainda dava mais que dezesseis
mas meu ponteiro acusava o grau
Pensei, repensei, trispiroquei
que delícia no geral
Deixei para outra vez
porque revê-la era sensacional
Tudo bonitinho, quentinho, fofinho
cheirosinho, gostosinho e lavadinho
pronto para turbinar
latam, latam, latam
para voar e voar e voar.
(...)
Antes era Varig, Varig, Varig, meti-lhe o Latam.
P1:
Di Melo, como foi que começou a sua relação com a música? Você lembra?
R:
Desde pequeno, minha mãe cantava em casa, fazendo os trabalhos de casa. E eu fui tomando gosto pela música. Ela tinha uma voz maraviosa, era muito tímida. Aí eu coloquei uma descaração na parada e comecei a cantar as músicas dela, que ela cantava. E a coisa foi tomando um pedal muito bom. Minha mãe morreu, eu fui ser criado pela minha tia-avó, que é a Bitú. E lá tinha o Núcleo. E tinha a missa de domingo, após a missa. Aí todo mundo se reunia para cantar, fazer um programa, como se fosse uma espécie de Jovem Guarda. E a partir dali eu comecei a gostar. E eu tinha já naquela época, naquele momento, eu já tinha um monte de fã. Criança. Bob de Mello, era Bob de Mello. E aí, com vocês, o fabuloso Bob de Mello, as fãs piravam, eu tinha um monte de namorada. Eu era danado demais. E ia para a missa, depois da missa rolava esse som, esse show. Era um barato. E tinha um monte de gente que cantava, mas o meu trabalho sempre sobressaía, né? E eu ia cantar nas festinhas, todo mundo me chamava, todo mundo gostava. Aí fiz parte, num momento, de uma bandinha que chamava-se The Five Kings. Era um barato. E aí, naquela onda do salto carrapeta, calça topeca, a onda bem jovem guarda mesmo, tinha o Salão Azul. Era um barato. A infância foi muito povoada, mesclada com entalhe, com pintura, com música e composição. Era um grande barato. Eu… Tinha uma época em que estava concorrendo com Manuel do Artene e Maurício Pacheco, os caras bons para caramba, e eu no meio. E fui cada vez mais tomando gosto pela arte. Estava no Recife Antigo, Jorge Ben me deu um cartão de Roberto Colosso, eu vim para cá a primeira vez. Aqui eu conheci um cara pittoresco, se chamava Zé do Pé. Por que Zé do Pé, ele rodava a mulherada e dizia, onde sua vista alcançar é terra minha, e onde não também. E por que Zé do Pé? Porque ele dizia que nas terras dele tinha petróleo. Era uma figura, esse cara ficava no Hotel Jaraguá. Mesmo quando não tinha gente em São Paulo, ele conseguia lotar o Hotel Jaraguá. E era um cara muito incrível. Ele sabia o nome de todo mundo, sobrenome, e os afazeres, era um cara nesse naipe. De memória, sim, eu lembro que tinha o Paulo Salim Maluf pulando e tal, e tal, e tal, falava, Esse foi um dos caras que eu vi que sabia o nome das pessoas. Mas ele era muito engraçado, o Zé do Pé. E teve aquele papo do Watergate, da Vasp, e o Olavo Drummond era até então diretor da história. Isso para enfatizar o Zé do Pé. E eu tava tocando uma viola num local, era um apartamento que tinha até campinho de golfe. Era uma loucura. E etou lá, eu tocando, daqui a pouco está aquele puta buchicho. O Zé do Pé e enchendo o saco do Olavo Drummond, o Olavo fez uma lápide para ele, disse:
foi na vida uma revista, fez da vida um rebú
Em seu sonho de pecuarista, só tinha o pé e o cu.
Bicho, merda para cacete, no ventilador. Esse cara aprontava todas. Ele foi no Paulistano, barrar a entrada dele, ele pegou um saco de Alcazetzer, Sonrisal,, jogou dentro da piscina, acabou a festa. Ele aprontava. E muita mulher na parada e já virei sócio do homem. Colei. Era um barato. São Paulo era um... Uma festa em cores, luzes, flores, perfumes e sabores. Era lindo São Paulo. Aquela Avenida São Luís era lustrosa, brilhava e perfumada. Brilhava e cheirava à noite. Era uma coisa fantástica. Era todo mundo muito produzido. Todo mundo poerfumado. Era incrível. Quando eu andava seis horas, eu altamente notívago. Chá de beleza, banho de leite moça, banho de cortiça para ficar maneiro. E ia para as noites. Era um barato. Muito bom.
P1:
A gente queria já voltar para São Paulo, mas que aprofundasse um pouquinho como era a sua vida em Recife
.
R:
Recife. Pronto. Aquilo que eu te falei, era Pátio São Pedro, era onde aconteciam as festas, os turistas, os artistas, os vários. Fiquei lá durante muito tempo, entalhando, pintando, entendeu? Era… Recife, o Pátio de São Pedro era como Pelourinho, na Bahia. Era festa o tempo todo, alegria o tempo todo. Ali tinha o Bumba Meu Bau, o Bar do Aroeira, as várias galerias, as várias casas de arte. Xambira, violão, vender as artes. Era bom. Era ótimo.
P1:
Ah, tocar violão, você aprendeu como?
R:
Comecei a aprender com Edgar Campelo, o Degas, meu amigo de infância. Ele, inclusive, parecia muito com o meu irmão. Como eu tinha me perdido do meu irmão, meu irmão sumiu, eu ficava naquela onda de que ele era o meu irmão. Um barato isso. E ele, o Raul, me apresentaram as primeiras notas do violão. E eu comecei a aprender mesmo para tocar, para criar minhas músicas. Eu já fazia musiquinhas incríveis. Incríveis.
P1:
Você fazia na cabeça? Ou já com instrumento?
R:
Não, já fazia na cabeça e já com violão. Eu tinha um padrinho que era arquibilhardário. E ele tinha a maior casa de ferragem de Pernambuco. E ele me levou para trabalhar lá por oito dias. Pegava o violão, botava nas costas, ia para a frente da rádio em Capibaribe. Enquanto não deixasse tocar, eu não saía de lá. E assim foi durante muito tempo. Ele falava, vagabundo, não quer trubulhar só quer violar e violar e violar. Quer dizer, acabou, cortou o barato. Mas aí eu ia batalhar com a viola, eu conseguia meu dinheiro, com os entalhes, com… Mas aí percebi que eu gostava mais do violão, não sei se pelas formas, né? Olha, é escultural essa história toda aqui. Lembra mulher. Eu gostava da sem vergonhice. Eu pequeno, eu entrava embaixo da mesa para ver as calçolas da professora. A professora: – Roberto, Você está com a braguilha aberta? – Professora, por gentileza, venha fechar… Olha, apanhava para cacete, era terrível, terrível, terrível. Na fazenda, joguei um trator dentro do açougue. Apanhava para cacete, bicho, mas só aprontava.
P1:
É, conta essa história. Conta a história do trator, como foi que isso aconteceu…
R:
Estava lá em cima, e o seu Paulo era o cara que cuidava. Ele deixou o trator de bobeira, subi no trator e não tinha força.
P1:
E você tinha quantos anos?
R:
Eu tinha o quê, uns 10 anos. Joguei o tratorzão pesado dentro do açougue. Minha mãe sabia que era eu. Quase teve uma síncope cardíaca. Eu aprontava muito. Eu tinha uma menina, uma mulher já, que era Xinha o apelido, e tinha o tal do Reinal, que ajudava meu padrasto na história de cuidado da fazenda, meu padrasto era o administrador. E aí eu aprontava todas. E ele tinha essa tal des Xinha que eu me apaixonei. Ele vacilava, eu jogava a bicicleta dele ladeira abaixo, de bronca, ciúmes mortais. Cagava na bota dele. Eu aprontava demais, moleque. Era terrível, terrível, terrível.
P1:
E você morava em uma fazenda?
R:
Durante um período, eu morei na fazenda, em Burrione. Meu irmão ficava no Salesiano. Ele ia ser padre, meu irmão. Ele descolou uma russinha, pronto, lascou, desvirtuou o homem. Era um avião, a mulher. E ele teve filhos com essa russinha. E eu continuei nas minhas histórias, nas minhas andanças. Eu vim para cá a primeira vez com Vanderlei, organista de Roberto Carlos. Fiquei por aqui uns dois, três meses, não aguentei. Aí voltei para Recife. Voltei a Recife. E aí aprimorei o som, preparei mais músicas, quando encontrei o Jorge Ben no Recife Antigo. E a partir daí...
P1:
Como foi esse encontro?
R:
Esse encontro eu toquei para ele, ele olhou e disse “você tem muito embalo, muito balanço, você deve procurar o Roberto Colosso, que é meu empresário’. E, até então, o Roberto Colosso não só empresariava o Jorge Bem, mas de Chico Buarque a Jô Soares. Aí ele adoeceu, largou tudo e todos, ficou só com o Jô Soares. E depois veio a falecer. Quando ninguém tinha carro importado, ele andava de Mercedes. que era um cara altão, parecia um galã de cinema, muito inteligente, um papo interessante, muito descolado ele era. Na época, tinha muita história de caravana, e eu fui para a caravana da Ducal. Lá eu já saía com as roupas da hora. E eu sempre gostei de me vestir bem. Então, lá foi a fusão do útero ao agradável.
P1:
Mas essa coisa do Jorge Ben, você parou ele, deixa eu tocar uma música, ou ele viu uma apresentação sua?
R:
Não, eu estava com o violão, vi o Jorge Ben, fui lá e toquei para ele. Peguei o violão, meti o swing já. E ele disse “é diferente, é bom, você tem que procurar ele”. E aí o Roberto Colossi eu toquei, para quem eu tocava, sempre. Eu saía, moleque, com o Miltinho, manja Miltinho? Miltinho e Elza Soares gravavam muito:
Você tem na boca
uma pintura louca
Você é o retrato
disfarçado da Bardot
Você tem atrás
um decote audaz
Gosto de você
sou seu playboy
Aí a gente saía, eu moleque, mas já malandro, né? Gostava sempre da noite, tava sempre na noite. A gente ia para a Olinda, comer agulhinha e tomar cerveja, com as manguacinhas, os petiscos. Ele era uma figura muito interessante, o Miltinho.. E Deus o tenha em bom lugar. Depois ele passou a gravar com a Elza Soares. Mas era um cara e tanto… Eu conheci muita gente boa, mas muita gente boa, pela vida, pelo som. Eu só tenho a agradecer, porque... Minha vida é uma festa, já sofri muito também, ralei muito, mas nunca me deixei cair, nunca matei, nunca roubei, nunca trafiquei e to tranquilo. Nada melhor do que você andar de peito aberto, dormir tranquilo. Eu vejo gente aí que tem grandes fortunas, morre, fica tudo aí, os filhos tripudiando. Como diria Badeco, Baden Powell, faz tempo que foi descoberto que a real burrice não tem transplante. Eu tocava no Café Concerto, que era da Marília Matarazzo e de uma atriz, acho que Lena Crespi, uma coisa assim. E… Elas eram amigas do Baden e o convidaram ele. Ele chegou aqui de Jaguar preto, motorista de quepe e fraque. Era uma grande loucura. Ele dizia que quem está com muito, não tem pressa para coisa alguma, compra um camelo e desce à consolação às sete da matina. Uma das figuras mais incríveis que eu conheci.
Fiz para ele assim:
Alguém na vida me ensinou
alguém na vida me ensinou
quem fala de amor
tem que ter para dar
quem fala de amor
tem que ter para dar
O mesmo alguém
foi quem me falou
Quem não pode com o santo
não carrega patuá
Quem não pode com o santo
não carrega patuá
Não sei ao certo se me estimou
Mas tudo que falou tive que guardar
Não sei ao certo se me estimou
Mas tudo que falou tive que guardar
Ele falou com a longa voz da experiência
para vencer não é preciso violência
basta bem pensar, basta bem pensar.
(...)
Entendeu?
P1:
Conta aí como foi um pouco esse encontro com ele, as histórias….
R:
Elas que o convidaram para estrear essa casa, Café Concerto, na Rua Augusta, que depois foi para o Ibirapuera. Estou lá quando chega o Baden Powell, como ele me achou muito, além de sui gêneris, muito nudo-crudo. Ele colocou o meu nome… Eu era pureza de alma, não tinha maldade, com nada e nem com ninguém. E aí ele colocou o meu nome de pureza, ele me apelidou de Pureza. E aí eu fui vendo as coisas que aconteciam, ele me convidou a ficar hospedado com ele no Hotel Rosas, que na época era... Hoje está meio que relegado. E aí eu convivi com ele três meses. Foi incrível. E foi um grande aprendizado. Quando o Roberto Colosso faleceu, eu fui pra noite de São Paulo.
Aí fui Jograu, Lei Seca, Chocolate Soul, Aleluia, Janela para o Mundo, Balacobaco Telecoteco, Igrejinha, Lapinha do Roberto Luna, Terceiro Isto, toquei em tudo que você pode imaginar em São Paulo. E foiassim, exatamente no Jogral que minha madrinha era a Carmen Costa, mas foi a Alaíde Costa que levou o Moacir Menguini Machado, até então diretor artístico da EMI e Odeon, para ver o meu som. Tinha o Papete, Zé de Ribamar, tocava o berimbau, jogava capoeira e tal, e era o diretor artístico da casa. Aí, de sacanagem, ele começou a me colocar abrindo e fechando a casa. Entendeu? Mas o povo abria a casa e fechava a casa. Quer dizer, não tinha direito a nada. Tava preso por uma situação porque ele queria. E começou a sacanear também Alaíde Costa. Ela lá chegou para mim e disse, Bob, eu não acredito no que está acontecendo. Qualquer hora eu saio dos meus saltos e quebro a cara do Papete. Eu disse, precisa não, eu mesmo. Peim, peim, peim, saiu no pau. E foi aquela loucura, a polícia me procurando no carnaval e eu embaixo das escadas do Jogral, foi uma grande piração. E porque nessa história, antes da briga, eu saí para assistir blow-up. E aí todo mundo fica em Pernambuco “Ah, você fez a música do Pernalonga pro Pernalonga?” Eu digo não. É um cara, um ator lá. E aí eu digo não, isso aí eu fiz após assistir blow-up e uma briga com o Papete. O Pernalonga: Ei, ei, ei, o Pernalonga “Vê se corre para pegar o tempo/O tempo não para/é que tu quebra e quebra… Caramba! É um barato. Eu tenho cada puta música disso que não dá para crer. Escrevo coisas que eu digo, meu Deus do céu! Parece que baixou espírito, entendeu? Mas vou para o lado bom. Até hoje eu não tenho maldade com ninguém. Eu sofro muita coisa. Esses dias mesmo, porra, foi muito triste. O cara, eu fiz um cambalacho, um rolo com ele de quadro, ele assinou o quadro pra mim e foi falar para a empresária que queria cuidar dele, de mim, uma produtora. Não vou falar o nome. Foi falar para a produtora que eu havia pego um quadro na casa dele e tinha sumido com o quadro quando o quadro estava assinado, de fulano de tal para Di Melo. Aí eu fotografei e mandei para ela. Mas me chamou de ladrão, caracterizou, na minha terra isso dá morte súbita. É muita piração. Então, você se depara... Isso, sabe por que ele fez? Porque a mulher queria empresar eu e ele, produzir os dois. Ele ficou com ciúmes e inventou uma história dessa.
P1:
E Di Melo,, a gente já viu você tocando e um monte de canto, mas qual foi o momento que você pensou assim? Ah, eu quero ser músico, quero viver disso?
R:
Ah, faz tempo. Faz tempo, Nossa Senhora. Foi na época em que a linguiça corria atrás do cachorro. Sempre gostei, sempre quis, desde pequeno minha raiz é musical. Sempre gostei disso. Não conseguiria viver sem arte. Se você for na minha casa, a minha casa é uma galeria de arte.
P1:
O que que tu escutava?
R:
Tudo, tudo. Ângela Maria, Cauby Peixoto, já ouvia Gil, Caetano, Bethânia, já ouvia Paul Anka, já ouvia Elvis Presley, The Beatles, eu ouvia tudo. Zuleide Dantas, Voleide Dantas, tudo, tudo. Miltinho, Elza Soares. Mas sempre fiz o meu som da melhor forma possível. Coisa da minha mente, balanço do meu balanço, entendeu? Não é coisa comum, por exemplo, se você pega...
Eu quis fazer um lindo verso
de quem prova para o mundo
que quisesse ouvir, quisesse ouvir
me disseram que o mundo
não comporta cantador
com prosa e sem mentir
Fazer um lindo verso
rico em prosa para o mundo
que quisesse ouvir, quisesse ouvir
me disseram que o mundo
não comporta cantador
com prosa e sem mentir
pois quando pego da viola
desabafo, solto tudo
que está preso em mim
tá preso em mim
Fique certo pro meu canto
não tem hora, só não canto
se não tô afim, oh
Passarinho eu só sei cantar
e não há mais quem cante assim
é uma forma de alegrar
e o carinho que está em mim
Canto o rio, canto o céu e o mar
Meu canto não é ruim
É melhor rir do que chorar
Me perdoem se penso assim.
Canto o rio, canto o céu e o mar
meu canto não é ruim
É melhor rir do que chorar
me perdoem se penso assim
Auuuuuu
(A mulherada: gostoso!)
P1:
Antes dessa história, eu ia te perguntar, nessa sua juventude a música te ajudava na sua vida amorosa? Você conseguia?
R:
Sim, claro.
P1:
Você tem alguma história boa disso?
R:
Muito. A primeira música que eu fiz para a Ana Iris... Olha o nome da mulher, Ana Iris. Muito doido demais. Mas eu deixo a coisa fluir. E uma hora eu chego lá.
P1:
Quer contar essa história do seu encontro com o Vandré, suas viagens com ele?
R:
Sim, sim, sim. Vandré, eu tocava no Jogral, e ele me viu cantando:
Vida na morte ser forte
coração se presta não pede clemência
coragem empresta, faz guerra na terra pra poder mudar
Molha o chão com o pranto e a dor que lhe sobra,
caminho de espinhos valentes não dobra
derrama seu sangue e vai lutar
Lá, lá, iá, lá, iá
Tem vida tão curta, é preciso cantar
tem vida tão curta, é preciso cantar
Louvam seu destino, terra, céu e mar
Louva a natureza, enfim
louva o fraco que só pode louvar
louva o fraco que só pode louvar
Mundo é de ninguém, pára e ouve bem
mente quem dele tem
uma parte, pedaço roubado de alguém
uma parte, pedaço roubado de alguém
Se o peito aberto se rasga e tomba decerto
o fogo que arde bem dentro da alma se inflama
e canta a canção mundo inteiro
Faz nascer outro forte que não teme a morte
que leva ao forte de bravo guerreiro
que canta o hino do guerrilheiro
Lá, lá, á, lá, á
tem vida tão curta
(...)
E me aparece o Geraldo André… Em princípio, a priori, eu imaginei que ele quisesse dar sequência ao trabalho dele. E ficamos aí, de andada com ele, feito caranguejo, de bandola. E aí começamos a fazer coisas, porque eu chegava com a música pronta, um pedaço da letra, e ele incorporava. E aí fomos criando as coisas. E viajamos muito. Ele é oriundo da Paraíba. Eu sou de Pernambuco, ele é da Paraíba. E ele tinha saído com toda aquela história, né? Saiu e todo mundo contou a história a respeito de Vandré. Ele pastou no Chile, que ele estava terminantemente proibido de participar do festival de música que tinha lá. Ele se juntou com o grupo Quilapayum e foi e ganhou o festival. Ali ele tomou um piau. Mas aqui não pastou essas coisas que falam, tudo mentira. O povo cria história, né? E aí eu conheci ele e a gente virou irmãos. Tanto que a mãe dele, Dona Marta, e o Vandré Gíselo, me consideravam irmão, como filho deles. Gostavam. E começamos a fazer músicas. Acredite se você quiser, o carro quebrou na Paraíba, ele botou o carro em cima de uma cegonha e eu vim trazendo o carro da Paraíba para São Paulo. Em todos os lugares, parava, tocava uma viola. Acabou o dinheiro, o caminhoneiro pagava. Pagou os rangos, as paradas, ia tudo que era. Um barato, um barato. E dura três, quatro, cinco dias no máximo. Virou 15 dias a viagem. Uma loucura.
P1:
Da onde para onde?
R:
Da Paraíba para São Paulo.
P1:
E a parte do Paraguai?
R:
Aí ele tinha um Galaxy, ele tinha vários carros, esse era um Maverick. E aí ele pegava o Galaxy e a gente ia para o Paraguai, ia para as fronteiras. Ficava naquela história. E teve um show que foi montado e seria em Foz do Iguaçu. Ele começou a botar empecilho, o cacete, os jornalistas chegaram para falar com ele e disseram, olha, só vou falar sobre o espetáculo em Águas Paraguaias. E a gente estava em Itaipu, Binacional, área 2, o jornalista colocou o inimigo número um do governo brasileiro, após 14 anos de reclusão tocando em Foz do Iguaçu. Era o ABIAC, o que mandava na história. Eu sei que a Federal bateu em cima. Acabou a história do som, todos os ingressos vendidos, camiseta, o compacto. Isso foi uma parafernália. Aí alugamos o Cine Ópera, para fazer o espetáculo. No meio do espetáculo, queimaram-se as lâmpadas. Ele falou que foi o meu violão que queimou as lâmpadas. Puta que pariu!
E aí diz que eu botava meu violão aparecendo mais que o som de todo mundo. Ele era uma figura, né? Eu fiquei durante uma periodicidade da minha vida na noite, de São Paulo, e depois fui trabalhar com música italiana também, no Camorra. A comida era uma merda, mas era uma puta zorra. Você sentava, em cima de cada mesa tinha um prato de bateria, e você ganhava as colheres de pau, as tarantelas. Era uma puta loucura, cara. Não posso me queixar da vida. Se as coisas não fluíram de como deveriam ser, eu acho que tive bastante culpabilidade nisso, né? E sem arrependimentos. Entre mortos e feridos, sobraram todos. Me diverti para caramba, vivenciei muitas coisas incríveis que de forma normal não aconteceria. Viajei bastante, curti muita praia, praeiro, como sempre fui. Ainda tem aí? E aí conheci muitas sanyasis. Fui para Hare Krishna e me perguntaram qual a sua religião. Todas. Eu curto. Acho tudo, todo caminho leva a Deus. E louvam a Deus.
P1:
Como foi essa história do Hare Krishna?
R:
Era mais para malandro, porque lá tinha rangos de primeiríssima qualidade e mulheres belíssimas na época. Digo, to aqui, abracei a causa no ato, na hora e na índole. Hare Krishna! Malandragem, malandragem. Mas, sim, nunca fiz nada que pudesse prejudicar ninguém, entendeu? Graças ao bom Deus. Porque tem gente que vive da maldade, gente ruim. Essa história mesmo do cara falar para a produtora que peguei uma obra dele e sumi, isso em Pernambuco ele não estaria mais contando história.
P1:
E do Vandré, como é que você falou, que fizeram doze composições?
R:
Doze composições. Era assim, eu chegava com o violão, porque a gente estava sempre junto. Chegava com o violão, tocando o violão e cantando um pedaço da música, ele dava sequência. Tem umas músicas belíssimas, inclusive “Linhas de Alinhar”, que é uma coisa muito fantástica.
P1:
Vocês se conheceram como?
R:
No Jogral. No Jogral? No colégio? Não, Jogral era um bar noturno. Eu tocava lá. Ele me viu cantar e dizia “Fica mal com Deus/quem não sabe dar/Fica mal comigo/quem não sabe amar”. Aí ele colou geral, eu digo, ele quer dar trabalho, quer que eu dê sequência à música dele, nada. Ele queria amizade e rodar o mundo, curtir, dar risada…
P1:
Você contou essa história muito boa do carro e qual foi o outro momento marcante assim, história mesmo, que você viveu?
R:
A gente seguia, ele tinha um Galaxy, a gente ia viajar, saía parando de lugar em lugar. O André tinha um conhecimento que é uma coisa descomunal. Ele conhecia a gente do mais alto ao mais baixo grau. Incrível. Foi uma experiência. O André pode-se dizer que é um dicionário. Ele é um cara de um conhecimento profundo, um grande estudioso. E todo cara que é muito estudioso, que foge ao normal todo mundo fala que é louco, que os caras não conseguem alcançar, atingir a ideia do cara. Mas aí ele já aproveitava e dava a bicicleta por sobre e atacava de doido mesmo. Só falava a sério quando era coisa que realmente pudesse interessá-lo. De forma contrária, ele dava área.
P1:
E a sua música? Você quer tocar uma das doze que vocês têm juntos?
R:
Pode, pode. Nada é impodível para o imorrível. Ele tá doido para ver linhas de alinhar. Geraldinho. Geraldinho tenho um carinho, um respeito muito grande pelo Geraldinho. Geraldinho é sumidade.
Ah ah ah Ah ah ah Ah ah ah
Ãh Ãh Ãh Ãh Ãh
Vai pelo mar, pela terra
Por onde o seu ar vai
Pela manhã, pela tarde
Um olhar estelar
Uma razão, um sentir
de antemão do que mais dá
Há da explicação
Que não houve, não há
nem haverá
Vias de haver, de aviar, de aviar
Linhas de ali se alinhar, se alinhar
Vias de ver, de voar, de voar
Voos de mim, maninha
Asas de mim, maninha
Pinta um clima que apavora
Nessa estrada tão escura
Teu silêncio me devora
Tô farto da angustura
Me entristece essa demora
Sem pensar que é uma loucura
Foi tão bom viver outrora
Com muito mais formosura
Vias de haver, de aviar
Linhas de ali se alinhar
Vias de ver, de voar
Asas de mim, maninha
UH!
– Linhas de alinhar. É uma delas. É nesses piques, nessas pegadas. Vocês já ouviram o disco “Atemporal”, não? Feito na França?
P1:
Não, ainda não escutei.
R:
Procure ouvir esse disco. É uma loucura... Oxe, obedeça!
P1:
É seu?
R:
É uma história muito louca.
P1:
Conte aí para a gente a história.
P1:
Essa história tava aqui, os franceses vieram fazer o Di Melo e Cotonete. Cotonete para quê? Limpar o ouvido para ouvir o som. E os caras chegaram aí e queriam ver ou Ed Motta ou Di Melo. Aí a menina produtora lá do Circo Voador disse, “ah, o Di Melo tocou aqui recente e eu tenho o contato”. Aí deram o contato da Dona Jô e eles foram nos procurar. Eles estavam aqui, na Vila Madalena, aí fomos lá, a Gabi pequenininha, a Gabi cantando, eu cantando, nove homens chorando. Foi muito doido.
E aí fizemos em quinze dias que eles estavam aqui todas as bases do disco e eles levaram esse disco para a França para fazer os arranjos lá e fazer tudo por lá. E a gente tava por aí e ia fazer um show e no meio do show eles ligam para a Dona Jo: olhe, tem cinco espetáculos para fazer aqui com a música A E I O U. Entendeu? Era o lançamento da música A E I O U. Que, na realidade, no início, você já ouviu essa música? A E I O U, não? Também não? Não? É uma música que está tocando no mundo todo.
Paul Lamont é um DJ, um dos mais famosos do mundo, que está disseminando essa música lá fora. E aí fomos para lá para fazer… Mandaram, já de novo tudo pronto. As bases estavam prontas, eu coloquei voz e o disco… E aí eles apareceram com essa história dos cinco shows. Fizemos três. Três na França mesmo. Aí fomos para Londres, fizemos um. Foi mais, foram sete shows e mais uma participação, porque tinha um dos artistas que ia fazer um dos shows do festival, importantíssimo festival. Esse que eu fui tinha até o Ron Carter. Nos cruzamos lá.
E um dos caras que ia fazer uma apresentação dessa que eu fiz a participação cantando, o cara morreu. De última hora, encaixaram nós. Então, foram sete shows e uma participação. Foi muito bom, uma super viagem, um mês por lá. Fiquei oito dias em Gambetta, que era o apartamento de um ator argentino. E Gambetta, não sei se vocês sabem, é onde tem um cemitério dos famosos. E descobri que não queria mesmo ficar por lá. Como um imorrível, eu não queria mesmo. E aí fomos a 500 metros da Torre Eiffel. Era festa que tava rolando o aniversário da França, muita coisa rolando. E também a França ganhou a história do futebol. E aí virou festas, festas, festas e mais festas. Vamo, caralho! Puta apartamento enorme lá. Um mês. E, porra, essa viagem que a gente fez, brincando por baixo, uns 120 contos. Entendeu? Foi muita mordô, muita coisa rolando. E o que acontece? Foi muito satisfatório. A Gabi hoje fala fluentemente inglês, francês, espanhol, canta as músicas da Amy, o que me fez mudar a minha vida em prol da Gabi. Mudei tudo, de água para vinho e vice-versa.
P1:
Do vinho para a água, não é?
R:
É, vice-versa. Aí o que acontece? Hoje eu sou um cara seríssimo. Eu era um puta porra louca, bicho. Não estava nem aí para a hora do Brasil e do mundo. Não estava nem aí para o fuso horário. E agora me sinto um cara completamente puro, fiel, sincero, honesto, capacitado, cumpridor das honrarias, figura pindárica, figura de grandes feitos. O viaduto do chá não fui eu. É muita armação. Mas, olha, estou contrito. Se eu for realmente, hoje, acho que já meio que 7.6. eu vivi o Brasil de todas as épocas, praticamente. Imagine esse som desse disco rodando até os dias atuais como uma coisa praticamente feita agora. A linguagem. Os jovens aderiram ao som. Vocês têm que ir no soco, você extrapola tudo. É muita doideira. E to assim, compondo, tocando, voz boa. Eu não vejo ninguém com essa idade que estou com esse... com essa potência vocal no palco. Tem que ir para ver, porque, se contar, ninguém crê. Às vezes chega o gordinho assim, meio mocorongo, os caras que estão montando o som, tirando onda, o caralho e barará. Quando eu desço do palco, vem tudo bajular, balançar o ovo. É uma loucura.
P1:
Falando nesse disco, que é o que está dando o show, quer contar a história dele?
R:
Esse disco, eu estava na Holanda. Quando morreu o Michael Jackson, eu tava na Holanda. Fui pela Câmera Mundo e era um festival de curtas. Passava o filme, rolava o grafite e eu tocava um som. E tava aquela história do buchicho do show de despedida do Michael Jackson. Tava rolando esse papo. E eu estava na Cubic House, que é o hotel mais louco que tem na Holanda. E estavam os cartazes. Eu digo que vou, além de levar um disco, e vou fotografar e fazer ele gravar uma música do disco. Aí todo mundo... Eu digo, vou, e vai rolar isso. Eu estava que nem um globo no carnaval, aceso, 72 horas sem dormir e sem tomar nada, oriça memo geral. Aí eu tomei um banho, uma menina que fez um gracejo com... Era um alegro com macarrão, o filme dela. Linda menina. Aí eu digo... Pronto, fiquei logo amiguinho dela e ela me chamou para ir às esbórnias. Tomei um banho, me recostei. Ali apaguei. Quatro horas da manhã ela... Cretino! Se fodeu, o Michael Jackson morreu, eu digo, vai se arrombar. Ela: to falando a verdade. Quando eu me toquei, eu não conseguia comer, não conseguia dormir, travei mais ainda, travou tudo aqui, geral. foram dar a notícia um dia e meio depois. Já imaginou dar uma notícia dessa e não ser verdade? Fechava qualquer emissora. Foi louco, eu passei maus, maus, maus. Fiquei muito, muito ruim. Muito, muito para baixo. Muito pra baixildo. E aí, eu andando nas lojas de disco, eis que achei meu disco, um todo arranhado, sem encarte, sem porra nenhuma, 380 euros. Aí achei um bom, 750 euros. E não era o disco de época, era a cópia. Entendeu? Um de época, eu vendi por 5 mil, o cara que comprou vendeu por 11, e o que comprou por 11 vendeu por 15. Eu estava falando com o Nereu a respeito disso e ele disse que não é nada. O meu primeiro disco com Babolina foi vendido por 27 mil. Quer dizer, tem um disco aí do Roberto Carlos que já foi trocado por um carro, por um Fusca. Tem uns discos loucos, uns discos doidos. E assim, rola esse lance! Eu estava falando da história da França anteriormente. Na Holanda, eu ganhei um voucher para consumir numa casa que o Chet Baker, antes de morrer, tocava lá. A casa era do Dizzy Gillespie. Entendeu? Era um clube, e eu comia, bebia, e os caras gostaram de mim. Eu não pagava nada, eu tinha o vosso para entrar e sair a hora que eu quisesse, ficar lá. Se eu quisesse dormir, também dormia. Um barato. Eu caí no agrado dos caras. E, voltando à França, voltando à história do disco que o Drake sampleou, A música que chama o disco é A E I O U. Diz assim... Ela foi feita em samba, ela pega um ritmo que é muito doido. Depois você coloca aí para você ver.
Você consegue colocar agora para ouvir um pedacinho? Sim, veja. Ela foi feita no pique do samba. de melo, cotonete, A E I O U... Depois você faz a decupagem e vê o que interessa, o que dá. Mas essa música pegou um pedal. É uma loucura lá fora que você não acredita. Em todas as pistas tá essa música. Não é brincadeira. Conseguiu? Coloque um pedacinho para você ter uma noção dela. Pode ser? Pode entrar na gravação? Coloque. Isso. Tá vendo? É assim. Todo mundo dança, todo mundo canta essa música lá. É um barato. Gabi faz backing vocal aí.
Se adianta nego, nem tudo é chamego
Chumbrero não dá par remar contra a maré
Saiba desatar nós, desfREGO
Tem que se livrar desse apego
Pode até se esbaldar no vai quem quer
Reza, acenda uma vela e peça sussego
É bom segurar seu emprego
Não queira aparentar o que você não é
Se tá bem que supera os seus medos
Ver, ouvir e calar é o segredo
Você tem que saber o que você quer
Todo o truque da vida é o molejo
Relaxe e viva meu nego
Leve a vida que você quer
A.E.I.O.U
Vai de Jucaju
A.E.I.O.U.
Vai de Jucaju
Lá, lá, lá, lá, lá, lá.
Tá estourado no mundo isso aí, uma loucura. Toca Kilariô, A Vida em Seus Métodos diz Calma Barulho de Papai e essa música. Tá explodido lá fora.
P1:
E a letra dela, como é que você… Foi o processo?
R:
Samba, samba. Eu fiz do samba e pulou para esse modelo aí. Meu, é bem dance. Não tem para ninguém. Ninguém consegue segurar essa história desse som. É muito doido. Impressionante. Todo mundo pulando, gritando e cantando. É uma emoção do cacete. Muito bom, velho. Nossa Senhora! To vivenciando tudo que foi deixado, tudo que me roubaram. Estou vivenciando agora 50 anos desse disco. Esse disco tem, tocando, Hermeto Pascoal, Heraldo Do Monte, Cláudio Bertrami, Capitão, Bolão, Dirceu Batera – esse cara morreu aleijado de tanto tocar –, Luiz Melo, o pai do Taiguara, UBirajara, o Rafael Romero, que tocava com o Astor Piazzolla, tocando o bandoneon, Corinho da Eloá, Geraldo Vespar e Roberto de Mello. Deu isso aí. É uma massa sonora que nem Santo Antônio com gancho consegue segurar, pilha geral total, Kilariô toca no mundo inteiro. Você pega várias relações de música, de rádio, de discoteca, e Kilariô está no meio. Foi cotada como sendo uma das mais tocadas no mundo inteiro, é um barato. E aí o advogado está indo para cima começar a entrar realmente na história. Esse disco, o disco “Atempora”l, foi desse disco aí que o Drake ouviu e disse, puta que pariu, estou vivenciando isso que esse cara tá falando. Aí foi, sampleou, pagou maravilhosamente bem, entendeu? E tem muita coisa rolando lá de fora, a gravadora também pagou, todos os atrasados. Uma série de coisas foram acontecendo e trazendo para mim o que me é de direito. Quer dizer, é uma glória, isso é coisa de Deus. Eu estou muito feliz nesse momento, fazendo shows, mega banda, cada lugar que eu chego é montada a banda com o som ensaiado. Eu chego com 40 minutos de ensaio, desço a marreta e sai um som arretado. É uma glória, uma felicidade, todos os lugares lotados, só gente muito bonita chegando no pedaço. Tem hora que nem parece Brasil. É louco.
P1:
Quando você cria, você cria pela melodia ou cria primeiro pelo verso?
R:
Depende. Depende. Mas normalmente ou eu faço o verso ou eu faço a música e depois eu vou encaixando. Entendeu? Eu tenho muita coisa que é montada assim. no ato, na hora e na eira. Tem hora que estou dormindo e pulo da cama, já fazendo a música, a letra, tudo, velho. É muito doido. É como se fosse uma entrega divina, dádiva divinal. É um negócio de louco. Eu acho que não é normal. E eu sou um sobrevivente. Muita gente da minha época foi embora, entendeu? E eu estou aqui e acho que ele quer que eu ensine alguma coisa e aprenda muita coisa no mundo. Eu vivenciei todos os tempos de Brasil. Eu nunca vi uma violência como está agora. As coisas tomaram um pedal esdrúxulo, não é?
P1:
Falando nessa coisa de todos os tempos de Brasil, você, como músico e bem…
R:
Engajado?
P1:
Como foi viver a ditadura? Você chegou a ter música censurada...
R:
Sim, sim. Algumas músicas censuradas que eu talvez, eu tente cantar hoje, mas vou deixar quieto, tudo é tempado, tudo é prazado, no momento exato as coisas acontecem. Nada acontece por acontecer, tudo tem sua razão de ser.
E assim, eu digo que:
a vida é uma
se nela você não faz aquilo
que tem a lhe prazerar
se você está aqui
não sabe até quando irá ficar
nem há como considerar
o que possa vir a ser
ou se chamar, viva
Ninguém jamais conseguirá
viver as suas emoções
Pessoas sensíveis
sempre emocionam e fascinam
e o gostar não se explica
simplesmente se aplica
Na vida, o importante
é amar e ser amado
o resto é papo furado
Vira cornificina
(...)
Não é? É mais ou menos isso.
P1:
E, Di Melo, conta para a gente como foi que foi chegando os seus primeiros sucessos, de você tocando ali em Recife, na noite. Como foi que aconteceu?
R:
Então, eu falei que vim com o Vanderlei, o organista de Roberto Casas, e voltei, porque eu não estava habituado ao frio, que era São Paulo. E aí... Aprimorei, participei de uma peça, “O Arame Farpado no Continente Perdido”, que foi um negócio de louco. No final da peça, todo mundo ficou nu e a polícia bateu, foi uma merda. Todo mundo fugiu. E eu vim para São Paulo.
P1:
Essa peça é em Pernambuco?
R:
Na segunda vez. na segunda vez que estava vindo a São Paulo, mas agora, dessa vez, já vinha mesmo para ficar, porque já tinha observado mais ou menos o panorama. Aí já não estava mais tão nudo crudo, tava já.... E, como o meu empresário, que o Jorge apresentou com cartão, faleceu, fui para a noite. Era a minha única saída. Aí comecei a tocar na noite, a noite me deu manha, maçanha, maranha, mamu e tramóia, né? Sacação de vida, o que é muito interessante, mais importante que qualquer importância. Além de papo de banco, o que seria bem cabeludo ou careca de tudo, o negócio é garantir fundão. Portanto, apliquem no Fundo de Commodities de Melowski (risos). É importante você trabalhar e ter uso fruto do seu trabalho. Foi montada essa história através do Corisco, que era arregimentador. Ao me colocar gravando com esse pessoal, e haja visto que a música deu pedal, ele vira o dono do cantor e das músicas, tanto que ele pegava o dinheiro e não repassava. Como eu trabalhava também com obra de arte, ele comprava as obras de arte, me dava um recibo (muito louco), ele me dava um recibo como se fosse direito musical. Entendeu? A desonestidade rola sempre. Houve, há e haverá. No Brasil tem muita gente boa, mas tem muita gente cheia de desonestidade.
P1:
Mas ele era o quê? Seu empresário?
R:
Ele era o dono da editora que minhas músicas estavam. Ele usava, vendia minhas músicas lá para fora, não me pagava. Tá queimando… Lá nos quintos.
P1:
E como rolou a gravação do seu primeiro disco?
R:
Então, é exatamente isso. Era esse pessoal que tava tocando nesse disco. Virou essa massa sonora. O que eles puseram na rua foram embora. E eu, com música com Wando, fui receber o trimestre de direito autoral e eu tinha 11 cruzeiros. Então dei um quebra-quebra e saí de cena, fui para as praias.
Aí foi que encontrei a sanyasi, essas histórias que eu estava falando, exatamente isso. Hare Krishna, era bem o momento em que estava aflorando tudo isso, eu tava nos mares. Nunca parei de cantar, de tocar, de compôr. Só que fazia festas ínfimas e íntimas.
P1:
Muito bom! Mas você não tinha vontade de gravar nesse período?
R:
Não, porque eu estava decepcionado com tudo que me havia acontecido. Sabe, “sem tesão não há solução”. E aí sabe o que acontece? Eu perdi a vontade de fazer as coisas. Foi rolando, foi rolando, as coisas foram acontecendo, eu fui criando, recriando. E o disco ficou perdido por aí, esse disco Kilariô. Até que os gringos, os DJs gringos descobriram o som e disse... “Puta que pariu! Quem é esse cara? Que som é esse?” Você persegue uma determinada coisa durante um tempo e, se a coisa realmente tiver que acontecer, essa coisa vai lhe perseguir. Não existe moeda de uma só face, entendeu? E aí o que ocorre, os caras descobriram só... Eu disse, meu irmão, quando eu fui para o Japão, os caras iam levar o Marku Ribas. Fiquei sabendo depois, senão não teria topado. O Marku era meu amigo, porra. E aí eles ouviram Di Melo e disseram, não, não, não. Não era o Marku, era eu. E eu fui para lá. Vim saber muito depois, fiquei muito chateado, mas já tinha acontecido. O Marku era meu amigo. E as coisas simplesmente acontecem. Nada acontece por acontecer. Tudo tem sua razão de ser. Tudo é atempado, tudo é prazado. É certeza, é batata. E não poderia ser diferente com esse som. Esse som, até hoje, eu ouço, eu dou risada, eu me divirto, eu fico bravo. É, eu me emociono, acontece tudo nesse disco. É muito louco ele. E todo mundo que ouve uma vez, não para de ouvir mais. E o disco, depois desse disco da EMI Odeon, tornou-se difícil fazer qualquer coisa. De repente, épocas de Bar Avenida, não sei se vocês pegaram o Bar Avenida. Eu saí, eu estava que nem placa de Coca-Cola em todas, tava em todas. Mal cremou o pentolho, junção de cricri, morcego, pentelho e piolho. E aí eu saí para a casa de um amigo meu, para o sítio de um amigo meu, e muito doido. Isso aqui é hábito. Saí do Avenidas e fui para lá. Meu, de repente, eu estou em cima de uma ponte muito louca, dois caminhões vindo na minha direção e eu, no meio, digo “vai se foder”. Pulei no rio com a moto e tudo. Bicho! Entortou a coluna, entortou a moto. Daí fiquei mals, os mals, mals.
Como eu estava sempre em todos e sumia, aconteceu a história do desastre de moto, começou o boato Di Melo morreu, Di Melo morreu, Di Melo morreu. Quem morreu? Morreu uma porra, eu sou imorrível! Aí foi feito o filme, 24 horas, a película, é… 24 horas e 25 minutos.
E aí, como deu pedal, ganhou Kikito em Gramado e ganhou mais dez prêmios, disse, vamos fazer o disco. Se fosse mulher bonita, com tudo em cima, tudo avantajado, aparece dinheiro na hora. Negrão, ninguém quer saber. Aí era uma história para captar recursos. Até entrou, mas só para descolar a captação, ficou inviável, passou o tempo, perdeu... Perdeu-se a história. Eu e Dona Jô, minha mulher, com quem vocês falaram, fez um empréstimo no banco e esse empréstimo virou 150 contos, com juros e correções para fazer o disco “Imorrível".
Fiquei em Pernambuco, 40 dias, 50 músicos gravaram nesse disco, aí você bancando tudo, chegamos a essa grana. Aí fez 1.000 CDs e 300 vinis. Voou tudo, mas agora tem que refazer tudo novamente. Mas foi uma batalha para conseguir pagar na época. Hoje seria rapidinho, mas na época... E estamos aí.
E o "Imorrível" deu bom também. E esse “Atemporal", ouça ele que você vai ver que eu tenho razão. É um puta disco do caralho. E tá tudo, lá você falou Di Melo, todo mundo conhece, mais até que aqui.
P1:
Isso que ia perguntar, essas músicas, por exemplo, qual foi uma história que você ouviu sobre a sua música? Além da história da criação dela, qual foi uma situação que você…
R:
Não, Kilariô, Kilariô é clareou. Kilariô é que clareou, arrastado pro nordestino. Eu estava no Japão, você está aí gravado. Eu saí, peguei um Shinkansen, que é o trem rápido, peguei o vapor, fui para uma cidadezinha, e tava lá muito doido, de repente abriu-se o sol.
Eu gritei “clareou! Raiou o dia, eu vi chover em minha horta”. Essa música e “Minha Estrela" foram músicas feitas no Japão, as demais em São Paulo e Brasil. Vivi todos os momentos de Brasil. Vivi momentos que era uma glória, que era uma coisa fantástica. Mas eu nunca vi tanta violência como agora. Eu fico estupefato e absurdo com toda essa loucura. Eu não vi. As pessoas tiram a vida do outro a troco de nada. É um negócio de doido. Todo mundo armado. Para com isso. Se não houver paz e amor véio, o mundo vai virar guerra o tempo todo. Entendeu?
Já vi de tudo, mas agora estamos vivendo um momento de muita, muita, muita violência. O país dividido, é um negócio absurdo. E o Brasil é um país muito amorizável. O país é terra de amor. As pessoas se compraziam, trocavam ideia. Tinha um bar sem nome, né? Antes era o Armazém. Aí ia todo mundo.
Ia Cassiano, ia Djavan, ia Chico Buarque de Holanda nesses pedaços. Ia Valdir da Fonseca, o próprio Terrinha, que parece contigo. Eu batia violão, Serginho Ventura, Maranhão. Era o pessoal que fazia. e todo mundo se encontrava para mostrar o que estava fazendo. Era um barato.
P1:
E você tinha algum parceiro poeta que compunha?
R:
Valdir, Valdir da Fonseca, Vandré.
P1:
Que compunha contigo?
R:
Então, Vandré, Valdir da Fonseca. O próprio Terrinha. Terrinha era incrível. Ouça os sons que você vai ter uma noção básica do que eu to lhe falando. Eu to tranquilo, hoje eu faço um som e não tem concorrência, não tem ninguém fazendo nada igual. Estão entendendo? Sobe no palco e você vai ver que a coisa agora, ultimamente, tá foda. Botei 17 pessoas no palco, no Pompeia, lotados. Se tirasse o pé do chão, não recolocava. Muito, muito foda. Aí fui para Pindamonhagaba, lotou geral. Aí fui para a Bahia, lotou geral. Fui pro Rio, Circo Voador, são tudo casas grandes. E porra, lotado, tudo lotado. Quer dizer, o povo caiu na real do som, do que tá acontecendo. E não é som comprado, porque você vê um monte de sucesso, sai de uma rádio e está na outra, jabá. Se não pagar, não vira. E se parar de pagar, acaba o sucesso. Jorge Ben não precisa disso. Ney Matogrosso não precisa disso. Chico Buarque não precisa disso. Djavan. Todo mundo, entendeu? Não precisa pagar para tocar. E eu estou no meio disso tudo, graças a Deus.
P1:
Tem uma canção que eu queria muito saber a história por trás dela, que é A Vida em Seus Métodos Diz Calma.
R:
Isso aqui eu fiz em São Paulo. Eu falei para mim e para quem quisesse ouvir. Porque, além, nem tudo é riso. E tem hora que você entra em deprê. Foi uma época em que eu estava muito louco, muito drogado, fumava até meu cabelo para dar barato. E aí eu comecei a entrar em deprê. Eu mesmo falei para mim, “a vida em seus métodos diz calma”. A vida em seus métodos diz calma/Vai com calma/você vai chegar. Se existe desespero/é contra a calma… Isso é um trabalho de cabeça. É um cabeçote limpo, entendeu? Muita gente chegou para mim. Os relatos são muito loucos. Tem cara de… Porra, eu ia me suicidar, mexi no rádio e apareceu essa música. Que loucura, me transformou. Um cara mesmo estava pensando em dar tiro na cabeça. Hoje o cara é representante de uma marca de óculos nos Estados Unidos. Ao ouvir essa música, ele tava pensando em suicídio, botou a cabeça no lugar e foi à luta, foi à batalha. Hoje, o som desse disco eu já faço totalmente diferente do que era quando foi gravado.
P1:
Era isso que eu queria saber. Essa história que você contou é muito boa, a sua música refletida na vida das pessoas.
R:
É isso aí, o tempo todo aparece gente... Meu, você é o meu astro, é o meu predileto. Muita gente diz que é o melhor show que eu assisti. Entendeu?
P1:
Você lembra algumas outras histórias como essa do suicídio, de alguma música sua que tocou?
R:
Não, é o tempo todo, o tempo todo. Tem uma mulherada que vem e fala um monte na cabeça, me agarra, me beija, me aperta para ver se é verdade que estou ali. É uma doideira muito grande. E, para mim é uma glória, porque você faz… Já imaginou você fazer música e ninguém gostar, a não ser que seja pago? Tem uns puta sucessos aí que era coisa imposta mesmo, você era obrigado a ouvir aquilo. E essa aqui vai na valsa, vai tranquilo. Vai que vai. Nunca paguei um centavo para ninguém fazer nada em prol desse disco. Nunca. E é uma glória, graças a Deus. Gratidão.
P1:
E eu ia falar para você contar um pouquinho da sua história de amor, como foi que você conheceu sua esposa?
R:
A Dona Jô foi carnaval. Eu sempre fui um cara de muitos amores. Muitos, muitos. Olha, a mulher é um negócio tão fantástico que, em algum momento, eu digo que cada mulher é uma música. Nossa! E foi no Carnaval. Eu tava vindo, saí da Praça Benedito Calixto, com um bloquinho, Vai quem quer”, e, na contramão, a polícia repreendendo, e a gente prosseguindo na marra e seguindo. Aí cheguei na porta dela, ela surgiu, eu olhei e digo, meu Deus, me felicitei. Acabei de encontrar aquilo que tanto desejei. E virou um romance muito doido e surgiu o Gabi. Gabi é uma estrela. Gabi é a própria estrela. Se você estiver aqui com a Gabi, ela contando as histórias, com 19 anos ela sabe mais de vida do que muita gente que se diz grandes experimentadores de vida. Sabe tudo, tudo, tudo que você imaginar. Menininha danada, viu? Nunca vi um negócio daquele. Ela é espetacular, ela é esplêndida, ela é… Eu fiz uma música para a Gabi. “Para te ver, menina” Vou ter que tocar. Fiz uma música, Gabi na Barriga ainda, da Dona Jô. Gabi é minha maior inspiração, minha melhor forma de expressão, meu amor-motivação.
Pra viver, menina
Pra provar de meu amor
Deliciorigina
Contemplação louvor
Nele se origina
Contemplação, louvor
Concertou, menina
Teu perfume exala a flor
Manhã tão vespertina
Que o rouxinol mal cantou
Manhã tão vespertina
Que o rouxinol mal cantou
Me fez sonhar ao cheiro, ao som
à luz da linda primavera
E tão bonito foi
que nem sentia espera
Maravilhado fui, te juro pela cruz
Foi prazenteira, fruto da esperança
Fez a vida bela e feito criança
frente à atmosfera me senti tão livre
como nunca fui
Pra te ver, menina
Pra provar-te, oh
Meu amor
Nele se origina
Contemplação louvor
Nele se origina
Contemplação louvor.
(...)
Se origina… É foda!
P1:
Essa foi pra sua filha, né?
É. Quatro horas, tenho que ir, ó. voou o tempo…
P1:
Vamos fechar, então. Vamos fechar. Hoje, o que você tem de sonho para a vida? Tem vontade de realizar alguma coisa?
R:
Olha, essa é a história da minha filha, aos 19 anos, em primeiro lugar na USP, estou no ar. Tamanha felicidade, não estou cabendo em mim. Em matéria de música, já viajei, tenho umas 400 músicas, bicho. É som para caramba. Eu fico aqui o dia tocando num repete uma música.
Então, quer dizer, as músicas que ficaram lá atrás, eu deixo um pouco lá atrás e estou tocando as músicas novas, que são muito tesônicas, sensualíssimas, tarativérrimas, depirêmicas. É muito bom. Estou muito, muito, muito, muito, muito contente.
P1:
Tem alguma história da sua vida que você não contou e gostaria de deixar registrado?
R:
Não. Elas fluem. São coisas que vão fluindo, fluidificando. Tem horas que eu lembro de muita coisa, tem horas que passam em branco. Hoje mesmo eu estava tomando banho e comecei a dar risada. Aí disse ele tá louco. Não é. Lembrando coisas, as presepadas, as armações, muito bom.
Eu vivi no Rio, vivi em São Paulo, vivi no Japão.
P1:
Tu viveu no Japão mesmo?
R:
Morei um ano e meio. E é tudo experiência. Na Holanda, rolou altas experiências. Na França, tudo, o dia a dia. o criar, o recriar, a sua predisposição de estar bem consigo mesmo, consegue lhe levar a outros patamares.
P1:
Você teve algum outro trabalho que não foi a música?
R:
Nunca. Nunca. Sempre pintei. Música, pintura, entalhe, sempre arte. Arteiro nato. Nunca gostei dessa história de ficar batendo cartão. A proposição não era essa.
P1:
Tem uma pergunta que eu gosto de fechar, que assim… Se você pudesse, quando desencarnasse, levar um momento para a eternidade, uma memória, qual seria esse momento?
R:
Ah, um livro de memórias. Porque são tantas coisas que não dá para enumerar, entendeu? Aí você vai num momento... Daqui a pouco já estou numa outra história, mas sempre o som no meio. Vou levar o Rex ao poste.
P1:
Quer fazer um poema para fechar?
R:
Pode ser, é… Vandré.
Parafraseando o Vandré:
Não te esqueças de mim
que nem sei lamentar
o que já se passou
Não te esqueças de mim
que guardei meu sonhar
no teu sonho de amor
Não te esqueças de mim
que já nem sei pensar
que preciso esquecer
até que chegue o dia de poder
de novo te encontrar.
(...)
Sintetizando. É mais ou menos isso.
Recolher