Identificação Museu da Pessoa - Para começar, dona Julia, eu queria que a senhora dissesse seu nome completo, data e local de nascimento. Julia - O meu nome é Julia Gomes de Souza Bonfim, nasci no dia 25 de dezembro de 1945, no povoado Poço dos Bois, Município de Cedro de São João, em Sergipe. MP - Nasceu no dia de Natal? Julia - Foi. MP - Como é que foi esse nascimento? Julia - Esse nascimento eu não sei como é que foi. Sei que a minha mãe falava que eu fui xingada antes de nascer mesmo, e ela também. Porque lá usam... A parteira que vai assistir o parto e ajudar a mãe, né? Era dia de Natal, tem festa de rua, é a festa do ano. As filhas da parteira não podiam sair sem a mãe e a mãe foi lá na casa da minha, né? E elas começaram a xingar a minha mãe e eu, porque naquele dia eu ia nascer e ia atrapalhar a festa delas. MP - Está certo. A senhora foi a primeira filha? Julia - Não. MP - Quantos irmãos, dona Julia? Julia - 16 irmãos. É 16 irmãos. MP - Todos lá da mesma cidade? Julia - Tudo. Avós MP - Os pais da senhora, os avós da senhora também são de lá? Julia - São. MP - Nasceram lá mesmo? Julia - Acho que sim, porque uns eu conheci e outros não, né? MP - Por parte de mãe? Como é que chamavam as avós da senhora? Julia - Por parte de mãe? O meu avô era Idelfonso Vieira da Silva e a minha avó Maria dos Prazeres... MP - De Jesus? Julia - De Jesus. Acho que é, de Jesus. MP - Está certo. Julia - E por parte do meu pai era Antônio Gomes de Souza e Maria Cândida de Jesus. MP - Por parte de mãe, a senhora sabe um pouquinho da história desses avós da senhora? Julia - Parte de mãe, a história dos meus avós... Eu sei que o meu avô Idelfonso foi pego na mata, é o que falam, né? Que ele era caboclo, cabelo bem lisinho, parecia um caboclinho mesmo, mas era um docinho sabe, meu avô. Era ótimo, bom. E criou direitinho a minha mãe. Eu acho que ele era ótimo. A minha mãe falava que ele era...
Continuar leituraIdentificação Museu da Pessoa - Para começar, dona Julia, eu queria que a senhora dissesse seu nome completo, data e local de nascimento. Julia - O meu nome é Julia Gomes de Souza Bonfim, nasci no dia 25 de dezembro de 1945, no povoado Poço dos Bois, Município de Cedro de São João, em Sergipe. MP - Nasceu no dia de Natal? Julia - Foi. MP - Como é que foi esse nascimento? Julia - Esse nascimento eu não sei como é que foi. Sei que a minha mãe falava que eu fui xingada antes de nascer mesmo, e ela também. Porque lá usam... A parteira que vai assistir o parto e ajudar a mãe, né? Era dia de Natal, tem festa de rua, é a festa do ano. As filhas da parteira não podiam sair sem a mãe e a mãe foi lá na casa da minha, né? E elas começaram a xingar a minha mãe e eu, porque naquele dia eu ia nascer e ia atrapalhar a festa delas. MP - Está certo. A senhora foi a primeira filha? Julia - Não. MP - Quantos irmãos, dona Julia? Julia - 16 irmãos. É 16 irmãos. MP - Todos lá da mesma cidade? Julia - Tudo. Avós MP - Os pais da senhora, os avós da senhora também são de lá? Julia - São. MP - Nasceram lá mesmo? Julia - Acho que sim, porque uns eu conheci e outros não, né? MP - Por parte de mãe? Como é que chamavam as avós da senhora? Julia - Por parte de mãe? O meu avô era Idelfonso Vieira da Silva e a minha avó Maria dos Prazeres... MP - De Jesus? Julia - De Jesus. Acho que é, de Jesus. MP - Está certo. Julia - E por parte do meu pai era Antônio Gomes de Souza e Maria Cândida de Jesus. MP - Por parte de mãe, a senhora sabe um pouquinho da história desses avós da senhora? Julia - Parte de mãe, a história dos meus avós... Eu sei que o meu avô Idelfonso foi pego na mata, é o que falam, né? Que ele era caboclo, cabelo bem lisinho, parecia um caboclinho mesmo, mas era um docinho sabe, meu avô. Era ótimo, bom. E criou direitinho a minha mãe. Eu acho que ele era ótimo. A minha mãe falava que ele era muito bom. MP - E a avó da senhora? Julia - A minha avó era descendente de polonês, não sei como se encontraram. Coisas que a gente deveria ter feito antes, escrito para saber e fica agora sem saber, né? MP - Está certo. Julia - Morre e a gente não sabe. MP - E eles, será que eles trabalhavam com o quê, a senhora sabe? Julia - Ah, sempre é na roça, na lavoura, é. MP - E a senhora chegou a conhecer algum deles? Julia - Eu conheci o meu avô Idelfonso, a minha avó, não. MP - Tem alguma lembrança desse avô? Julia - Não tenho nada dele. Se eu soubesse tinha guardado. Agora me arrependo, mas no tempo, não tenho. MP - Isso por parte de mãe, né? E por parte de pai, os avós, a senhora conheceu? Julia - Eu conheci o meu avô. Nunca conheci avó, só avô. Eu conheci o meu avô Antônio. Antônio era aquele homem forte, mas era estúpido. Era. Na roça, um dia, o chapéu dele caiu, ele pegava e botava o chapéu na cabeça. O chapéu caiu de novo, ele pegou o facão, picou o chapéu, deixou miudinho. Outro dia, ele ia para roça, aí deu uma topada num toquinho, né? Aqueles tronquinhos que ficam de madeira. Ele deu chute no toco lá naquele tronquinho de pau, que arrancou, de raiva... Assim, bem... MP - Tinha uma reação forte, né? Julia - É. Aquele povo machão. MP - E ele trabalhava com o quê? Julia - Na roça também, trabalhando na roça. Casa do Avô MP - A casa deles a senhora conheceu, a casa do avô? Julia - Conheci. MP - Como é que era? Julia - Ai, uma casinha simples. Era de taipa, aquelas casinhas só de barro, né? E com telhadinho mesmo dessas telhas comum e grande, que as casas de lá são grandes, compridas. Aquelas casas pareciam um metrô, bem comprida, né? Mas tinha tudo para se comer lá dentro da roça, tinha. MP - O que tinha? Julia - Ah, tinha feijão, abóbora, arroz, que lá ele também comprava o arroz... Plantava um arrozinho, né? E inhame, batata, mandioca, tudo isso tinha na casa de meu avô. MP - Tinha criação de animal também? Julia - Tinha galinha, era galinha. Galinha e porco. MP - E quem é que cozinhava lá na casa, a senhora lembra? Julia - Ele casou... A minha avó morreu, a que eu não conheci, e o meu avô casou com uma mulher chamada Bernardina, só o que eu me lembro. Ela era... Eu não lembro de onde ela era. Não era brasileira, não. Eu acho que era da Espanha, para aqueles lados, sabe? Era de lá. MP - E o pai e a mãe da senhora moravam lá perto do avô? Julia - Moravam. Casa da infância MP - Como é que era a casa dos pais da senhora? Julia - Ah, que saudade. (risos) MP - Tem boas lembranças de lá, dona Julia? Julia - Espera um pouco. MP - Não, fica tranquila. A emoção faz parte da história, a gente sabe disso. Julia - A casa dos meus pais era uma casa bem grande também. Meu pai nunca deixou faltar farinha, feijão, inhame, frutas, tudo de roça, ele tinha. Ele tinha tudo de roça, não comprava nada. Durante o ano inteiro, a gente comia, eu comia bem. Eu era feliz naquele tempo e não sabia, né? Mas ele fazia de tudo para não faltar nada. Trabalhava. Meu pai trabalhou muito. MP - E vendia também, dona Julia? Julia - Ele vendia, sim, algumas coisas para comprar aquilo que não dá na terra: pimenta do reino, os temperinhos, essas... E carne, ele matava, mandava matar um boi, tirava bastante carne. Quando faltava, ele comprava camarão, bacalhau... Naquele tempo não faltava na minha casa. Ele comprava, ele gostava de ter fartura. Lembranças do pai e da mãe MP - Qual o nome do pai da senhora? Julia - É Martinho Gomes de Souza. MP - Como é que a senhora descreveria? Julia - Meu pai... Olha, você... Meu pai era estúpido também, mas bom, amoroso com a gente. Só que quando ele ia chegando da roça, a minha mãe falava: "Seu pai já vem." Todo mundo em posição de sentido, quietinho, para ele chegar manso, que era bravo também. Mas era um homem bom. MP - E a mãe da senhora? Julia - Ah, minha mãe era sofredora, mas era boa. Um coração de mãe. Lá em casa, como tinha muitas coisas da lavoura, o povo que não tinha ia lá pedir e ela dava muita coisa. Não saía ninguém que fosse pedir alguma coisa, para voltar sem. Ela dava. Ela dava abóbora, inhame para um, farinha para outro, feijão para outro, que essas coisas a gente tinha. Tinha muito. MP - Qual é o nome dela? Julia - Maria de Lourdes, Maria Lourdes de Souza. (risos) MP - Está certo. E ela que cuidava de todo o serviço da casa? Julia - Trabalhava ela e minhas irmãs mais velha. Eu tinha duas irmãs mais velhas que eu. Irmãos tinha muito, mas iam para a roça. E as irmãs ficavam em casa trabalhando, limpando a casa, cuidando das galinhas, de porco. Primeira Escola MP - E a senhora? Julia - Eu na escola, brincando um pouco. Eu era mais soltinha, assim. Tinha as mais velhas para fazer, né? E eu ficava fazendo lição, que eu gostava muito de escrever. Eu chego na minha mãe, nunca mandou eu ir para escola. Eu chorava no dia que ela falava: "Julia, vamos para roça hoje?" Eu queria ir para a roça, mas chorava porque não ia para a escola. Preferia ir para a escola. MP - A senhora começou a estudar pequenininha, então? Julia - Foi. Com sete anos eu entrei na escola e lá já entra no primeiro ano, não tinha pré, nem recreativo, não tinha nada dessas coisas, né? Aí, com oito anos, eu aprendi a ler um pouco, escrever. Com nove anos, comecei a rezar um terço na igreja. Eu puxava o terço na igreja. Rezava o mês de maio, que tem orações diferentes, era eu que rezava. E com 12 anos, recebi fita do Apostolado da Oração. Eu já era do Apostolado também. Com 15 anos é... Com 15 anos, eu comecei a procurar namorado, aí... MP - Vamos voltar um pouquinho quando a senhora começou na escola. Eu queria que a senhora lembrasse um pouquinho mais da escola. Como é... Julia - É. Porque com 15 anos, namorando, é ruim demais. Agora que eu me lembro, não queria nem lembrar. MP - Antes disso, quando a senhora chegou na escola? Julia - Na escola eu era amiga de todos, brincava no recreio, corria igual moleque. Quando chegava em casa, eu montava à cavalo. Também gostava. Eu menina era eu e um cavalo para andar montada. Ia para a roça mais meu pai, montada à cavalo também. Ajudava... Na escola, ajudava a professora a corrigir a lição dos outros porque eu sempre era espertinha. Sempre gostei, assim, de ajudar, né? MP - A senhora lembra da primeira professora? Julia - Ah, mas se eu lembro. Foi uma só. Ela era uma professora só para aquela turma de aluno. E o nome dela era Raimunda de Souza Melo. Ainda hoje, eu tenho ela no meu coração. Eu vou lá e vou visitar. Quando eu vou lá em Aracajú, eu visito ela lá. MP - E como era a sala de aula da senhora? Julia - Onde eu estudava? MP - É. Julia - Era cheia de criança estudando. Primeira série, segunda, terceira e quarta numa sala só, mas não tinha cola da criança, de um passar para o outro o que sabia. Não tinha, não. Cada um se matava para saber o que ia fazer. E naquele tempo, a gente tinha livro de História do Brasil, um livro grandinho, grossinho, assim. História do Brasil, Geografia, Aritmética, Gramática e um livro de leitura. A gente estudava aquele livro o ano inteiro. No fim do ano é que fazia uma prova. Não tinha prova todo mês, vai estudar tal matéria, como agora, não. A gente estudava no fim do ano. Fazia prova e eram 100 perguntas procurando naquele livro. A professora que procurava, a gente não tinha opção de nada. A gente ia ler o livro todo, recordar todo, para fazer a prova no fim do ano, sem saber o que vinha, assim. E eu sempre tirei... Era 100 naquele tempo. Não era 10, nem A, B e C. Era 100. Minhas provas era 100 e 100. O resultado de uma prova dessa, da minha primeira provinha até foi... A pessoa tinha costume de fazer a prova, quando ficava boa, bonitinha, fazia uma capa desenhada à flores, coisas assim e oferecia para alguém. E eu ofereci para uma mulher, uma moça, que eu gostava muito. E ela me deu uma bonequinha desse tamanho. A primeira minha boneca, também. Essa boneca eu... Casei e vivi com ela, até minha filha brincou. MP - Como é que era a boneca? Julia - Ah, uma bonequinha, assim, em pezinha, aqueles bebezinhos. Só o bebezinho em pé, mas foi primeiro para mim, caiu do céu. E eu não tive mais outro, só aquele. Brincadeiras da Infância MP - Como é que eram as brincadeiras dessa época, dona Julia? Julia - Hum. Eu brincava mais com meus irmãos, porque as meninas mais velhas trabalhavam. Aí eu brincava com eles, fazendo curralzinho de palitos, né? Uns curralzinhos, assim, no chão. Cercava uma parte, botava os bezerrinhos, que era aqueles... Vocês não conhecem aqui, não. MP - Como é que é? Julia - É a semente de cactus. Conhece uma semente de cactus? É uma fruta que dá, assim, grande. Até o passarinho morde quando está madurinha, e come a semente pretinha dentro. Aí tinha... Eu pegava os pequeninhos, fazia os bezerros. E os grandes, a gente enfiava espinho do próprio cactus e fazia as vacas. A tarde inteira brincando. Prende o bezerro, solta o bezerro, põe para mamar, sem ter nada, sabe? Só a beleza de brincar no curral. E a gente cercava o lugarzinho, assim, de grama mesmo. Ficava todo gramadinho, parecia um curralzinho. E depois que eu ganhei essa boneca, foi que eu comecei a brincar com as bonequinhas com outra vizinha. E com os meninos, também. Meus irmãos, eu ia matar rolinha de noite nos matos. (risos) MP - Como era? Com estilingue? Julia - Não. Eles faziam uma espada e um ia com a lanterna. A lanterna aí, pegava onde tinha as rolinhas dormindo, jogava a lanterna em cima e elas ficam encadeadas. Elas não correm, não sabem para onde ir. Aí eles iam com a espada. Ai, que dó Não tenho coragem de fazer isso mais, de jeito nenhum. Eles vinham com a espada e soltavam, assim, uma borracha e a espada "tum", varava um montinho numa vez só, aquelas espadinhas finas. Aí, elas vinham tudo se batendo. Para nós era uma alegria porque ia cuidar daquelas rolinhas quando chegava em casa para comer. Loucura de criança. MP - Assava? Julia - Assava. MP - Mas essa espada era de madeira? Julia - Era de madeira a espada, e a flechinha mesmo era de ferrinho, de arame. MP - E assava e era gostosa? Julia - Ah, uma delícia Olha, o povo quando vai lá ainda procura Nos restaurantes lá quem come rolinha, paga caro. MP - A cidade era perto, dona Julia, da casa da senhora? Julia - Não. Era nove quilômetros. Ainda é nove quilômetros. Infância no Interior MP - E a senhora ia para a cidade, às vezes? Julia - Ia. Às vezes, a gente ia de pé, ia montada. Eu ia mais meu pai vender fruta montada lá. Eu gostava muito de andar com meu pai. MP - Como é que era a cidade? Julia - A cidade é aquelas casinhas tudo baixa, não tem nenhuma casa alta ali. Tudo baixa, as ruazinhas de pedras, né? Aquelas pedras no chão. E o povo todo mundo conhecendo todo mundo. (risos) É passando e "oi", "oi", "oi", cumprimentando e parava o dia inteirinho, só ali nas portas para parar, né? Para conversar com o povo. E ainda hoje. Quando eu vou lá não mudou nada. Eu fico parando de porta em porta. MP - E tem igreja, praça? Julia - Tem igreja. Tem uma igreja na praça. A igreja... Depois eu falo. Tem uma igreja bonita no lugarzinho, no povoado onde eu nasci, né? E sempre é freqüentada. O povo casa lá, a turma do lugarzinho casa tudo ali também. MP - E festa na cidade tinha, também? Julia - Tem. Ainda tem. Festa de São João, agora, diz que é uma festa muito boa lá. MP - A senhora lembra de alguma festa da época em que a senhora era criança? Julia - Só de Natal e de São João. A festa de Natal e de São João eu gosto, lá. MP - E a paisagem lá, como é que era, dona Julia? É lugar de plantação? Julia - Quando eu era pequena lá, tinha mais, mais mata, aquelas matinhas, né? Uma propriedadezinha com uma parte de mato grande, que deixam para fazer estaca, para cerca, né? E agora eles cortaram muito para plantar capim, para criar gado. Aí, está mais depenado, agora. Está feio. De mato, não está bom, não. Está mais feio. MP - E a senhora morou lá até quando, dona Julia? Julia - Eu morei lá de quando nasci até 1975, até o ano... MP - 1975? Julia - É. MP - Sempre na casa dos pais da senhora? Julia - Não. Quando eu me casei... Bom, sempre foi. Só saí quando me casei. Namoro e Casamento MP - Quando que a senhora se casou? Julia - Eu me casei no dia 28 de maio de 1963. MP - Como é que chama o marido da senhora? Julia - É Genário do Bonfim. MP - Como é que a senhora conheceu o "seu" Genário? Julia - Ah, na escola. Ele ia brincar lá em casa, ia chupar manga, ia brigar. E aí, depois, começamos a namorar e apanhei muito até aí. Pai me batia, mãe não queria, de jeito nenhum, porque quando nós casamos ele era mais baixo do que eu, ele era menino. Mas ele era menor do que eu. Eu tinha mais juízo, assim, sabe? E ele era criança. Ele era criança de ficar... O pai dele vendia cereais nas feiras e soltava os burros, mandava ele levar os burros para o pasto e ele ficar olhando. Era assim. Ele não trabalhava. Ele ficava cuidando, ajudando o pai na roça. MP - Então, a senhora casou menina, então? Julia - Foi com 17 anos. Dia do Casamento MP - Como é que foi o casamento? Teve festa, teve igreja, como é que foi? Julia - Pretende saber mesmo, é? MP - É. (risos) A senhora gostou da festa? Julia - Olha, o casamento foi assim: eu namorava com ele escondido, porque o meu pai não queria. E o povo lá sabia de alguma coisa na boca do pai. Aí eu estava na escola, tinha começado em 1963, eu tinha começado a dar aulas, né? Eu estava lá. Era uma sala de uma casa, que eu descia para dar aula. Os meninos brincando no recreio e ele foi lá. O Genário foi lá na escola e nós ficamos conversando, mas a minha mãe ia passar naquela porta ali, eu fechei a porta de lado, né? A outra estava aberta. Aí falaram para a minha mãe que eu tinha fechado a porta e o Genário estava lá dentro. Eu fui para a casa tranqüila, quando terminou. Fui embora, ele foi embora também. Os meninos, soltei os meninos, foram embora. Quando eu cheguei em casa de noite, me arrumei, fui para a igreja, para o terço como eu ia sempre. Aí eu vi uma pessoa entrou lá e falou, disse: "Genário, tem gente lhe chamando." Aí eram os amigos já da minha mãe, do meu pai, chamando ele para sair da igreja fora para acertar o casamento. Eu nunca imaginava. E eu sem saber para que era. Eu subi e fui para casa. Quando cheguei lá, que passei por meu pai, ele estava parecendo um leão furioso. Eu digo: "Não sei o que é..." Fui e dormi. Eu já dormi e minha mãe não estava. Estava acertando lá o casamento. Acertando, mais o povo, os amigos, né? Aí quando eu... Dormindo, a minha mãe acorda: "Julia, ô Julia." Eu me acordei, ela disse: "Vá lá fora." Que lá é porteira, não é cancela, tem uma porteirinha, né? "Vá lá fora na porteira, que o Genário está esperando para acertar o casamento." Eu: "O quê, mãe?" "Vai calada, senão seu pai, seu pai não lhe quer aqui mais de jeito nenhum." Aí eu me levantei toda esquisita. Casar naquela hora, eu não estava nem na idéia de casar. Aí cheguei lá, né? Ele na porteira, já estava arrumadinho homem lá, com uns capangas. Mas não. Era tudo amigo protegendo, né? Então lá, tudo sentado na calçada e eu vou lá na porteira. E Genário disse: "Olha, Julia, falaram para seus pais que nós estávamos trancados lá na escola e nós vamos casar. Estão acertando para nós casar. Se você quiser, nós vamos casar amanhã, madrugada. Se você não quiser, eu vou sumir para nunca mais dar notícia a ninguém." Eu digo: "Ah, nesses casos, vamos casar." Aí fomos madrugada, montados à cavalo, sem o padre saber. Fomos para a cidade. A cidade de Cedro de São João. Chegando na cidade, fomos acordar o padre. Acordamos o padre, ainda estava escuro o dia. Acordamos e ele saiu, levantou, se arrumou, veio para a igreja casar. Quem levou a gente montado nos cavalos foram os padrinhos. Aquela turma que estava lá em casa. MP - Nem tinha roupa especial, nem nada? Julia - Tinha um vestido que eu recebi, fita de filha de Maria, um vestidinho, tenho uma fotografia aí. Um vestidinho curto, abertinho aqui até em baixo, rodadinho. Eu fui lá me casar, sem nada mais. Nem aliança. Até hoje, não tenho. Ficou assim mesmo. MP - E os pais da senhora foram também? Julia - Ah, para onde? Foi nada. De jeito nenhum A minha mãe ainda podia ir, que mãe sempre põe pano quente, mas o meu pai ficou de mal de mim um ano. Nasceu minha primeira filha para quando ele quisesse ir lá. Foi muito depois. MP - E teve a cerimônia na igreja com o padre? Julia - Foi só o padre. Casou e fomos embora, montados à cavalo. Cheguei lá, um monte de criança esperando para eu dar aula. Eu abri a sala de aula e fui dar aula, normal. (risos) MP - A senhora dava aula aonde, dona Julia? Julia - Aí eu comecei a dar aula nessa casa que eu estava dando aula, que eu já ia morar porque eu já estava casada. Ao mesmo tempo... Em março comecei a ensinar, em maio me casei. Fiquei ali mesmo. MP - Morando na escola? Julia - Sim. Era uma casa para trás, uma casa grande. A minha mãe escondida do meu pai comprou cama, comprou enxovalzinho, e o povo foi dando. Todo mundo gostava de mim, foi dando. Um dava copo, outro prato e daí fez as coisas, arrumou. Mas eu fiquei ainda sem morar, mais o meu marido, 10 dias porque não tinha as coisas antes da cama, antes de tudo. Aí fiquei 10 dias separada. (risos) MP - Essa história é muito interessante. MP - Esse casamento. (risos) E aí esse casamento foi até hoje, não é, dona Julia? Julia - Foi até hoje. Ia ser muito bom se tivesse naquela pobreza que eu estava, mas com o amor que eu tinha no coração, se ele tivesse também... Depois as coisas foi mudando. Aí, me casei no dia 28 de maio, fui morar junto com ele no dia 10 de junho. No dia 23 de junho, ele me trancou e foi para as rodas de São João e eu fiquei trancada. O povo ia me visitar: "Julia? Ô Julia?" Batendo na porta. E eu abria a janelinha: "Oi.". "Eu vim lhe visitar e tal." Aí eu digo: "O Genário saiu e levou a chave." Me trancava. Aí, daí para frente, não prestou. Agora, eu tinha fé em Deus, que um dia aquilo passava. Só rezava, só. Nascimento dos Filhos MP - E nasceram... Começaram a nascer os filhos também? Julia - Foi. Nasceu a primeira menina. Com três meses que me casei fiquei grávida. Nasceu a Denise. Com 11 meses, nasceu a outra. Disse: "Desse jeito, eu vou... Dentro de 20 anos eu vou ficar com 50 menino aqui." Aí o povo começou a me ensinar chazinho, umas coisinhas, né? Naquele tempo não tinha comprimido ainda, que eu conhecesse, não. E aí foi dando mais um espaço, né? MP - E nasceram como, em casa, as crianças da senhora? Julia - A primeira nasceu em casa. A segunda, eu fui para o hospital porque fiquei... Quase morro em casa e fui para o hospital. E o povo ainda dizia assim: "Ah, minha filha, não vá para o hospital não, para hospital, não. Deus que está lá, está aqui." Mas eu vi que eu ia morrer mesmo. Aí pedi para me levar e o prefeito lá me levou, né? E eu ganhei a segunda no hospital, mas foi com muita dificuldade. Nasceu doentinha, pequeninha. Eu fiquei 11 dias internada no hospital em Propriá, no hospital São Vicente de Paulo. MP - Em que cidade? Julia - Propriá. MP - Propriá? Julia - É. MP - E depois? Julia - Aí, essa foi a segunda filha, né? Depois tive um terceiro que foi em casa. Outra menina que foi em casa, também. Esses dois morreram, morreram num dia só. MP - Pequenininhos? Julia - O menino tinha dois anos e quatro meses e a menininha seis meses. MP - Mas o que foi, dona Julia? Julia - Lá o médico não sabe. Lá não tem médico para dizer de que morreu. Morreu, morreu. Espera dar 24 horas, não sei quanto, e enterra. Ainda hoje é assim. MP - Mas eles estavam doentes? Julia - O menino adoeceu. Eu acho que foi infecção no intestino, que foi problema de intestino. Ficou um mês doentinho. Eu dava tudo que o povo ensinava, mas não resolveu. E a menina, oito dias antes, adoeceu. Era uma coisa na garganta, um roncadozinho na garganta, e febre. E morreu gorda, bonita. Ela morta, ainda estava quente da febre. Se fosse aqui, eu acho que era aquela doença que chamam crupe, que nesse tempo matou um monte, no mesmo tempo assim. Outras pessoas lá morreram. MP - Não tinha médico lá na cidade? Julia - Não tinha médico, nem carro para levar. Recurso nenhum. Morreu, porque não teve recurso. E a gente pobre, que depois que eu me casei, eu vi o outro lado da história, a gente pobre não tinha nem como comprar remédio, nem levar em médico, pagar... Buscar carro aonde para levar e pagar o carro? E depois? Trabalho no interior MP - Por que o marido da senhora continuava com aquele trabalho, de trabalhar com o pai dele e tal? Julia - Não. Aí ele ficou. Depois da gente casado, ele continuava ajudando ao pai. E a minha mãe era que me ajudava. A minha mãe me dava muita coisa. O pai dele dava, assim, algumas coisa de roça, mas a minha mãe segurou a bronca. Escondida do meu pai, por muito tempo. E ele trabalhava depois vendendo amendoim na feira. Aprendeu com o pai a vender coisas na feira e começou a vender. Mas até aí a gente... De aluguel, luz, pagar tudo, só meu dinheirinho que era quem ainda resolvia, assim, algumas coisas. MP - Que era o salário lá de professora? Julia - É. No tempo que eu comecei a ensinar, eu ganhava 1200... Eu não sei nem falar. Sei que era o dinheiro do ano de 1963. Era 1200 e não sei o que lá. Pagava 400. Sei só dizer, assim, o número 400, de aluguel, pagava a luz. Aí o que sobrava, eu agüentava o que faltava. Lembranças do interior MP - E era na cidade essa casa que alugava, dona Julia? Julia - Era no povoado. MP - Lá no povoado. Era perto da família da senhora, da mãe, do pai, não? Julia - Não. Meu pai e minha mãe moravam no alto, muito alto. Era perto dessa família que me acolheu porque tinha que casar, aquela coisa. Elas me ajudavam, e eu ajudava a elas. Eu ia para o sítio mais elas. Tinha dona Alzira, que foi a mulher que me ajudou muito, também. A dona da fazenda, que era dona da casa que eu morava de aluguel. E o povo não gosta muito de acompanhar velho, idoso, né? Mas eu acompanhava ela. Eu ia para o sítio mais ela. Ela tinha muitas varizes nas pernas e eu ia tirando o capim com um facão na mão, cortando, derrubando o capim para ela passar, por causa das pernas. Aí eu cativava. Não sabia o que estava fazendo. Sabia que era uma coisa boa para ela, né? E desse jeito, ela me ajudava muito. Dava enxovalzinho para as crianças, quando nascia. Ajudava.... Ela fazia feijoada boa, me chamava para ajudar. Depois mandava comidas boas, que naquele tempo, nem cozinhar direito eu sabia. MP - Continuaram nascendo os filhos, dona Julia, depois? Julia - Nasceu até sete. MP - Lá mesmo. Julia - É. Nasceu sete, tudo lá. Não, não. Dois foi aqui que nasceu. Lá, nasceu cinco, e onde morreu os dois, né? Relacionamento com o marido MP - E a senhora já freqüentava muito a igreja naquela época? Julia - Já. Eu parei quando ele... O meu marido falou: "Não vai para a igreja." Ele brigava, brigava para não ir. Aí eu parei um tempo. Eu fiquei, assim, no inferno, sabe? Um tempo de inferno. Perdi a alegria da vida... Naquele tempo tinha as crianças doentes, sem dinheiro, sem alimentação direito, sem nada, sem recurso nenhum. E briga. Agora, eu entendo o inferno de muita gente, pelo que eu passei. Mas eu todo dia rezava, todo dia eu rezava: "Meu Deus, amanse esse homem Melhore, melhore." Que não tinha quem agüentasse. Ele me batia na escola. Era ainda assim: se chegava, e não tinha tudo do jeito que ele queria, ele ainda saía me empurrando, me batendo. Aí os alunos levantavam e iam embora. Era um inferno. MP - E isso foi até quando? Julia - Aquilo ali eu não gosto nem de lembrar. Aí foi... Foi até quando? Até eu vir para aqui. Aqui ainda começou um pouquinho. Aqui piorou numas coisas porque lá ele não tinha dinheiro, não tinha recurso. Só tinha a briga e, assim, as encrencas e a força de brigar. E aqui ele começou a trabalhar, a ganhar mais dinheiro, foi trabalhar... Veio trabalhar aqui em Guarulhos. Ele era sócio daquela Diocar Automóveis no Bom Clima. E ali ele tinha dinheiro e ele soube o que ele fez. E eu sofria, porque ele começou a beber, a arranjar namorada também, esses negócios, né? Aí a briga continuou. Só que em 1980, de 1985 para cá, é que deu um basta. Melhorou. Mudança para São Paulo MP - Antes da gente falar dessa mudança, eu queria saber porque vocês vieram para São Paulo, para Guarulhos? Julia - Êita, menina, você me pegou Ele era político, político daqueles. E lá em Sergipe, quem não mata, morre, se se enfiar mesmo na política. Ele trabalhou para... Ele trabalhava para todas as pessoas que era do partido que ele gostava, assim. Mas ele mudou de partido, saiu do partido da mãe, da família. A mãe amaldiçoou até ele. Isso nem... Só estou falando aqui. Se não depois, vai começar tudo de novo. Vou voltar para o Sergipe. Aí a mãe até amaldiçoou ele, porque saiu do partido da mãe, que era a UDN naquele tempo. E ele era... Meu pai era PSD e ele passou para o meu lado, para o lado do meu pai, porque depois que ficaram amigos, ele foi vendo que meu para era... Meu pai foi conhecendo ele, ele conhecendo meu pai. Até o meu pai arrumou um serviço para ele na Petrobrás, através de um amigo. E ele viu que a gente estava numa situação muito feia. Foi através da nossa família que ele melhorou, e aí mudou de partido. A mãe não aceitou. Aí começou a guerra com a mãe. A mãe dele com ele, também, e nós tudo. Ficou de mal de todo mundo. A mãe era geniosa também. Aí... MP - Foi para isso que veio para São Paulo, por causa disso? Julia - Queriam matar ele. Porque ele trabalhou para um prefeito pobre, do PT. Agora, lá não sei, nem sei... Sei que... Eu acho que era... No tempo, eu não sei. Agora é PT, se fosse, sabe? Ele começou a trabalhar para esse prefeito pobre e o prefeito ganhou. E todo mundo disse que ganhou no lugar porque foi onde ele trabalhou. E os outros ricão, acostumados a estar tudo numa boa, não se conformaram de ver um partido pobre ganhando e saber que foi ninguém que fez aquele homem ganhar, né? Aí começaram a por uma tocaia nele, em Propriá, gente de Alagoas, daquela banda, pistoleiro fino que tem ali. E quiseram pegar ele no banco. Aí ele escapou, trocou de roupa lá na oficina e foi para Maceió, onde ele ia trabalhar, que ali ele já estava com um deputado do... Trabalhava também, né? Ele foi para a fazenda desse homem. Eu acho que vocês já ouviram falar isso. Também não pode passar aqui. Francisco Melo de Novaes, aquele que mataram um... Que mataram um rapaz lá da cidade de Cedro. Como é aquele.... Promotor que saiu no... Cidade, não. Naquele Linha Direta. Não sei se vocês viram. Saiu na Linha Direta um rapaz de Cedro de São João, que foi matado, e esse Francisco Melo Novaes estava envolvido. E era o nosso amigão, mas no tempo, a gente não sabia dessas coisas, né? Sei que ele se defendeu indo para lá e depois... MP - A senhora foi junto para Maceió? Julia - Que nada E para onde ele ia, eu ia, era? Ele foi para lá, ficou na fazenda. De lá mesmo, comprou a passagem, encontramos na cidade. Eu fui lá para me encontrar com ele, para ele dizer: "Tchau, e vou embora." Não viu nem as crianças, viu ninguém. Quem que ficar, que ficou e ele veio para cá, para não morrer. Daí é que ficou escrevendo, né? Mas quando ele veio, ganhava pouco. Não dava nem para mandar dinheiro. Aí eu fui vendendo as minhas coisas que eu tinha lá. A máquina de costura, os móveis, fui vendendo porque vinha embora e vim para cá. Ele veio no dia 25 de janeiro e eu cheguei aqui no dia 4 de julho do mesmo ano. MP - Como é que foi essa viagem de vinda, a senhora lembra? Julia - Piorou. Foi um irmão meu me buscar. Eu vim de lá para cá pensando que aqui... Falavam em frio, mas eu achava que lá tinha frio. Chegamos na rodoviária. Ah, minha irmã, que tristeza Tudo... Parecia que era gente de imigração, sabe? Na rodoviária, esperando aparecer um carro. Aí o meu irmão arrumou um jipe e foi me levar lá no Cajamar, onde eu morei, levar de jipe para lá, sabe? E as meninas todas com frio e começaram... O frio da dor de estômago, né? E vomitaram na rodoviária. Ai, foi uma tristeza a viagem de lá para cá. Oh, meu Deus do Céu. MP - E foi morar aonde, dona Julia? Julia - Eu fui morar no quilômetro 29 da Via Anhanguera. Um lugarzinho chamado Paraíso, que tem para lá. MP - Numa casinha, alugou uma casinha lá? Julia - Vendemos uma casa de oito cômodos lá no norte. Que aí a gente já tinha casa, né? Quando ele foi trabalhar na Petrobrás, compramos a casa. Vendemos e deu para comprar aqui um barraco e um terreno. Um barraquinho, assim, numa descida que se caiu, ia bater lá embaixo. Aí, eu morei nesse barraco. Vida em São Paulo MP - E a senhora arrumou trabalho aqui? Julia - Dois anos, dois anos e meio eu morei lá. Não arrumei trabalho, não. Porque eu cheguei aqui, já ganhei o Julio, né? Fiquei grávida. Não ia trabalhar. Eu carpia o terreno e plantava. Tinha de tudo nesse terreno. Tirava o frio no cabo da enxada, trabalhando na enxada. Ele ia trabalhar de noite, chegava a madrugada. De manhã, ele chegava. Quando ele chegava, eu já tinha carpido um monte. MP - Plantava o quê? Julia - Eu plantava feijão, milho, plantei amendoim, milho de pipoca, abóbora, essas coisas de lá eu plantava aí, mandioca. E dava tudo. MP - E as crianças ficavam com a senhora? Julia - Ficou. Ficaram lá comigo. MP - Aí, depois, qual foi o endereço seguinte da senhora? Saiu de lá para onde? Julia - Eu tinha um irmão que já morava aqui. O primeiro do meu pai, né? Ele era viúvo, né? Então, esse irmão morava aqui... Ele morou num lugar que eu nem sei, nesse São Paulo inteiro, e ele veio morar no Conjunto Paes de Barros. Mas o Conjunto Paes de Barros era ilegal, e o povo invadia as casas naquele tempo. Ele invadiu a casa aí, e foi lá dizendo que era dele. E passava para nós. Aí nós compramos tão baratinho, que eu digo: "Ah, desse jeito, vamos sair daqui. Vamos..." Para mim era a cidade. Aí, o meu marido já trabalhava, já estava ganhando dinheiro nesse tempo. Pagou para ele e nós viemos aqui para casa, que eu moro. Depois começaram a vender, legalizar o conjunto. Tinha um doutor Jorge, que era do Sul Brasileiro, vendia lá. Era corretor. Sei que era do Sul Brasileiro que vendia essas casas. E eu lá na fila toda semana para pedir preferencial. Depois que eu soube que era invadida, a gente quase morre. Aí vamos para a fila, para comprar a casa. Meu marido estava trabalhando, já estava direitinho, vamos comprar essa casa. Aí, um dia, a gente descascando feijão na porta, feijão verde, que tinha trazido de lá do outro terreno, Cajamar. Aí chegou o oficial de justiça para nós assinar o despejo. Quase me dá uma coisa que eu morro. O meu costume, o costume do meu pai, foi nunca ninguém ter nada dos outros, mas que tenha o que é seu. Trabalhar para ter. O meu sonho era uma casa minha. E apareceu aquela casa. E depois, eu pedi tanta preferência e o rapaz não me deu. Esse Jorge, né? Não me deu a preferência, aí veio, vieram tirar. Eu assinei, mas: "Não vai ficar assim, não." Eu corri tanto, eu fui no advogado, o Jussara, que era... Essas coisas sempre tem alguém, alguém, em todo lugar tem uma pessoa que faz uma coisa, né? Aí eu fui no advogado aqui em Guarulhos, era doutor Arruda, doutor Arruda. A doutora, era doutora Jussara, foi de lá do Sul Brasileiro. O doutor Arruda disse: "Não, dona Julia, não tem como, porque ali vai ficar um guarda para quando for para vender, aí a gente chama vocês." Aí, eu digo: "Ih" Era conversa para boi dormir, eu sabia que não. Mas o meu marido tinha dado uma carta, entregue para esse Jorge, uma carta pedindo preferência da casa, quando fosse vender a casa fosse ser nossa, né? Ele foi quem não deu. Aí esse doutor Arruda disse: "Não, vocês saem, a gente põe um guarda lá, depois chama vocês para comprar." Olha, que conversa? Eu disse: "Não, se for para sair nesse jeito, eu ponho tudo que tem na rua, os filhos e tudo, e mando um caminhão passar por cima." Me lembro como hoje. Eu digo: "Eu prefiro morrer, do que o povo ver um despejo meu sair." Aí, ele disse: "Olha, dona Julia, não fala para ninguém." Era eu chorando, meu marido calado em tempo de morrer, e eu chorando e conversando. Aí ele disse: "Não fala para ninguém, a senhora..." Pegou um cartãozinho e só marcou, deu o endereço e falou: "Doutora Jussara." Não disse nem atenda, nem peça, nada, que eu me virasse Eu fui para o Sul Brasileiro lá na cidade, na Consolação. Quando cheguei lá, procurei doutora Jussara, nós contamos a nossa história toda para a doutora Jussara, ela disse: "Vocês têm a carta?" Disse: "Tem." Aí meu marido disse: "Eu tenho a xerox e tem a original na mão do Jorge, corretor." Aí ela ligou para o Jorge, os dois brigaram na hora. Foi a última casa vendida, foi a minha, porque eu fui lá brigar e compramos a casa. E o Jorge, que já tinha recebido um dinheirinho, foi lá em casa, pediu desculpa, devolveu o dinheiro. E nós ficamos pagando bem parcelado sem precisar aquilo tudo que o Jorge pedia. Porque ele, como corretor, pedia um "x" maior. O meu marido até tinha reservado e lá disse: "Não precisa, vai pagar..." Era 100 reais, 100 também, não sei se era cruzeiro, por mês. Aí ficamos pagando e agora ela está quitada, graças a Deus. Nunca saímos dela. MP - Como é que é essa casa, dona Julia? Julia - Já teve tanta reforma. No tempo era uma casinha mais feinha, os vidros tudo quebrados. Quando nós pegamos, o forro caindo, tudo. Agora, fizemos uma reforminha, depois a gente acha que não está boa, faz de novo. Mas não é uma casa boa. É uma casa bem simples, não tem nada bom dentro. Ela é de laje, tem uma cobertura em cima, que tenho planta, tenho... Tartaruga, não pode falar. (risos) Cachorro... Tenho essas coisas lá. É boa, boazinha. Para mim está boa. Para quem morou num barraco e não tem esperança, é boa porque agora eu tenho... Eu tenho paz, tenho sossego, estou tranqüila nela, pronto. MP - E que bairro que é esse, dona Julia? Julia - É no Conjunto Paes de Barros, em Cumbica. Encontro com a Igreja MP - Paes de Barros, em Cumbica. E como é que era esse bairro quando a senhora chegou lá? Julia - Quando eu cheguei lá era tudo de terra, as águas que choviam e as das casas também, passavam na rua fazendo um monte de valetas e todo mundo sujando sapato em terra, em tudo. E tinha muito menos casas naquele tempo. Agora está bonito. Eu acho... Eu gosto dali agora, sabe? MP - E a senhora se mudou para aí e começou algum tipo de trabalho novo? Julia - Quando eu me mudei para essa casa, a gente ainda tinha umas encrenquinhas, que encrenca não acaba assim: cortou, né? Ainda tinha umas encrenquinhas. "Oh, meu Deus, onde eu vou procurar refúgio para viver bem?" E todo dia eu dizia que aqui não tinha igreja. O meu medo era ir para um lugar que não tinha igreja. Aí eu vi no outro lado, rezando... Eu saía na rua andando assim, sabe, de noite. E não fazia medo como faz agora. Aí eu via no outro lado cantando "A morrer crucificado", era um canto da Via Sacra. Eu disse: "Ali tem uma igreja" Aí subi, fui, cortei o caminho e fui até lá. Era uma igreja brasileira. Eu não sabia se tinha distinção de igreja brasileira ou da nossa Católica Apostólica Romana, né? Mas eu fiquei lá, me senti bem, cantei junto com o povo, fui embora. E comecei a ir. Depois precisei batizar o menino que tinha nascido, e fui procurar igreja, porque a da Santa Terezinha eu não sabia onde era, que eu não saía de casa, e estava fazendo ainda, né? Aí, me ensinaram: "Não, aquela igreja brasileira não é Católica Apostólica da sua, não" Eu, conversando com as pessoas. "A nossa é a Santa Terezinha". Aí eu mudei para a Santa Terezinha e comecei a participar das missas, de batizados, sem compromisso, muito, né? MP - Já existia a igreja lá? Julia - É, aí já existia, quando eu comecei a ir para lá, já existia. Eu comecei a sempre procurar ajudar, sabe? Quando eu via alguém com dificuldade, eu ia fazer alguma coisinha. Aí o povo foi vendo que tinha alguém que gostava de fazer alguma coisa, né? E minha filha tinha feito uma ficha para fazer encontro de casais. Porque o meu marido aqui ainda bebia, era essas briguinhas, era cachaça, né? Aí nós fizemos encontro de casais. Depois do encontro de casais, que foi em 1985, aí nós pegamos firme. Tinha uma coordenadora da Pastoral da Criança, numa reunião ela: "Minha filha venha aqui, escreva aqui para mim que eu não vejo." Tudo é truque, sabe? Aí eu fui e escrevi a reunião para ela. Já fiz uma atazinha, né, para ela. Depois, ela perguntou: "Minha filha, você... Me ajuda a levar essa sacola lá embaixo?" Uma salinha, que ela fazia umas coisas. E foi me convidando, e eu ficando e eu não sei como foi, assim, que eu me envolvi. Trabalhava nos encontros, mas não era da Pastoral da Criança, né? Quando faz encontro, convida. E a gente continuou trabalhando. E agora... MP - E a senhora já tinha ouvido falar da Pastoral, dona Julia? Julia - Não. MP - Não? Julia - A Pastoral da Criança, nem falar, não tinha... Eu conheci lá, assim. Eu trabalhando nos encontros, e ela precisando e convidando, assim, para fazer as coisinhas, né? Comunidade Santa Terezinha MP - E a comunidade lá de Santa Terezinha é um bairro próximo de onde a senhora morava, onde a senhora mora? Julia - Uns 15 minutos, andando rápido. MP - Como era a comunidade naquela época, em 1985? Julia - Era quase como é agora. Já era feita, assim, a igreja sem aprimorar, sabe como? A igreja feita, o salão não tinha o piso e não tinha aquele prédio que tem hoje, que tem o Centro de Pastoral, com muitas salas, né? Era só igreja. E com os trabalhos e o povo, muita gente engajada nas Pastorais, puseram piso, acertaram, hoje está ficando bonitinha. MP - E a vizinhança, como é que era lá, em 1985? Julia - Na minha casa? MP - Ali, da igreja? Julia - Da igreja? MP - É, a comunidade mesmo da Santa Terezinha, o bairro? Julia - Tinha muito mato em volta, sabe? Só lembro disso, não lembro do resto, assim. Mas eu sei que tinha muito mato em volta, lixão, muito lixo, e hoje não tem muito essas coisas, não. Está tudo calçadinho, passado asfalto, que não era, era barro também. MP - A Pastoral lá atende aos moradores de que bairros? Julia - Mais é da Cumbica, lá do que pertence a paróquia.... É assim: a paróquia abrange aquelas comunidades todas por ali perto, agora onde tem outra paróquia, a gente já não pode ir. No tempo era até o Jardim Presidente Dutra, que era o padre Lino que ia lá, e hoje não é mais, já tem outro padre. O padre Savero é lá do Presidente Dutra para lá, e para cá ficou, ficou melhor para resolver, porque diminuiu. Mas tem 13 comunidades, e nove tem Pastoral da Criança. MP - A senhora podia dar alguns exemplos das comunidades? MP - Ou dos bairros onde estão essas igrejas? MP - É a região ali de perto de Cumbica, é isso? Julia - É, sabe, a paróquia é da Dutra para a base, assim. Para o lado da base aérea. Ali pertence à paróquia. E do Santa Maria Gorete, de lá do bairro Santa Maria Gorete, é perto da Fábrica Ágata, por ali, para cá também. Agora, para lá, saindo, já não é. E ali, onde tem a comunidade Nossa Senhora Rainha das Nações, que tem Pastoral da Criança lá. Tem São Francisco Xavier, vem andando pra cá. São Francisco Xavier também tem Pastoral da Criança. Santa Clara. Tem Nossa Senhora Aparecida, já é mais perto do conjunto, perto do Conjunto Paes de Barros. São Camilo de Léllis é em cima, que dá para avistar o aeroporto. São Paulo Apóstolo é perto do Posto Terra Boa, ali perto da Dutra é São Paulo Apóstolo. É bem grande, tem muita criança, é onde abrange a favela maior ali para baixo. E tem Nossa Senhora das Graças, que é continuação da favela, porque faz assim: vem um, desce aqui, sobe cá e tem aqueles, aquelas entradas, que é favela. E tem São Bernardo, que já fica para cá do Bradesco, que tem Pastoral da Criança também. E uma vez por mês, eu faço reunião com as líderes de cada comunidade, elas passam os dados para mim, como é que as crianças estão, se tem desnutrida, se não tem, e a gente procura resolver. Quando posso, sempre visito no dia das pesagens, né? E a gente fornece para essas crianças, que é da pastoral, cadastrada, xarope quando as mães não podem... Que as mães, a maioria não pode. É xarope caseiro, Nutri Mistura, essas coisas... Aí vem tudo que se dá, que precisa lá, né, a gente vai ajudando. MP - Quando a senhora começou, dona Julia, como era a situação de vida dos moradores lá? Julia - Eu nem sei se era pior do que agora, não. Naquele tempo, eu não sei direito, tinha muita necessidade, mas não tinha o que se dar. Agora, tem a necessidade, mas da minha parte, graças a Deus, tem mais o que se oferecer. Porque chega as pessoas pedindo coisas, pedindo alimento, o primeiro que eu faço é conduzir a sopa. Peço que vá até o sopão, come, né, e depois a gente vê o que pode fazer. Mas já tem o socorro, antes não tinha. Antes, a gente ia para o CECAP, na feira do CECAP quando era em aberto ali, catar folha, talos, essas coisas, para ajudar a fazer uma sopinha nas casas. Tinha dona Alice, que foi a fundadora da Pastoral da Criança lá, essa que me trouxe como uma ciganinha... Essa sofreu, essa sofreu viu? Porque... MP - Tinha menos recurso? Julia - Menos recurso, era. Ela ia fazer... Ia no sacolão, pedia as coisas, saía pedindo, parecendo que era para elas, sem ninguém conhecer, sabe? E depois fazia comidinha e ia levar ao doente, à criança, na casa. Ela... Ali tem um carisma, assim, que não sei, viu? E dona Alice me deixou lá e eu não queria ser coordenadora. Eu fui e conversei com o padre Lino: "Padre Lino, dona Alice disse que está indo embora. Ela quer que eu fique como coordenadora, mas eu não sei ser coordenadora. Eu sei trabalhar. Igual a dona Alice jamais, ninguém." Aí ele foi e disse: "Mas nenhuma pessoa é igual a outra. Vai ser uma coordenadora diferente da outra." Dona Alice, se for capaz, com a mão, com a conversa, ela cura. Eu nunca vi uma coisa daquela. Pastoral da Criança MP - Como a senhora foi se envolvendo, dona Julia? Se envolvendo em que tipo de atividade lá na Pastoral? Julia - Quando construiu o Centro de Pastoral... Para entrar na Pastoral da Criança, como que eu me envolvi? MP - É. A senhora começou a freqüentar a paróquia... Julia - Foi, a freqüentar... MP - E como foi? Julia - Foi. Pedi para o padre Lino para ser catequista de noivos. Aí fui dar catequese na minha casa. Aí casou muita gente que eu dei catequese, sabe? (risos) E trabalhando no Encontro de Casais, pede que a pessoa se engaje numa Pastoral. Na segunda etapa, pede que engaje numa Pastoral. E nós fomos coordenadores na primeira, na segunda e na terceira aqui em Guarulhos. Fomos coordenadores do encontro. Coordenadores dirigentes que falam, né? MP - Do Encontro de Casais? Julia - Sim. E aí não tinha como eu ser dirigente de um encontro, nem na primeira etapa, sem ter uma Pastoral? Eu comecei procurando e essa dona Alice que estava... Ela fica, assim, catando onde tem pessoa para chamar, porque a Pastoral, que pouca gente quer, que é de trabalho, é de ir na favela, é Pastoral de pobre mesmo, não é todo mundo que se joga lá não, sabe? Então, ela andava procurando. Foi me dando as coisinhas para fazer e eu fui entrando, assim, de cabeça. Não sei, e entrei. Quando fez o Centro de Pastoral, ela arrumou um cantinho para ficar e foi me pedindo para ir ajudando e eu fui ficando mais ela, aprendendo. Quando eu aprendi, ela diz: "Agora é a minha vez." Caiu fora, foi embora e me deixou. (risos) Mas diz ela que reza todo dia, reza para o Espírito Santo me segurar. MP - E na vida da senhora teve um significado importante começar esse trabalho? Julia - Teve. Daí, se sair, acho que morre. Ela: "Julia, não saia não, porque eu saí, quase morro." (risos) Aí a gente, como andava procurando recurso para dar comida para as crianças, que não se pode ensinar a mãe cuidar, se a mãe não tem. Como a mãe vai cuidar, fazer a sopinha para a criança, se a mãe não sabe de onde tirar nada? Aí surgiu um assunto aqui no Aché mesmo, que trabalhava um rapaz chamado Dinho. E eles foram fazer aquela campanha do Betinho. Não teve uma campanha de um rapaz que morreu? Foram oferecer ao prefeito uma sopa... Na campanha se prontificaram a fazer uma sopa e o prefeito falou que não tinha tempo para mexer com isso, que fosse oferecer nas favelas. Aí o Dinho, sabendo disso, falou: "Olha, na Santa Terezinha tem umas mulheres que dão duro para arrumar coisa, talo nas feiras, pedindo para as crianças de lá. Por que não vai conversar?" Aí o povo daqui ligou para lá, o padre Lino deu o recado para a gente e nós fizemos reunião. (tosse) MP - O Dinho, ele era funcionário aqui do Aché? É Dido? Nem precisou da cola, está vendo, dona Julia? (risos) Julia - Você fez o mesmo que dona Alice, uma cigana, para perguntar, para... (risos) MP - Vai assim, né, brincando... Olha, cigana eu gostei, né? (risos) Dona Julia, eu queria que a senhora contasse um pouquinho, a senhora estava falando do sopão? Julia - É. Parceria com o Aché MP - Conta como começou essa história? Julia - Do Dinho, né? MP - É. Julia - Aí ele falou aqui para as pessoas que ele trabalhava, que a gente tinha dificuldade de ajudar e tinha a Pastoral da Criança lá, que trabalhava sem recurso nenhum, assim, porque o povo procurava com fome também. Na procura, a gente via a criança desnutrida. Magrinha, tudo fraquinha. Aí eles foram lá e fizeram uma reunião com a gente. Foi outra vez, fez outra reunião e procurava saber como seria melhor. A gente conversando, se era bom levar a sopa para a gente mandar para casa ou se era para comer lá na paróquia. Aí nós achamos melhor comer lá, porque levando para casa, ninguém sabia se quem ia comer era a criança ou o pai. Era bom que todos comessem, mas vez que era para uma coisa ou outra, aí comer na paróquia. E daí, ficou. Já tinha muita criança, um aviso basta, sabe, para chegar para comer. Avisamos para as líderes. As líderes avisaram para as crianças, para as mães e nós começamos a armar as mesas, comprar pratinhos. Compramos os pratos, colher e depois até aqui mandou bastante coisa, né? Eu acho que mandou toalha para mesa, ajudou muito no começo, assim. MP - Que época era mais ou menos, dona Julia? Julia - Tem oito anos. MP - Oito anos já. Julia - É, em 1994, né? MP - Isso. Julia - Seis mais dois, oito, né? É 1994. MP - Mas aí os funcionários do Aché, o Aché participava de que forma? Julia - Só fez essa reunião e levando sopa. Já começou levar sopa mesmo. Projeto Sopão MP - Levar sopa feita? Julia - Feita. Sim. Levava feita e a gente foi dando para as crianças, as crianças comendo. Começou para 100 crianças e levava um tambor bem grande, todo mundo comia. Às vezes, eu tinha uma vontade de comer uma sopa cheirosa, mas não dá. Aí eu ia embora sem comer, né? E as crianças eram a prioridade das crianças. Aí, depois, as mães iam levar as crianças, ficavam de parte sem comer. Aí, lá vai elas. Uma pedia, outra pedia. Eu conversei com as meninas daqui, eu não sei mais nem quem era no tempo. Aí elas aumentaram a sopa, né? As mães começaram a comer. Eu sei que foi aumentando as coisas, elas foram aumentando também a sopa, aumentando o povo e aumentando a sopa, que hoje tem 200 crianças feito ficha. São 210 porque sempre uma não vai, outra vai, está na escola, tem delas que está na creche, que não pode sair. O irmão vem, come e quando sobra a gente distribui para todo mundo levar. Já vai tudo de vasilhinha. Leva para o que ficou em casa, estava na creche, que não pode vir. MP - E as mães também comem, atualmente? Julia - As mães comem. E come mãe, e come quem não é mãe. Chega velho da rua, menino de rua. Entrou lá: "Tem sopa, tem?" A prioridade é comer, vamos acabar ela aqui, come. Agora se sobrar, levam nas vasilhas para casa. Tem gente que come ali e leva para a janta direto. MP - Mas todo dia, dona Julia? Julia - De segunda a sexta-feira. MP - Na hora do almoço? Julia - Na hora do almoço. Não, não é hora do almoço. Eu acho que é do... Depois do almoço daqui, que vai. Então, é quatro horas, já está lá. MP - E é sopa do quê, dona Julia? Julia - Eu não sei dizer. (risos) MP - Mas é cheirosa? (risos) Julia - Cheirosa, põe cheirosa nisso. Sei que ela é uma sopa muito rica, boa. Vai carne, delas que vai frango, vai brócolis, grão de bico, coisa que ninguém sabe o que é lá, come sem saber. Muitas vezes já comemos sem saber o que é. Eu sei que é rica e o povo que não é da sopa se sai, e passa no salão: "Ai, dona Julia, que sopa cheirosa é essa Dá para experimentar um pouquinho?" Põe no pratinho, come. "Nossa" E fica todo mundo assim. Tem gente que sofreu derrame, velhinhas que sofre, sofreu derrame, que o filho vai lá buscar sopa, que a velhinha só come se for a sopa da igreja. E vai buscar e não tem sopa que dê. MP - Leva em panela para lá, esquenta lá, como é? Julia - Vai uns panelões daqui nesse tamanho quente, pegando fogo, menina Não precisa esquentar lá nada. Vai quentinho no jeito de comer. E chega lá bem quente, sabe? E ainda eles mandam coisas extras, que o plano foi sopa e depois termina em verdura, em fruta, em tudo que tiver manda para lá. O que tiver de coisas de comida. Tem tempos que vai rabada, já foi... Um tempo foi tanta rabada, eu digo: "Êita, coitado dos bois..." E fui embora. (risos) E frango, panela, assim, de frango, sabe? Os meninos comem tudo o que sobra. Eles já levam a vasilha da sopa e o saquinho de pegar a mistura, o que tiver, e a gente vai dividindo. Tem as meninas que ficam. Eles fazem a fila, eles vão passando e a gente vai pondo na sua vasilha, cada... Divide tudinho. Impacto na Comunidade MP - Qual a importância que a senhora acha que o sopão tem para a comunidade? Julia - A sorte do povo é essa sopa, porque eles dizem. É. Eles falam assim: "Ai, dona Julia, põe um pouquinho para mim levar porque eu como dessa sopa em casa." Não é uma importância grande? Matar a fome? A coisa mais triste é sentir fome. Para quem não sabe, fica sabendo. É ruim dormir com fome. A maior parte do povo diz: "A minha sorte é essa sopa aí. Dona Julia, se a senhora acabar com essa sopa, nós se acaba aqui também." Eu digo: "Não, arruma jeito." (risos) MP - E a senhora participa lá da sopa? Julia - Eu ando, vou, sempre fico no meio, olhando, ajeitando, gritando também, sabe? Doidinha, eu fico. MP - Quantas pessoas trabalham com a senhora, dona Julia, mais ou menos? Julia - Trabalham umas 12 lá na hora da sopa, umas 12. MP - E são crianças atendidas pela Pastoral? Julia - Tem crianças atendidas pela Pastoral, tem que já saiu da Pastoral e agora tem que nunca foi da Pastoral. Tem de todo jeito, agora. Sabe, chega uma mãe com as crianças: "Dona Julia, dá para a senhora dar uma sopa para meu filho?" Eu vou dizer que não? Não sei. Aí, vou e mando sentar e comer. Aí no outro dia a mulher já está lá também. Aí começa aquela carreira, sabe, acompanhando? MP - Quantas pessoas por dia mais ou menos será, dona Julia? Julia - Tem 100. Para todo dia tem mais de 100. MP - Mais de 100? Julia - Só se chove muito, aí fracassa um pouco. Sabe o que faço? Eu ligo para as líderes, tem algumas líderes, um dia... Uma vez eu ligo para um grupo, outra vez ligo para o outro, ela arruma um carro, vai lá buscar, leva e divide lá para as pessoas. MP - Mas as líderes fazem o quê? Julia - Líderes são pessoas que foram capacitadas pelas, pela direção diocesana da Pastoral da Criança. Fizeram 46 horas de curso, como eu fiz também. Elas fazem assim: visitam as famílias, orientam as mães e procura saber da mãe se a criança esteve doente, se foi no médico, se a vacina está em dia, se cuida de vacina, sabe? Todos lá na Cumbica, todos têm vacina em dia. Não tem dia em que não vai na Pastoral, mas se for... E a gestante, se toma injeção, para... Aquela injeção que é difícil dos médicos lembrar de dar, contra o tétano? As líderes orientam elas para exigir essa injeção no tempo e tem os livros. Tem o guia da líder que é mesmo que o evangelho para o cristão. É a mesma coisa. É o guia da líder. Explica tudo, tudo, direitinho. Elas orientam, incentivam as mães à amamentar, ensinam quando elas não sabem, ensinam como amamentar. Umas dizem: "Ah, o meu peito não tem bico." "Não, vamos fazer o bico do peito." (risos) E a criança mesmo é quem faz. E assim vai. Aí elas fazem essas visitas no primeiro sábado de todo mês. Eu faço a reunião com elas e cada traz o que aconteceu na sua comunidade, sabe? Eu passo para elas os recados da diocese e elas vão aplicar lá na comunidade. Sempre a líder daquela comunidade que deve fazer esse trabalho, porque conhece a família. É uma líder que seja amiga da família. Quando adoece, elas acompanham: "Vai lá na paróquia da dona Julia." Tem criança doente, a mãe não pode levar no médico, não tem dinheiro. Eu dou dinheiro da condução, elas vão. A gente ajuda muito, assim, em condução. Voluntariado do Aché MP - Sei. E como o Aché, surgiu algum outro projeto, além do sopão, dona Julia? Julia - Sim, surgiu. Teve um projetinho que foi muito bom. Foi de escovação. Ficou um tempo escovação, mas os meninos são tão desmioladinhos e acostumados a só comer, e as mães que não orientam, porque são filhos de mães sem orientação também, né? Que eles iam hoje, uma turma. Elas registravam aquela turma, marcava para outro dia. Da outra vez que ia, não era mais aquela turma. Já eram outras que ficavam sabendo e elas não conseguiram formar um grupo só para começar e terminar, acredita? Porque é difícil, viu? Muito difícil. MP - Esse trabalho da escovação o que era? São voluntários aqui do Aché que iam lá? Julia - É. E é uma médica daqui e ia mais gente como voluntários daqui. Eu não sei como era que eles saíam daqui para lá, se era dentro do horário de trabalho ou como voluntários, sabe? Sei que eles iam, levava fio dental, escova, aquelas pastilhazinhas para ver onde tem... MP - Tártaro? Julia - É. E papel com desenho para os meninos desenhar, enquanto chega a turma. Eles desenhavam, botavam o nome deles e era, assim, bem gostoso, né? O desenho continuou ainda um bom tempo, mas a escovação parou, por falta desse grupo certinho. Enquanto isso, os outros ficavam desenhando, os que não entraram nesse grupo. E depois, teve lá... Em uma comunidade, na Nossa Senhora Aparecida, na Avenida Plínio F. Gonçalves, houve um trabalho de cidadania, né? Eles pediram um lugarzinho para fazer e eu conversei com o padre Lino, ele escolheu aquele, aquele pedacinho de favela, assim, que é melhor de se trabalhar. A gente já conhecia o povo, o pessoal, e eles iam fazer. Mas tiraram, de um terreno que tem lá, tiraram tanto lixo, tanto lixo. Caminhão ia tirar o lixo, mas quando chegava na outra semana já estava. Isso não era o povo da favela só que jogava. O do conjunto também descia e jogava, sabe? É numa área que tem lá, verde, área da prefeitura. MP - E que trabalho eles foram fazer lá? Julia - Cidadania, para limpar os córregos que era todo cheio... Tinha até sofá velho dentro. Juntava, convidava os moradores e eles também, os voluntários daqui, trabalhavam mais do que os moradores. Entravam com tudo que tinham direito tirando aquilo tudo, limpando, ajeitando. Mas quando chegava lá, tudo de novo, sabe? E haja caminhão, e caçamba, e tudo, né? (risos) É que é muito difícil ali, assim, para... MP - Não durou muito tempo esse projeto? Julia - Não. Não ficou muito tempo e eles ensinaram também fazer um teatrinho. Teve um tempo que iam fazer lá um teatrinho para as crianças para falar de escovar dente, de limpar cabeça, da sarna, disso tudo. Mas tudo animação. Animando a turma e foi muito bom naquele tempo, também. Botava música e os meninos se soltava, a rua enchia de criança para fazer. Depois foi da dengue. Nessa dengue agora foi o trabalho mais bonitinho que todo mundo achou, porque os outros fazem um trabalho da dengue, mas não levaram a dengue. Aqui levaram o besouro, o mosquito lá. Foi os dois mosquitos vestido de dengue que ninguém lá nunca tinha feito, né? MP - Foi um teatrinho? Julia - Não. Passando nas ruas. Eu andei com eles, assim, num pedaço da favela todo. Aí, quando eles entram lá, eu entro também, que eu conheço o povo, aí o dengue chegava na porta e: "Ô de casa, aqui tem água limpa, descoberta." (palmas) Sabe, tudo molequinho, no jeito mesmo que o besouro faz, sem falar. E o povo achava a maior graça. Mas recebiam bem, tudo foi muito bom. Projeto Educação para o Trabalho MP - Está certo. Depois teve um projeto também com os adolescentes também, dona Julia, de educação para o trabalho? Julia - Na paróquia, sim. Tem... Eu não me lembro quando começou. Mas vai para três anos, acho. MP - Como é esse projeto? Julia - Vai para três anos. Esse projeto de educação para o trabalho, elas também ligaram para mim, que estavam namorando o projeto, e para mim já falar com o padre Lino, se como poderia ser, sabe aquele "quem sabe se dá certo, né?" Ela disse: "É um namoro, vamos ver." Aí conversei com o padre Lino, padre Lino disse: "É o meu sonho de muitos anos, que nunca alcancei, era um curso desse aqui." Aí eu falei para elas e não deu outra. Fui lá, fizemos reunião e elas pediram para a gente convidar também outras pessoas. Distribuiu os panfletos que, de repente, no primeiro ano foi... Foram 400 pessoas para escolher 54. O resto ficou doido. (risos) Vai muita gente. Esse ano, que foi de última hora, foi muito rápido porque teve um atraso. Teve a morte do nosso padre Lino, a chegada de outro padre. Aí foi atrasado, mas ainda foram 150 pessoas para tirar 30 para a turma da manhã e 30 para o terceiro setor, que falam assim, para a tarde. MP - Que tipo de curso que é, dona Julia? Julia - É uma educação para o trabalho. Eu sei que educa, que o menino chega lá todo desengonçado, penteia e vão trabalhando, trabalhando, quando sai, já sai bonitinho, tem cabeleireiro, não sei o que, tem essas coisas. É que eu não participo das aulas e eu nem entendo se chegar lá, né? (risos) Mas eles saem, já tem muita gente trabalhando depois disso. MP - É de preparar os meninos para... Julia - Preparar para o trabalho. Eles saem, fazem experiência, vão lá na imobiliária como... Foi lá para o meu marido fazer, como vender, como compra terreno. O meu marido é corretor e eles foram lá, né? Gostaram, foram bem recebido lá e um sai para... Vão para restaurante, vão para outros... Se viram por aí. Aí em cada setor de trabalho, eles vão. Em fábricas... E tem, para esse curso, o Aché também garante o lanche da manhã e da tarde. Manda leite, manda frios, pão, bolacha, groselha, tudo que se precisa. É um lanche com cardápio, né? E vai todo dia a fruta e os frios todo dia, todo dia, fruta e frios para o outro dia. Eu ponho na geladeira, outro dia vai aquele. MP - São duas turmas? Julia - É. E, graças a Deus, eu gosto muito porque quando sobra, frios não se dá... Ninguém faz doação de frios para nada. E quando sobra mesmo, frios, pão, groselha, leite, bolacha, aí chega um: "Dona Julia, eu estou com..." Que eu não conheço, mas dá o nome. Todo mundo me conhece pelo nome, só que eu não conheço as pessoas direito, esses estranhos mais que vão. "Dona Julia, me mandaram, eu vim aqui porque... É a senhora, dona Julia?" Eu: "Sou." "Porque me mandaram vim aqui que eu estou sem trabalhar. O meu marido foi embora e me deixou cheia de filho." Olha, cada dia é muita história. Antes de eu vim para aqui, eu atendi três, que eu não sabia quem era também. Estranhos que... Dali mesmo que vai piorando a situação e vão correndo para lá. Aí, eu pego, dou groselha, eu dou fruta e frutas, né? É uma beleza. Tem gente: "Ai, nunca mais comi uma pêra." Ai, não faz dó? Aí, eu faço um punhadinho de coisa para cada um que chega e dou leite. Leite eu todo dia, quando chega gente pedindo leite, tem leite para dar. É daqui. É leite bom, viu? Não é aquele leitinho, não, do Governo. E, graças a Deus, e esse padre, agora, apoiou também. Ele disse que não tem, não dá nenhum prejuízo. Não tem nenhum prejuízo e gosta muito porque sobra e a gente tem o que dar para aqueles que chegam depois, pedindo, assim. MP - E para os meninos que participam do curso, assim, a senhora acha que esse curso tem importância na vida deles? Julia - Tem. Já tem... Tanto eles melhoram, como muitos já estão trabalhando. Como agora nesse terceiro setor, teve uma menina que foi convidada e saiu. Aí eu perguntei: "Você nunca mais veio por quê?" Ela disse: "Olha, dona Julia, arrumei serviço, graças a Deus." Aí saiu do terceiro setor e foi trabalhar porque todos querem trabalhar. Não tem mesmo é serviço. MP - E, às vezes, não tem essa orientação, esse preparo. Julia - Não tem. É. Aí quando vai ter o curso, aí eu ligo, ligo para o povo todo que eu sei da Pastoral. Primeiro, eu ligo para o povo da Pastoral, sabe? Se tem quem entra no quadro que pede, né? Dezesseis anos a dezoito, que estuda da sétima à oitava série, que esteja estudando. Tem preferência porque tem seleção. Aí eu já ligo para as líderes e vai: "Você sabe de alguém por aí?" Vai nas casas e elas aceleram. MP - E as mães ficam contentes também? Julia - Umas ficam contentes. Outras ficam contentes, mas não dá força porque já não tem, sabe? Tem muitas mães, assim, que não dá muita força para o filho. MP - Tem mais algum projeto com o Aché, dona Julia, ou são só esses? Avaliação da Parceria MP - Então, dona Julia, eu queria saber por que a senhora acha que deu certo essa relação da comunidade com o Aché? Julia - Bom, eu acho que deu certo, não é dizendo que porque fui eu, não, sabe? É que eu... A minha garra, o meu empenho, que eu fico lá o dia inteiro e outra pessoa não fica o dia inteiro, ninguém quer ficar lá o dia inteiro. E eu fico o dia inteiro lá. Quando se tem algum recado, alguma coisa, vai para a Julia. Aí eu espalho a notícia, sabe? E faço crescer. Não faço nada para cair. Eu só quero que ande. E se eu estou lá o dia inteiro, deu bom para a igreja e bom para aqui, né? Ficou bom para os dois. MP - E a senhora acha que dá certo essa parceria de algumas empresas com as comunidades? Julia - Oh, se dá... É só a empresa querer e as comunidades se conscientizarem do que deve fazer para o outro. A pessoa que já tem o que comer, tem marido que trabalha para dar comida, para que tanta ambição? Tem motivo de eu sair agora de onde eu estou, para ir procurar um serviço de faxineira, porque é o que eu sei fazer, se eu for fazer agora? Para que, se eu tenho o meu marido que me dá comida agora? Graças a Deus, está tudo bem. Eu não vou sair nunca porque eu sirvo muito mais na igreja, do que trabalhando para ganhar um salário. Eu acho que é isso. Agora, voltando para a minha mãe, ela toda vida ensinou a gente fazer o bem sem olhar para quem. Toda vida. Fazer o bem sem olhar para quem. Nunca fazer nada pensando em retorno, as coisas assim. E serviço de igreja, se for entrar dinheiro, para mim, não serve. Aí eu sou uma funcionária. Se eu fosse ser funcionária, eu era há muito tempo atrás. Não era agora, depois de velha. MP - Isso porque o trabalho da senhora é voluntário? Julia - Voluntário, é. Eu sou voluntária, mas com muito amor. Desde pequena que eu acho que eu já era voluntária sem saber. Quando a pessoa já ajuda uma, ajuda outro, a gente está sendo voluntário, né? E a minha neta está no mesmo caminho? (risos) MP - Está certo. Que planos a senhora tem para essa parceria com o Aché? Julia - Ai, eu nem sei. Eu sei que dar continuidade, desse não pode cair, né? Eu queria, assim, era um aprendizado para as pessoas que servem o sopão, assim, para elas... Tratar o povo bem, sabe? Uma coisa que nunca foi feito. Têm mães ali que saiu da favela para comer sopa e hoje é da equipe que trabalha. Não teve nenhuma formação. Nem eu sei dar. (risos) Sabe como é? Aí, fica assim. Elas trabalham todo mundo como abelha, né? Assim, tonta, trabalhando. O negócio é trabalhar, é fazer, mas eu não sei se nesse meio pode magoar alguém, que o povo também sente. O pobre também tem coração. Eu sempre converso com elas o que eu posso, mas não é, assim, uma preparação para atendimento. Aliás, trabalho de igreja, ninguém está preparado para atender, porque trabalho de igreja não é uma firma que já sabe quem vem, né? Não. Chega todo mundo. Chega lá ex-presidiário pedindo dinheiro para condução e a gente sabe que não é. É para outras coisas, mas a gente conversa direitinho. "Se tiver um passe, um dinheirinho..." "Tome, muito obrigada." "Nossa Senhora que abençoe dona Julia." Eu: "Amém, vai embora." Sabe, assim. MP - E hoje em dia, como é o dia-a-dia da senhora, dona Julia? Os filhos cresceram... Julia - O mais novo tem 23 anos. Eu tenho uma filha solteira, a Edene, aqui trabalha. Os outros trabalham, e eu fiquei doente da coluna, de artrose, de um monte de coisa, pressão alta e diabete. Eu vou ficar em casa sem fazer as coisas que não posso. Tem uma mulher que faz há nove anos, acho. Tem uma mulher, passou cinco anos e meio lá em casa. Ficou grávida, ganhou nenê, depois foi embora para Maceió. E eu batizei essa menina. E depois arrumei outra que é comadre, está lá, já vai fazer quatro anos também. Só vai sair se... Nem sei quando, também, não sai, não. Eu deixo a casa na mão dela. Ela faça, o que ela fizer está bem feito, porque eu não faço. Não vou exigir dela. O que a pessoa que trabalha lá em casa faz está bem feito porque é de confiança. As que já foram é de confiança. Ela tem a chave da minha casa. Se eu viajo, ela fica com a chave, vai lá, cuida, vai embora. E eu vou para a igreja para servir à centenas de pessoas. Não fico só em casa, pensando o quê, não é? Se eu for trabalhar antes... Antes de eu entrar na Pastoral, eu fiquei na cadeira de roda. Já fui três vezes para a cadeira de roda com a coluna doente. Depois que eu vim para a Pastoral, eu não vim mais no hospital na cadeira de roda. Aí já tem uma diferença, porque em casa ia limpar tudo. E aí, não. As menina faz e eu só converso. E escrevo, e mando isso, peço aquilo, aqueles negócio, assim, que se faz. MP - E o marido da senhora participa das atividades? Julia - Ele faz assim... Posso dizer que é mestre de obras, porque ele... Na paróquia foi quem fez aquele prédio quase inteiro. Foi feito sobre os cuidados dele, né? E nas comunidades também. Ele tem ido nas comunidade. A minha comunidade onde eu moro, que é Nossa Senhora da Conceição, que onde as meninas daqui vão e ficam quando vai fazer o trabalho nessa outra comunidade, porque lá tem banheiro, já tem tudo bonitinho. Então, foi meu marido que fez, debaixo até onde está feito. E ele sabe fazer. Tem cuidado, ciúme, como se fosse dele. Não tem negócio de desperdiçar nada com nós. MP - E nasceram os netinhos também, dona Julia? Julia - Nasceu. Eu tenho Margarete, minha neta, com 11 anos, que diz que é a futura coordenadora da Pastoral, ela diz. E me ajuda. Eu já comecei... Quando eu cuidei dela, eu levava para a igreja no carrinho. Todo dia ia no carrinho para reunião, para essas coisa. Eu tenho um neto, filho do meu filho Bergson, o mais velho, que mora com a mãe. Mas ali é um menininho de ouro, sabido, sabido todo. Ver a alegria, também. E tem um que nasceu agora, que só engorda. E come, e mama. O menino está com quatro meses e pesando oito quilos e setecentas. Está bem fofo. Está na Pastoral. A mãe levou para a Pastoral. Pastoral da Criança MP - O que esse trabalho todo significa para a senhora, dona Julia? Julia - Ai, para mim, é vida. Porque a Pastoral cuida de salvar vidas. Eu sempre antes da Pastoral, durante... E agora, né? Cuido de salvar vidas também, porque em primeiro lugar está a vida e a Pastoral é os cuidados com a vida. Os desnutridos, se não cuidar, ele pode morrer. Eu podia ter trazido aqui um retrato que eu tenho de uma criança que foi lá na Pastoral quase morta. A mãe não levava para o hospital com medo de deixar internado. Eu fui lá e falei que se ela não fosse, eu ia no conselho tutelar. Aí ela se obrigou a levar. Aí, lá, nós cuidamos da criança. Ela ia, ficava com a criança no período da manhã e ensinando ela fazer comida e a gente fazendo a comidinha para dar para a criança. O menino só tinha olho. E hoje ele está nesse tamanho, gordão, jogando bola na rua. Eu tenho a fotografia. A diferença de três meses de um para outro. É com farelos, talo, casca de banana, tudo que é de sobrinhas, assim, de talos, ajuda muito. Folhas, folhas verdes escuras. Nós toma na sopa. Os meninos comem o que for. Eles não sabem o que é. É folha de batata doce, de ora-pro-nobis, folha de vinagreira. É aquelas ervas. Tem uma hortazinha no fundo de onde eu fico lá na paróquia, tem tanto, é cheio. A gente faz xarope caseiro, dá para as criança, vende para quem pode comprar, que quer. Todo mundo procura o xarope e faz uma pomada. (risos) A pomada, a gente deu nome de pomada... A gente, não. Conheci como pomada milagrosa. (risos) Mas depois falaram que era muito pesada essa pomada milagrosa. Se não fizesse milagre, o povo ia reclamar. Aí passou ser pomada da Pastoral, sabe? Mas faz a pomada, mas é muito boa, viu? MP - Para que é? Julia - A pomada para ferimentos, para... Feridinha, não fica nenhuma. Assadura, não sobra. E o médico lá do postinho, outro dia, que vai muita receita lá, para mim ver, porque o povo manda remédios, né? Sobra remédio daqui, sobra de lá. Compra, não chega tomar, morre. É aquelas coisa. E vai tudo para a igreja. Lá, a gente tem umas pratelerinhas cheinhas, assim, de remédio. Mas só dou remédio com receita igualzinho. Se eu não entendo a letra do médico, mando uma pessoa ir na farmácia para o médico... Para o farmacêutico dizer. Outro dia, mandei a mulher voltar no médico para ele fazer com letra de forma. Ela foi, ele fez e eu entendi. Aí, fica assim, né? Eu atendo. Aí uma mulher chegou: "Dona Julia, eu levei o meu menino no posto que ele está tão doente e eu vim ver se aqui tem esse remédio." Quando eu olho: "Xarope caseiro." Já estava escrito xarope caseiro na receita do médico. Aí dei o remédio para a menina. Depois ela foi lá dizer que foi tirado com a mão. O negócio é que elas voltam para falar que foi bom. Se vier alguém doente, já ensina também o remédio, o xarope caseiro. MP - É, faz sucesso já? Julia - É, é, já veio da Pastoral, já foi verificado lá para cima, que mandaram fazer e vamos fazer, e espalhar, né? O remédio inventado por nós. (risos) Sonho de Vida MP - Está certo. Dona Julia, a gente já está chegando no final. A gente falou tanto de toda essa história, eu queria perguntar de futuro. Que sonho a senhora tem? Julia - Ah? O meu sonho era eu sair daquela vida de briga, porque para mim eu já estava salva. Aí, eu saí... Eu não tenho assim, eu nunca fui de sonhar, sabe? Sonhar: "Ah, eu queria isto, ai, como eu queria aquilo." Não. Eu gosto de fazer agora o que eu faço e quando dá uma folgazinha, eu viajar. Eu gosto de viajar. Se eu pudesse mesmo era três meses aqui, um fora. MP - Aonde? Lá em Sergipe? Julia - É em Sergipe, é no Maranhão, é em Alagoas, onde der. E Santa Catarina, ai, é bom demais. Curitibanos, para aquele lado. Sonho para a Comunidade MP - E para a comunidade, que sonho a senhora tem? Julia - Para a comunidade? Ah, esse sonho é impossível... Acabar com aquela miséria. É impossível acabar com o povo pedindo muito, com a fome não se acaba. A gente ajuda e vivendo, mas dizer "acabou, está tudo bem" é difícil, né? Está aumentando o desemprego, muita gente... Quanto mais desemprego, mais gente vai lá, sabe? E, então, o que eu falo para as pessoas: "O melhor sonho da vida é lutar pela eternidade. Que Deus tenha misericórdia para quando morrer, salvar a alma, porque aqui se luta, né?" (risos) Mas mesmo o meu sonho, que eu sempre faço, não sei se vai valer, se Deus vai querer me dar, é para outro mundo, não é para esse. Nunca trabalhei, assim, em doação, em coisas boas, fazer coisas boas para alguém, para pensar no retorno aqui. "Ah, eu fiz isso, quem sabe eu vou..." Não, de jeito nenhum. Só peço a Deus que me dê no outro mundo, se ele ver que dá certo. Se não, eu ó... (risos) Religiosidade MP - A fé foi uma coisa importante na vida da senhora. Julia - De tudo, valeu a fé. Foi, porque desde o casamento, quando eu via que não dava certo, eu dizia: "Eu fiz um juramento foi para Deus." O meu negócio é com Deus, não é com... Assim, na hora de... Eu sei que é pecado, é Deus, não é outra pessoa, não. Eu não faço nada errado, assim. A gente erra porque todo mundo peca. Quem não peca, é santo. Não vai, não está na igreja se confessando, não é? Eu me confesso. (risos) Vejo que tenho pecado, eu vou lá e me confesso. Mas é pecado mais de raivinha, desses negócio, né? Agora, que é uma beleza mesmo é a pessoa fazer aqui, para receber no outro mundo. E a fé quem conduz a esse caminho. Sem fé não chega lá, não. E não adianta eu ter fé sem ação, porque é uma fé morta. É só: "Eu tenho fé em Deus, tenho fé em Deus." Não fazer nada para ninguém, só para mim? É uma fé morta. A fé, para isso já está dizendo, oração é orar com ação porque orar sem ação, está orando errado. É morta a oração. E ação sem orar, também não vai, que a oração é o alicerce do caminho até Cristo. É oração. A gente tem que orar, pedir, agradecer todos os momentos. Quando eu me acordo: "Ah, graças a Deus, Deus me quer viva hoje." (risos) É, cada dia de vida é um milagre. Que a gente está aqui, cai, morreu, acabou. Eu sempre penso nisso aí. A minha mãe, voltando aqui, que a minha mãe não sai, assim, da lembrança nunca, ela dizia que tinha dois caminhos: um era cheio de espinhos e outro era só flores. O de espinho ia até o céu e o de flor para o inferno. Eu, pequena, chorava tanto, que eu não queria pisar no espinho, mas eu queria ir para o céu. (risos) Só que o caminho do espinho, depois eu fui ver qual é? Ela não sabia, assim, explicar direitinho, mas dizia isso. Aí eu fui saber que o caminho do espinho é as dificuldades da vida. Com paciência, perdoando, tendo misericórdia do outro, não é? E o caminho das flores é o caminho que eu vou... Um exemplo: "Eu me aposentei, eu vou gozar a minha vida. Agora, é praia, é bar, é cerveja, é lazer." Essas coisas é o caminho de flor, é o que a gente quer, mas Deus faz as coisas para gente como ele quer, não é como a gente pede, porque para isso a gente reza Pai Nosso. Se eu rezo Pai Nosso e for meditar nele, ninguém vive o Pai Nosso. Só uma oraçãozinha. Olhe: "Pai nosso que estais no céu, santificado seja o vosso nome, venha a nós o vosso reino, seja feita a vossa vontade, assim na terra como no céu." Quando vem a vontade dele, aí nós escamamos, se espoliando aqui embaixo. Que aqui é a nossa, não é a dele. Morre uma mãe, morre um filho, ninguém aceita, né? Então, a vontade de Deus, não está querendo, né? "O pão de nosso de cada dia nos dai hoje." Ele não disse: "Tenha pão para morrer e deixar aí." É "nos dai hoje", porque se tiver verdadeira fé, no outro dia tem pão de novo. Todo dia tem pão. É só entregar na mão de Deus. E ele dá um jeito. Ele é todo poderoso, né? Se ele é todo poderoso, tudo pode fazer. E como eu vou ter medo de amanhã estar com fome? Não, eu falo para o povo... O povo: "Julia, por que você não arruma um trabalho? Dava para você trabalhar, não sei o quê..." "Que nada Se me faltar pão em casa, que Deus me livre, eu tenho onde comer." Eu falo: "Eu tenho onde comer. Eu como onde eu trabalho." (risos) Mas não é? Então, o pão nosso vai ter. Não é possível que eu vou passar fome mais. De jeito nenhum. Outra coisa do Pai Nosso é "perdoai as nossas ofensas", a gente pede a Deus. "Perdoai as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos ofendeu." Será que é verdade isso? (risos) E a gente está pedindo a Deus, que me perdoe, como eu perdôo o outro que me ofendeu. Se eu não perdoar o outro, ele não vai me perdoar também. É só no Pai Nosso, a gente se enrola, morre, não consegue seguir. Porque faz: "Eu perdoei." Mas quando acontece uma coisinha ruim com aquele que a gente teve raiva, diz: "Olha, está pagando o que fez comigo. Está pagando o que falou da minha filha, não sei o quê...", essas coisinhas. Aí, não perdoou. Perdoar, a gente sofre o ferimento. A gente diz: "Ah, mas eu não consigo esquecer." Consegue. Não consegue esquecer, mas consegue perdoar. A gente sofre um ferimento, põe remédio e sara, mas fica a cicatriz. Mas você não está sentindo dor, não é? Mesma coisa. Vê a pessoa, lembra, mas não tem a dor. Se ela precisar, eu ajudo. Aí, isso que eu tento, tento, tento para ver se eu consigo, levando a vida até morrer, sabe? (risos) Contar sua História MP - Está certo. Dona Julia, eu queria saber o que a senhora achou de ter contado um pouco da sua história para gente? Julia - Bom, foi bom. Foi bom, que tinha coisas que eu não me lembrava mais, de jeito nenhum. E a gente pôs a cabeça... Eu pus a cabeça para trabalhar, assim, e fui me lembrando. Tem coisas que eu nem me lembro também que é importante, eu tenho certeza. Mas não me lembro muito, como a morte da minha irmã, que eu nunca me esqueço, né? Ela morreu, deixou nove filhos, a mais velha com 10 anos. Foi um transtorno na minha vida, eu pobre também. E saiu dividindo os meninos para cuidar. Depois o meu cunhado casou e morreu criança judiada. Ai, essa parte eu não quero nem me lembrar, sabe? Foi muito triste. MP - Mas tem outras coisas boas de lembrar? Julia - Tem. Tem umas coisas boas, que eu tinha amizades boas. Fiz coisas boas, ajudei. Para mim fazer coisa boa é ajudar a quem precisa, né? Dormir na fila do INPS marcando consulta para um que não pode ir, como eu faço e já fiz muito. É lutar para ajudar um que não sabe andar, que não pode atravessar a rua, eu ajudo. Pego no braço e levo. Assim, essas coisas para mim, é ótimo eu fazer, sabe? Gosto de ajudar. Se eu sei que tem alguém precisando, está na cama mesmo, eu gosto de ir até lá, de visitar, de fazer uma caridade. É dar uma ajuda, de ajudar. Eu gosto de ajudar. MP - A gente gostou muito de conhecer a história da senhora. Muito obrigada pela participação. Julia - Ai, de nada. E desculpem aí as coisas de... (risos) MP - Imagina Estava tão nervosa, assim, se saiu super bem. Julia - Imagina. Muito obrigada. Eu adorei.
Recolher