Projeto Memórias da Zona Norte
Depoimento de Janaína Machado
Entrevistado por Danilo Pera, Luiz Fernando, Roseli Flori
São Paulo, 22/08/2019
PCSH_HV_792
Realização Museu da Pessoa
Transcrito por Fernanda Regina Ferreira
P/1 – Primeiramente, gostaria que você se apresentasse, qual o seu nome, local e data de nascimento?
R – Meu nome é Janaína, Janaína Maria Machado, nascida em Belo Horizonte, no dia 26 de junho de 1979.
P/1 – Você lembra da casa onde você passou sua infância, como era o bairro, a cidade, como foi isso?
R – Minha memória é muito, em Belo Horizonte, assim, fragmentos de Belo Horizonte e boa parte do tempo em São Paulo. Vivi em Belo Horizonte entre quatro e cinco anos de idade, mas tenho recordações do dia da mudança, ainda me lembro disso, se eu não tiver enganada, eu me lembro do meu batizado, porque eu batizei grande, assim, já era uma criança grande. BH era cheio, né? Um espaço cheio, né? Eu morava na casa da minha avó, mãe do meu pai, no mesmo território, era um espaço cheio, assim, muitas crianças da mesma idade que eu, da idade das minhas irmãs, nós somos quatro, é uma família, minimamente, grande, são quatro irmãs. Eu lembro que era um quintal com muitos primos. Aqui em São Paulo, quando eu mudo para cá, acho que em 85... É, que eu passo estudar, eu começo estudar aqui. Em 85, eu acho que morei em dois espaços que eu lembro, de forma bem rápida, bem esporádica mesmo, menos de três anos em cada um desses lugares, e depois no Jaçanã, ali no Jova Rural, por 20 anos exatos, 20 anos certinhos. Agora, esses 10 anos já em um momento mais maduro da vida, né? Ainda na Zona Norte na Serra da Cantareira, ainda na mesma região, região de Jaçanã, Tremembé, então, acho que boa parte da minha vida, na cidade de São Paulo, sempre foi na Zona Norte, sempre no distrito de Jaçanã, Jaçanã, Tremembé.
P/1 – Você contou um pouquinho da casa da sua vó, você tem alguma lembrança boa que você passou com seus irmãos ou tudo mais?
R – As lembranças que eu tenho de Belo Horizonte elas são bem... Elas vêm muito, assim, em fragmentos. Eu lembro do quintal, lembro de uma máquina de solda, que meu pai sempre trabalhou como serralheiro. Lembro de uma plantação de cana, sempre vivi em casas que tinham algum tipo de plantação, de plantação de cana e um pé de manga, que há uns dez anos atrás ele veio a deixar de existir, mas é um pé de manga que estava nessa casa há mais de 50 anos, então eu acho que o que eu me recordo de BH é isso, nessa casa, aliás, é minha casa também, é uma casa que eu volto todo ano. Ela é alpendre, eu lembro que o alpendre tinha umas cadeiras bem diferentes, umas cadeiras bem pesadas à base de ferro, que meu avô construiu, ele fez essas cadeiras, também era serralheiro. Não cheguei a conhece-lo, quando eu nasci, ele já havia falecido e a memória que foi construída em relação a ele sempre foi o que tinha na casa, que tinha a ver com essas cadeiras, tinha a ver com toda a base que estava no alpendre, que eram as estruturas para plantas, era bem arrumado, bem arrumadinho, como mineiro gosta das casas, né? E isso está muito relacionado à memória que eu tenho dele, do Wilson, Wilson Venâncio era o nome dele, mas bem pouca, foi uma passagem bem rápida mesmo de Belo Horizonte. Alguns fragmentos que eu fui reconstruindo de BH é em relação sempre às férias, férias de Julho, que eu sempre passei lá, ou final do ano, férias ou de inverno ou verão, mas sempre em um momento, assim, já entrando na pré-adolescência, depois já como adolescente, mas nunca... Acho que de infância, é uma infância muito marcada na cidade de São Paulo, é um pecado eu falar isso para quem é Mineiro, mas sou quase uma paulista, quase uma paulistana. Mas é bem mais forte, uma marcação forte aqui em São Paulo.
P/1 – Dessa passagem da infância para o período da adolescência quais as lembranças que você tem da escola, da sua formação escolar aqui na cidade de São Paulo?
R – Ah! Da minha formação escolar sempre... Rápido e intenso. Me lembro do meu primeiro dia de aula ainda hoje, quando eu entrei na escola super ansiosa, ansiosa porque entrei, eu já sabia ler, minha mãe me ensinou, então, entrei na escola já sabendo ler e escrever porque eu tive duas irmãs mais velhas, são dois anos mais velhas que eu, as duas entraram primeiro na escola, então, aquela coisa de criança, se você tem dois irmãos que já estão na escola, já estão vivendo aquela vida escolar, você também quer, então eu também já queria aquilo, queria ler e escrever. Minha mãe chegou a ensinar as duas, depois chegou a me ensinar, então a minha mãe foi a minha primeira professora. Eu entrei mega ansiosa querendo entender o que era estar naquele lugar, então foi assim: foi rápido, mas foi tenso, tenso e intenso. Tenso e intenso porque quando eu entrei na escola, minha mãe já tinha ensinado todo um repertório das primeiras letras, como você vai juntando essas palavras, como você consegue construir uma frase, a partir daí vai desde dessa coisa pedagógica a uma pedagogia mesmo de entendimento da minha condição racial, de entender assim: você vive em um país racista, você vai chegar na sala de aula na escola, você será excluída, então foram lições que eu tive antes de... Não sei, respeitando os processos de todo mundo, tem processos e processos, alguns vão se dar na universidade, alguns vão se dar em coletivos, agora o meu sempre foi uma educação em casa pelo meu pai e pela minha mãe. E o espaço escolar era um espaço que eu já esperava esse tipo de hostilidade, acho que foi bom para mim, não fui oportunizada em ser pega de surpresa. Eu já sabia “Vai chegar lá e determinadas coisas vão acontecer”, tanto por parte de colegas de sala de aula, como das professoras, então, assim, eu entrei preparada.(incluir trecho amarelo no texto) É duro, né? Quando eu falo isso para as pessoas, as pessoas ficam meio surpresas. É duro, mas é a realidade, eu acho que estar preparado é menos mal, se é possível pensar nisso assim, é menos mal entrar em algo preparada, assim, você não é surpreendido. Aliás, às vezes, a ética surpreende. Mas foi um período bem tenso, acho que vivenciar tudo isso na escola é tenso. E é impossível, olhando para o nosso contexto do país, falar que isso não acontece, acontece, desde não conseguir ter colegas para dividir um trabalho, um trabalho em grupo ou fazer na casa de alguém ou alguém fazer com você, é um espaço bem cruel para uma criança negra, o espaço escolar é mega excludente. Eu me lembro que quando eu terminei o terceiro ano do ensino médio, a primeira coisa que me veio foi “Consegui” e o “Consegui” não foi por... Que eu nunca tive... Eu sempre fui um pouco inteligentinha, eu nunca tive dificuldade em aprender, foi “Consegui passar por isso”, porque, assim, não é fácil, ano após ano. Até porque eu acho que muitas pesquisas apontam que as evasões escolares... Muitas crianças negras evadem por conta de ser alvo de práticas racistas que são persistentes, são cotidianas e eu me lembro disso. Eu agradeci que eu consegui passar por isso, passei pela escola. Claro, depois fui entrar na universidade, não é nada fácil, só que é um contexto um pouco mais diferenciado, certas práticas ficam meio que “feinhas” serem tão cruéis, mas durante a escola foi bem difícil, acho que da primeira até a quarta série bem complicado. Quando eu vou para a oitava série, sétima série foi uma outra dinâmica que acontece, porque assim eu começo a me envolver com o rap, então, estudei sempre em escola pública, eu era vista, era percebida, eu e minhas irmãs que sempre estudaram comigo as duas mais velhas, já de uma outra forma. Acho que isso está muito ligado ao hip hop, quando o rap em São Paulo começa ganhar um certo fôlego, eu comecei a perceber assim que adolescentes negros passam a ter outro tipo de experiência no espaço escolar. Estou falando do quê? Estou falando no contexto da década de 90, 94, 93 estava na sétima, oitava série 94, eu passo para o ensino médio em 95. No final da década de 90, acho que com Racionais, super respeitados entre vários rappers, eu começo a perceber que o olhar do outro sobre mim e a forma que eu consegui encarar o mundo, isso vai dar uma tônica, isso vai mudar porque assim “Ah, fulano de tal é ligado ao movimento hip hop”, isso dá um tipo de respeito que é um respeito que acaba até te protegendo, é uma outra forma mesmo de relação com o mundo, acho que mudou muito, isso vai fortalecendo. É claro, isso com 13 para 14 anos de idade, no ensino médio não, no ensino médio já tinha um grupo de rap, já era Saruê Zambi, que era o nome do grupo, né? Então assim, eu e minhas irmãs já éramos identificadas como as meninas do Saruê Zambi, as meninas do rap, as meninas do respeito. Era um respeito que era assim, tanto de participar de uma prática cultural, como enquanto sujeito negro, enquanto sujeitas negras ali naquele espaço. Acho que tudo sempre está relacionado, as coisas vão se encaixando. Então quando entrei no hip... Aliás, eu sempre vivi, convivi escutando rap, que meu pai discotecou durante um bom tempo, ele era DJ, discotecava e sempre foi colecionador, isso era uma prática que ele tinha desde Belo Horizonte, que boa parte da coleção dele ele vai trazer de Belo Horizonte e vai compor o resto aqui em São Paulo, então aos finais de semana ele era DJ de baile, tocava em bairros, em várias festas. Quando eu passo a ouvir os primeiros raps produzidos no Brasil, já ouvia aquilo em casa, estava ali no contexto de ir para as festas, então já ouvia e estava em contato com aquela outra forma de cantar, de entender “Nossa, parece que é um discurso, parece que eles estão conversando”, da base, a estrutura musical, compreender que aquela base que eles cantavam em si, não era aquilo que eu já conhecia porque aquilo já me era familiar, sei lá, de repente, escutar um instrumental que era Marvin Gaye, que é muito conhecido dentro do contexto de bailes negros e compreender quando eu escutava ali aquela coisa falada, cantada, rimada, eu já conhecia aquilo, não conhecia aquele conteúdo da letra, que era um dado novo, mas aquele outro dado já estava ali registrado. Então, assim, quando eu falo de pensar o quanto a música está muito ligada, contribui para uma formação positiva das identidades negras no país, não só no Brasil, isso é olhando em toda a América, acho que é de uma forma global, a música ela sempre ajuda. Ela ajuda porque, dependendo do tipo de música, é um conteúdo que é político que está ali, é um conteúdo que alguém está compartilhando assim: “Ah, eu estou falando sobre situações que são familiares para você, você conhece, sabe do que eu estou falando”, fora todo um referencial que está ali, um referencial mesmo cultura, histórico, que, de repente, você só vai acessar aquilo ou na universidade ou quando você vai ter acesso a determinados teóricos e a música já antecipa, se você estiver bem ligado, ela já antecipa. Quando eu mencionei a questão do preconceito, do preconceito não, da discriminação racial. Eu me lembro de um dado que foi bem marcante, até hoje eu sempre penso nisso, isso tem muito a ver com as escolhas que eu faço, escolhas, às vezes, políticas ou escolhas de lugares que eu vou sentar, por exemplo, eu lembro mesmo que já estando alertada, eu sempre fui proibida de sentar onde eu quisesse na sala de aula, nos primeiros dias eu sempre chegava super cedo para sentar na frente. Minha mãe sempre aconselhava: “Você tem que sentar na frente porque você consegue acompanhar melhor, você vai enxergar melhor” e toda vez que sentava na frente, isso até a sexta série, as professoras sempre me deslocavam de lugar, me colocavam atrás. E quando colocavam atrás, eu perguntava: “Mas por que eu tenho que mudar de lugar?”, ela: “Não, você tem que sentar lá atrás”, depois de um tempo com maturidade, eu falava isso para a minha mãe, eu comecei a reparar que só crianças parecidas comigo não tinham direito de sentar na frente e minha mãe sempre, ano após ano, indo na escola para reclamar, para pedir algum tipo de providencia por conta desse tipo de deslocamento. Claro que hoje eu tenho outro tipo de base, até quando eu estou discutindo a questão do racismo anti-negros do Brasil, sempre trazendo esse entendimento, assim, que a gente está falando que é algo que está relacionado ao lugar, é a lógica do lugar. Tem um teórico que eu gosto muito, entrando mais no pensamento dele, que é o Muniz Sodré, ele fala que a questão do racismo à brasileira é uma questão isotópica, está ligada ao lugar, é sempre a lógica do lugar. Então algo que eu vivenciei durante boa parte da minha trajetória escolar, todo momento que eu era marcada e excluída, era dentro de uma lógica do lugar, então, você demarca espaços, ou seja, a sala de aula tinha espaços que não me pertenciam, tinha um discurso ali que não era falado, só que ele era praticado porque era: “Você tem que ir para tal lugar”, o motivo não era falado, mas a prática estava acontecendo, “Você não pode sentar aqui, você tem que sentar em tal lugar”. Então quando eu penso nisso em relação às minhas escolhas, é falar: “Não, eu vou entrar onde eu quiser entrar, eu vou escolher fazer o que eu quiser fazer”, acho que é desmontar essa lógica do racismo que está ligada ao lugar, são demarcações de lugar, em todo momento que a gente está discutindo é lugar.
P/2 – Se tiver, tá? Se não tiver... Outras situações porque isso para a gente destaca, a gente trabalha até com escola, é bastante importante, teve outras situações na escola de sentar na frente, que você lembra? Que isso fica forte?
R – É, porque quando eu trago desse deslocamento, né? Essa violência do deslocamento que eu vivenciei, isso está muito dentro do que a gente hoje discute que é racismo institucional, só que praticas do racismo interpessoal, que é entre pessoas que estavam no mesmo lugar que eu, na mesma base, colegas de sala de aula, era em relação a conseguir grupo para fazer um trabalho, “Há um trabalho de História, 5 pessoas”, eu nunca participava de grupos, nunca tinha grupos, às vezes, quando eu me inseria em grupos eram grupos daquelas crianças que sobravam, então eu era obrigada a compor aquele tipo de grupo. Ou o clássico já que era a quadrilha, eu lembro que era estranho, né? As outras festas eu sempre era convidada como qualquer outra criança a participar, agora na quadrilha não, nunca podia participar, sempre tinha ensaio e eu nunca podia participar. Meu pai sempre falava “Não, você não vai participar disso, é melhor não”, acho que já entendia assim: “Certas coisas acontecem nesse contexto que é melhor não vivenciá-las”, mas era sempre a recusa. Entre os colegas, eram em forma de apelidos que todos nós conhecemos quando a gente está falando disso no contexto do Brasil, as exclusões, tem todo uma operação das práticas racistas em sala de aula. Isso vem de forma interpessoal entre seus pares, seus colegas ali de sala, como de muitos professores. Ou a direção da escola também quando ela tem que encarar a denúncia, não sabe como age, você interrompe ou, de repente, você tem um desconhecimento mesmo das sutilezas da forma que opera, acho que cai naquele limbo de ser conivente. O que você faz? Vai ser conivente? Vai desacreditar aquele que está falando “Olha, tem algo acontecendo”? É tenso, o espaço escolar no Brasil é tenso. Acredito que ainda hoje, apesar de alguns avanços, ainda seja super tenso, mega agressivo para as crianças negras. Isso está relacionado a todo um conteúdo que está em livros didáticos, tem um repertório, tem todo uma negação de uma representação positiva sua e tudo isso só contribui, assim, quando você tem uma história que é contada só no negativo, você é rebaixada a todo momento, isso contribui para que as crianças não se vejam, não há um lugar de pertence, há um lugar de negação, que te nega como sujeito a todo momento, é um espaço violento, é bem violento.
P/1 – Já aconteceu um fato que te marcou dentro da escola, algum ruim ou bom dentro da escola? Você está dizendo do racismo, do preconceito dentro das salas de aula, das escolas, já te marcou algum fato que aconteceu dentro da escola?
R – Acho que aspectos bons mal consigo me recordar de alguns, mas lembro positivamente que eu sempre era a primeira da sala, nunca era reconhecido aquilo de forma pública pelos professores, mas eu sempre era a primeira. Eu lembro que depois de um... Deve ter uns dez anos atrás, sei lá, quando eu fui para a sala de aula, fui dar aula em um colégio que eu estudei, na Zona Norte também, no bairro Vila Nova Galvão, quando eu cheguei na escola a diretora que eu lembro que no período que eu estava lá na sexta série, ela tinha um cargo, não sei se era coordenadora pedagógica, hoje é a diretora desse colégio. Eu estava trabalhando lá, em situação de eventual, que todos nós professores sabemos que é um problema isso para gente (risos), um problema contratual de carreira. Eu lembro que quando eu retorno para essa escola, a mãe de uma amiga também trabalhava lá como professora, acho que dava aula de Geografia, eu sou da área de Letras, de língua portuguesa e depois ela falou assim: “Nossa, quando você saiu falaram: ‘Lembra era a Janaina, Janaina Machado, que tinha dois irmãos”, eu tinha uma irmã e um irmão que também estudavam lá, “Ela era a menina mais inteligente da escola, foi ela que entrou na USP”, durante acho que anos nesse lugar que eu estudava, nenhum estudante, até então, tinha entrado em uma universidade pública. Quando isso me foi contado por essa mulher que é uma amiga da família, eu fiquei pensando nisso, quando você tem esses elogios é sempre no privado, né? Isso nunca vem de forma pública, né? Acho que as coisas estão ligadas, isso nunca vem público, é sempre de forma privada. Assim, tive alguns momentos bons na escola, tive alguns momentos bons, acho que em algumas séries eu sempre era a primeira da sala, era identificada, era a aquela coisa meio escura, escondidinha, mas era identificada assim: “Aquela ali é aquela menina inteligente”, eu sempre participei de coletivos, eu lembro que eu jogava vôlei no time da escola, sempre fui aquela fominha, desde jogar com meninas da minha idade e ficava o dia todo, jogava com as adolescentes, depois quando estou no ensino médio jogava só com as garotas, depois eu passo a treinar só com os meninos, então para mim era ótimo, era um período que eu estava projetando assim: “Eu quero defender a seleção brasileira”. Eu recebia convites, era a Serena Williams ou a Mireya Luis, que era uma grande atleta do voleibol cubana, eu tinha vontade assim: “Eu quero ser igual a Mireya Luis”, entendeu? Se eu não fosse ter uma trajetória visando a academia, gostaria de estar nas quadras, de fato, gostaria de ser Mireya Luis, como Mireya Luis, não ser Mireya, mas ser como Mireya.
P/3 – A respeito da cena do rap e o hip hop, do grupo que você formou, gostaria que você falasse um pouquinho do nome desse grupo e como foi atuar naquele momento, né? Década de 90, um grupo de mina, em um ambiente super machista.
P/2 – Sempre descrevendo o momento, como foi.
R – Quando eu comecei, aliás, quando pensamos, minhas irmãs, o grupo era Saruê Zambi, é um nome que está relacionado a uma narrativa sobre o Zumbi, de um escritor chamado Luiz Galdino, acho que é um livro já publicado em meados da década de 90 ou antes, mais ou menos, isso e nesse livro, ele conta a história de Zumbi e Dandara, a trajetória deles até a construção de Palmares e quando eu tive acesso a esse livro, de entender quem é Zumbi, até porque não se falava de Zumbi nas escolas, não sei como está hoje, mas não se falava mesmo sobre Zumbi, não se falava sobre Palmares, aliás, nenhum tipo de resistência negra nas escolas, em sala de aula. Quando eu li o livro, minha irmã também, ela: “Tem que ler, vamos pensar em montar um grupo de rap”, ela escrevia as letras e eu também comecei ensaiar a escrever, isso era uma prática que era ouvindo, então, ouvindo Racionais, ouvindo ___ [25:02], ouvindo Thaíde, assim, como se estrutura isso. Ela sempre estava um ano mais adiantada do que eu na escola, ela experenciava aquilo mesmo praticando, experimentava mesmo, praticando, escrevendo e levava para os professores para ver “Ah, está adequado, como é que é”, eles meio que não entendiam muito bem como era a estrutura, mas davam algumas dicas. Aí começamos a escrever, era a Kelly, ela escrevia, eu também escrevia, começamos a ter já a letra pronta, aí tinha a base, tinha tudo aí a gente ensaiava, a gente ensaiava todo final de semana, só que nunca arriscava de cantar logo, precisava fazer um show, precisa colocar isso para fora. Eu lembro que chegou um... Tinha um colega na escola, vivia no Jova, acho que vive até hoje no mesmo bairro e ele tinha montado um grupo de rap, já tinha arriscado, estava já fazendo shows e o Edy Rock do Racionais MC’s foi meu vizinho durante esses quase vinte anos que eu morei no Jaçanã, eu lembro que ele fez um show, um show bem pequeno na rua dele, acho que praticamente na porta da casa dele, não tinha nenhum palco, era meio que um quase palco improvisado, e eu tinha conversado com esse menino que era colega de bairro e da escola, o apelido dele é CB, CB do rap. Ele tinha falado assim: “Então, Jana, você e suas irmãs tem um grupo, vocês querem cantar?” e a minha irmã sempre adiando, sempre aquela coisa, assim, tinha algo pronto, mas não queria arriscar logo. Aí eu falei: “Tá, pode fechar que a gente vai cantar no sábado” (risos). Eu conto isso faltando uns quatro dias, para até que enfim chegar o final de semana, quando vai ver, eu falei: “Kelly, a gente tem um show sábado e pior, quem está organizando é o Edy Rock, o Edy Rock vai estar lá”, aquela coisa, aquele sonho de chegar perto do seu ídolo, se é o Edy Rock, a gente precisa fazer bonito. O problema não é... Tinha o Edy Rock que era dos Racionais que a gente tanto ouvia já, só que até então, via passando só que não ia para os shows, tinha 13, para 14 anos de idade, era sempre ia em festas, estava escutando aquilo, mas o pânico total era que nesse show teria, como estaria o CB, teriam pessoas da escola e tenta imaginar, adolescente nenhum quer passar vergonha, né? O negócio teria que ser redondo, teria que ser bonito, vai ter que fazer. Foram quatro dias ensaiando, ensaiando muito para cantar, quando a gente chega até que enfim, deu para cantar e deu para entender assim: “Olha, é possível fazer isso, o primeiro desafio é não estar nervoso”, você tem que matar o nervosismo, não estar nervosa, foi possível fazer e a partir daí desse primeiro show que nós fizemos, ali foi uma coisa mega simples, a estrutura era bem... Não tinha uma estrutura, era bem... Não era nem precarizada, porque para ser precarizada algo precisa existir, não era precário, era um improviso mesmo. E foi, aconteceu. A partir desse primeiro, eu acho que em um espaço de tempo de no próximo mês já marcar mais um show, a partir daí virou o Saruê Zambi, a minha irmã “Jana, você é louca”, eu falei: “Não, a gente precisava disso para colocar logo o pé”. Eu sou uma pessoa assim, eu gosto de planejar, mas precisa realizar, não dá para ficar adiando. A partir daí viramos Saruê Zambi, era um grupo só com mulheres, eu minhas duas irmãs, a mais nova e a mais velha e depois disso chamamos uma colega do bairro, que assim, estou bem dentro de um período que o rap aqui no Brasil começa a ter as backing vocals. (inserir os trechos azuis no texto)
P/1 – Ficam segurando o vocal.
R – Sim. E conheci a Fabiana que estudava com a minha irmã mais nova, a minha irmã sempre falava: “Nossa, ela canta muito bem” e foi bem em um período que estava meio que na moda, tinha acabado de lançar aquele filme “Mudança de hábito 2” que tinha a Lauren Hill, até que enfim, acho que a Lauren Hill não era nem divulgada ainda, aí segundo a minha irmã mais nova essa garota cantava muito bem “Nossa, ela tem um timbre de voz bem diferenciado, ela parece aquelas americanas, gringas”, fui até a casa da Fabiana e pedi para ela cantar, falei: “Canta tal música, canta Aretha Franklin” (risos). Eu fazendo a metida, fazendo a senhora que promove a audição, aí a Fabiana cantou, no momento que ela cantou era perceptível que ela tinha o timbre de voz diferenciado, aquele tipo de voz que cantou, sei lá, dez pessoas cantam, mas de repente uma ou duas chamava atenção, chamava atenção, a partir daí a Fabiana entrou no Saruê Zambi. Foi um momento bem importante, acho que nós montamos o grupo, o grupo passa a existir em 95 e fica de 95 até 2003, mais ou menos, na ativa. Era um período assim, eu já estava na universidade, minhas irmãs também, quando a gente entra na universidade, é no período que eu também começo a coordenar um cursinho para negros carentes, EducaAfro, uma unidade do EducaAfro no meu bairro e meio que não estava dando para conciliar, porque dedicar à música é escrever, é ler, é uma série de coisas, tem o conteúdo da faculdade, tinha aquele conteúdo, tinha o conteúdo já de uma militância, porém uma militância de uma certa forma institucionalizada, que está dentro de uma organização. Mas no rap era complicado pensa nos papéis, na questão do gênero, né, que sempre era... Quando nós íamos cantar... Isso tem a ver com a estética, com a visualidade, era um período que a visualidade, década de 90... Hoje não, a partir de 2000 para cá já é uma outra construção mesmo de visual de mulheres que cantam, mas na década de 90, eram calças mais largas, eram camisetonas, mas foi algo assim que nós nunca usamos, nossa roupa sempre foi feita, produzida sob medida e sempre com uma marcação feminina. E quando íamos cantar, geralmente, os homens perguntavam assim, isso em concurso, que na década de 90 tinha ainda concursos de rap, então assim, muitos grupos que fizeram sucesso na década de 90, hoje são referências no país, muitos deles passaram também por concursos de rap, era concurso que a gente participava e, geralmente, os homens perguntavam assim: “Ah, vocês vão cantar charme?”, que o charme é uma espécie de RnB, como aquele grupo que a Beyoncé participava “Destiny’s Child”, aquele estilo de música. Então sempre eram designadas como pessoas que iriam produzir charme, “Ah, vai cantar música sobre amor?”, quando perguntavam: “Qual o tipo de músicas de vocês?”, “É rap”, aí esses homens: “Rap como?”, “Rap, rap” (risos). Eu não o que seria um rap feminino, acho que até hoje não entendi esse conceito, acho que nem existe, acho que é uma construção machista, não existe esse conceito. “O que é o rap masculino?”, “É rap, rap”, “Que tipo de rap é esse?”. É um rap que está colocando sua experiência, está falando de sujeitos que não aparecem enquanto sujeitos, é rap que está falando de denúncia. Denúncia do que? De exclusões sociais, de exclusão racial, entre ‘n’ temáticas, a temática é vasta, porque as complicações são vastas, tão logo isso em algum momento vai virar arte, isso vai ser explorado de uma outra forma. Mas, assim, acho que década de 90 a 2000, mais ou menos, super complexo, super difícil para a inserção de mulheres, geralmente, sempre se tinha mulheres nesses espaços, elas estavam no rap, mas muitas também sentiam uma presença de que eram backing vocals, a backing vocal estava ali, alguns grupos como RZO, que é um importante grupo na história do hip hop no Brasil, passa a ter Negra Li ali, mas sempre foi muito uma invisibilização mesmo de mulheres, então eu acho que tinha ainda algumas mulheres que estava produzindo, estavam nos bastidores, quem estava fechava os shows, quem fazia a produção, fazendo aquilo acontecer, todos os arranjos, mas enquanto MC ou DJ, a minha atuação era enquanto MC, agora DJ, nem se cogitava. Eu lembro que quando a gente forma o Saruê Zambi, quando a gente já passa a ter uma segurança e a coisa já estava acontecendo, a nossa vontade era ter uma mulher discotecando. É assim, uma vez que nos tacham de “É um grupo feminino”, se ele vai ficar preso a isso, que a banda inteira, que o grupo inteiro seja formado por mulheres. Então, nós nunca tivemos um DJ, tivemos sempre uma presença de DJ masculina e sempre de forma efêmera, então assim, meu pai foi nosso primeiro DJ, os primeiros shows meu pai que discotecava para gente, depois começamos a ter sempre presença de outros DJ’s, muitos desses DJ’s, sempre quiseram ocupar esse lugar, “Eu quero entrar no grupo de vocês, o grupo é bom, é isso e aquilo”. Mas nunca permitimos que entrasse um DJ porque assim “É um lugar que está vago e que será preenchido com uma mulher, não vai ser preenchido com homem”, então era assim: “Você vai tocar hoje”, ou sei lá, nós temos seis shows nesse mês, “Você vai fazer isso com a gente”, mas a gente não negociava esse espaço, era um espaço reservado para uma mulher, ou seja, agora precisamos reinstaurar, iniciar, voltar com Saruê Zambi, que acho que agora conseguimos essa mulher para preencher esse espaço, mas sempre precisa ter uma mulher ali.
P/2 – Vocês faziam as bases também?
[pausa]
P/2 – Vocês faziam as letras, cantavam e a parte mais sonoras das bases, vocês também criavam essas bases, como era que funcionava essa parte?
R – Então...
P/2 – Porque eu pensei na influência do seu pai...
R – Em relação às bases, a base era já algo pronto, mas nós chegamos a produzir umas duas com DJ, com produtor, chegamos a produzir, mas tinha uma participação nossa enquanto coprodutor. Você escolhe aquilo que é mais adequado, que tinha uma coerência para dar um clima, então, tinha um protagonismo nosso, mesmo pegando algo que já estava pronto. Até mesmo como a gente iria rearranjar aquilo, a gente pensava “Tá, esse tipo de instrumental, precisa ter esse tipo de interferência”, então, assim, tinha uma produção ali que era nossa de escolha, quando tínhamos interferências de terceiros é sempre de uma forma bem técnica, técnica mesmo e efêmera, de escolher. De repente pensar assim: “Como a gente arruma a reorganiza o posicionamento, como reorganiza e qualifica tal sistema ou não”, mas sempre as escolhas eram todas nossas e letras do grupo era essa minha irmã, a Kelly e eu que escrevia. Era um momento que, década de 90, mesmo ainda arriscando, assim: “Ah, tenho um grupo”, só que a gente ainda não tinha experiência, não aconteceu o show em si, porque assim, você inaugura quando você canta, você precisa cantar e cantar para o público, para os pais não vale, você precisa de outro público que não seja o da sua casa, do ambiente íntimo. Quando a gente passa a cantar, aliás, antes de cantar ainda tinha todo um preparo, que esse preparo tem a ver com toda a trajetória do que era, do que foi a trajetória do hip hop aqui em São Paulo, no Brasil, eram umas trocas. Tinham muitos tipos de trocas, assim, por exemplo, se tinha um referencial em uma música do Racionais que, de repente, eles citavam o Spike Lee, que é um cineasta bem importante para a diáspora negra, em um período que esses filmes... Até hoje ainda é difícil você ter esses títulos de uma forma... O acesso ainda é... Tem bem mais, mas ainda é bem complicado. Então a gente trocava, era um período, eu lembro que conhecíamos... Foi um período em que eu comecei a procurar coletivos de jovens negros, de juventudes negras, dentro de uma formação política, “É um grupo x, de tal lugar”, um período de começar a trocar com essas pessoas. Então a gente trocava muito, desde referencial teórico, sei lá, estava ainda no ensino médio, no ensino fundamental e já arriscando a ler teóricos como Florestan Fernandes, então sempre teve toda essa base, você precisa ter uma base teórica, você não está discutindo o mundo, o rap está lendo o mundo, você não está lendo o mundo através de opinião, tem você ali, tem sua subjetividade que vive algo e enriquece isso quando se transforma em arte, só que você também tem uma reflexão, que está junto com você. Então era um período que a gente trocava isso, era assim “Ah, você acabou de ler Clóvis Moura, então assiste tal filme do Spike Lee, acabou de lançar a biografia do Malcolm X”, de repente chegava alguém “Olha, tem Alex Haley com Raízes, aquele filme lá do final da década de 80”, era um período que se tivesse acesso à internet, acho que seria um outro salto, outro salto mesmo, apesar que tem um ganho, o ganho é de estar em coletivo e as pessoas trocavam, todas, acho que todas essas pessoas que a gente vê hoje que fazem parte da dita velha escola eram pessoas que trocavam. Final de semana, sabadão, as pessoas estavam em alguma parte do centro da cidade, em alguma organização, fazendo o que em um domingo uma hora da tarde? Estávamos lendo, estávamos ali, como a gente consegue entender Kabengele Munanga, como a gente consegue entender Florestan Fernandes, isso antes de ainda estar na universidade, nem vislumbrar entrar na Universidade de São Paulo, não estava nem na universidade ainda. Então, assim, trocávamos isso, tinham grupos de estudos, como é que a gente estuda? Como é que a gente de fato entende quem somos nós e qual é o nosso papel social? Entender assim, como é que eu preciso entender isso, como é que eu leio o fenômeno que acontece comigo, eu preciso ler isso de alguma forma e é um conteúdo que também vem com música, então essas pesquisas elas estão em músicas, é pensar assim: “Olha, eu preciso escutar tal coisa, olha só, fulano tá falando sobre tal conteúdo em tal coisa, eu preciso ler tal coisa, eu preciso assistir tal coisa”, mesmo que seja um referencial que ainda... Sempre teve aqueles argumentos para desqualificar qualquer tipo de ação negra, que era: “Ah, mas são referenciais muito Estadunidense, muito americano, Estados Unidos é imperialista”, esse papo bem chatinho, bem cansativo. Mas, assim, é um acesso que ainda se tem, você não vai ter de forma muito fácil, facilitada, um acesso sobre as experiências negras intelectuais, culturais que estão no Caribe, isso aí você vai ter depois de um... Como dizem, né, é outro rolê, é outro rolê mesmo, é outro tipo de acesso. Mas eu acho que tudo isso ajuda, tudo isso ajudou, isso fortalece tanto para você produzir, para escrever, para refletir e como você consegue transformar. Você não absorve algo e repete, não são repetições, você transforma, como é que você recria tudo aquilo. Quando eu escuto Racionais, mesmo a licença poética de citar Racionais, a primeira vez que eu escutei Nego Drama, tive que escutar duas vezes, três e quando eu escuto é muito curioso que eu tenho que ficar escutando a todo momento, enquanto eu tenho que me dividir em três, o momento de uma escuta onde eu sou uma pessoa que também produz rap, uma pessoa que também produz cultura, onde também sou e estou ocupando o lugar de uma pessoa que analisa enquanto pesquisadora, quem pesquisa isso e é o sujeito que gosta, sujeito que já vem na condição de um prazer que é outro, que tem a ver com a identificação, me identifico com isso e dentro quando eu conseguir me dividir, eu estava assim, aí eu coloquei a pesquisadora na frente, escutando Nego Drama, eu pensei “Uau, ele consegue falar de 500 anos”, daria fácil uma aula, seria complexa, porém seria possível a gente falar de 500 anos, ele consegue falar de 500 anos de fundação desse país, de um continente com uma letra de música que a duração deve ter onze minutos, mas ele consegue sintetizar, tem 500 anos de história ali, passa por 500 anos em 11 minutos, então isso é mágico. Acho que o rap é mágico, ele é muito rico, é uma poética muito bem cuidada, é uma poética que vem disso, ela é alimentada com tudo isso, é alimentada com vozes, com conteúdo de outras músicas, teorias, outros sistemas culturais, acho que a todo momento nós somos alimentados, ao longo da minha vida eu fui alimentada por isso e alimentada por isso em um espaço íntimo, meu pai que discotecava, ele tinha todo esse arsenal musical e discursivo, que isso é megamente discursivo, ele tinha isso. Eu lembro que ao longo da nossa vida, ele chamava a gente assim, ele estava tocando na sala e quando ele discotecava, ele escutava música, era um escutar... Eu acho que ele também... Não sei se ele se dividia em três como eu, acho que eu sou um pouco mais metida, mas conseguia observar que ele se dividia em dois porque, assim, tinha um momento que eu observava, que, pra mim, música sempre foi assim, quanto pesquisadora reparar como aquilo toca na pessoa, pensando sempre na recepção, mas eu percebia que ele escutava aquilo, tinha o momento do prazer, que ele ficava em silencio, até porque eu lembro que quando ele chegava em casa do trabalho, quando ele trabalhava para alguém, ele cumprimentava, primeiramente a... Ele escutava, primeiramente, James Brown, depois que ele falava oi, conosco e com a minha mãe, primeiro era música depois eram os familiares. Mas ele tinha essa coisa que você via que era um prazer de ouvir isso e tinha um outro momento, o duplo, esse outro momento é quando ele ouvia e estava ali pegando cada disco, ele chamava eu e minhas irmãs, pegava as capas de disco e ficava, sei lá, ele pegava uma capa de disco do Marvin Gaye e contava “Isso era do Marvin Gaye”, então era a biografia dele que vinha para superfície, era a biografia do Marvin Gaye, assim, quem era, como nasceu, como faleceu, as polêmicas que acompanhou a trajetória desse artista, de repente, ele dava todo um toque, aí entrava o conteúdo sociopolítico de entender, assim, olha nesse tal momento aqui, no momento que lançou essa música em tais locais, pensa na experiência de BH, São Paulo, aqui no Brasil, olhando para a negritude para entender as relações raciais é que acontecia isso. Olha, teve tal lei, em tal período. Tinha todo uma aula, era uma aula mesmo sobre relações raciais que eu depois fui ter aula de uma forma institucionalizada sobre isso na universidade, ele dava uma aula olhando a capa de disco, isso olhando a visualidade, tinha a visualidade e a música, o conteúdo musical, era um momento que ele falava sobre, assim, momento vou falar de política no momento que a música estava rolando, então, eu acho que sempre foi assim, essa coisa pedagógica, tem algo a ser passado. (incluir os trechos amarelos nos texto)
P/2 – Eu ia também te perguntar, ele quando vocês começaram a cantar, como ele se relacionou com isso? O que ele falava? O que ele falou, o que ele achou?
R – Ele falou assim: “Olha, vocês vão cantar mesmo?” e aí ele falou assim: “Tá, mas sem um DJ?”, porque ele discotecava, obviamente, meio que era para que desconfiássemos: “Olha, eu quero tocar com vocês”. No primeiro show ele tocou, no primeiro não, no segundo, ele tocou e participamos de um concurso, era um concurso que acontecia na praça da região ali da República, acho que o nome do espaço era América Grafite, acho que foi um dos últimos festivais a acontecer em São Paulo, se bobear no Brasil inteiro, de concursos de raps. Aí ele tocou, nós enquanto adolescentes e artistas, você não quer seu pai com você no baile tocando, a gente não queria mesmo. Aí minha mãe “Não, é bom”, e a gente “Mãe, fala com ele porque não dá para ir não”, aí ele recorria a questão geracional: “Ah, porque eu sou mais velho, porque não é legal”, mas em alguns momentos era bom, quando ele ia ele falava assim: “Olha, você tem que ficar tranquila”, “Ah, não toma muita coisa gelada, você tem que ficar tranquila que amanhã tem show” e o ensaio com ele, acho que ele não chegava ensaiar com a gente não, ele sabia o que fazer, era uma outra dinâmica, era uma outra presença, ele sabia o que fazer. Mas ele queria e a gente não porque estávamos no período de 16 anos, literalmente, você não quer seu pai com você no baile. Até é interessante eu trazer isso “querer seu pai no baile” porque a gente ia com objetivo, né? Ia para cantar e mero cantar, nunca foi uma projeção: “Ah, eu quero ser famosa”, não era, acho que tinha um certo valor pedagógico, aquilo que eu sei, aquilo que eu vejo, eu quero que outras pessoas vejam também, porque quando nós começamos a sair, ir para festas, ir para bailes, ir para shows, para bailes que como diz as baladinhas, baladinhas só tem alguém discotecando, a música acontecendo, ele sempre falava assim: “Ah, não, não vai porque não tem nada para vocês”. Agora quando podia ir, mesmo se fosse chegar de manhã, era no show de rap, show de rap ele falava: “Pode ir, porque lá vocês vão aprender alguma coisa. Ah, vai no show do Racionais, lá vocês vão aprender o que é, como é ser um sujeito negro no Brasil”. A gente ia para shows de rap porque tinha algo pedagógico ali, então: “Eu vou para tal lugar porque tem algo a me ensinar, vou aprender algo”, nunca foi tiro no escuro ou vazio, nunca foi busca também “Ah, eu vou ali”, mesmo estando no direito enquanto adolescente, também quero ir por prazer, mas nunca consegui ir por prazer. Um prazer assim, eu Janaina, a sujeita que também pode estar ali só por diversão, não nunca foi diversão, acho que sempre foi político, vai lá porque tem alguma coisa, você precisa aprender tal coisa, você precisa, minimamente, estar em um espaço onde está em pares. Tá, mas no seu bairro, na escola não tinha esses pares? Ter, tinha, só que dentro de uma experiência política que era um pouco diferente, ali eram pessoas que estavam no mesmo tipo de engajamento político.
P/2 – Janaina, eu quero fazer uma pergunta, é sobre esse conteúdo da produção de vocês, você guarda e você trabalha ainda sobre essa base? Você ainda trabalha nas suas pesquisas? Você falou que você deu aula, você deu aula sobre isso também? Você usou essas letras ou do Racionais ou do seu grupo? O nome...
R – Saruê Zambi.
P/2 – Saruê Zambi.
R – Então, do meu grupo não utilizo, mas pesquiso. Entrei em um programa de mestrado na PUC, aqui em São Paulo, olhando isso, olhando dentro da linha da linguística, olhando a construção política negra nas letras dos Racionais. Você vai para universidade, na pós tudo sempre vai ser modificado, acabei acrescentando, assim, como é olhar também de outras produções, sei lá, Sandra de Sá, ampliando esse recorte para outras produções e comparando com o conteúdo, o que Racionais traz? Tudo isso olhando o quê, investigando o rap, mas olhando isso através de verbo, olhando como esse sistema linguístico, como o rap dele especificamente tem uma gramatica especifica, o que me interessa ver nessa gramática específica deles. Tem uma organização ali que ela se dá de forma consciente, inconsciente e isso causa algo no receptor, assim o interlocutor ali é impactado de alguma forma, a questão toda é ver o que é que motiva isso, de repente é o verbo, o que estou olhando é para o verbo. Mas quando eu dou aula, a todo momento eu utilizo o rap como lente, como categoria de análise, a todo momento como categoria de análise, tem uma pesquisa também paralela, que é olhando ainda na gramática, que o pessoal de Letras não consegue fugir muito, língua é muito rica, linguagem é muito rica, olhando para performances, as performances que tem me interessado são performances que eu tenho visto algumas produções aqui em São Paulo de pessoas que utilizam algum dos elementos do rap, algumas categorias mesmo, estéticas do rap dentro das artes cênicas, então isso é bem instigante ou dentro das artes visuais, como é que o rap é utilizado, ou o rap, ou o DJ, a todo momento tem essa coisa que está dialogando. Eu vi essa semana que na UNB hip hop agora é uma disciplina acadêmica, estamos mega atrasados porque nos Estados Unidos tem área de pesquisa, tem arquivo sobre o hip hop, eu acho que agora no país está entendendo o quanto isso é conceitual, o quanto isso é... Principalmente, quando estou vendo essas mobilizações de pensar em elementos do rap como categoria estética ou categoria conceitual, acho que só tem a crescer, explorar, principalmente, quando você tem um sujeito que é pesquisador e ele está dentro da cultura, é um outro olhar porque não é um olhar que separa o sujeito e o objeto. Você está em um diálogo que você quase consegue se equilibrar, você está produzindo em primeira pessoa e dentro de uma experiência vivida e você consegue produzir os afastamentos necessários que a academia diz, alega que são necessários. Então acho que é rico, né? O hip hop é rico, o rap é muito rico.
P/2 – Janaína, eu sempre puxo algumas coisas do que você sentiu, você teve um show em um momento significativo, teve o primeiro que foi marcante, ali na rua, mas algum outro que foi bastante marcante por algum motivo? Para você, de sentir coisas.
R – Ah, no período que estávamos na ativa, cantando, fizemos vários shows, eu lembro de dois que foram bem significativos, um deles foi em um período que eu ainda era estudante do ensino médio, foi um show na praça do Jaçanã, o Jaçanã tem uma festa tradicional, que é aniversário, é comemorado todo ano o aniversário do bairro, eu não lembro se foi nos 130 anos ou quase, estava nessa data, e assim, era uma festa grande no Jaçanã, que sempre iam bandas, obviamente, Demônios da Garoa ia todo ano porque é quem vai explodir o nome Jaçanã no país inteiro, moram no Jaçanã. Eu lembro que nós tocamos nesse palco do Jaçanã e foi ótimo porque era um período que no bairro já estávamos conhecidas, então antes de entrar era todo mundo assim, estava uma multidão ali, todo mundo gritando Saruê Zambi, “Saruê, Saruê”. Foi lá, foi simbólico por conta de que era um marco, nesse bairro, foi em um palco, na mesma praça que Racionais fizeram um show também, então Racionais atravessa tudo isso. Racionais tocou lá, lembro que nós tocamos. Fizemos um show no Jaçanã e outro foi na Camisa Verde e Branco, na verdade, era na sede da Camisa que é no... Qual o nome dela? Acho que Camisa 12, que é a sede do espaço da escola de samba, Camisa Verde e Branca. A primeira vez que eu fui... Achei isso até curioso, a primeira vez que eu fui em um espaço de escola de samba, foi para cantar rap e foi nesse espaço da Camisa Verde e Branco. Foi bem interessante, foi bom, principalmente, o que gerou pós isso, assim que tocamos na Camisa, aí surgiu convites, assim, para produção. Começou a rolar assim, porque eu tinha um vizinho que trabalhava, ele fazia parte, era membro da Camisa, era da diretoria, e conhece todo mundo do meio da música, do samba, então, pessoas que estavam produzindo grupos que foram importantes na história de produção negra aqui na década de 90, desde pagode, grupo Sensação, Catinguelê, quem estava lá era a gravadora Zimbábue, no período que era do Racionais, eu lembro que pós isso surgiu o que? Então, o Mano Brown vai vir nesse show no Camisa para ver vocês, porque ele soube que o grupo é muito bom e está a fim de produzir, está querendo chegar perto para ver, vamos ver quem é, vamos ver se vale, como é que a gente negocia isso. Então foi aquela coisa, nossa, não imaginava.
P/1 – Ele produziu?
R – Não, o encontro nunca aconteceu porque, assim, na hora de ir nunca rolava esse contato, acho que uma das últimas vezes que cantamos foi em um palco do Edy Rock, aí já em um outro palco, tudo profissional, ali ainda no Jaçanã, dos Racionais que estavam lá, era uma festa organizada pelo Edy Rock, ali no Jardim Hebrom e o KL Jay e foi assim. Sempre foi uma experiência bem rica, bem rica mesmo de estar próximo e saber assim: “Tem que fazer direito”, tem que fazer direito, é um compromisso.
P/1 – Não sei se vai dar para você responder, você contou toda a história da escola tudo, quando você se firma no rap, você tem também alguma sensação de você na relação com os jovens, com algum momento que você se sentiu forte? Em algum show, alguma sensação. Aí você estava em um outro momento, não estava mais na escola.
R – Sim, acho que a todo momento, eu acho que eu sempre volto, volto não, a todo momento eu estou negociando espaço com esse tipo de produção cultural com o rap, isso desde quando eu estou em sala de aula, hoje coopero mais dentro do contexto das artes, de arte contemporânea, então, sempre trazendo isso, seja como conceito, como lente mesmo de leitura. Eu lembro quando eu comecei a coordenar um cursinho pré-vestibular EducaAfro na minha região, algumas pessoas que eram do movimento hip hop, que eram rappers do bairro, pessoal ficava no grafite, era do grafite, eram Dj’s, eram Mc’s, eles participavam do cursinho, era um cursinho que a todo momento tinha essa presença de pessoas do rap, então acho que a todo momento isso alimenta, tem me alimentado. Daí a gente pensa assim, como é que eu produzo isso? Como que eu exploro isso? Como eu amplio isso? Como eu amplio isso dentro daquilo que eu estou pesquisando? Como que eu consigo casar esse tipo de estética com outro tipo de estética? Eu acho que a todo momento o rap só vai ampliando. Há uns anos atrás, eu fiz um projeto com um amigo “Escola de Hip Hop Itinerante” esse projeto foi inspirado em um projeto “Rap é Educação”, depois elaboraram um livro, um ensaio, são vários artigos de pesquisadores, são uns dos primeiros pesquisadores sobre o hip hop, sobre o rap aqui no Brasil, já é um clássico dentro da academia esse livro, esses ensaios. Esse projeto rappers, não projeto rap não, projeto rappers é outra coisa, esse “Rap é educação”, acho que foi um projeto que estava ali, estava negociando, era feito junto com a prefeitura de São Paulo, acho que na gestão da Erundina e teve a participação de vários rappers, então o que eles faziam? Obviamente, tinha a parte cultural, da música, do grafite, da dança, mas também eles davam palestras. Então, eles iam no espaço escolar, com a comunidade escolar, os estudantes, professores, direção, as pessoas que estavam ali trabalhando na manutenção da escola e aconteciam palestras, então palestras que aquele conteúdo... Conteúdo que depois chega no currículo, estava no currículo enquanto conteúdo transversal, durante esse projeto, esses rappers, essas pessoas do movimento hip hop, assumiam esse papel. Era um conteúdo que falava desde DST a discriminação racial no Brasil, então esse projeto foi o que essas pessoas elaboraram, isso no início da década de 90 e no final de 90, eu elaborei um projeto com um parceiro de projetos que é a “Escola de Hip Hop Itinerante”, que o intuito desse projeto era, de fato, ser itinerante, então estar em um período durante um certo tempo e depois promover esse tipo de deslocamento. Esse projeto trabalhava com os quatro elementos do hip hop, articulado com a lei 10639 que dá obrigatoriedade de ensino de história de África, cultura afro-brasileira, depois ampliou para indígena em sala de aula e a gente trabalhava o quê? Como cada elemento, através de cada elemento, sei lá, através do rap uma aula que fosse... O interessante era seguirmos uma grade, dentro da grande, se você tem uma aula que dura 50 minutos, era nesse espaço, na grade horária que eram as aulas de hip hop, era “Escola Itinerante de Hip Hop”. Esse projeto aconteceu na cidade de Guarulhos, ele percorreu por oito meses a cidade de Guarulhos, então, de repente, numa aula de rap, que são sobre estruturas, estrutura musical, como é que é a estrutura? Como estrutura o texto do rap? Era uma forma também de pensar em conceitos como circularidade, como pensar conceitos civilizatórios africanos e afro-brasileiros por meio de elementos do hip hop. Foi um projeto bem interessante, atrevido, pensando enquanto instrumento pedagógico, como a gente consegue ampliar. Essa pessoa que fazia esse projeto comigo também é do hip hop, ele é Mc, acho que uma trajetória, minimamente, parecida com a minha, pesquisa isso também, também é um pesquisador do hip hop. Eu desenvolvi esse projeto com ele em um período que estagiei, foi meu primeiro trabalho na vida, fiz estágio na prefeitura de São Paulo e caí num lugar muito propício também, acho que as coisas sempre vão se acertando, trabalhei na Coordenadoria dos Assuntos da População Negra, hoje não existe mais, acho que há duas gestões atrás, ainda existia, chegou a ter status de secretaria, como se fosse uma Seppir [Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial], uma Seppir local, foi no meu período de estágio que eu desenvolvi esse projeto. Foi um projeto pensado para a cidade de São Paulo, é um projeto que a gente começa a fazer uma pesquisa olhando índices de vulnerabilidade, aliás, primeiro, índices de maior presença de populações negras na cidade de São Paulo, olhando cada distrito, cada bairro, foi bem minuciosa a pesquisa, e a partir daí, cruzando dados como de vulnerabilidade, ou seja, então é necessário sempre ter em todos os lugares, mas começar numa base, em lugares onde você sabe que é precarizado, principalmente, em relação a equipamento público, onde não tem nem praça, na região que estou tem o horto florestal, tem regiões que não há um parque, não há um museu, é um descaso de equipamento público de lazer, eles existem porém em bairros com padrão classe média, nunca está no local e esses locais precarizados são os locais que a incidência é de população negra. Foi um projeto pensado para São Paulo, acabou não sendo viabilizado por ‘n’ questões, mas foi possível desenvolver em Guarulhos, trabalhamos oito meses na periferia de Guarulhos. Começamos em bairros, em coletividades, organizações, ONG’s de bairros e depois até adentrar o local que a gente queria entrar, que era junto da escola, dentro da escola. O desafio foi antes de trabalhar aquele conteúdo todo com os alunos, foi necessário fazer o óbvio: uma formação com os professores, uma micro formação. Vamos entender quais são todas essas temáticas que o hip hop levanta, vamos entender quais são os atravessamentos da Lei 10.639 e a partir daí sim da para preparar, entrar e ter uma atuação diretamente com os estudantes. Até para entender, isso é currículo e é currículo que está institucionalizado, você não o criou, ele está aí, ele só precisa ser implementado, ele está aí.
P/1 – Jana, eu queria saber o que você faz hoje a partir de toda essa trajetória, foi um recorte, né? Qual sua atuação hoje? O que você faz hoje?
R – Eu continuo pesquisando rap, música, música de produção negra, desde o rap, o samba, samba rock a todo momento eu estou visualizando alguma coisa, estou no momento pirando em síncopa, pensando em síncopa e tradução, como isso se dá em música negra. Estou atuando em exposições de arte, em educativo, espaço cultural e a minha atuação é a todo momento recortada, atravessada por isso. Não dá para... Tem pessoas que utilizariam o verbo não consigo ser diferente, mas eu não tenho pretensão de ser diferente. A todo momento como eu articulo esse conhecimento? Como esse conhecimento me ajuda a trabalhar melhor? Como esse conhecimento me ajuda a pensar? Sabe? Eu acho que é forma de trabalhar em outra lógica, se a gente está em um momento que é necessário e se discute muito a questão da voz, um questionamento do que é hegemônico, é como transformar, como estar. Eu comecei a falar de lógica de lugar, de presença, de estar, é como operar, é estar, mas o que eu faço com a presença? Como eu transformo a partir disso? Então eu acho que isso tem a ver com a minha trajetória em espaços culturais, em museus, em educativos, que ela é totalmente costurada, está entrelaçada a isso, pensar como que... Se a todo momento eu estou falando de conhecimentos, não sei se isso ficou, a todo momento estou falando de conhecimentos, estou falando de repertórios específicos, de formas de relação, de se relacionar com mundo de forma muito específica. Agora como que eu trago isso? Como isso ganha vida, de fato, na minha prática? Como que eu preciso me esforçar mesmo? Como eu preciso negociar para que isso vire prática? Para que isso vire forma de como eu leio, forma de ler, forma de pensar estética, forma de posicionamento político. É pensar assim, a política não consegue... A política está em tudo, eu estava lendo um artigo essa semana, não, foi uma mesa que eu participei, a arte política sempre tomada de forma separada, a ‘artevismo’, esses neologismos todos que são criados, pensar, “Tá, mas como separar?”. A todo momento eu estou dialogando sobre um repertório cultural que ele fala que não há distinção, não distingue mente e corpo, então todo fazer é político e como eu tenho uma presença muito intima com a música, especificamente, com as linguagens do hip hop, do rap de forma mais íntima, como eu trago isso? Como isso de fato reverbera nas coisas que faço? Curioso que quando eu comecei a trabalhar em espaço de Museu, o primeiro museu que eu trabalhei foi no Museu AfroBrasil e eu sempre quis trabalhar em Museu, por ‘n’ motivos, um desses foi que quando eu comecei a ler e entender o que era ser formado, o que seria entrar na área de Letras, é aquela coisa que a gente tem no Brasil, aquele sentimento de inferioridade, que é “Ah, você vai atuar só em sala de aula”, eu pensei: “Eu gosto de estar em sala de aula, mas eu sei que é possível estar em outros espaços”, eu pensei “Eu vou conseguir entrar nesses espaços do Museu”, entrei no espaço do Museu. Nunca tinha feito uma visita até então, porque assim, é uma performance ali também, professoral, né? Você está numa situação de docente, de professor, no entanto, é um outro corpo, até porque o próprio espaço pede, ele tem outras dinâmicas, espaciais, outras aberturas. Fiquei nervosa, obviamente, pensei, nossa, chegou um grupo terei que atender aquele grupo, eu pensei: “Como é que faço?” e, para mim, foi uma experiência muito boa, porque ali, nesse espaço, eu consegui ali ser uma professora, só que era uma professora que era diferente. Diferente porque é pensar, de repente, quem está ali no espaço formal de educação em sala de aula me ouvir falar isso vai falar: “Não estou entendendo nada da ____ [13:04] de educação”, não, estou entendendo tudo. Mas é pensar assim, ele é um outro corpo, não, é uma outra forma, é uma outra maneira de trabalhar conteúdo, isso tem a ver com corpo, por que eu lembrei disso? Essa questão do espaço do museu ou uma instituição cultural qualquer, trabalhando, fazendo esse tipo de mediação, esse tipo de aproximação, com a arte, o conteúdo da arte, público, comigo também, que tem alguma coisa ali, é porque isso também veio da prática, do rap, isso através de shows, vocês devem estar pensando, mas como assim? É porque assim, a primeira vez que eu entrei em uma sala de aula para dar aula, nunca foi difícil para mim, tem coisas ali que é “Como é que eu pego, como é que eu consigo atenção dos alunos?”, isso no espaço formal, como é que preciso primeiramente olhar para mim, agora nesse espaço informal, o grupo você também pode perde-lo a qualquer momento, nos primeiros 5 minutos. Como é que o rap preenche? Ter tido experiência quanto artista, como Mc, é como se eu estivesse em um show, enquanto Mc mesmo, isso tem a ver com a minha postura, isso tem a ver com uma postura corporal, a forma que eu me posiciono, isso tem a ver com a forma que eu consigo regular minha voz, tenho uma voz forte, perceberam, né? Bonita também, só que meu tom de voz é baixo. Como eu consigo ali trabalhar essa educação entre aspas, quando eu estou falando com 20 pessoas ou 27 pessoas, que é uma deselegância uma pessoa ficar com um grupo tão grande com 27 pessoas, poderia ser 15, mas vamos pensar 23. Como isso tem a ver com voz, eu preciso saber o momento que eu consigo equalizar isso, quando eu a deixo mais alta e isso não é gritar, quando eu a deixo mais baixa, como eu consigo fazer isso? Isso tem a ver com o meu posicionamento enquanto artista com o microfone na mão. Se eu já estou com um instrumento que potencializa minha voz, eu não preciso gritar, a coisa acontece. Isso é uma inteligência do corpo também. Isso é uma inteligência corporal e o rap te dá isso, pensando na minha experiência, porque eu fui... Uma coisa assim enquanto ouvinte, uma coisa que eu experenciei enquanto artista, então é saber assim, naquele grupo eu não conheço ninguém, nunca me viram, isso é em sala de aula também, “Nossa, vou entrar, de repente não vão me respeitar por ‘n’ motivos”, um deles tem me atravessado, de repente, pela faixa etária, como eu dialogo? Isso tem a ver com uma inteligência do corpo e o rap ele dá isso. Se a gente pensar assim, tem um conhecimento ali enquanto Mc, “Ah, se eu canto para 50, eu já cantei pra 20 mil pessoas, não são 20 pessoas que vão causar choque”, não causa choque. Não, você está acostumada. Esse tipo de prática mesmo do rap, a partir daí, comecei a estudar mais, a pesquisar, a me aprofundar, participando de mesa de debates, participando dando palestras, depois dando aulas, aí já dentro de uma reformulação que vai ser um pouco diferenciada, que é o engajamento que você tem acadêmico, né? De como você tem um outro tipo de sistematização ali, mas isso é o rap, mas de repente, se você é um mega pesquisador, um mega professor, mas você tem dificuldade para falar com dez pessoas, isso é atravessado pela timidez, não é qualidade, não é uma lógica de bem ou mal, mas, assim, como você consegue ter intimidade com seu corpo, e com o corpo que é estranho, com esse corpo que você acaba de ter contato. Acho que a música possibilita isso, acho que a experiência enquanto artista possibilita isso, de entender as várias performances que nós vamos desenvolvendo, isso precisa estar no corpo de fato, como um intelecto, isso preciso vir de alguma forma. Falar assim, vou atuar em uma instituição cultural x, como, de fato, isso vem? Ou porque será que eu terei que negociar, deixar isso suprimido, isso precisa vir, isso precisa aparecer, porque se isso não aparecer, é um sujeito que está incompleto. Nós somos sujeitos complexos, uma das complexidades é isso, sujeito que é complexo, sujeito complexo certas coisas precisam aparecer, se não tem algo errado, ele está performando para o mal, ele tem uma performance que é para o mal, está incompleto. Precisa aparecer, é na integridade que a coisa vem, você tem que estar integro de fato, mente, corpo, de forma conectada.
P/1 – Acho que a gente tem que fechar, já está ok.
P/2 – Então, fecha com uma coisa que a gente sempre pergunta, tem alguma coisa que você gostaria de registrar da sua história? Depois, o que você achou desse momento, que foi muito bom, mas principalmente, se tem alguma coisa que a gente não te perguntou?
R – Acho que eu também acabei não mencionando muito, acho que estava, passa por isso, mas eu não mencionei, a presença da minha mãe nessa história toda, enquanto a primeira professora e tudo que eu fiz, tudo que eu faço, ela sempre está junto, ela sempre está comemorando mesmo, quando eu comecei a me engajar no EducaAfro, aí tinha alguma coisa que precisava ter um outro tipo de coletividade que envolvesse a família, ela estava lá, acho que a primeira universidade que eu entrei, antes de ir para USP, ela comemorou. Acho que eu tinha 18 anos, ela foi, teria que ter alguém para assinar o papel, ela comemorou super feliz para contar para a família inteira, quando eu fui para USP também, eu acho que se eu deixasse ela me levaria sempre nas primeiras coisas que eu faço, os primeiros dias, ela estaria lá. Eu lembro que quando eu jogava vôlei, eu falei para vocês que eu joguei vôlei e achava “Serei com Mireya Luis”, eu lembro que um jogo que seria uma final que foi no Copa 70, ali na região do Tremembé, eu estava na escola, ela tinha um vizinho, era vizinho de parede, ele era filmador no período ainda de vídeo cassete, aí ela falou assim com meu pai: “Ah, Edilson, fala com Toninho - o nome desse homem, seu Antônio -, fala para ele lá filmar a Janaína”, ela queria que o vizinho fosse me filmar (risos). Para ela, eu vejo que ela fica muito feliz com as coisas que faço e apoia, né? É curioso, né? Eu sempre fui uma sujeita muito séria, acho que eu sou muito fechada, acho que é isso, né? O ser humano, o sujeito é complexo, assim, de repente, mais expansivo e ela sempre muito junto, ela sempre fazendo tudo. “Vou fazer isso para você, olha vai estar em tal lugar tal dia”, sempre muito presente e uma presença bem diferenciada mesmo, bem diferenciada. E para quem tem muitos irmãos não pega muito bem essa presença, porque você tem que dividir, mesmo adulta, ainda não pega bem esse tipo de presença, mas muito presente mesmo. É professora, acho que eu tive um privilégio em vir de uma família com essa questão pedagógica muito séria, assim, uma pedagogia política mesmo de falar assim: “Olha, precisa preparar para determinadas coisas”, dizem que a escola, a educação formal que te prepara para o mundo, não é, né? É uma outra base que te prepara, preparar não é falar que nós somos sujeitos prontos, mas é falar assim: “Tem algo aí que você precisa saber”, desde o entendimento enquanto mulher, condição de mulher, uma mulher negra, como sujeito negro, de entender o que é ser uma sujeita negra na cidade, no país, nesse continente, entender isso. Então acho que tive privilégios, acho que educação é revolução, educação é um privilégio, em um país com a história que o nosso país tem, com um legado escravocrata que atravessa a história do país, uma exclusão que é megamente radical ainda hoje, a desigualdade é muito latente, ela é muito violenta, né? E feroz, ter acesso a uma educação minimamente de qualidade, isso faz muita diferença. É como dizem alguns políticos, que usavam um tema assim “A nível de Brasil” (risos). É muito diferente ter acesso, acessar determinadas narrativas, acessar determinadas histórias, acessar determinadas informações e a partir daí transformar, isso faz diferença em um país como o nosso, que é muito negado tudo isso, se vê enquanto sujeito, um sujeito que também merece estar, que vive, que estar aí.
P/2 – Para fechar, em um minuto o que você achou do momento? Talvez não muito diferente de outras experiências ou teve alguma diferença?
R – Acho que eu consegui falar mais, perceberam que eu falo, isso daí é coisa de quem está na educação, educadores, mediadores, falar muito, né? Acho que consegui desenvolver, é claro que foi a primeira vez que eu me deparo que eu tenho que trazer uma experiência focada na infância, mas não em uma infância, que para mim, de repente, acho que não evidenciei muito, dá minha experiência aqui em São Paulo, mas acho que foi a primeira vez que eu tive que pensar sobre a minha experiência em Belo Horizonte, antes de olhar para a infância de uma forma diferente, o quanto isso está ligado a uma memória mesmo familiar, daquilo que eu não tive, a ausência do meu avô, que eu não cheguei acontecer e alguns momentos que foram importantes, isso desde a mudança para cá, isso estranhamente... Eu sempre achei isso muito esquisito, como é que eu lembro disso? Ou será que eu criei esse tipo de memória? Pode ser também.
P/1 – Obrigada, Janaína.
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