INICIAÇÃO
Meu amigo Moacir... Nascemos no mesmo dia, do mesmo mês, do mesmo ano. Morávamos na mesma rua e nossas casas praticamente ficavam frente a frente.
Bairro Santa Terezinha! E o córrego, já um tanto poluído, dividindo a rua Custódio Tristão. Sobre ele a pinguela, desnivelada desde sempre e da qual caímos eu, meu irmão e o velocípede, numa dessas incursões lúdicas da infância, sem maiores danos, a não ser o susto. Conta minha mãe que me deu diversos banhos, por causa do frio e do mau cheiro com que o córrego nos premiou.
Os anos correram, minha família mudou-se para a rua Mariano Procópio, não longe da Custódio Tristão. O fato é que a amizade com Moacir perdurou, com lapsos longos e curtos de encontros e desencontros.
Já ingressos nos primeiros anos da adolescência eis-nos, Moacir e eu, novamente encontrados. A essa altura eu já morando na avenida Governador Valadares, bairro Manoel Honório. Depois de muita conversa, percebi Moacir cheio de autoridade no quesito \\\"garotas\\\". E arremessou a pergunta, de supetão:
- Você já foi à zona?
Mesmo que eu dissesse sim ele não acreditaria. Tive que bancar o humilde. Foi o bastante para meu amigo trombetear:
- Então vamos neste sábado, com a mesada dos nossos pais. Você já transou?
\\\"Poxa, não precisa humilhar\\\", pensei. Mas minha cara já foi uma resposta. Só fui capaz de falar que me virava sozinho, que tinha umas revistinhas...
- Ah tá, tá bom - ele me cortou sem qualquer cerimônia -, mas mulher ao vivo é bem melhor...
Que fazer? Ele agora era o cara. E eu, mero aprendiz!
Sábado chegou. Encontrei Moacir num desses barzinhos tipo birosca mesmo. Bebi refrigerante doido pra ficar embriagado! Moacir me dando aula: chega assim, fala assim, faz assado... E dois pirralhos vestidos de adultos a caminho da zona!
Rua Henrique Vaz, praticamente às margens do Paraibuna: casas mal iluminadas, corredores estreitos, falta de calçamento, tipos estranhos. Em meu...
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INICIAÇÃO
Meu amigo Moacir... Nascemos no mesmo dia, do mesmo mês, do mesmo ano. Morávamos na mesma rua e nossas casas praticamente ficavam frente a frente.
Bairro Santa Terezinha! E o córrego, já um tanto poluído, dividindo a rua Custódio Tristão. Sobre ele a pinguela, desnivelada desde sempre e da qual caímos eu, meu irmão e o velocípede, numa dessas incursões lúdicas da infância, sem maiores danos, a não ser o susto. Conta minha mãe que me deu diversos banhos, por causa do frio e do mau cheiro com que o córrego nos premiou.
Os anos correram, minha família mudou-se para a rua Mariano Procópio, não longe da Custódio Tristão. O fato é que a amizade com Moacir perdurou, com lapsos longos e curtos de encontros e desencontros.
Já ingressos nos primeiros anos da adolescência eis-nos, Moacir e eu, novamente encontrados. A essa altura eu já morando na avenida Governador Valadares, bairro Manoel Honório. Depois de muita conversa, percebi Moacir cheio de autoridade no quesito \\\"garotas\\\". E arremessou a pergunta, de supetão:
- Você já foi à zona?
Mesmo que eu dissesse sim ele não acreditaria. Tive que bancar o humilde. Foi o bastante para meu amigo trombetear:
- Então vamos neste sábado, com a mesada dos nossos pais. Você já transou?
\\\"Poxa, não precisa humilhar\\\", pensei. Mas minha cara já foi uma resposta. Só fui capaz de falar que me virava sozinho, que tinha umas revistinhas...
- Ah tá, tá bom - ele me cortou sem qualquer cerimônia -, mas mulher ao vivo é bem melhor...
Que fazer? Ele agora era o cara. E eu, mero aprendiz!
Sábado chegou. Encontrei Moacir num desses barzinhos tipo birosca mesmo. Bebi refrigerante doido pra ficar embriagado! Moacir me dando aula: chega assim, fala assim, faz assado... E dois pirralhos vestidos de adultos a caminho da zona!
Rua Henrique Vaz, praticamente às margens do Paraibuna: casas mal iluminadas, corredores estreitos, falta de calçamento, tipos estranhos. Em meu desconforto, imaginava a mulher da capa da revista, algum angélico rosto feminino que me seduzisse. Nada! Já havíamos dado voltas e voltas pelos mesmos lugares e nenhuma daquelas maltratadas fisionomias atraía meu desejo. Impaciente, meu amigo bradou:
- Pô, vamo logo! Vamo pegá aquelas ali...
Enquanto eu vacilava surgiu, do nada, um senhor de cabelos grisalhos, que abordou meu colega, mostrando, numa carta de baralho, vejam só, a figura de uma linda mulher.
- Vocês querem transar com ela?
Moacir nem piscou:
- Quero, quero sim!
O velho assumiu ar pensativo, talvez um pouco afetado pelo uso, e, mirando o belo relógio no pulso do meu colega, exclamou, no tom de quem está prestes a lhe fazer o maior dos favores:
- Então me \\\"dá\\\" esse relógio e vou buscar a mulher!
Aí toda a malandragem aprendida por meu colega caiu por terra. Na mesma hora entregou o relógio. O velho pegou o pagamento e desapareceu, em meio ao burburinho e a corredores escuros.
A eternidade passou sem que pudéssemos ler seus ponteiros! E o relógio, que Moacir havia ganhado de presente? E a loira, por que demorava tanto a vir? A aflição cresceu em ondas e, de repente, estávamos eu e meu já desesperado amigo dentro de outro desses botecos de zona boêmia, que têm essa cara de anonimato. Moacir aos prantos, repetindo ao dono da birosca que o relógio era presente de seu pai e que iria apanhar se voltasse para casa sem ele. Para supremacia do assombro, dois homens adentraram o recinto, ensaiando uma briga mal dissimulada. Não fiquei surpreso ao perceber que um dos contendores era o velho que tinha mostrado a loira do baralho. O outro tipo, esse sim, mostrava nas feições o olhar temerário, lascivo e inamistoso, de assustar até fantasma! Numa pantomima digna da pior pornochanchada os dois, para dar mais veracidade ao quadro, chegaram a quebrar a vitrine de um dos balcões. Plantados no mesmo lugar, meus pés se recusam a me obedecer, para andar, correr, fugir...
Homens dissimulados...
Fui à zona para aprender as artes do amor, mas o amor só descobri mais tarde. Mais tarde, depois de descobrir o sexo.
Eu estava ali. Ante meus olhos, depois de se erguer de um tombo também teatralizado, vi toda idolatria e respeito, toda veneração pelos grisalhos fios de cabelo que aprendemos a sentir pelos mais velhos entrar em choque na figura daquele sujeito. Mas, nessa fração de segundos, em que a alma subjuga a eternidade, meu olhar e o do ancião se entrecruzaram... e deixamos de ser um menino e um velho para sermos dois olhares, duas histórias. Não, não, para sermos um olhar e uma história! De crianças que crescem acreditando e de anciões que envelhecem ao deixar de acreditar! De velhos que um dia foram meninos e idolatraram os fios brancos da idade dos ancestrais. Sim, um único olhar, uma única história. De chorar e rir. De crer e descrer. Sem juízo de valor, sem julgamento; apenas a cumplicidade do olhar, e da história. O velho se reconhecendo menino e o menino, percebendo em si, o velho. Numa ínfima parcela do perene, em que todos os relógios param. Algo incomum. Um menino e um velho dividindo a angústia e o espanto de existir! Partilhando esse não sei quê, que nasce não sei onde, e dói não sei por quê...
O tempo nunca mais existiria, não fosse a voz do idoso, me acordando do encantamento:
- Velho safado, não é?
Com os olhos ainda vidrados, me ouvi responder, sem pensar:
- Não, não senhor.
(...)
O relógio voltou às mãos de meu amigo algum tempo depois do ocorrido, para felicidade e alívio de todos. Nem vale detalhar que, naquele mesmo sábado, após a \\\"briga\\\", o tipo inamistoso nos perseguiu de dentro de um táxi, gritando \\\"pega ladrão\\\", dando tiro para o alto, vociferando blasfêmias, até que invadimos uma casa na avenida Maria Perpétua, lívidos, numa festa de aniversário, ou casamento. Nossa salvação! Também não vale dizer que o velho se deixou, esquecido, no mesmo botequim. Pois nenhum desses detalhes vale aquele instante, em que o menino ficou um pouco mais adulto e talvez tenha feito lembrar, ao já experimentado, sofrido e nem sempre sensato coração de um homem senil, o menino crédulo que ele foi, outrora.
Júlio Polidoro
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