Projeto: Indígena pela Terra e Vida
Entrevista de Braulina Aurora
Entrevistado por Jonas Samaúma e Idjahure Kadiwel
Local: entrevista concedida pelo Zoom
Data: 2 de julho de 2021
Realização: Museu da Pessoa
Código da entrevista: ARMIND_HV003
Transcrição: Lidiane Ramos
0:10
P/1- Braulina, bem vinda nessa entrevista, eu gostaria de estar te perguntando primeiro o seu nome completo, e o lugar onde você nasceu?
R - Hipamaalhe, sou Braulina Aurora, em baniwa meu nome é Hipamaalhe, sou da comunidade Tucumã Rupitá do Médio Rio Içana, terra indígena demarcada Alto Rio Negro.
0:50
P/1 - Braulina, em geral, quando a gente entrevista uma pessoa não indígena, a gente só pergunta direto da vida dela, mas eu gostaria de perguntar antes de você começar contando sua vida, de você contar um pouquinho da trajetória do seu povo, o que você sabe da trajetória do seu povo?
R - Meu povo...a gente se autodenomina Medzeniako, os povos baniwa estão em tribos na fronteira aqui no Amazonas, Venezuela e Colômbia, município São Gabriel da Cachoeira, município onde os povos se encontram, lá nós temos a sede da instituição indígena, que representa os povos indígenas mas, os baniwa estão espalhados na margem do Rio Içana, somos mais de 93 comunidades indígenas, somos falante da língua indígena baniwa, e somos divididos entre clãs, eu sou do clã Waliperedakenai, e no Rio Içana tem isso, e também tem o hohodene, tem várias assim divisões, e na nossa mitologia, o surgimento dos povos baniwa lá tem um lugar sagrado que é Apuí Cachoeira, que em baniwa se chama hipana, de lá que veio o surgimento de sermos seres humanos na mitologia, antes o mundo era algo que não existiam pessoas, subentende que a partir do surgimento dos primeiros seres, nós temos o nosso próprio Deus que podemos assim traduzir para o português, que é a questão da nossa espiritualidade começa de lá também, nós temos essa relação espiritual tanto com seres, desde o nosso surgimento. Sou neta da primeira mulher baniwa, Amaro, que já se configurou uma mulher, e que a partir dela também tem várias mulheres do meu povo nesse mundo.
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P/1 - Aproveitar que você falou que você é neta. Que lembrança você tem da sua avó?
R - Estou falando da minha avó mítica, não é de família.
P/1 - Mas, da sua avó física mesmo?
R - Eu sou filha de dois pais que são praticamente únicos filhos, meu pai perdeu o pai dele com 4 anos de idade, então eu não cheguei a conhecer os meus avós mas, eu tenho uma grande referência com minhas tias avós, que são as tias da minha mãe, eu tenho uma experiência de trabalho com elas, tanto no sentido de conhecer os cuidados com o corpo por ser mulher, dividir a questão do cuidado com as crianças, porque eu sou mãe de duas crianças, tudo isso eu aprendi com minha mãe e com essas tias dela, então para mim a grande referência, a memória que vem quando se fala de avós, eu tenho essas duas pessoas da minha vida, que fazem parte desse processo da minha história
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P/1 - E dos seus pais, da sua mãe, do seu pai, você sabe um pouquinho a história deles, e o que você lembra deles?
R - Pode chorar? Eu sou caçula de oito irmãos, meus pais tiveram oito filhos, e eu sou a caçula desses oito, eu fui uma surpresinha boa desses oito irmãos. Meus pais como eu falei, eles são filhos únicos, eles foram da geração em que as famílias baniwa só tinham três ou quatro filhos, a minha mãe é de três irmãos, e meu pai só tinha ele e o irmão dele que ele perdeu também quando a gente não existe ainda, toda a referência da ausência dos avós paterno e materno na nossa criação, foi suprido por tios, que tanto por parte do meu pai, e tanto por parte da minha mãe, que assumiram esse papel de avó, para gente a extensão familiar no meu povo, é por exemplo: eu sou mãe dos meus sobrinhos que são filhos das minhas irmãs, e meus sobrinho por parte de irmãos, eles são meus sobrinhos. A gente tem essa divisão familiar, a gente tem muito esse contato familiar, por conta desse nosso formato familiar. Eu fiquei com meus pais até 10, 11 anos, eu estou na cidade desde meus 11 para 12 anos, eu estive uma temporada curta na companhia dos meus pais, mas também eles sempre estiveram presentes, porque nas férias, a gente sempre voltava para comunidade, a gente contava os dias para chegar o mês de julho, para ir embora para comunidade, na época nós não tínhamos casa na cidade, eu não falava português, eu passei quase três anos na escola mas, eu não falava português, até hoje eu não falo mas, pelo menos hoje, eu já posso me comunicar com quem não fala baniwa, os dois são falantes da língua baniwa, a minha mãe até hoje não fala português mas, ela entende, e os dois também não foram alfabetizados, dos 8 irmãos, eu sou a única que chegou na universidade, a única que tem nível superior, e isso já traz um pouco dessa responsabilidade, também por ser a caçula, meus pais estão idosos, estão com mais de 80 anos agora, chegaram ontem aqui em Manaus, eu estou Manaus, estou com uma irmã doente de covid, a gente sempre tem esse contato de emergência, da gente tentar se reunir para um ajudar o outro, então a memória que eu tenho da comunidade, são com os meus primos, meus pais mas, eu não tive adolescência, eu sempre falo para minha filha, porque de 11 para 12 anos, tinha essa responsabilidade de trabalhar e estudar ao mesmo tempo, isso na cidade, em um lugar que você não consegue dialogar com as pessoas que não são do mesmo povo, e passa também vivenciar questão da discriminação mesmo por você não falar português.
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P/1 - A gente vai chegar nessa parte justamente da sua ida a cidade, mas eu queria perguntar um pouquinho mais de como foi a sua vida na comunidade até esses 11 anos. Como é que era a vida lá? O que você lembra da sua vivência de criança dentro da comunidade?
R - Eu sempre falo que a gente tem a nossa própria formação indígena, a nossa forma de vivência a partir da prática, por exemplo, por eu ser menina desde 5, 6 anos, a gente já aprende tratar peixe porque nós comemos muito peixe, a gente já começa também a preparar chibé que é a nossa bebida, e eu sempre falo muito de açaí, então a gente já aprende preparar açaí desde 5, 6 anos, ainda na companhia da nossas mães, da nossas irmãs, como eu sou caçula, eu tive esse acompanhamento da minha irmã do meio, que está comigo até hoje também, e por ser a caçula é sempre assim, ah não pega você pode estragar isso, então vai lá o irmão mais velho e faz mas, a vivência é justamente na questão de prática mesmo, você olha e vai aprendendo, no meu povo a gente planta e aprende a cuidar da roça, aprende plantar desde os primeiros anos você já vai para roça para plantar frutas, ou ajudar a carregar água, porque as roças dentro das comunidades são bem longe das comunidades de residência, a gente saía de casa entre 4:30 da manhã, entre 5:00 horas da manhã, para chegar na roça 7:00 horas da manhã, e passava o dia lá, em nossas roças tem mandioca, como tem banana, tem várias frutas típicas regionais. Nosso almoço era sempre dentro dos portos, onde a gente encostava para ir para roça, a gente não almoça dentro de casa, a gente almoça lá onde a gente vai buscar a mandioca, era dia sim dia não essa rotina de ir para roça, e ao mesmo tempo você preparar bicho de caça para comer, eu tenho uma filha de 15 anos, se você pegar uma paca ela não vai saber tratar, por exemplo, eu entre 7, 8, 9 anos já fazia automaticamente, porque a gente olhava nossas mães, nossas irmãs mais velhas fazendo, e a gente já ajudava, a gente fazia, não precisava ir para escola para aprender fazer isso, a gente fazia na convivência mesmo, tirar lenha, carregar água na cabeça, eu sempre brinco, por isso que eu não cresci muito, sou muito pequena, porque a gente carregava muito panela de água na cabeça para ajudar nossas mães, para fazer comida, para fazer farinha, e tem gente que coloca na cabeça, que acha que roça são próximas das residências e não são, as vezes são lá para dentro de Igarapé. Na minha comunidade de origem a gente tem comunidade de residência, mas as roças eram dentro dos Igarapés, lá para dentro do mato mesmo, variava entre 4:00, 6:00 horas dependendo, típico de terra firme que se fazia as roças, você saia de casa 4:00 da manhã, e só chegava em casa lá para as 6 horas da tarde, passava o dia lá, e os meus primeiros professores foram meus irmãos, meus primos, a alfabetização foi toda na língua baniwa, e talvez por isso que eu não aprendi a falar português até hoje, prefiro falar em baniwa mas, foi esse processo, de brincar foi entre primos, e eu era ótima em vôlei, hoje eu não sou mais mas, a gente tem muita essa rotina de brincar de vôlei, de bola na comunidade, é presente até hoje nas comunidades baniwa, se um dia vocês forem visitar, levem bola, meus parentes vão ficar muito feliz para jogar bola, é um momento de encontros entre adolescentes, mais jovens e adultos mas, era muito nesse sentido...e a comunidade é muito família, a gente é muito tio, muito primo lá que não é estranho para gente.
13:54
P/2 - Você tem uma história, da sua primeira lembrança na roça, que você pode compartilhar com a gente?
R - As roças são preparadas antes do verão, porque no verão que são queimadas as roças, eu lembro que teve uma época, que nós não tínhamos roça madura, porque nós não tivemos um verão para queimar roça, para preparar. A minha primeira lembrança é uma roça grande, dos meus pais, e a gente indo atrás de mandioca, mas a roça ainda não estava madura, e eu lembro da minha mãe dizendo assim, “é melhor a gente ter isso do que não ter”, porque a gente come muita farinha, depende muito do beiju, é o que eu consigo guardar, a minha primeira ajuda dentro da roça, e de plantar para poder colher da sua planta, por exemplo de banana, que é o que a maioria das crianças baniwa fazem, você vai plantar junto com seus irmãos, com seus pais, as mudas de pimenta para quem é menino, e bananas variadas, a gente tem uma banana muito regional, nossa, local, que é aquela banana najá que a gente fala, é aquela banana pequenininha bem doce, que é dado tanto para criança bebê, e para criança já com idade entre 5, 6 anos, que é diferente dessa banana comum que a gente vê na feira, a gente tem a nossa própria, sempre é indicada para plantar, porque cresce muito rápido, amadurece muito rápido, sempre é uma alegria quando você vai tirar a primeira vez da sua planta.
16:06
P/2 - Na sua infância você lembra de algum ritual, algum ritual importante que você passou?
R - Como eu sou uma pessoa muito apressada, eu falei para vocês que eu saí de casa entre 11 e 12 anos, a formação que eu lembro na parte de cuidado enquanto menina, foi da primeira menstruação, eu fiquei 30 dias de dieta alimentar, do convívio social com os primos, com os irmãos, e faz parte da formação de toda mulher, de toda menina baniwa, e você passa a ter restrições alimentares, você passa por um momento de aconselhamento tanto por parte da sua mãe, por parte de tia, de quem tem tia, avós, como eu falei para vocês, eu tenho uma memória muito grande com as tias do meu pai, e as tias da minha mãe, foram elas também estiveram presentes nessa nesse processo, eu não tinha ideia o que era ter uma restrição alimentar, você escuta assim, você precisa passar por isso por conta de várias coisas, e hoje eu considero esse processo muito importante, porque as coisas que a gente aprende nesse período, é algo para o resto da vida, desde a forma como se alimenta, como você se cuida, porque para os mais velhos, é a partir da menstruação que você se torna mulher, já está preparada para ser mãe, para ser esposa, para outras coisas, a formação desde o primeiro ano até entre 11, 12 anos, você aprende na prática a preparar peixe, a fazer comida de bicho de caça, todo esse processo de acompanhamento durante essa restrição alimentar que você passa, essa formação que outros chamam de ritual, eu chamo de formação porque é um momento de formação, você passa a ter outros conhecimentos, e a importância desse conhecimento para sua vida, pois o mesmo conselho que eu recebi, eu posso passar para minha filha mas, infelizmente quando ela passou por esse momento, eu não estava presente mas, a minha irmã ajudou ela nesse processo, a gente tem muito isso, durante esse processo, você recebe esses conselhos, você vai passar para outra geração, que essa filha dela, se um dia ela tiver uma filha são esses ensinamentos, a outra coisa que a gente recebe, é quando você vai se tornar sogra, que no meu caso eu tenho tanto filha menina e menino, eles também passam esse conhecimento durante esse processo de formação de 30 dias, e antes de comer você passa por aquele processo de limpeza, tanto espiritual, tanto de corpo físico mesmo, então é o momento que eu lembro deste processo de formação, e depois eu passei por uma bem Idêntica quando eu tive minha primeira filha, são os mesmos cuidados mas, um pouco diferente, são outros saberes que são passados nesse momento.
20:03
P/2 - Você pode falar um pouquinho sobre como é essa restrição alimentar durante esses 30 dias. Você tem uma lembrança do que você passou, do que você pensou durante esse momento?
R - Acredito que estamos preparados para passar por isso, que você sabe desde criança que você vai passar por isso, que é necessário, que é importante você deixar de comer uma comida que você gosta, porque você precisa passar por essa formação, e por outro lado é durante a formação que você fica com restrições alimentares, que você também pode cometer erros por exemplo. Existem mulheres baniwa que são reparadas para preparar remédio, e existem mulheres que são preparadas para a vida externa da comunidade, que é você saber ficar só ouvindo, falar na hora certa, ou falar quando você é questionado, por isso que eu chamo de formação, tem mulheres que são preparadas por exemplo, para serem mestre de cestaria, as mulheres baniwa também produzem muitas cestas, e preparam uma carinha, não é porque é do meu povo mas, a gente faz uma farinha boa, nesse momento que as tias, a mãe da menina, ela fala o tipo de farinha que é bom, que vai trazer também harmonia entre as famílias, porque a menina é preparada para casar geralmente na primeira menstruação, quem tem primos na mesma idade para casar, nesse momento ela é preparada justamente para casar, tanto aprende a preparar remédio, a preparar comida, e preparar mudas de planta, ela também recebe os cuidado com o cabelo, nosso cabelo é liso, tem que ser liso, natural, preto, é muito típico das mulheres baniwa, precisa aprender a cuidar dos cabelo, porque alguém pode falar mal de você se não recebeu esse aconselhamento, você precisa também conhecer pouca coisa, mas muita coisa ao mesmo tempo, porque na idade entre 11 e 12 anos você tem que ter uma boa memória, a gente memoriza as coisas, a gente caminha com essas informações. Se vocês me perguntarem. Você escreveu isso Braulina? Não, está comigo, escrevo algumas coisas, são coisas que a gente aprende para vida toda, até no tratamento dos mais velhos, dos amigos, e quando a gente é preparado para uma vida, quando eu falo externa, que é justamente fora da comunidade, essa relação muito de se preparar para ser isso, que a gente não consegue olhar nos olhos, para o meu povo esses seres existem, podem machucar a gente, e ao mesmo tempo podem bagunçar com a nossa vida, a gente também é preparado nesse momento, da gente se cuidar, não pegar muita chuva, quando estiver ventando, você saber se cuidar, tem essas informações, são muito importantes, esse momento de formação de informação. O que você carrega depois dentro de você é com você, que eles passam muito isso.
24:08
P/2 - Braulina, teve alguma mulher específica, que foi muito importante para você, como uma formadora, como alguma mestra, alguma pessoa principal que conduziu você nisso?
R - Eu tenho minha tia avó que eu perdi há dois anos atrás, foi uma mulher que me ensinou essa questão de ter força para todo momento assim, não é questão de saúde, ou força física mas, você ter força para enfrentar várias coisas da vida. Eu tenho duas irmãs, e tenho uma outra irmã de criação, e depois os primeiros filhos da geração de irmãos, foram as mulheres, então eu sou muito rodeada de mulheres mas, de referência de vida era minha mãe, e a minha tia avó que ensinaram muita coisa.
25:44
P/2 - E como povo nesse seu período de Infância, passavam por alguma dificuldade, algum conflito ali na região, você lembra?
R - Dificuldade, que já começa a entender um pouco da questão da luta pelos direitos, foi muito nesse sentido da gente não falar português, eram escolhido algumas pessoas que conseguiam trocar algumas palavras com outras pessoas de outro povo, para expulsar os garimpeiros da nossa região, desde aquela época eu ouvia muito que mulheres de tal idade foram estupradas por esses garimpeiros, em que filhos de estupro, hoje são baniwa, bem branquinho, de olhos claros, olhos verdes, lá em algumas comunidades, lá na minha região, essa é a memória que eu tenho nesse contato que eu lembro, de pessoas não baniwa dentro da comunidade, e que meus tios tiveram que expulsar em uma noite, nós não tínhamos uma referência de uma associação como nós temos hoje, então eles pegavam os pais, os irmãos mais velhos e a espingarda para expulsar essas pessoas de lá, e eu lembro que muitas mulheres ficavam muito apavoradas, e a gente ficava se escondendo dentro do mato, não podia ficar perto dessas pessoas. Eu tenho uma lembrança muito engraçada, por causa que eu já tinha 8, 9 anos, as primeiras vacinas chegaram na comunidade dos baniwa, e desciam os helicópteros para vacinar os indígenas, já na época da SPI. O helicóptero desceu, e corremos para o caminho dentro do mato, a gente não conseguia falar com as pessoas, porque a gente não falava português, como eu falei para você, passei três anos estudando, não falava não indígena, eu entendia, mas não falava português. Se a gente for pensar nos dias de hoje, a gente corria das pessoas que estavam tentando ir lá ajudar a gente, para tomar vacina, para alguma prevenção, mas a gente corria muito das pessoas, a gente escutava a voadeira, hoje tem muitas voadeiras que são barcos de alumínio dentro das comunidades indígenas mas, na época se a gente escutava o barulho desse barco, a gente corria para dentro, a gente já tinha esse preparo de não receber pessoas estranhas dentro da comunidade. Eu tenho duas tias que sempre moraram perto da gente, era assim, pegavam as crianças e corria para dentro, e lá como a Colômbia e a Venezuela, os primeiros empresários que entraram para fazer essa troca de mercadoria dentro dos povos baniwa, então algumas mulheres aprenderam falar espanhol e não português, era um meio de se comunicar, alguém falava mais ou menos espanhol e ia lá receber essas pessoas que chegavam na comunidade, e Isso foi no tempo da infância, que eu não sei como eu estou sobrevivendo dentro de uma cidade esse tempo todo mas, na minha infância eu tinha muito medo das pessoas, até hoje eu tenho de pessoas muito alta, eu não falo com elas, para mim elas comem pessoas, eu tenho o maior medo das pessoas muito altas. Em 2005, a gente estava em Brasília com meu irmão, e veio um cara muito alto, o cara tinha eu acho que uns 2 metros e 5, e meu irmão sabia que eu tinha medo de pessoas muito alta, e meu irmão tirou uma foto minha com essa pessoa, e a gente contou para ele porque que a gente quis tirar a foto, até hoje eu tenho muito medo de pessoas que eu não conheço.
30:23
P/2 - Braulina, queria que você, se pudesse, aprofundar-se um pouquinho nessa história do garimpo. Como era isso? Foi um dia só que seus parentes expulsaram os garimpeiros? Era uma coisa recorrente, ou às vezes você mesmo chegava a ver garimpeiros nas terras? Como é que era, explica um pouco melhor isso?
R - No Rio Negro, sempre teve essa questão da extrassão de ouro por pessoas não indígena, e também os parentes que trabalhavam com eles, mas quando os garimpeiros chegaram na balsa, que foi a questão que eu comecei a entender um pouco, que eles precisavam sair de lá porque a gente não queria eles. Eles chegavam, não falavam com ninguém da comunidade, e raptavam mulheres à noite para violentar é claro, e essa questão de expulsão, eu acho que tem algumas informações aí na memória do acervo, foi quando os mais jovens começaram a entender, que o rapto de mulheres era uma violência, e esses caras não precisavam ficar lá. Aconteceu acho que umas três vezes, que a gente presenciou nesse formato, e foram mandado embora, e sempre era ali na região do Médio Içana, porque as pessoas do Baixo Içana, já falavam um pouquinho mais o português do que o pessoal do Médio e do Alto.
32:23
P/2 - Mas, todas essas lembranças são da sua infância? Desse tipo de encontro, que ao mesmo tempo era de pessoas tentando extrair o ouro, e trazendo violência as mulheres sobretudo?
R - E tem crianças, herança desse processo.
32:52
P/2 - Com 11 anos você falou que você fez o seu a sua formação, e você seguiu para São Gabriel da Cachoeira é isso? Para continuar seus estudos escolares?
R - Eu comecei a vida escolar, com 12, 13 anos na cidade já no ensino fundamental, porque nas comunidades não tinha, na época ainda escolaridade indígena dita hoje, somente anos depois, eu acho que a educação escolar indígena começou nas comunidades baniwa, entre 2000 para 2003, a implantação da escola Pamaáli ,que é lá da minha região mas, antes disso era só até 4ª série, que é hoje 3º ano se não me engano.
33:53
P/2 - Mas foi esse o motivo que você foi para cidade, que você se mudou para cidade?
R - Como?
P/2 - Você foi para a cidade para estudar, ou foi por algum motivo?
R - Foi para estudar, eu já tinha meus irmãos mais velhos na cidade estudando, e fomos nesse ritmo assim. Porque ir para escola? Nós tínhamos dois irmãos que tinham ensino fundamental, essas pessoas a comunidade escolhe para ser nossos professores, alfabetizar os irmãos mais novos dentro da comunidade, mas ao mesmo tempo que meus irmãos se tornaram os professores de irmãos mais novos e dos primos, também entraram no movimento indígena, os meus irmãos são os que mais começaram a vida no movimento entre 16 e 19 anos, e já eram presidente das associações, já faziam parte da nossa Associação. Nesse processo de formação, o nosso irmão mais velho que é um segundo pai para nós, porque é assim que é dito na nossa cultura, ele tomou essa responsabilidade de ajudar os mais novos a estudar, para terem melhores formações, para melhor defender os direitos da comunidade. Eu vim muito nova, mas também eu tinha toda a proteção dos meus irmãos mais velhos, muito nesse sentido de se formar mesmo, falar português. Imagina uma mulher baniwa na época entre 95 e 96, não tinha ninguém do meu povo que falasse português. Entre 97/98, foi quando a gente começou a retornar para comunidade, mas também a gente já se comunicava com as pessoas que não falavam o baniwa. Então ou você aprende a falar a língua geral da região que é nheengatu, ou você aprende a falar português, indo para cidade para estudar, você tinha essa dupla formação, que é baniwa, falar baniwa e também falar português.
36:19
P/2 - Braulina, muito interessante isso da língua. Eu quero aprofundar um pouco nisso. Mas, eu queria perguntar. Você chegou na cidade, você saiu da comunidade e chegou na cidade. Como é que foi esses primeiros dias, a primeira semana, o primeiro mês, mudando...Como é que foi sua vida, o que você sentiu?
R - Eu vou ser muito sincera com vocês, foi um dos piores da minha vida, mas o pior foi em Brasília viu, mas em São Gabriel da Cachoeira, nós tínhamos nossos pais dentro da comunidade, que sempre mandava farinha, e peixe moqueado para gente, era perto, eles mandavam de carona, com o pessoal da FUNAI, ou com alguém conhecido nosso, a gente mantinha essa questão da culinária dentro de casa. Foi meu primeiro encontro com a comida estranha, de pessoas estranhas, porque assim que eu cheguei, eu fui babá por 4 anos em São Gabriel da Cachoeira, eu trabalhei como babá cuidando de filhos de militares, meu primeiro trabalho foi cuidar do filho de um major, era um bebê de 5 meses, e ela queria uma pessoa assim, eu sempre cuidei de criança, porque eu sempre tive primos, sobrinhos, desde cedo, eu sempre soube cuidar de criança, e foi então que eu nunca tinha almoçado na casa, eu ia cuidava da criança, o marido dela chegava, e eu ia para casa tomar meu chibé, eu nunca comia na casa onde eu trabalhava, na primeira vez que eu comi lá, eles comem salada, tinha tomate, alface, tem arroz e feijão, e são coisas que não são presentes na minha vida, e na minha alimentação cultural. Gente, o que é isso! O marido dela, hoje somos amigos, mantemos contato, ele fala - eu lembro muito bem a cara da Braulina quando ela olhou para o pedaço de tomate, eu não como tomate é hoje, não como salada, não nego, eu vou para casa dos meus amigos não indígenas, eu falo - gente essa comida é de vocês, minha comida aqui é carne, alguma coisa e minha pimenta. Foi uma das dificuldades, além de eu não falar, mas tinha essa questão da alimentação. Meu primeiro contato com pão... nossa, pão é muito esquisito, eu não como até hoje, eu como um pedaço e olhe lá mas, a gente sente muito essa diferença, quando a gente sai da nossa comunidade, quando vai para cidade, a alimentação é sofrimento para todos nós, não só para os baniwa, mas para outros povos também, e não saber se comunicar, hoje eu entendo quando eu trabalhei com os jovens na AAIUnB, as primeiras pessoas que chegavam, que vieram da comunidade para a universidade, eram pessoas muito caladas - e porque a gente fica calada!? Porque a gente consegue entender, mas a gente não consegue conversar, dialogar com outras pessoas, eu passei por esse processo também, foram os três anos da minha vida na escola, mas eu não tinha amigo, porque não tinha como fazer amizade, a pessoa que ia para escola e voltava comigo era minha prima, a gente no caminho falava em baniwa, xingava as pessoas em baniwa, era a maior diversão, eles não entendiam nada, sempre falar em baniwa para mim, sempre foi a maior dificuldade para dialogar com quem não falasse baniwa, não fui feliz nos primeiros anos mas, tinha que ficar, tinha que ajudar meu irmão com os filhos dele, foi assim, é muito família, quando a gente sai também nesse processo, você não sai sozinho, sempre sai com a família e carrega... a gente sempre brinca, a gente ama ou odeia, porque a gente não anda só, a gente sempre anda com mais pessoas.
40:56
P/2 - Você comentou que você foi para São Gabriel para estudar a exemplo dos seus irmãos que tinham estudado, e faziam parte de associações. Que associações você está se referindo?
R - A associação indígena lá da minha região.
P/2 - Do Içana e da FOIRN?
R - Não, só da minha região mesmo, AAIUnB que é nossa associação de base lá no Médio Içana.
41:35
P/2 - Entendi, quando você era jovem a FOIRN já tinha sido criada. Você tem lembrança dessa construção, dessa organização?
R - Meu irmão, foi o primeiro secretário da primeira diretoria, dos primeiros diretores, eu estou lá desde quando a FOIRN era só uma casinha de madeira, hoje ela tem uma estrutura física bem grande, que deve passar pela reforma esse ano, ou ano que vem se não me engano mas, eu sempre estive presente lá por conta disso, através dos meus irmãos, tios, e às assembleias para decidir coisas sempre estiveram presentes na minha vida, e como não tinha recurso para eles contratarem pessoas para fazer comida para tantas pessoas que vinham da comunidade, isso era papel das irmãs, querendo fazer eu e minha irmã, e uma outra tia do nosso primo que a gente perdeu para a covid, era sempre as primas que assumiam essa parte de fazer comida para essas pessoas, ao mesmo tempo você está no meio, você é apoio também, na logística, na alimentação do pessoal, então a gente sempre esteve nos bastidores.
43:16
P/2 - Esse irmão que você falou que era o presidente é o André? Qual o nome dele?
R - Meu irmão foi secretário da FOIRN. Bonifácio José que é meu irmão mais velho, depois o André foi vice-presidente da FOIRN, já em 2004 se não me engano, entre 2012 para 2004.
43:47
P/2 - E nessas associações que você está comentando AAIUnB, FOIRN, pelo menos nessa época da sua juventude, qual era o papel das mulheres? É isso que você estava comentando, mais na alimentação, ou elas também assumiam esses cargos de direção, de articulação?
R - Não, as mulheres sempre estiveram no apoio mesmo de preparar comida, mas também ao mesmo tempo tem uma questão dentro das mulheres baniwa, que elas que falam para o homem falar daquele jeito, elas que preparam o discurso, tanto para decidir, para levantar uma questão, elas sempre estiveram pela voz dos homens até hoje, somente este ano a associação lá da minha região, conseguiu eleger a primeira mulher na associação, as mulheres ao mesmo tempo que elas sempre estiveram presentes mas, também elas sempre foram muito silenciadas, não no sentido de não estar falando mas, elas falavam através dos maridos, dos filhos mas, elas têm um papel político muito importante nesse sentido de debate, de levantar as pautas mas, não por elas, elas sempre falam para o marido falar daquele jeito, fala para o filho apresentar daquela forma. Eu lembro muito bem da minha mãe e da minha tia quando elas exigiram a escola, ensino fundamental e ensino médio lá na minha região, foram elas que falaram, foram as primeiras mulheres também a reivindicar a escola, porque muito nessa ideia dos filhos não saírem mais da comunidade, elas falavam assim - a gente não quer que nossos filhos passem necessidades na cidade, por isso a gente quer uma escola nossa, esse formato da escola Pamaáli da minha região, é muito da ideia das mulheres, claro que quem pegou e escreveu e trabalhou dessa, foram os filhos delas mas, a reivindicação veio das mulheres, eu acho que tem na ata da assembleia na minha comunidade, onde essas mulheres pautaram isso. A gente ficava quatro meses na cidade estudando, e voltava para casa no mês de julho, ficava o mês lá, só que às vezes a gente não tinha condição de descer de novo para cidade, às vezes por falta de carona, as vezes não tinha combustível mesmo para descer, e para vir da minha comunidade de origem para São Gabriel da Cachoeira a remo, era em torno de 15 dias, hoje no barco de alumínio que a gente chama de voadeira, se for no 15 são três dias, se for no 25 é um dia, você para em um lugar para dormir, no 40 sai às 7 horas e chega no outro dia, você só dorme em um lugar também para chegar na cidade, é muito longe da cidade, é por isso que na concepção delas, era muito melhor ter uma escola com professores baniwa, porque já tinha uma formação de professores baniwa que podiam assumir essa escola. A partir daí se tem mulheres professoras, têm mulheres baniwa na associação, criou-se associações específicas das mulheres, que é do plano da minha mãe, são de outros tios mas, elas começaram a se organizar a partir disso, elas têm o produto delas, que elas podem também ir, começou muito depois das primeiras formaturas dos internados, as mulheres começaram ir para internatos, e quando elas retornavam do internato católico, elas assumiam uma escola indígena na comunidade, então elas passam a ser professoras, claro que não são muitas, eu lembro que das mulheres baniwa, entre 4, 5 mulheres que viraram professoras dentro da sua comunidade, para ensinar os mais novos na escola, somos muito pouco, nós não somos muito não, a gente talvez daqui a 10, 20 anos, a gente tenha uma outra geração de mulheres baniwa, com outras profissões. Só para vocês terem uma ideia, a gente tem uma médica do meu povo, e duas enfermeiras se não me engano, tem muitas professoras, por que elas conseguiram se formar através da formação intercultural, que é aquela específica para professores. A gente está em torno de 15, 20 mulheres baniwa que estão professoras na comunidade mas, no movimento algumas pessoas se destacam, não é todo mundo, nem todas elas também gostam dessa parte política.
50:00
P/1 - Braulina, muito interessante essa coisa que você estava falando das mulheres, eu queria depois que você voltasse, porque pelo que eu entendi, é o tema da sua pesquisa mas, eu fiquei um pouco intrigado com isso que você falou, que quando você chegou você foi trabalhar na casa de um militar. Eu queria te perguntar como foi isso. Porque sair direto de uma comunidade indígena, para ir para a casa de um militar. Como é que você foi tratada lá? O que você viu de diferente?
R - Isso é muito comum lá na minha região, porque lá tem muitos quartéis dentro das comunidades indígenas no Rio Içana, temos aí 1, 2, 3...2 quartéis dentro das comunidades baniwa, quando eu cheguei na cidade você não tem como sobreviver, porque sua família não tem recurso para te manter na cidade, você não tem experiência de outra profissão, você é menor de idade, você precisa sobreviver na cidade, a saída é cuidar de criança. No caso da minha irmã, ela já veio para cidade com 19 anos, ela foi para ser cuidadora de casa, auxiliar de serviço, meu irmão sendo homem foi para padaria, eram três irmão mais novos com nosso irmão mais velho, que também não tinha condições de manter a gente na cidade, tínhamos que trabalhar, por eu ser menor de idade, e não falar português, a única coisa que eu sabia fazer, porque eu não podia ir para cozinha, por que não sabia fazer essa comida que não é nossa, e muito menos. Gente, não sei o que é rodo, pano, sei lá o quê, material de limpeza que se usa na cidade! Eu sei lá da minha comunidade, que é uma vassoura de cipó para limpar o quintal, para limpar a casa, é outro tipo de vassoura. Então toda essa informação que parece besteira, mas quando você chegar na cidade que não é do seu convívio, é assustador, você vai para um lugar onde você não consegue sobreviver, você precisa trabalhar para comer, e ao mesmo tempo tem que comprar seu material escolar, porque não é mas 1 caderno, você precisa ter 6, 7 cadernos para assistir a aula, as fardas na época eram compradas, você trabalhava um mês para comprar uma farda, seu salário era o que, R$ 30,00, considerado salário, e era muito mais nesse sentido de ajudar mesmo, o único sofrimento meu até hoje é com relação as comidas, em qualquer lugar.
53:27
P/1 - Você chegou a comentar também, que você sofreu uma discriminação, lá no começo você falou que tinha passado muita discriminação na escola. Como foi isso?
R - O meu povo para os olhos de outros povos, são um povo atrasado, porque a gente não falava português, é aquele apelido pejorativo se for considerar a questão da discriminação, somos conhecidos como os içaneiros, quando se ouvia essa palavra içaneiro, você era aquele içaneiro atrasado, que não fala português, que não tem estudo, se você pegar um pouco da dissertação do Gersem, ele também traz um pouco isso, desse sofrimento nosso com a forma como outros povos se referenciam a nós, era sempre assim...nossa que povo que não tem estudo, é içaneiro, aqueles baniwa que só falam baniwa, era assim. Essa questão na minha região, a colonização que chegou lá foi uma igreja evangélica, e vinda dos Estados Unidos, essa missionária em vez de fazer eles pararem de falar baniwa, ela traduziu tudo para baniwa, para gente é muito importante falar baniwa, a bíblia foi traduzida para a língua baniwa, os cantos foram traduzidos para baniwa, a memorização das mulheres baniwa é um espetáculo, se pegar uma bíblia você vai ver, elas vão te falar direitinho porque elas conseguem ler mas, em baniwa, os cantos são em baniwa, por muito tempo eu acho que em torno de 5 para 10 anos, a gente sofreu muito isso de outros povos, de dizer que meu povo era um pouco atrasado mas, atualmente somos o povo que é mais referenciado por outros povos, porque temos intelectuais baniwa em vários lugares, seja esses que tem formação, ensino superior, seja esse sistema de lideranças de base indígenas, eu tenho um irmão que super escreve e não tem nenhuma formação superior mas, é algo que gosta de fazer. Hoje é ao contrário, hoje eles falam assim - são os baniwa de novo! - você sempre vai ouvir isso. O Gersen é uma grande referência na minha região, que o cara que passou por todo esse sofrimento de discriminação de outros povos, por sermos sempre dito nesse formato perjorativo de sermos um povo atrasado, mas hoje eu não considero isso como sofrimento mas, é algo que a gente guarda em nós, porque alguém dizer que você é atrasado, você pensa - “nossa,essa pessoa não me enxerga como humana”, que é exatamente o que estado faz com os povos indígenas, isso é uma coisa que a gente carrega com a gente muito nesse sentido da escolarização mas, para gente é muito orgulho de poder dizer, eu sou medzeniako, Hipamaalhe, falo baniwa, para mim isso é muito importante, faz eu me sentir ser quem eu sou.
57:41
P/2 - Em São Gabriel você seguiu estudando até terminar o ensino médio, e trabalhando com o major?
R - Não, eu tenho várias experiências de morar na cidade, de ser babá nos primeiros 3 anos, e depois que eu comecei a falar português, se hoje meu português é péssimo, imagina naquela época, eu consegui trabalhar, eu aprendi a cozinhar com minha irmã, eu passei para cozinha, para trabalhar na casa de família, e ao mesmo tempo eu trabalhei de auxiliar de cozinha de um restaurante, lá sim eu aprendi a falar português, porque eu lidava com o público, às vezes as garçonetes que trabalhavam não iam, e eu tinha que assumir esse papel de ir para frente, mas meu papel era muito lá para dentro da cozinha, e no meu ensino médio, eu trabalhei nesses dois lugares, casa de família, e nesse restaurante, e já falava português, eu já conseguia me comunicar com as pessoas, eu comecei a fazer curso de informática, e muito por conta da do movimento indígena, dos meus irmãos sempre estarem na frente, eu fui a primeira a saber mexer em computador, imprimir, fazer essas coisas bem básicas, e eu já conseguia ajudar as pessoas. Dentro da minha escola, eu fiquei como monitora para alguns alunos que não sabiam nem ligar e nem desligar o computador, na época era aquele computador gigante, a partir de lá eu comecei, sou monitora até hoje na fundação, eu gosto de colaborar com as pessoas e me faz bem também.
1:00:00
P/2 - Braulina, você tem religião? É uma pergunta que eu queria ter feito mais no início mas, agora você falou, mencionou a bíblia, a presença católica no território baniwa, Rio Negrino. Você tem religião, ou você tinha? Como é sua relação com isso?
R - Eu acredito em Deus, na qual eu fui ensinada, meus pais são muito cristão inclusive, minha formação na preparação espiritual também vem disso, mas também a gente tem essa preparação espiritual que eu falo, a partir dessa formação mas, é algo que também eu rebato muito, porque a gente perdeu muitas práticas a partir da entrada das igrejas dentro das comunidades indígenas, a partir da geração da minha mãe, que já foi depois da Sofia Muller, o único ritual cultural que passamos até hoje, essa restrição alimentar na formação, na primeira menstruação, isso nunca deixamos de fazer, claro que foi deixado várias coisas que foi contada pela minha avó, essa minha tia avó que eu contei para vocês, de como perdemos muita coisa a partir da igreja, a minha formação de fé vem do nosso particular que eu falo que, os povos indígenas têm a sua espiritualidade singular, que é muito diferente, varia de povo para povo mas, também tem a presença desses igrejas na comunidade.
1:02:08
P/2 - Como era isso da presença das igrejas nas comunidades, você tem alguma lembrança, de missionário, da Igreja católica, e a Igreja evangélica, como é que era isso? Como é que foi para você? Como é que você via a presença das igrejas? Era um processo de evangelização mais grupal, ou era uma coisa que vocês conviviam normal? Como é que era o contato que vocês recebiam?
R - A minha geração era só entre os baniwa, não tinha outros missionários não indígenas, por exemplo, na minha região tem pastores baniwa, tem diáconos baniwa, e a minha geração já nasceu nesse berço de igreja, em cada comunidade que você for na minha região, você vai encontrar uma igreja baniwa batista (não sei o que lá...unidas) mas, tem essa formação de pastores indígenas dentro das comunidades, não é me gabando mas, o meu povo ele é um povo limpo, é de limpeza mesmo, somos pessoas muitos individuais, a gente não come junto no mesmo prato com várias colheres por exemplo, cadabaniwa tem seu copo, cada baniwa tem seu prato, seu talher para se alimentar, e ao mesmo tempo os quintais são muito limpos, em torno de 5 para 7 metros os quintais dos baniwa são limpos, e ao mesmo tempo nossas casas são grandes, a gente não tem uma cabana, aquela ideia de cabaninha mal feita, nós temos casarão, a gente tem casa para receber amigos, a gente tem casa para receber a família dos pais e das mães, a casa de farinha é bem distante dessa casa de dormir, e ao mesmo tempo você tem porto somente para você tomar banho, é para sua família, que não é dividido com a comunidade, tem aquele porto coletivo onde vai todo mundo, essa é a diferença da organização cultural social dos baniwa para outro povo do Rio Negro, da primeira vez que eu fui para outra região, que a gente tem que dividir com alguns amigos baniwa, é assustador, é só uma casinha. Nossa! Como é que eles só tem essa casinha? Porque essa casinha. A gente foi criado no sentido de que, se você compartilha muita coisa, você pode ficar com uma doença daquela pessoa, a gente também foi muito orientado, de que você precisa ter esses lugares somente para você e sua família, isso foi muito da metodologia como essa missionária chegou nas comunidades mas, as comunidades baniwa já eram gigantes. Só para se ter uma ideia, as famílias baniwa na época quando ela chegou, variam entre 16 a 25 famílias dentro de uma comunidade, sempre eram comunidades grande, e essas famílias mantinham entre 3, 4 casas grandes, fora a casa de formação, fora a casa desses encontros para rituais de japurutu, dabacuri, essas coisas eram em outros lugares, o Centro Comunitário, o Centro de Convivência dos baniwa é bem enorme, em um lugar que você vai se sentir super bem, se um dia você puder ir lá. Hoje estou falando da minha infância, hoje é Braulina, passei 7 anos em Brasília estudando, e faz três anos que eu não vou para minha comunidade, lá para dentro. O centro humanitários hoje, eles são de alumínio, o teto é de alumínio, os bancos, a gente continua mantendo aqueles formato de banco que não é cadeira no centro comunitário, e algumas comunidades baniwa retomaram a questão da formação com o Jurupari, tem rituais, tem pinturas faciais, tem essa formação que ficou por um tempo adormecida. Algumas famílias retomaram isso fortemente, e justamente para valorizar que o nosso é tão importante quanto ter diploma, eu acho que esse é um pouco o que faz nesse processo de reflexão, de quem somos nesse lugar de formação.
1:07:43
P/1 - É legal que você falou isso de Brasília, a gente vai chegar lá em Brasília também, mas, eu queria voltar lá naquele pedaço que você estava falando, de como funcionava as associações. Que você falou que as mulheres tinham um papel muito de auxílio na cozinha. Como você via isso? Você tinha vontade de falar? Porque você hoje, por exemplo, estuda, escreve, eu vi um vídeo seu falando. Teve alguma ruptura nesse processo? Como é que foi que isso aconteceu?
R - Essa minha geração, a gente já veio ser sobrinha de professoras, dessas primeiras mulheres que foram professoras, e uma mulher baniwa da minha região já tinha feito parte da Diretoria de uma associação, e tínhamos essa referência das professoras, a gente começou a participar ativamente dessa discussão, e foram essas pessoas que fizeram tanto parte administrativa dentro das nossas associações, como também a gente ficou na representação Regional para trabalhar com os 23 povos, não fiquei mais nisso de ser apenas auxiliar, nos primeiros momentos por eu ser muito nova, eu compartilhava com meu irmão nos bastidores, de ser apoio, de distribuir comida, não sei se vocês já tiveram experiência de assembleia, mas nas nossas assembleias, sempre tem entre 300, 400 pessoas, e parente nunca vai sozinho, sempre vai com esposa, com filho, com sogro, sogra, não é só aquele parente que vai falar naquele evento, ele vai junto com a família, sempre foi nesse sentido de ser apoio, nesse sentido de formação de aprendizagem, eu fui presente de outra forma, muito nessa parte de trabalhar no administrativo, para com meu povo, e passei a trabalhar com os 23 povos no sentido de formação. Eu já era chata, sou chata até hoje, de não ficar calada, de sempre estar na frente, de sempre estar colaborando.
1:10:50
P/2 - Você está falando da experiência de ser uma geração diferenciada. Você comentou aqui que depois de São Gabriel, a chegada na cidade de São Gabriel foi muito difícil mas, mais difícil ainda foi ter ido para Brasília. Você foi para Brasília para entrar pra universidade, para entrar na graduação? Você estudou o que? Como foi isso de ser a única a estar no nível superior? Como foi esse processo de ser uma mulher estudante, uma mulher universitária, de São Gabriel até chegar na Universidade de Brasília?
R - Antes de Brasília eu tive uma experiência aqui em Manaus como eu falei para você. Eu estou em Manaus por causa da condição de saúde de uma das minhas irmãs. Eu cheguei na capital com 18 para 19 anos, para a primeira graduação, eu já ouvia falar da COIAB na época, cheguei aqui na época eles estavam fazendo formação etino ambiental, já participava ativamente do movimento estudantil aqui no Amazonas, e já fui fazendo parte da diretoria da associação. O movimento estudantil, o movimento indígena, sempre esteve presente em todos os lugares, ainda mais vindo da minha região, fui fazendo parte da diretoria, morei aqui em Manaus até os 3 anos, retornei para trabalhar com meu povo, com uma formação não preparada mas, era alguém que já podia assumir gerência em vários projetos, eu trabalhei 3 anos diretamente com eles já como gerente, já era uma outra pessoa daquela que vinha de lá, e ao mesmo tempo a maternidade me pegou de surpresa, na minha cabeça na época, a maternidade era assim você se tornou mãe, você deixou de fazer várias outras coisas, eu fiz uma escolha entre a universidade e maternidade, e escolhi a maternidade, fui ser mãe 100% para minha filha, e trabalhando dentro de casa, com o meu povo, com as pessoas que podiam me dar apoio também nesse período, tanto da gestação, da primeira infância da minha filha, por isso me afastei da universidade 10 anos, eu achei que não teria força para retornar para universidade mas, nesse período eu tive muitas perdas, eu perdi meu irmão na cidade para violência de trânsito, ele foi atropelado, e 2 anos depois eu perdi o pai da minha filha, eu me tornei sozinha nesse processo. Meu irmão era muito próximo a mim, e era meu parceiro na universidade, meu irmão fazia contabilidade, e eu fazia sistema da informação aqui na capital, e quando eu perdi meu irmão, eu falei que nunca mais voltaria a estudar. Como você volta para uma sala de aula sem parceiro! Porque era a força que eu tinha para conseguir estar numa sala de aula, estar na universidade, você não via nenhum rosto indígena dentro da sala de aula, era totalmente pessoas de fora. Daqui de Manaus, eu retornei para São Gabriel da Cachoeira, foi quando eu voltei a trabalhar na FOIRN. Dentro da FOIRN eu trabalhei com as 5 Regionais nossa, e ao mesmo tempo eu fui conhecendo outras áreas, porque eu sou da área de exatas por formação, tanto da minha formação técnica, tanto dos meus trabalhos, eu gosto de uma planilha, tenho dificuldade em escrita, justamente por conta disso, de ter falado português bastante tempo depois. Para mim tem coisas que não fazem sentido, mas precisa fazer para que o texto tenha sentido. Eu sempre acho que as pessoas sabem mais do que eu. A escolha de ir para Brasília foi para um recomeço, eu já tinha perdido várias pessoas, Manaus não era uma escolha para mim, eu tinha que ir para outro lugar e começando um curso diferente que é Ciências Sociais, muito pensando já em trabalhar com antropologia, pesquisar, eu gosto muito de trabalhar com documentários também, eu tenho alguns trabalhos, e Ciências Sociais era o único curso que me dava essa oportunidade, alguns amigos me ajudaram escolher o curso quando eu optei no vestibular, e estou lá até hoje tentando terminar meu mestrado, vamos ver se eu consigo finalizar.
1:17:20
P/1 - Depois de Manaus você foi para Brasília? Como se deu essa mudança para Brasília? R - Não, depois de Manaus eu fiquei 10 anos parada, trabalhei 3 anos com meu povo, depois eu fui trabalhar 4, 5 anos na FOIRN, eu fiquei na secretaria executiva, e depois eu trabalhei na coordenação de comunicação, criamos o site da FOIRN, gerenciei da arte baniwa, começamos com a linha de produto do meu povo, que é arte baniwa, tem pimenta baniwa com mesmo desenho, são coisas que eu passei a colaborar dessa forma, dentro do movimento indígena Regional, conheci esse lado de que precisava de mais conhecimentos técnicos para colaborar com as populações indígenas, e isso começou pesar muito, quando a gente começou a discussão da implantação da universidade indígena com relação a identidade dos povos, foram os primeiros simpósios lá dentro da FOIRN. Eu falei - como é que eu vou colaborar com essa galera tendo só ensino médio técnico! E isso começou a pesar muito, desde a elaboração de documentos simples, isso começava a pesar muito de não ter formação de ensino superior, e era algo que eu não queria, eu não queria voltar para a universidade. No ano que me planejei para voltar para a universidade, que a ideia era retornar para Manaus, para ter um ensino superior, para finalizar o que eu tinha começado, eu tive meu segundo filho, tive que parar tudo de novo, não parar tudo, mas permanecer no trabalho me preparando para vestibulares, eu terminei minha formação técnica, eu sou formada em redes e também em administração, começaram a surgir os primeiros vestibulares específicos para os povos indígenas, então tinha a UnB de Brasília e também tinha a UFSCAR, e lá na UFSCAR quando eu fui ler a os cursos que tinham sido ofertados, a única que me chamou atenção foi a gestão ambiental, quando eu fui pesquisar um pouco sobre o curso não me chamou atenção, porque eu trabalhava com formação, a gente estava começando a discutir sobre a Lei Maria da Penha com as mulheres, eu trabalhava com geração de renda para as mulheres dentro das comunidades e também ajudava elas a criarem suas associações de mulheres indígenas, não me chamou atenção eu pensei, o que eu vou fazer com gestão ambiental para trabalhar com as mulheres, e quando surgiu a UnB eu falei assim - talvez seja a chance de ir, eu falei - minha mãe na época já tinha uns 70 anos, 72...aí ela perguntou se era realmente o que eu queria estudar. Eu falei mãe, eu não sei o que um antropólogo faz, mas vamos lá, vamos embora, e foi muito difícil porque eu já tinha dois filhos, já era bem mais velha, e você encarar de novo a universidade com a galera de 18, 19 anos, e você a única “idosa” na sala de aula, e começar do zero, a 10 anos afastada de uma sala de aula, você volta e sente a diferença dessa não continuação. Movimento indígena é uma coisa, e sala de aula, universidade é outra, você precisa passar nas matérias. Eu nunca fui uma boa aluna mas, eu nunca vou dizer que sou uma boa aluna, porque eu não sou, eu consegui me familiarizar com o curso, e optei por continuar. então Brasília ao mesmo tempo que eu consegui passar no vestibular de primeira, foi também uma escolha muito pessoal, recomeçar em um lugar onde eu não conhecia ninguém, e está dando certo até agora.
1:22:28
P/2 - Maravilha que está dando certo, mas você chegou a comentar, que quando você pisou em Brasília, você sentiu muita diferença de contexto, de cidade. Brasília é uma cidade muito específica na verdade entre as cidades do Brasil. Que dificuldade você sentiu em Brasília e na universidade? Eu estava recordando que você comentou, que quando você foi para São Gabriel, quando foi para cidade, saindo da sua comunidade pela primeira vez foi difícil, mas não foi tão difícil quanto foi ter ido para Brasília, que é uma cidade muito específica, e eu queria que você pudesse compartilhar aqui, porque Brasília foi uma cidade muito mais difícil de se adaptar? Quais foram os desafios para você, tanto morar aí, quanto estudar na Universidade de Brasília?
R - Primeiro que eu fui, eu não estava sozinha, eu estava deixando duas pessoas para trás, por não ter condições mesmo. Segundo que a comida de Brasília é muito estranha, as pessoas comem mandioca cozida com carne, o meu Deus do céu!... enfim, não é pelo clima mas, pela não hospitalidade das pessoas, você já é estranho por ser indígena naquele lugar, as pessoas não falam com você, você é um poste, as pessoas passam por você e você não existe, porque no Estado do Amazonas a gente é muito perceptível, a gente faz amizade em 3 minutos, a gente já é melhor amigo e não interessa de onde a pessoa é, classe da pessoa mas, em Brasília eu senti muito isso assim por conta das pessoas, e a comida do restaurante universitário, ela não era péssima, ela era horrível, só para vocês terem uma ideia, eu emagreci 25 kg na universidade, eu sou bem baixinha, eu sou gordinha mas, nesse tempo eu cheguei a pesar entre 38 e 42 kg, porque eu não conseguia comer a comida de lá, e não tinha condição mesmo de comprar comida, o único final de semana que a gente tinha, a gente ia para casa de uma outra amiga, e ela conseguiu fazer comida que era peixe, então era o único momento que a gente se alimentava, eu e mais três amigos, por isso que eu falei que lá na cidade, foi muito mais difícil do que São Gabriel em Manaus, porque a saudade não só da comida, de mãe, de casa mas, também tinha dois filhos longe de mim. foi muito difícil.
1:26:27
P/2 - Mas você enfrentou bem o desafio, 7 anos é um bocado de tempo. Você fez uma graduação em Brasília, e agora segue no mestrado?
R - Eu passei a graduação toda sozinha longe das crianças, eu só vi eles nas férias, mas depois eu consegui trazer eles para ficar comigo, já estão comigo a algum tempo, e isso começou a melhorar bastante coisa, tanto para eles, quanto para mim, e por conta da antropologia não ser uma profissão igual a enfermagem, a medicina que você termina a graduação e consegue um trabalho, no mínimo você tem que ter uma estrada, para você ter um trabalho mais ou menos, e no Rio Negro apesar de ter essa abertura de trabalhar com os povos indígenas, não é um lugar que você vai conseguir trabalhar imediatamente, então a minha escolha, e também meu segundo filho estava com um muito problema de saúde, em Brasília tinha condições melhores para reabilitação dele, eu optei ficar, e ao mesmo tempo me candidatei para o mestrado, eu consegui passar, e estou tentando finalizar com muito custo, eu espero terminar o mestrado, eu não estou mais devendo matéria, eu estou só na escrita, e quem sabe no final de julho eu consigo defender, ou no início de agosto, como eu falei para você, eu tive que começar do zero, eu fui para fazer graduação, fiz graduação com todas as dificuldades de ter me ausentado, 10 anos fora da sala de aula, estou indo com todos os desafios possíveis, superando cada dia uma coisa.
1:28:30
P/1 - Eu queria saber desse tempo todo que você vivenciou, você teve alguma história que te marcou, alguma pesquisa, algum olhar que te transformou, e você gostaria de partilhar?
R - Eu estudei 2 anos escolhendo matérias, a Universidade de Brasília te dá essa oportunidade de experienciar matérias de vários cursos, e eu não tinha ideia que eu ia escolher antropologia, ao mesmo tempo que eu queria, eu não queria mas enfim, quando a gente começou a ler os clássicos, quando a gente lê os clássicos você não vê nada dos povos indígenas no Brasil, você vai ler dos povos indígenas lá não sei de onde, enfim, a gente sabe de onde é mas, a gente fala desse jeito mesmo, você não vê a presença dos 300 e tantos povos indígenas do Brasil naquela literatura que você está se formando, sendo que somos povos no Brasil. Porque a gente é tão silenciado pelo Estado? Pronto, comecei a discutir sobre racismo institucional. Na formação de vocês, por exemplo, que estão aqui na sala, em algum momento vocês estudaram sobre os povos indígenas? Sem ser aquela literatura racista, de que todo mundo tem que usar cocar, andar pintado, e sem roupa? Não, eu comecei a discutir muito isso, eu vi esse silêncio, essa ausência de dados, claro que a gente se lê entre nós, é claro que tem os parentes escritores, mas eles nunca vão ser lidos. No meu curso, por exemplo, o currículo da minha formação, o único texto que eu li durante a minha formação foi do Gersem baniwa, eu tive essa felicidade dele estar em uma matéria optativa, e o texto dele estava lá para ser lido mas, você não lê de outras pessoas, não se falava dos povos indígenas do Brasil, na minha formação, no currículo normal, imagina a ausência, o silenciamento, quando se trata de conhecimento das mulheres indígenas. Quando eu optei pela minha pesquisa, de que nos povos indígenas, as mulheres são detentoras desse conhecimento, fiz uma escolha certa, eu vou ser feliz, e eu sou muito feliz por minha pesquisa, eu sou muito feliz por poder colaborar com todas as mulheres do Brasil a partir da minha pesquisa, a partir da minha formação, isso me marcou bastante, quando no meu projeto eu falei do silenciamento, ele foi premiado, isso me encorajou a caminhar nessa linha de pesquisa, fiz um documentário com os alunos, os quais eu trabalhava na cidade, para falar também desse sentimento de que você passa sim discriminação enquanto indígena, e ninguém fala disso, você sofre racismo, mas ninguém tem coragem de falar isso, como professores praticavam isso com os alunos, o parente pode sofrer calado, ele não vai conseguir dizer que passou por isso mas, se tiver alguém que levanta essa bandeira de que não é ele sozinho, você vai ter uma fila de parentes querendo denunciar. Encorajar as pessoas, organizar, articular, mobilizar, por uma questão de que não precisamos continuar no silêncio, é o que eu carrego comigo, o que eu puder colaborar para dizer que infelizmente no Brasil ainda somos diferenciadas, e esse silêncio caminha com genocídio, com violência, eu prefiro falar disso, eu prefiro dizer que isso ainda é presente até hoje, só de falar que somente as pessoas da comunidade precisa, que vão receber vacina, e a pessoa que está na universidade, e na cidade não vai ter, vai continuar sendo genocídio do estado, a partir disso eu vejo que a minha pesquisa, tanto com as mulheres, e meu trabalho com as mulheres, e com os alunos avançou bastante, do que a gente está discutindo entre nós, porque precisamos falar disso também, e hoje eu trabalho tanto nesta disputa com as mulheres de vários lugares, e também colaborando com a minha Regional, que é COIAB específico sobre a pauta das mulheres, que é a questão da violência desse entendimento, de conhecer mesmo os direitos. Eu sou muito feliz até agora com a minha pesquisa, eu espero continuar sendo feliz, o melhor casamento que eu fiz na vida.
1:34:46
P/2 - A gente percorreu bastante da sua história. Se você quiser compartilhar algum episódio que nesse percurso queria ter comentado e não comentou.
R - Tem uma coisa nessa linha de quem é pesquisador, a gente escuta muito, isso é um pouco do que Daiara fala, acho que a gente que é do Rio Negro, gosta de colocar umas tretas para galera, mas tem alguma turma de pesquisadores indígena, que falam no processo de descolonizar, mas como é que eu vou descolonizar se eu não colonizei ninguém. A pesquisadora Braulina indígena que está aqui, está no processo de sensibilizar de fato os povos indígenas, ter seus conhecimentos, que passa pelo processo de violência, e que esse processo de violência, não foi só lá atrás em contato com os indígenas, mas que também esse processo de genocídio é presente em todos os lugares, seja na formação, na educação, seja no atendimento de saúde, seja por ser mulher indígena, ou por ser LGBT indígena, ou seja da comunidade, por não falar português você vai sofrer discriminação, por estar na cidade você vai sofrer discriminação, a todo tempo o corpo indígena sofre discriminação, nesse movimento de estar e não estar dentro do território, e colocar isso para as pessoas não indígenas entender que de fato enfrentamos muitas violências, é a gente que tem que falar todo dia, a existência, reafirmando que a violência existe, e que a gente não está para descolonizar, porque não estamos colonizando. Fomos sim colonizados, mas a gente está no processo de sim falar nós por nós, tanto na escrita, tanto em trazer essas narrativas de experiência, de vivência, para esses lugares como é o Museu da Pessoa, porque ainda há uma visão infelizmente por parte dos não indígenas, que o corpo indígena não tem valor. Quando se fala de valor, qual é o corpo que tem valor no Brasil hoje? Se a gente for pensar nos povos indígenas nós não temos, todo dia morre um de nós, e essa morte é silenciada, e somos muito pouco ainda para defender as nossas causas, mas estamos muito felizes também por ficar nesse espaço, e que venha mais pessoas para fazer a diferença, para indienizar esse processo. Os povos indígenas estão vivos, e vamos continuar vivos, eu vou continuar na luta apesar do processo violento, do genocídio, e que a pesquisa possa fazer parte da nossa vida, e que essa pesquisa também traga resultados positivos para dentro das comunidades indígenas, que tenha mais mulheres baniwá que consigam terminar o ensino superior, e que tenha mais mulheres de outros povos que consigam chegar na universidade, e que é possível sobreviver, além de não gostar de comida de gente estranha, a gente sobrevive, enfim...açaí faz muita falta mas, pimenta a gente acha em todo lugar.
1:39:12
P/2 - Gostei dessa complementaridade da pimenta. É muito bonita a sua fala para Braulina, muito bonita, muito forte. Queria agradecer todo o seu tempo, a sua disponibilidade, de você contar sua história. Eu ia perguntar como foi para você contar sua história aqui hoje, mas você respondeu um pouquinho, e eu tenho uma última pergunta.
1:39:50
P/1 - Eu ia perguntar sobre esse corpo território, mas eu também sinto que você respondeu agora, você deu uma resposta sobre isso, se você quiser comentar um pouco, eu acho que um pouco da noção da sua pesquisa, e da sua trajetória também, eu vi que você escreve sobre essa noção de corpo território, você abordou um pouco isso nessa última fala, mas se você quiser explorar um pouquinho, comentar mais um pouquinho disso, porque isso tanto faz parte da sua pesquisa, quanto eu acho que faz parte da sua trajetória de vida, a que você trouxe aqui para gente hoje.
R - Vocês vão ler a minha dissertação depois viu. Todo esse processo, eu falo muito dessa vivência, de sobreviver nesse espaço de movimento do corpo, tanto de retornar para a comunidade, de viver na cidade, compartilhar experiência com os não-indígenas, escrever sobre isso mas, isso não te tira a condição de ser uma indígena baniwa Hipamaalhe, você continua sendo Hipamaalhe, aquela que cresceu lá na comunidade Tucumã mas, também é esse corpo que pode colaborar com outras formações, porque você não está separado em nenhum momento, ao mesmo tempo que você carrega essa identidade cultural de ser quem você é, te faz um pouco território forte para enfrentar várias coisas mas, você só consegue isso, se você tiver esse contato, e essa conexão com sua identidade, e isso não tira também dos parentes que nasceram na cidade, eles continuam sendo corpo-território, a partir da sua família, a partir dos seus avós, a partir da nossa comida. O território te traz outras formações mas, o seu corpo também carrega essa formação. Tem muitas pessoas que falam da retomada, eu sou indígena da cidade, eu tento compartilhar com essas pessoas que esse corpo que nasceu na cidade, ele continua sendo o território daquele povo, que ele nasce com esse saber, ele nasce com essa vivência que é dele, é singular de outras pessoas, por exemplo, a gente tem nossa comida própria, do meu povo é pimenta, a gente não come sem pimenta, a galera que vem de outros estados, que vão para outros estados, carrega a comida dele para onde ele vai, mesmo que eu tenho um filho, eu Braulina baniwa, com um alemão, meu filho vai comer pimenta, ao mesmo tempo que meu filho vai ter identidade alemã e baniwa, ele vai comer essa comida dessas duas pessoas, ao mesmo tempo que ele tem uma identidade baniwa, ele também tem alemã, ele também é um baniwa, ele não é metade de uma coisa, ele é um todo. Quando se fala desse território, é justamente para quebrar essa discriminação de quem sai do seu território deixa de ser indígena, nosso corpo é além disso, nosso corpo carrega além dessa minha fisionomia física, de aparência, de cabelo liso, meu corpo carrega outros conhecimentos, é no sentido de contrapor essa discriminação, de que a galera fala muito de quem está na universidade, deixa de ser indígena, essa é minha contra narrativa.
1:45:24
P/1 - O que você ainda busca, qual é seu sonho na vida?
R - A memória é que, as oportunidades são diferente para cada um de nós, tanto para nós que estamos aqui na sala, quanto para os 305 povos indígenas mais os parentes isolados, isolados pelos não-indígenas, porque para nós eles são parentes, quando somos tratado por ser diferente, eu gosto de ser diferente, porque eu sou baniwa, sou medzeniako, eu tenho minha história, porque eu carrego comigo mas, por outro lado, eu sonho muito com oportunidades melhores, para que a gente consiga manter nossos direitos, e conquistar mais direitos, eu ainda estou atrás desse sonho, de ver mais pessoas com conhecimentos técnicos para defender melhor, já temos corpo técnico que trabalham em prol dos povos indígenas mas, não temos juízes ,não temos desembargador, não temos procuradores indígenas, eu ainda sonho sim com pessoas que cheguem nesse lugar, e mais pessoas na Câmara dos Deputados, quem sabe um senador/senadora indígena, para de fato criar leis que contemplem as nossas vivências indígenas, e contemple o sonho de indígenas que querem trabalhar com educação de qualidade, que de fato a saúde seja diferenciada, e que ser diferentes seja respeitado no Brasil, esse é meu sonho, porque ser diferente é ser discriminado, é ser silenciado, ser diferente com respeito e entender que esse diferente é humano também, é esse respeito que que todos nós merecemos, em qualquer lugar, em qualquer espaço mas, quem sabe a gente tentar diminuir esse olhar diferente quando olham para nós, e deixarmos de ser estrangeiro na nossa própria terra, porque somos vistos como estrangeiro. Hoje mesmo a pessoa falou assim, nossa você é da Venezuela, você não é Brasileira, todo tempo você escuta isso, em qualquer lugar, eu sonho muito de alguém não indígena chegar assim. - Nossa você é indígena. Sim eu sou! Sou do Amazonas, sou do Rio Negro, que meus parentes pataxó perguntado. Nossa você é indígena pataxó. Que a gente não seja mais questionada, se é bolivianas, se é colombianas, se é de outro lugar. Porque precisamos desse respeito na nossa própria terra, e todo dia a gente pede isso.
Iauaretê.
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