Entrevista de Vanuza da Conceição Cardoso
Entrevistada por Renata Pante e Lígia Scalise
Belém, 13/06/2025
Entrevista número: PCSH_HV1478
Projeto Vidas, Vozes e Saberes em um mundo em chamas
Realizado por Museu da Pessoa
R - Meu nome é Vanuza da Conceição Cardoso. Sou do dia 12/06/1977 e sou nascida no território quilombola do Abacatal, que está situado em Ananindeua, no estado do Pará. Então, na comunidade, como é um território quilombola, tradicional, a minha geração, grande parte, nasceu de parteira, não é? Então é. A gente nascia do parto normal em casa, e foi dessa forma que eu que eu fui nascida. Sou a sexta de onze irmãos e até a minha irmã que é depois de mim, foram partos em casa, então eu também pude, quando criança, ver essa interação do parto, onde a parteira vinha sete dias antes pra casa e esperar… Como falava na comunidade, esperar a hora. A hora era a hora do parto, hora da criança nascer. Então as parteiras da comunidade na grande maioria a sabedoria era ancestral, era tão grande que ao puxar a barriga… E eu também tive, passei por esse processo. Só não tive em casa, mas passei pelo processo. É do puxar. Quando engravidei do meu dos meus primeiros filhos, elas sabiam exatamente o tempo, né? E aí, como as algumas moravam longe, elas precisavam se deslocar para casa, né? Das mães uma semana antes, que era para preparar banhos, né? É organizar comida, que é galinha de quintal. Também passei por esse processo da alimentação mais natural. Então tinha todo um processo antes, né? Do parto durante e o cuidado depois que a parteira, ela só ia embora sete dias depois. Depois do banho, dos 7 dias da criança. Aí elas se deslocavam pra casa delas. Então eu acompanhei. É a minha irmã, 2 irmãs depois de mim, que ainda nasceram de parto também. E quando criança a gente não entendia muito essa movimentação assim, a gente sabia que tava acontecendo muita coisa, mas a gente não se dava conta que era,...
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Entrevistada por Renata Pante e Lígia Scalise
Belém, 13/06/2025
Entrevista número: PCSH_HV1478
Projeto Vidas, Vozes e Saberes em um mundo em chamas
Realizado por Museu da Pessoa
R - Meu nome é Vanuza da Conceição Cardoso. Sou do dia 12/06/1977 e sou nascida no território quilombola do Abacatal, que está situado em Ananindeua, no estado do Pará. Então, na comunidade, como é um território quilombola, tradicional, a minha geração, grande parte, nasceu de parteira, não é? Então é. A gente nascia do parto normal em casa, e foi dessa forma que eu que eu fui nascida. Sou a sexta de onze irmãos e até a minha irmã que é depois de mim, foram partos em casa, então eu também pude, quando criança, ver essa interação do parto, onde a parteira vinha sete dias antes pra casa e esperar… Como falava na comunidade, esperar a hora. A hora era a hora do parto, hora da criança nascer. Então as parteiras da comunidade na grande maioria a sabedoria era ancestral, era tão grande que ao puxar a barriga… E eu também tive, passei por esse processo. Só não tive em casa, mas passei pelo processo. É do puxar. Quando engravidei do meu dos meus primeiros filhos, elas sabiam exatamente o tempo, né? E aí, como as algumas moravam longe, elas precisavam se deslocar para casa, né? Das mães uma semana antes, que era para preparar banhos, né? É organizar comida, que é galinha de quintal. Também passei por esse processo da alimentação mais natural. Então tinha todo um processo antes, né? Do parto durante e o cuidado depois que a parteira, ela só ia embora sete dias depois. Depois do banho, dos 7 dias da criança. Aí elas se deslocavam pra casa delas. Então eu acompanhei. É a minha irmã, 2 irmãs depois de mim, que ainda nasceram de parto também. E quando criança a gente não entendia muito essa movimentação assim, a gente sabia que tava acontecendo muita coisa, mas a gente não se dava conta que era, né? A espera de uma outra criança, enfim. E aí quando tinha um grávidas próxima, a parteira que a gente chama, chamava de mãe, que é quem pegou a criança pela primeira vez. É, todo mundo da comunidade chamava de mãe, então ela ficava por perto assim, né? E ela era a tia. Para além de parteira, ela era a tia da mamãe, irmã do meu avô, e era muito próxima. Então ela ia com os filhos todos lá para casa, né? Para casa assim, da pessoa que ia entrar em trabalho de parto. E eu vi muito essa realidade na comunidade. E aí quando as pessoas, elas.
R - Tem um ditado lá na comunidade. A gente fala nascido e criado de umbigo enterrado, porque quem nasce em casa, o umbigo é enterrado na comunidade, então a minha infância toda eu convivi com isso, com esse cuidado. Eu sou afro religiosa também. Eu posso ir levando as perguntas, não sei porque eu vou ligando as coisas.
P/1 - Mais sobre essa esse processo do umbigo enterrado.
R - Então na comunidade tem um processo do cuidado que é diferente do hospital. Então as parteiras têm uma ajudante, porque também não é sozinha, precisa de outras pessoas, e aí é o cuidado com a mãe, é o cuidado com a placenta, é o cuidado com o umbigo mesmo, que é o cordão umbilical, então é dentro da sabedoria ancestral, já tinha esse cuidado com com esse umbigo, com esse cordão umbilical. E aí é todo um ritual para fazer esse enterro, que criança não podia ver, né? Mas aí tem criança aqui, tem criança que é muito para frente. E aí a gente acabava percebendo, né? E a gente sabia que ia acontecer alguma coisa. A gente só não sabia o quê, né? E era muito esse cuidado com o cordão umbilical, né? O horário, o local, e assim, é impressionante que a gente tem… A gente tem esse vínculo, tu cria esse vínculo com esse espaço, sabe? É do sei lá assim, da proximidade de tu te sentir acolhido, mais calmo. Enfim, é todo esse ritual que é feito, né? Que eu acho que é… A gente perde muito quando as mulheres vem pra cidade, quando tem as cirurgias, quando tem as cesáreas da vida. Enfim, então a responsabilidade da parteira a ficar na casa até o sétimo dia, que é o cuidado que a gente também tem ainda, né? É de não pegar vento, de uma série de coisas. E aí após isso a mãe e a família já seguiam, né? O seu curso. Então a questão do enterrar era muito ter esse cuidado de onde era sempre perto de árvores grandes. Porque na cabeça deles, de quem ia fazer esse ritual era no espaço que daria frutos. Enfim, eram muitas coisas que a gente não tinha entendimento, que a gente só consegue perceber hoje através desse sentimento com a Terra, com o espaço, com o território mesmo. Não, a gente nunca, eu nunca cheguei a ver o, como é que eu vou dizer não… não é enterro, né? Porque era numa perspectiva de renascer. É porque a gente não chegava perto, a gente sabia que ia acontecer, mas a gente ia até uma parte quando eles viram, quando elas viram, elas botavam a gente pra voltar, enfim. Mas eu tinha muita curiosidade, a gente queria saber o que tava enterrando, já que a criança tinha ficado, tava vida. Mas enfim, são saberes assim que eu acho que diz muito das nossas vidas.
P/1 - E você sabe me dizer como é que eles escolheram o seu nome? Por que foi Vanuza?
R - Então, até hoje eu não entendo porque foi papai que escolheu. Eu espero muito que não tenha sido por conta da cantora, que eu não canto nada, mas enfim, nunca soube assim, nunca soube porque o meu nome é Vanuza, porque é o único nome também. É diferente, mais diferente das minhas irmãs, mas eu gosto. Mas eu tenho um outro nome ancestral também, que é da minha, da religião, que é a dijina que a gente fala. Eu recebi em 2018, que deveria ser aproximado a esse nome, mas enfim, eu gosto dos meus nomes, então o processo da divina é um processo também, é um ritual espiritual. Eu sou afro religiosa, eu sou afro indígena, a minha mãe, a família materna é de tronco indígena também, e o meu pai é quilombola, então as 2 religiões, as 2 etnias, as 2 raças se ligam muito. E aí a família da minha mãe… eu tinha um tio que era pajé, tinha tios que eram pajés, que faziam o trabalho com os caboclos, com mais na linha. É dos indígenas mesmo, né? Das penas em maracá, e aí é. Eu sempre soube, eu sempre sentia. Na verdade, eu achava que eu era estranha por muitas coisas que aconteciam, que eu não tinha entendimento, compreensão, embora soubesse que a minha família era na linha da pajelança, que o meu tio era pajé, fazia trabalhos e tudo. E aí é há muito tempo... Acho que 2010 eu descobri a primeira pessoa que falou que eu tinha, que eu era médium, que eu tinha mediunidade, mas eu não conhecia muito, não conhecia muito, então eu busquei saber mais, me aproximar muito. Antes da gente convivia… porque o meu tio fazia também as pajelanças, os trabalhos, que fala na comunidade. Falava assim, que eram trabalhos em Datas de Santo, mas ele sempre trabalhou na linha da cura, que era com banho, com as ervas. Enfim, fazia os rituais e aí quando eu comecei a despertar pra religião, acho que foi em 2000. Não, não lembro muito, mas eu já era adulta, já era mãe, foi em encontros também de comunidades quilombolas, que uma senhora, ela falou pra mim que eu era médium, mas aí eu não entendia e aí eu comecei a estudar. Mas o meu chamado mesmo para a espiritualidade foi em 2016, onde teve um evento no abacatal e aí uma orixá do Rio Grande do Sul foi até a comunidade porque, ela falou, a entidade falou que a raiz dela era do Abacatal. Esteve no Abacatal, na ancestralidade, que é mãe preta. Então ela disse que foi levada, os descendentes foram levados ao Rio Grande do Sul, mas ela fez o caminho de volta, foi na comunidade e foi no caminho das pedras, que é um espaço da comunidade, é um espaço sagrado pra gente, onde originou a comunidade como território quilombola que ela é, incorporou e falou que era um território de mãe preta, que a Abacatal é um território de mãe preta e a Abacatal é um território matricial, é um território que advém de mulheres, da descendência de mulheres. O matricial é muito diferente do matriarcal, né? A nomenclatura, não, não só a nomenclatura, mas os significados em si. Então ela falou que no território e a partir disso eu comecei a perceber a força que Abacatal tem na área nesse campo da mediunidade, sabe? Porque assim a gente tem, a gente sente as energias quando eu comecei a fazer. É o acompanhamento espiritual. Eu comecei a perceber mais de perto as energias, a influência que a energia das pessoas causam. Elas já causavam, mas eu não entendia o porquê, não tinha compreensão. Então o chamado a espiritualidade foi em 2016 e aí eu comecei a fazer um acompanhamento espiritual, até eu receber a minha dijina, que foi em 2018, lá no Rio Grande do Sul. E aí a gente foi para lá, para o Rio Grande do Sul, aí eu fui, mas assim, eu sou da Umbanda, da linha da Umbanda, da linha de cura. A nossa linha é trabalhar as ervas, é o poder, a cura com as folhas. A gente não trabalha com com os animais, com cortes, a gente trabalha só com com as ervas e com com alimentação. Mesmo assim, não, não tem uma outra linha. A minha mãe é do jeito dela, então a minha mãe é essa é uma referência para mim, minha mãe é indígena, né? Ela é indígena e é analfabeta, mas ela sempre nos ensinou outros valores que a escola, que a academia não ensina, a partir do caráter, a partir da gente ser pessoas de bem, responsáveis. E a minha mãe, sempre trabalhou muito, muito mesmo. Ela apanhava a sair. Eu lembro que quando eu era criança, a gente morava na beira do Rio, do Igarapé da comunidade, e aí ela saía cedo, tipo 6 horas da manhã. Ela acordava às 4h55, aí ela fazia café. Nós éramos muitos, e ela deixava o café e ia para o mato, porque ela apanhava a sair. Aí ela tirava a folha de guarimã, não sei se vocês conhecem. Pois é, mas antes da sacola plástica e do papel, aqui no Pará, embrulhava alimentos na folha do guarimã, peixe, carne, o que vendesse. Caça, que era mais comum nesse tempo, era embrulhado nessa folha, que é uma árvore nativa da beira da Várzea. E aí ela cortava e era vendida em milheiro, centro e milheiro. Então o trabalho das crianças eram lavar essas folhas, dos menores. Dos maiores era conferir para saber. E o meu vô trazia para cá, para Belém, para vender aqui perto, que é o Porto da palha. E aí a minha mãe saía muito cedo, voltava muito tarde. Quando ela voltava, ela trazia o açaí que era para a gente jantar. Aí trazia peixe, porque enquanto ela tirava açaí, cortava folha e fazia outras coletas, eles cercavam os igarapés, que a gente fala de tapagem. E aí, no fim, eles abriam, traziam os peixes. E fazer um a nossa alimentação, então os maiores, no caso eu e uma outra irmã que era maior que eu, a gente ia organizar a comida para quem estava trabalhando e para os menores. Então assim, a minha mãe trabalhou muito, muito mesmo assim. Eu lembro desde sempre a minha mãe trabalhando, ela tirava açaí, ela tirou pedra, ela fez carvão, fez farinha, trabalhava na roça com a produção de farinha, torrava a farinha sozinha. Porque quando eu lembro que aos 7 anos foi quando começou a disputa pelo território que a gente correu o risco de ser retirado da comunidade, porque venderam o território, venderam a comunidade. A gente não tinha o título definitivo, porque antes, no Brasil Colônia era para o Maranhão... Então o Conde era dono do Abacatal, ele também tinha bens no Maranhão, e aí a documentação da comunidade ficou no Maranhão, que também se perdeu, né? E aí, como a gente não tinha o título da Terra, não tinha o conhecimento de que éramos descendentes das pessoas que foram escravizadas, a gente foi duas vezes… tentaram expulsar e aí derrubaram nossas casas. Eu tive a nossa casa derrubada duas vezes. A gente ficou sem casa e aí o papai começou a andar, a buscar conhecimento por conta do território e aí a mamãe ficou mais sobrecarregada ainda, para cuidar de nós, para educar, para alimentar, enfim. E aí a minha mãe é essa pessoa assim, ela, tipo, trabalhava muito, trabalhava muito mesmo. Parou há pouco tempo, porque a gente parou ela, mas ela ainda vai na roça escondida de nós, que todo mundo começou a sair, e agora, né? Quem continua trabalhando na roça, que é irmã dela e o meu irmão, ela sempre vai ajudar, mas ela tá com pouca visão, apesar dela ter feito uma cirurgia do de visão há pouco tempo, mas ela já não tem mais saúde, embora ela não seja tão... É de idade. Ela tem 75 anos, mas o processo do trabalho pesado fez com que ela hoje já não tivesse as mesmas… não fosse tão ativa como outras pessoas da mesma idade dela. Então ela sempre trabalhou muito e foi muito pesado, porque eu passei por esses processos também. Eu também ajudei o meu primeiro companheiro
R - quando ele tirava pedra, e é horrível, você não tem noção. Ele fazia carvão também, que era a forma de de renda da comunidade também era muito ruim. E por muito tempo foi na confecção da farinha, da roça, da mandioca, que também é cansativo, é pesado, é cansativo. E então eu passei por todos esses processos também, de experiência. Mas enfim, são trabalhos que exige muito, da mulher, da nossa força, enfim. E aí eu, quando eu falo que a minha… embora ela não tenha uma idade tão avançada, mas a aparência dela é, né? E apesar dela ser indígena também, mas ela trabalhou muito no pesado, então isso fez com que ela ficasse mais desgastada que outras pessoas. O meu pai, ele também trabalhou na agricultura, mas aí a partir dum tempo que ele foi… titular da liderança da comunidade, ele começou a sair pra tentar buscar a documentação da comunidade, então o meio que a gente cresceu sem muito a presença dele, que nessa busca, nessa luta era mais a mamãe que estava em casa. Ele estava no mundo assim, andando, com outras comunidades, com outras lideranças, enfim. Então é de trabalho. A minha referência de trabalho mesmo é a mamãe.
P/1 - Como eles se conheceram?
R - Então a minha mãe, ela não… a minha avó não era da comunidade, então ela e o meu avô, nessas festas assim de Santo que a gente fala, eles foram na Ilha das Onças. A minha avó era da Ilha das Onças, que é uma ilha aqui na frente, de Belém, e ele foi para uma festividade lá, conheceu a minha avó e levou ela pra comunidade. E eles viveram juntos até morrer, meu avô, depois minha avó. Minha avó teve 25 filhos. 25 filhos, mas desses 25, 18 foram parido, os outros foram em abortos. Gerava, mas não chegava no parto, mas ela conferia, 25 filhos. Ela era bem baixinha, uma indígena muito braba, bem baixinha, mas ela nos ensinou muito também, grande parte dessa vivência com a Terra, a gente aprendeu com ela. Minha vó capinava com a mão, ela não gostava de ferramentas, ela comia na cuia e ela sentava no chão também, não gostava de cadeira, essas coisas. E ela andava muito com os pés no chão, que na percepção dela ela precisava sentir a energia da Terra. E aí a gente questionava, porque ela não colocava sandália, sapato. Ela não gostou nunca, desde que eu me entendo… E aí quando ela adoeceu também, que ela teve câncer. Ah, era muito difícil trazer ela para consulta, não é porque ela não gostava de sair da comunidade, ela não gostava, mas enfim, e aí o meu pai conheceu a minha mãe lá, a minha mãe já tinha outros filhos quando ela conheceu o meu pai. Eu tenho quatro irmãos acima de mim e ela conheceu… ela já morava nas margens do Rio do Igarapé, e o meu pai a conheceu nessas festas de Santos… Como eu vou dizer? As atividades culturais que tinham naquele tempo, eram as comemorações de Santo, religiosas. Então eles se conheceram na festa de Nossa Senhora da Conceição, que é em dezembro, que eram oito dias de comemoração. Fechava com a… Até eu acho uns 12 anos que eu tive, ainda acontecia, fechava com a barqueada no Igarapé, que a Santa ia para uma outra casa, então foi, mas a festa era lá na comunidade, na beira do Igarapé, lá no território mesmo. Então eu ia, mas era muito criança ainda, não tinha muito conhecimento. Eu lembro muito que chegava a embarcação grande lá, que como o meu, a casa do meu avô era na beira do Igarapé, perto do caminho das pedras. Aí no caminho das pedras é o porto que a gente fala, onde chegava outras embarcações. E aí chegavam os barcos maiores e eles atracavam lá, no Caminho das Pedras, então a gente via muita gente chegar para essa festa. Desde a quinta, sexta-feira, as pessoas começavam a chegar quando a festa era no sábado, aí a gente via muito essa interação de pessoas de outros lugares, de outras comunidades que iam para lá. Mas é participar, estar na festa mesmo, não, nunca participei, porque eu era criança ainda e aí a gente não ia.
P/1 - Esse Caminho das Pedras, como ele era? Consegue descrever?
R - O Caminho das Pedras é uma trilha. É um metro de largura. Ele tem aproximadamente 300 metros de comprimento da margem do Rio do Igarapé até a Terra firme. Ele foi construído porque é uma área de várzea e aí alaga. No inverno ele fica submerso. Então era liso. E o conde diz sobre a história oral, a qual eu acredito muito, que para ele não cair, ele precisava ter estabilidade e aí as pessoas que foram escravizadas foram obrigadas a construir o caminho, então o Abacatal é o Caminho das Pedras, literalmente, porque é quem nos concedeu a titulação, de coletivos, pelo laudo antropológico da universidade, dessa universidade, então todos os estudos foram a partir daquele caminho e nas proximidades do caminho era encontrado muitos materiais do tempo do Brasil Colônia, como garrafas. É moringa que fala, né? Não sei se vocês já ouviram essa palavra, mas é uma garrafa que carregava água para quem trabalha longe, então moringas de carregar água, panelas, colheres, então alguns artefatos que a gente encontrava, que a gente conseguiu catalogar pra saber o tempo, e aí são museólogos, inclusive aqui da UFPA, que que faziam essa análise, né? Eles falavam que eram herança desse tempo. Então é o caminho das pedras, ele é muito… Vocês não vão conseguir ir lá, mas o Igor já foi no caminho das pedras. Então o Caminho das Pedras era a frente da comunidade. Hoje a gente inverteu, porque ele tá no processo de tombamento pelo IPHAN. Hoje tem uma lei no estado que foi aprovada, que é um. Patrimônio Cultural Imaterial, que é o Caminho das Pedras. Então antes a gente ia do portão, que é 2, 3 km, pro Caminho das Pedras, para o Porto, que a gente falava, com produção, e de lá saía para vim para cá, para Belém, porque não tinha estrada, não tinha. 1970, acho que a história que eu escuto é que começou abrir o ramal em 1975, que foi chegando pra perto da comunidade, mas antes era só a estrada, que era Belém-Bragança, que era estrada de ferro, então não tinha essas possibilidades de municípios, então era só a capital mesmo, e outros municípios mais antigos. Então o Abacatal completou esse ano 315 anos, né? E Ananindeua tem 81 anos, então a gente sempre fala que a Ananindeua é bisneta do Abacatal na questão da idade, porque a gente não vinha para cá, a gente vinha para Belém porque vinha pelo mar. O meu vô tinha uma catraia, que é um barco de madeira, bem rústico. E aí ele trazia a produção na sexta-feira e ele voltava no sábado, ao meio-dia, uma hora. Eu lembro que a gente vinha quando criança, correndo lá de casa em cima de palafita, que hoje eu não consigo me equilibrar muito em cima dos palafita. Mas a gente vinha correndo, esperar ele chegar de Belém para carregar as compras que ele comprava. E aí ele fazia a compra para toda a família, para todos os filhos. Assim ele fazia a compra.
P/1 - Qual é a sua relação pessoal com o Caminho das Pedras?
R - Então, a minha relação pessoal com o caminho das pedras é muito é... Como eu vou dizer assim? É uma relação muito do sagrado, entende? É a partir do acompanhamento espiritual. A gente precisou sentir, do caminho, todo o sofrimento que os meus ancestrais passaram lá. E assim, a gente fez vários rituais lá, então embora eu já soubesse que era um espaço muito importante para a comunidade, eu não tinha a ideia do quão sagrado ele era para a espiritualidade, para falar da nossa ancestralidade, para falar do processo que foi construído, da forma que ele foi construído, porque ninguém carrega pedra de graça. E ele é… se vocês conseguirem fazer a busca, o Caminho das Pedras do Abacatal, é um espaço que as pedras são muito sentadinhas assim que era para ficar nivelado mesmo, então a minha relação hoje é muito de pertencimento e de responsabilidade, assim, responsabilidade com o território por tudo que os meus ancestrais passaram para construir aquele espaço. Então é uma relação de pertencimento, de responsabilidade, de preservação. E a gente tem muita luta para preservar, porque as pessoas não respeitam, e aí eles mexem com as pedras do lugar, e assim é uma luta que a gente tem constante para manter ele da forma que ele é, que ele precisa ficar. Até porque hoje ele está no processo de tombamento e aí tem várias leis que hoje amparam os patrimônios históricos.
P/1 - Queria que você descrevesse um pouquinho pra gente, como era o Abacatal? E a sua casa da infância, os cheiros que você lembra, os sonhos?
R - Abacatal de antes era… A minha casa era na beira do Igarapé de assoalho. O nosso banheiro era o rio, era tomar banho no rio, e subir… Eu lembro muito do cheiro da Terra, da Terra molhada, da lama que a maré enche e vaza, e fica lama no inverno, ela fica muito seca, dá até para jogar bola, o campo era submerso, né? Então no verão ficava seco, no inverno era alagado e assim são lembranças da minha infância. Era muito do café, o cheiro do café, que era café torrado, café torrado em casa, colhido e torrado. E é ultimamente assim nas minhas revivências, na minha visitação ano passado, eu lembro muito da minha avó com as minhas tias, das mais velhas conversando, mas era muito, era uma conversa muito baixa, muito… Sabe quando parece que tu tá falando segredo? E aí hoje eu me dou conta, sabe eu, esse é o meu tom de voz. Eu tenho um tom de voz pra maioria das pessoas alto, né? Quando eu falo, as pessoas acham que eu tô gritando, mas é o meu tom de voz. Porque sempre me incomodava esse falar baixo, como lá na comunidade a gente fala os cochichos, então muitas coisas relacionadas à família, a questão de casa, de relação, eram muito baixas assim, muito silenciosas. E outro dia eu tava… eu sempre falo: “Não me pede para para falar nada em segredo para o outro”, porque eu vou falar e todo mundo vai ouvir, porque eu não consigo falar baixo, mas assim isso me incomodava muito, sempre me incomodou os cochichos dela. Eu não sei se era pra gente não saber quanto criança ou se era por conta dos homens também, que de repente não podiam ouvir, enfim, então assim eu fico lembrando, eu sou de uma geração hoje, como é que eu vou dizer? Que é mais independente, por trabalhar, por ter saído, por ter largado, separado, largado a casa e tudo porque eu não me via naquele espaço. É doutrinado de ser a dona de casa, né? Ser sua mãe e dona de casa. Então, embora eu saiba que eu tenho a responsabilidade com meus filhos e eu os encaminhei, graças a Deus, pra escola, pra igreja. Eu sei que eu não tenho responsabilidade com o que eles fazem, o que eles deixam de fazer, mas eu os encaminhei pro que é certo, pra ser pessoas de bem, pra ser pessoas responsáveis, de caráter, enfim, mas eu nunca fui de de esconder assim, de falar baixo, disso não pode. Mas eu percebi muito isso e era muito na hora do café, na cozinha. Quando estava fazendo café ou quando estava cozinhando, fazendo comida, quando estava lavando roupa lá na beira do Igarapé, era uma fala muito para dentro, embora elas se entendessem, mas hoje eu me pergunto se era porque a gente não podia ouvir, se era porque os homens não deveriam ouvir ou se era porque os homens proibiam essas falas. Então me revive muitas coisas, graças a Deus que eu não sou desse tempo, porque senão não ia aguentar. Mas enfim, foram vivências na infância que a gente percebia, né? “Não pode falar alto”, não podia passar na sala quando o meu avô recebia outras pessoas, então as crianças tinham que descer, mas não podiam atravessar a sala, enfim, são coisas que eu observo que hoje já não acontece mais, né? E graças a Deus umas não acontecem mais, mas enfim, são muitas lembranças assim. A gente tinha uma infância livre, a gente tomava banho a qualquer hora no rio, a gente comia a fruta, que graças a Deus Abacatal é muito abençoado na questão das frutas daqui do norte. Então a gente era muito livre nesse sentido. Foi uma infância muito livre, de tu ir, voltar e brincar, brincar de brincadeiras saudáveis, que era brincar de pira, que era subir na árvore, que era inventar as coisas. A gente já inventava a casa da árvore, embora a gente não soubesse dessas coisas, mas a gente fazia assim, que como morava perto, os meus tios moravam perto, eram muitos primos. Às vezes será bom, às vezes será ruim, porque a gente brigava demais, mas assim foi uma infância muito grande, com muitos primos próximos, mas uma infância muito livre, que hoje eu não consigo ver a minha neta, por exemplo, tendo essas brincadeiras de tomar banho no rio, porque ela só vai quando a gente leva, porque também ficou de alguma forma... É arriscado porque vão outras pessoas pro Igarapé, que não são da comunidade, que não são conhecidos, enfim. E aí a gente tem todo esse cuidado, mas antes não era assim. Eu tive uma infância muito livre, graças a Deus.
P/1 - E as comidas da infância? Você falou do peixe com açaí, tinham outras? As frutas?
R - Peixe com açaí, galinha caipira e porco, que eram de criação e caça. Também tinha muita caça, então carne bovina. Eu lembro que a gente comia só no domingo a carne, porque o meu avô vinha para Belém e aí ele comprava. Ele chegava no sábado e era o almoço do domingo, mas na semana, né? Para além do feijão, feijão com peixe salgado ou com charque que eram os peixes do Igarapé. E a galinha caipira e as outras caças que tinham muito na comunidade, hoje já não mais.
P/1 - E você tinha relação com outros animais ali do entorno, como que era?
R - Então eu nunca fui muito boa com os animais, mas a gente cresceu vendo, até pela cultura mesmo, os animais muito, muito perto. Cotia, vinha, porque eles também comem frutas, e aí como tinha muita fruta, eles vinham se alimentar, elas vem até hoje, elas ainda tem essa ligação com a gente, então alguns animais vinham muito perto de casa por conta das frutas que caíam e eles vinham comer, mas animais grandes assim, que eu cheguei a ver foi viado, acho que só viado assim. Eu não quero ver a onça nunca, porque agora tem uma onça andando lá pra banda do Abacatal. Mas enfim, foram animais assim, mas a nossa alimentação era muito nessa linha do açaí, de galinha caipira, de porco e das caças mesmo, das caças.
P/1 - Você disse que seu avô vinha muito para Belém, né?
R - Só aos finais de semana.
P/1 - Você vinha também?
R - Não lembro. Não lembro assim de ter vindo. A gente vinha quando estava doente, mas assim, eu também não lembro muito, mas não lembro de ter feito viagem para Belém e voltar assim. Quando eu comecei a sair já foi para Ananindeua.
P/1 - Você não se enxergava nesse lugar das mulheres, né? Que falavam?
R - Baixo, sim.
P/1 - Você pensava já que você ia mudar tua vida, que você ia fazer diferente, você pensava como você ia fazer isso?
R - Então é desde criança, como eu falei assim, muitas coisas me incomodavam, embora eu não soubesse o porquê, mas eu não tinha ideia das coisas que já aconteceram, na minha vida, de onde eu pude chegar, na minha vida através da militância mesmo. Eu fui muito cedo coordenadora da associação, eu vivi muito. Eu, como é que eu vou dizer? Eu caminhei muito cedo, me envolvi muito nova ainda com associação, que é organização política da comunidade. Eu fui mãe muito cedo, aos 16 anos eu tive meu primeiro filho e aí a partir desse primeiro filho eu percebi que eu era responsável, embora de menoridade, mas eu era responsável por uma outra vida e aí a partir do meu primeiro filho, eu comecei a me envolver nos grupos da comunidade, grupo de mães, grupo de mulheres da igreja. Então foi a partir disso que eu comecei a perceber as oportunidades de mudança. De mudança não só na minha vida, mas da comunidade e sempre foram as mulheres que estiveram à frente na comunidade, desde sempre que eu me entendo eram as mulheres que puxavam as novenas, eram as mulheres que, por exemplo, o meu tio era pajé, mas quem fazia o preparo do ritual todo eram as mulheres. Ele estava naquele momento, que a gente fala que é do incorporar, do receber, mas quem preparava, quem fazia esse processo todo antes eram as mulheres, então assim, sempre foram mulheres na comunidade, sempre. A liderança da comunidade também foi muito de mulheres. E a partir que eu comecei… do meu primeiro filho, eu fui, participei. Eu acho que fui a mãe mais nova do grupo de mães, que era só pessoas mais velhas e só eu, com 16, 17 anos lá, sendo mãe no grupo de mãe das mais velhas e eu ouvia muita história de relacionamento delas assim que eu ficava muito sem entender porque que as mulheres se submetem a algumas situações, né? E aí mais para frente eu fui, porque pela dependência financeira, pela dependência afetiva com os filhos, eu não vou porque tem os filhos, por várias outras dependências. Então eu fui aprendendo isso no tempo.
P/1 - Voltei um pouquinho antes da maternidade. Quando você começou a estudar?
R - Então eu comecei a estudar na comunidade. Tinha uma escolinha lá que todo mundo estudava junto com todo mundo, porque não tinham turmas. Então a gente tinha só um professor que ele tinha que dar conta. Numa sala grande, ele dividiu no meio e aí ficavam os maiores pra um lado e os menores pro outro, todas as crianças da comunidade. Então até hoje eu não sei, não consigo entender como esse homem conseguia. (Risos) Deixa eu só consertar o meu turbante aqui. Consegui fazer com que a gente aprendesse alguma coisa, que ele fazia os trabalhos no caderno e aí ele levava pra escola de manhã e o nosso dever era fazer o dever do caderno e o nome dele é Evaldo, ele ia todas as manhãs, ele ficava com a gente lá. Duas turmas como eu tô falando, uma que cobria, que desenhava, que riscava, que perturbava os maiorzinhos e outros que já sabiam algumas coisas. Acho que até os 10 anos a gente só teve um professor que ensinava as crianças da comunidade, que era responsável pela educação da comunidade, que era o seu Ivo. E aí a partir disso foram… na tentativa… Já Ananindeua município, sabendo da comunidade, na tentativa de levar a professora, mas como é longe e não tem transporte, a estrada não presta, ela não dava condição nenhuma, as pessoas iam uma semana e desistiam, porque não tinha condições de todo dia e voltar. Até a formar uma moça da comunidade, que também foi uma professora por muitos anos, embora não tenha sido a área dela, que ela fez Administração, mas ela foi dar aula assim pra gente, ela veio pra Belém, pra família que morava em Belém, inclusive aqui no Aguamar. E aí ela estudou, né? Veio criança, estudou, aí terminou o ensino que ela conseguiu fazer, que era administração, e aí ela voltou para a comunidade, aí ela começou a dar aula e ai outras pessoas já começaram a ajudar ela nesse processo, mas a minha história com a educação foi muito essa, de todo mundo, muito junto, porque não tinha mesmo professores e as pessoas não queriam ir lá para a comunidade porque a prefeitura não dava suporte, porque era longe, porque não tinha uma série de apoios.
P/1 - Você lembra algum causo da escola, uma história?
R - Ah, era criança de braço quebrado que subia nas árvores para pegar a fruta. Eu lembro que a gente brigava muito, porque a gente vinha lá do caminho das pedras, que é longe pra caramba, é longe ainda. E a escola ficava tipo no centro, onde é hoje a sede, e a gente vinha andando. E a gente brigava muito nesse caminho dessa escola. Eu lembro de uma vez que o meu primo brigou com meu irmão, um irmão mais velho que eu, e se empurrando, ele caiu, quebrou o braço e aí foi uma confusão, porque foi o meu irmão que quebrou o braço dele empurrando assim, então foi pisa pra todo mundo. Todo mundo, até quem não tinha nada a ver com a confusão apanhou, que era muito isso pra na cabeça deles, pra repreender, apanhava todo mundo. Era muita briga assim. Nesse espaço que era a escola, que era só um salão mesmo. Aí tinha a cozinha que fazia a merenda, que não era, era só no começo do mês, na primeira semana do mês, aí tinha a merenda e depois a gente que se virava, aí tinha um pé de jambeiro também, que de vez em quando caia um de lá. Mano se quebrava tudo que era na frente da escola assim, tinham muitas frutas, mangueira, jambeiro. Então as nossas lembranças, quando eu falo que a gente teve uma infância livre, é muito nesse sentido assim. Parece que a gente era obrigado a seguir. A gente era muito livre na hora do recreio, pra gente estar nessa interação com o externo da escola, porque não tinha muro, não tinha nada, era só esse espaço e era tudo livre, então era muito isso assim.
P/1 E depois que foi essa professora de Belém para lá, você seguiu a escola?
R - Sim. Ela era da comunidade, ela veio, mas ela é da comunidade, inclusive ela mora, mora lá, a gente começou no ensino base muito tarde, tipo, com 7, 8 anos, porque não dava para cuidar de criança, já que era todo mundo no mesmo impasse, então a gente foi subindo muito tarde nas séries fundamentais, mas eu concluí um ensino fundamental já e concluí o ensino médio. E hoje estou aqui, através do processo seletivo, das cotas, estou aqui, mas assim nunca foi também a minha, nunca teve no meu raio assim a faculdade, nunca pensei em estar nesse lugar. A minha visão era os meus filhos, era encaminhar os meus filhos, porque eu não queria que eles passassem pelas mesmas coisas que eu passei, pela infância, pelo trabalho, por algumas privações que a gente teve. Por exemplo, no ensino fundamental, a gente andava do Abacatal até a BR, que são 10 km, a gente vinha, saía 5 horas da manhã, aí a gente tomava banho no Aura, que é uma localidade próxima, já a BR. Para a gente estudar às 7 da manhã, isso de quarta série, de terceira para quarta série. Eu sempre pensei que eu não queria isso para os meus filhos.
P/1 - E aí, com 16 anos, você teve seu primeiro filho?
R - Foi, o Felipe, com 16 anos. Eu engravidei no finalzinho dos 15 e tive ele em novembro, já com 16 anos, porque assim, quando eu comecei a estudar, Ananindeua era tudo muito novo, inclusive as coisas que a gente não deveria, a gente não deveria fazer. Eu não me arrependo dos filhos que eu tenho hoje e hoje eu não os teria com o mundo que tá assim, com essa coisa toda, mas eu não me arrependo assim. E eu comecei muito nova, ser mãe, que a gente fala na adolescência, precocemente, mas eu tive 3 filhos e operei e não tive mais também, porque eu sempre pensava muito em dar conta, do sustentar, tinha um medo de não dar conta de sustentar assim. Mas, enfim, eu busquei muito encaminhar meus filhos. Eu acho que eu fiz a minha parte, sabe? Eu faço ainda, porque hoje eu falo o que eles fazem, as besteiras que eles fazem. Não que eu não ensinei, eu fiz a minha parte, já é responsabilidade deles isso. Mas eu acho que não só os meus, muitos são assim.
P/1 - E você teve o primeiro com 16, o segundo quando?
R - Com 18. A Tamires com 18 e o Taisso com 20, que são 3.
P/1 - E você contou dessa associação, desse grupo de mães que você fazia a parte, como que era, como vocês se reuniam?
R - Então era um grupo de mãe que era acompanhado pela Emater, que é a empresa de assistência técnica, é do estado do Pará e que dá assistência lá no Abacatal, né? E aí essas mulheres que são mulheres de produtores, as minhas tias, na grande maioria eram tias, elas ensinavam a fazer o grupo para ter oficina de fazer pão, bolo, fazer produtos com o que a gente tinha na comunidade, com mandioca, com macaxeira, com jaca, com manga, aí era uma série de coisas. Então esse grupo de mães foi criado mais para essa linha, para aproveitar as frutas que a gente tinha, porque a gente só comia ou vendia in natura. E aí foi construído para processar mesmo, para dar uma outra linha de crédito que a gente fala hoje, da economia. Então eu era a mais nova delas todas, naquele momento assim.
P/1 - E foi assim que você sustentou o seu primeiro filho?
R - O meu primeiro filho foi muito com a ajuda do papai como a mamãe. Eu acho que quando eu tive o Lipe, uns 2 anos depois, papai se separou da mamãe. Aí a mamãe me ajudou muito assim, tanto que ele chama de mãe ela, chama de pai. Ele fala que ele tem 2 mães, só um pai, porque ele não conheceu o pai. É… como a gente fala isso? Não teve convívio com o pai biológico, então era o papai que ele chamava, de pai que ele chama.
P/1 - Você terminou a escola, você foi fazer o quê?
R - Então eu parei, né? Porque eu engravidei. Aí eu parei e aí depois de um tempo, depois que ele já estava com 3 anos, eu voltei para terminar o ensino fundamental. E aí eu parei no ensino fundamental. Eu concluí o ensino médio através do Enem, que foi em 2000, acho que 2015 eu fiz a prova do Enem. E aí eles já estavam grandes, já me ajudaram a estudar. E eu concluí, fiz 3 vezes. Nas primeiras 2 eu não passei porque eu não tinha ideia do que era espanhol nem inglês. Aí na terceira, que eu já tinha uma base, aí eu passei, mas foi muito na linha também de fazer o PSE, que é a política na reserva de vagas.
P/1 - E como era… Você ficou morando la no Abacatal?
R - Com o papai, sim.
P/1 - E o parto deles foi um parto de parteira ou…?
R - Não, eu nunca tive coragem pra ser sincera. Eu puxava a barriga, ia na parteira, mas eu nunca tive coragem de parir em casa.
P/1 - Todos os 3 foram no hospital?
R - Sim, mas de parto normal, parto normal.
P/1 - Como foi ser mãe, para você?
R - Foi a responsabilidade que eu vou levar para o resto da minha vida (risos), é a responsabilidade que a gente tem por outra vida, por outras vidas que não é mais só a gente, que aí só fortalece. O acreditar no mundo melhor, o lutar por um mundo melhor, então ser mãe é isso, sabe? É ter essa responsabilidade para sempre.
P/1 - Eles moram no Abacatal?
R - Todos no Abacatal.
P/1 - E tem suas famílias?
R - Dois são casados já. Eu tenho uma neta que é da minha filha do meio e o meu filho mais velho casou com uma moça que já tinha filhos, que já era operada, ele não tem filho e o mais novo namora, mas mora lá também. Não tem filho também.
P/1 - E hoje, como é sua relação lá no Abacatal? Têm um papel importante, né?
R - Então, na minha família… Isso é muito a herança do papai, porque a gente, quando o papai não tava, ele tava lutando pela comunidade. A gente se questionava muito porque o papai nunca estava em casa. Depois que a gente entender o que era por conta da comunidade, parece que foi um legado, né? Aí eu já tinha participado do grupo de mulheres, já era da igreja católica. Eu fui presidente da associação de pais e mestres. Por enquanto eles estudaram lá na comunidade. A educação dos meus filhos. Eu sempre acompanhei muito de perto, muito de perto, desde, por exemplo, a Tamires já foi uma realidade diferente da minha. Ela entrou com 4 anos na escola, então ela entrou com 4 anos, o Taisso com 4 anos, o Felipe… Então eles tiveram uma educação muito diferente das nossas, e aí ela terminou o ensino médio com 14 anos, por exemplo, entrou na faculdade com 15, e aí com 15 para 16. E então é muito a minha participação enquanto mãe, enquanto liderança que fez com que isso mudasse, com que essa realidade mudasse. E aí a minha relação com o Abacatal hoje é muito na defesa desse território. Não só pela educação, pela moradia, pela segurança, mas pelo território, pelo território, quanto terra, quanto ancestralidade, quanto pertencimento mesmo, de com que essa história, com que a nossa história vá com outras gerações, que as crianças de hoje não falem do Abacatal do passado, as fale nessa urgência que é a proteção do território hoje ainda. Então a minha relação com o Abacatal é muito nessa de liderança e assim, não foi uma coisa que eu quis ser, que eu: “Ah, vou fazer isso”, não. Fui levada pra isso, não foi uma opção minha assim, se eu quero ou se eu não quero, mas enfim, eu acho que eu consigo analisar a minha geração, a geração do meu tempo é pontuar as pessoas que são envolvidas mesmo nessa defesa, e são só mulheres.
P/1 - Como foi esse processo? Você falou que você foi levada para esse lugar de liderança, né? Como foi, como ele aconteceu?
R - Então foi por conta dessas questões, que faltavam muito para os meus filhos. Então na escola faltava merenda. Aí a gente tinha que cobrar a Secretaria de Educação, aí não tinha saúde, a gente precisava cobrar a Secretaria de Saúde. E aí foram muito essas indignações que me levaram ou que me trouxeram para esse lugar, entende? Era muito a falta de tudo. E aí a professora, que era diretora, que era secretária, que era só ela tudo da escola, ela cobrava muito da gente também, porque sozinha ela não conseguia. E aí foi muito nisso, chamando outras mães, questionando que a gente teve avanços. Por exemplo, hoje na comunidade os professores são todos quilombolas, que a gente pactuou no momento que ensinava e cuidava dos nossos, os nossos. Então não tem mais professor de fora. Na área da saúde, quem cuida dos nossos, os nossos. Então foi muito essa organização, sabe? Foram muito essas lutas que me trouxeram para esse lugar, né? É de liderança que eu hoje tenho uma responsabilidade imensa em levar isso. Mas é isso, sim, eu mal durmo na verdade, porque o celular, que é uma ferramenta que deixa a gente conectado com o mundo hoje, também não dorme. Se a gente não desligar, ele não dorme mesmo. E aí o meu cotidiano de liderança, enquanto liderança do Abacatal e à frente da Secretaria de Igualdade Racial no município, é muita cobrança, é muita responsabilidade. Então é estar no município próximo a Belém hoje no contexto da COP30, Abacatal é… como é que eu vou dizer? Ele é procurado de muitas formas. Então sempre as pessoas me procuram, eu repasso para a comunidade, que hoje eu não estou como Coordenação Executiva da Associação, eu sou liderança, mas não da Associação. Eu trabalho numa comissão que acompanha a coordenação, mas é trabalho, aí tem a vida acadêmica. Eu sou da associação de pós-graduandos aqui da UFPA. Então, isso também leva muito tempo da gente, está em muitos espaços debatendo a educação quilombola da forma que a gente vê esse espaço da academia. Como a gente se vê nesse espaço também, que é um espaço em disputas, né? Disputas principalmente de narrativa, que a gente sabe o que é científico, o que a academia fala que é científico e o que não é. Mas, enfim, a minha rotina é muito, começa muito cedo e termina muito tarde. Mas eu estou nesse desafio aí, muito cansada às vezes, né? Às vezes eu fico com muitas... Tenho muitas frustrações no movimento, no movimento ao qual eu eu milito, mas eu tenho esperanças. Eu ainda tenho esperanças.
P/1 - O que te fez vir aqui para a universidade?
R - Então. É como eu falei, eu achava que a minha responsabilidade era encaminhar meus filhos. A minha filha já estava aqui quando eu vim, né? Ela é engenheira sanitarista e aí eu nunca me vi nesse lado daqui, né? De voltar para estudar, ser universitária e tudo. Mas assim é a minha graduação. É cientista social, sou cientista social, sou bacharel em antropologia. Mas eu sou educadora popular há muito tempo, porque essa militância constrói a gente como educador popular. E aí eu buscava uma graduação que eu me aproximasse, não é basicamente que eu me aproximasse. E as ciências sociais te leva para a sociologia, para antropologia, não é para cientista social. Então eu vim fazer. Na verdade, eu fiz a minha primeira prova, foi para psicologia, não é? Eu ainda penso assim, né? Eu gostaria de fazer psicologia porque eu queria de alguma forma entender porque nós, negros e negras que somos, que tivemos os nossos ancestrais escravizados, a gente ainda reproduz algumas violências com os nossos? Não sei se essa ferida ainda é muito aberta, se essas cicatrizes ainda são muito abertas, porque eu vejo muito negro escravizando outro negro, maltratando, seja de várias formas. Então eu queria entender porque a gente ainda reproduz isso, sabe? Filhos que agridem mães, né? Maridos que matam, mulheres, enfim. Eu queria entender isso, mas aí eu não passei pra psicologia na minha primeira prova, que foi em 2017. Aí eu fiz pra ciências sociais depois que era mais na minha linha social mesmo, de ser educadora popular. E aí eu entrei, passei, vivi. Aí os percalços da academia. Ao terminar, eu também não queria mestrado, mas aí a minha professora ficava… Minha orientadora, toda a responsabilidade dela, ficou falando, falando que o trabalho podia ser submetido ao mestrado. E eu fiz sem acreditar. E fui passando, passando, passando e hoje estou para qualificar, graças a Deus. Mas é só o mestrado. E eu já não tenho mais tempo de sair daqui de bengala, dessa universidade, embora eles acham que eu vou fazer doutorado, e não vou (risos)
P/1 - Como é a sua relação com o espaço da universidade?
R - Difícil. Difícil, porque é um é um território de disputa. Disputa de muitas formas. Embora a gente tenha um reitor negro, a gente tenha um processo de inclusão hoje mais acessível, pela questão das bolsas, de muitas outras… Como é que eu vou dizer, de muitas assistências, mas ainda é, dentro das salas de aula, ainda é um território hostil, preconceituoso, sabe? É violento, porque os professores doutores que estão à frente, dentro do que eles acham, do que eles... Como eu vou dizer, que eles classificam por conhecimento, por serem doutores, né? Professores doutores, eles acham que o conhecimento deles está acima de tudo e de todos, e aí o que é mais violento é que eles dizem respeito ao conhecimento que a gente traz das comunidades. Então quando chega aqui, parece que tu tem que sair de ti e incorporar esse conhecimento acadêmico e isso para mim foi muito difícil assim, embora eu não tenha tido muitos professores nessa linha, eu já brigava com que eu tinha. Porque eu tinha com os que foram acessível comigo, né? Porque já me conheciam também da militância. Eu falo que para mim não foi tão difícil, porque eu já vim da militância para cá. Eu não cheguei aqui, eu não me constituí liderança aqui, entende? Então eu já vim de lá com uma, sabe assim com uma proteção da luta mesmo, do embate, de defender esses espaços. Então eu sempre rebatia muitas coisas. E eu acho que a gente estar nesse lugar, permanecer nesse lugar e permanecer com saúde física e mental é um desafio muito grande, porque na comunidade é uma realidade, e aí a gente sai da comunidade porque na minha concepção, é uma diáspora. Vim de lá para cá porque aqui tu tem um choque, um choque cultural, econômico, social, porque tu tá saindo da tua rede de apoio pra vim pra cá, aqui, lá tu tem parentes, aqui tu tem vizinhos e são os passos cercadinhos assim, tu não vê ninguém, tu não conversa com ninguém, tu não empresta nada de ninguém, porque lá a gente não tem, a gente empresta, né? E aí a gente vai, empresta a farinha, empresta o café, aí tem a troca, tu tem o açaí, eu tenho o peixe, tem a troca. Tem a caça que se mata, que dá um pedaço para um, e aqui não. E aqui tu sabe, o pessoal fala que aqui é onde o filho chora e a mãe não vê, porque tu te vê, tu tem o desafio acadêmico, porque a educação lá é muito precarizada, muito precarizada, e aí quando tu chega aqui, tu tem que ler livros, artigos imensos, e aí é uma outra realidade. Alguns se afastam da comunidade, se afastam da sua realidade e acabam incorporando essa vida daqui da cidade. Alguns voltam, alguns não voltam depois da graduação. As cotas foram uma reparação de direitos muito importante, não é? Mas assim, a gente precisa rever muito ainda, porque a gente não pensa em graduar só para graduar, a gente precisa graduar e colocar essas pessoas nos espaços para trabalhar de fato com as comunidades. E aí tu corre riscos de ir para empresa privada, ir trabalhar em outros espaços, entende? E esse espaço aqui em disputa é muito de defender essa narrativa, não me perder do que eu sou, do que eu quero para minha comunidade, sabe? Dentro dessa graduação a gente sempre fala, e a espiritualidade também fala. A gente precisa saber de onde a gente veio, onde a gente está e onde a gente quer chegar. Mas aí de que forma a gente quer chegar. Então esse espaço aqui é muito, ele é muito isso assim. E aí tem muitos quilombolas aqui, então eu fui também coordenadora da associação de discentes, que é onde a gente se encontra. O nosso desafio era falar muito isso, que eles não se percam de onde eles vieram, qual a missão deles aqui, que é mudar essa estrutura universitária, que é um espaço que foi pensado não para nós, mas que a gente está aqui de alguma forma, a gente precisa fazer isso mudar. Muitos desistem porque eles não conseguem debater com os professores e isso é muito ruim pra gente, porque frustra o aluno, a família que acredita nesse processo, a comunidade que deposita também esperança nesse aluno, então esse é um espaço que a gente tá numa disputa constante mesmo.
P/1 - Me diz uma coisa, você falou de saberes, que são saberes que às vezes não são considerados _______, e são saberes do Quilombo, me conta alguns deles?
R - Associado a esse espaço que a gente está, só é ciência, só é comprovado pela ciência, aquilo que a academia valida, mas assim, os saberes que a gente traz da comunidade, como os remédios caseiros. Por exemplo, a mediunidade, eu encontro muitos aqui e a minha… A minha caminhada dentro da espiritualidade fez e faz com que eu perceba as interferências das pessoas, das energia das pessoas aqui. E aí aqui não é respeitado, sabe? A academia não está preparada para receber essas pessoas, pra respeitar… na verdade não é nem pra receber, é pra respeitar. Eu já fui em sala de aula buscar pessoas que estavam passando mal, que na compreensão do professor não era pro médico, era pra uma outra, mas não era espiritual, era a energia. Foi um dia que a pessoa não estava preparada, não estava bem pra sair. E aí por ser um seminário, apresentação, não poderia faltar, não poderia falar que o professor não ia entender, porque na cabeça dele, uma coisa não tem nada a ver com a outra, o que não é verdade. Enfim, então a gente passa por muito… O conhecimento acadêmico faz um processo de desvalidação daquilo que a gente acredita, desde a tua energia, do teu estado de espírito, até o que tu acredita, então são saberes que a gente… Lá na comunidade, por exemplo, se eu tenho uma sensação, e aí é muito lá próximo dos meus, um sobrinho, sobrinho neto, um filho fala que não tá bem, que tá se sentindo… Aí a gente pergunta o que tá sentindo? Aí a pessoa fala. Não, então é melhor não sair, se tem alguma coisa para fazer, não faz, larga tudo, não faz, porque não é um bom dia. E aqui não, aqui tu não tem essa opção, tu tem que viver aqui, estudar, e isso é muito violento também, isso é muito violento. Então tem quilombolas que vem do baixo Amazonas, de municípios muito longe, que a família não está aqui. E aí se a gente não tem uma rede de apoio aqui para acolher essas pessoas, elas vão surtar, né? Porque é desafiador esse espaço. Então os nossos saberes que eu falo, são esses aqui. Não é tão fácil a gente encontrar ervas que a gente encontra na comunidade para banho, para achar, né, para banhar a cabeça quando há necessidade. Aqui tudo é farmácia, sabe? Aqui tudo é médico, é essas coisas. E na comunidade não tem o benzedor, né? Tem o curador. Então são são saberes que a academia não absorve, que não tem como ciência, mas é tão ciência quanto aqui, porque a gente está há muitos anos nesses territórios, a gente vive anos luz nesses territórios, com esses saberes, com essas ciências, né? Então, quando a gente chega aqui, não parece que tu tem que te despir do que tu veio, do que tu trouxe. Aí são muitos desafios que a gente encontra fora do território aqui. E também é responsabilidade nossa enquanto liderança, que já tem uma caminhada mais longa em fazer esse acolhimento e fazer a universidade se sensibilizar pra esses saberes, pra essas coisas, então não é fácil, mas a gente tem avançado, tem conseguido pessoas sensíveis que entendem e que estão de alguma forma fazendo com que a gente construa uma outra visão de universidade, dessa universidade inclusa, diversa, de fato como a gente quer.
P/1 - Agora, partindo para o encerramento, quais são os seus planos para o futuro? Doutorado eu sei que não é não, né? (Risos).
R - (Risos) É, mas então, eu nunca sei. Mas enfim, não é uma coisa para agora mesmo. Eu não… Eu não estou muito pensando nesse futuro, eu estou mais em cuidar do agora, eu acho que a resposta para esse futuro vem muito do agora, do que a gente faz agora, do que a gente constrói agora. Então, tem muitas coisas muito urgentes para a gente pensar, do que eu me planejar. Por exemplo, eu fiz 48 anos ontem, né? Eu nunca me imaginei viajando para o exterior, eu já fui, eu sempre falo que… Eu sou avó, eu fiz uma tatuagem, eu já desfilei num carro alegórico no Carnaval, já viajei pro exterior, então não tenho que pedir mais, vislumbrar muita coisa pra esse futuro, desde que ele seja em preservar o território, em cuidar do Abacatal, em cuidar de encaminhar pessoas que vão cuidar com a mesma responsabilidade que a gente tem buscado de defender o território, território quanto Terra, território, quanto ancestralidade, essa confluência com a natureza, né? A interação que a gente tem, defender esse pertencimento mesmo. Então eu não tenho muitos planos assim, “Ah, eu, eu tenho sonhos”, eu não tenho, eu quero… Eu sempre penso que o agora vai me levar para outros lugares se eu tiver que ir, se eu tiver merecimento, então eu peço muito, eu tenho… Claro que eu imagino planos a partir do lugar que eu estou, como um espaço político, que é a coordenação de construir uma política de igualdade racial que de fato seja de equidade para o município de Ananindeua. Porque Abacatal tá no município de Ananindeua, né? E aí eu não falo só do Abacatal, mas eu falo dos negros periféricos que estão também nos espaços de Ananindeua. Aqui é muito perto de Belém. Então eu penso muito no construir agora, para o amanhã, o futuro depende muito do que a gente faz no hoje, de como a gente se coloca agora. Então é muito nessa linha assim, eu quero, né? A espiritualidade… Eu sempre busco tomar as minhas decisões a partir do que a espiritualidade me fala. Então eu abro as cartas, eu firmo meus pontos, eu peço direcionamento, porque... Eu não consigo pensar em avançar sem pensar, né? Nesse caminho que eu fiz até aqui, de como que a espiritualidade tem me protegido e tem me protegido de muitas coisas. Eu já pude ver assim, a mão dessa proteção de perto. Quando eu fui ameaçada de morte, quando eu tive um acidente também de moto, que fui arremessada lá, longe assim. Então eu tenho buscado muito caminhar na linha do que a espiritualidade me coloca. Então pensar no futuro é colocar na mão de Deus primeiramente e dos meus guias, dos meus orixás e assim desenvolvendo. Eu sou muito grata, muito grata mesmo. E eu acho também que sou muito abençoada, tenho um privilégio por ser filha de Xangô, por ser filha de Iansã, por estar nesses dois mundo, Iansã é na velocidade da luz assim, quero fazer muitas coisas, mas Xangô sempre puxa pra centralidade, então é um desafio muito grande tu ter essa vivência na espiritualidade, tu ter a vivência no agora, tu ter discernimento e sabedoria pra te conduzir. Eu tenho 3 filhos que são completamente diferentes, uma é de Iansã e de Oxóssi, que a gente briga, porque eu tô num tempo, ela tá no outro, aí eu tenho um que é de Ogum, que também é muito guerreia. O mais calmo é o Felipe, que é de Oxalá, que tenta me ajudar a organizar os dois. Mas é muito difícil assim, quando tu ver, sabe assim, num espaço que sei lá, mas eu penso muito no agora mesmo, em como cuidar do Abacatal, no agora. E para isso a Ana Luiza lá na frente, que é minha neta, o que ela vai levar? O que ela vai conduzir pro Abacatal? O que ela fala assim, quando eu crescer, eu quero ser igual tu. Ela fala para mim, mas eu não quero que ela passe pelas mesmas dores que eu passei, que ela seja uma lutadora, que ela seja um Deus do trovão, mas que ela não passe pelas mesmas dores que eu passei. Então, a responsabilidade do agora é planejar um futuro que eu não sei como é que vai ser, mas que eu espero que seja bom, que seja, como é que eu vou dizer… mais humano, que seja mais igual, de fato. É isso assim, não tenho planos, eu quero viver. Eu quero ter o merecimento de viver com meus filhos, com a minha neta por muitos anos, com meu companheiro, que é vinte anos mais novo que eu. Enfim, são muitas coisas assim, que eu estou envolvida, mas é isso, eu nunca imaginei chegar tão longe como eu falei, viajar para o exterior, estar no mestrado, eu sempre vivi nessa qualidade de ser mãe, de educar meus filhos e de lutar pela comunidade. E aí a espiritualidade um dia falou para mim assim: Mas tu tem que ver a Abacatal de fora. Eu nunca me imaginei vendo o Abacatal de fora, como hoje eu consigo ver. Eu precisei sair, mesmo que seja desse campo acadêmico, nessa visão antropológica, para mim, ver o que era tão normal para mim. E aí a academia não é de toda ruim, porque ela também te permite isso, você conseguir se afastar um pouco do seu cotidiano, mas não deixar, não se afastar ao ponto de largar o que você acredita, mas poder, a partir disso, mudar algumas coisas, né? Então eu nunca me viamestra, nem universitária… Imagine mestra, né? Ou ter chegado em em vários espaços. Então isso foi uma construção assim, não só minha, mas da minha luta, das pessoas que acreditam em mim. Eu percebi isso muito ontem nas mensagens, centenas de mensagens que eu tenho que agradecer ainda, que eu recebi ontem, seja de inspiração para outras mulheres, do fortalecimento da luta. E isso acaba sendo uma responsabilidade muito grande, porque cobram muito da gente. Hoje eu vim de saia e havaiana e a minha irmã falou assim: “Tu vai assim?” Eu falei assim: “Estou normal, estou vestida, estou calçada”. Mas aí ela falou assim: “Mas tu sempre encontra alguém chique por aí”. Eu falei assim: “Não hoje”. Aí quando eu vinha, a moça ligou: “Dá para gravar hoje?” Eu: “Dá”. Dá, né? Porque? Mas enfim, parece que tu tem que seguir o rito de uma sociedade que cria, que cria uma sei lá, sabe umas coisas para te seguir, que eu sempre quero estar fora desses quadrados, mas é difícil, é muito difícil assim, porque tu acaba tendo, sofrendo algumas violências, porque as pessoas lá te olham diferentes, Eu ainda tenho que ir lá na reitoria, vou na reitora, ela vai me receber assim, de sandália? Porque parece que tem um padrão que a sociedade queria… um padrão para ti, e o meu medo é que as crianças que venham dos territórios com uma mente muito crua se percam nisso, que elas adotem esse padrão que não é nosso, que não é errado, mas também não é nosso, porque quando tu segue isso, tu se perde. Então assim, a minha preocupação é muito essa, e é isso é um desafio muito grande. Às vezes eu canso, mas aí eu penso que eu ainda tenho muita coisa para fazer, eu espero e ter merecimento para isso, mas é isso.
P/1 - Tem alguma história que você deixou de contar que você acha que seria legal a gente guardar, algum acontecimento que você passou…?
R - Então, umas que eu não falei é porque eu não quero revisitar mesmo, que me fariam sofrer mais. Como a derrubada da minha casa quando eu era criança, então acho que é uma imagem que criança nenhuma deveria ver, uma pá mecânica levando a tua casa. Aí tu pensa: onde tu vai dormir? Aí a gente ficou morando um tempo… E as tuas coisas? Então são momentos que eu não gosto de revisitar, sabe? Mas assim eu sei que… Eu falo sempre que eu não me arrependo de nada do que eu vivi, porque se não eu não seria a pessoa que eu sou hoje, não teria o pensamento e o pertencimento que eu tenho hoje. Então eu não me arrependo, não que eu goste de revisitar, não é isso, mas eu não me arrependo. Eu não tiraria nada, porque se não eu não consigo me ver. Mas é isso, eu acho que eu falei quase tudo. Acho que eu não falei porque não é bom assim, né? Mas é isso. Espero que eu tenha contribuído também.
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