Programa Conte Sua História
Entrevista de Regina Maria Ruschi
Entrevistada por Lucas Torigoe
Vitória, 17/04/2025
Entrevista nº PCSH_HV1453
Realizada por Museu da Pessoa
Gravado por Alisson da Paz (Zoom)
Revisado por Bruna Piera
P1 – Regina, pedi só para você se identificar primeiro, falando o seu nome completo, a cidade que você nasceu e a data, por favor?
R - Meu nome é Regina Maria Ruschi, eu nasci em 4/06/1964, sou de uma cidade do interior, chamada Linhares, aqui no Espírito Santo.
P1 - E te falaram como é que foi o dia que você nasceu? Como é que foi a gestação sua ou não? Como é que foi isso?
R - Olha, a minha mãe nunca teve problemas nenhum, nem em gestação, nem no nascimento da gente. Em Linhares, ainda muita gente nascia em casa, mas eu não, eu já nasci em hospital. E foi tudo bem, não tivemos problema nenhum.
P1 – Entendi. E você tem irmão, Regina? Irmão, irmã?
R - Sim, eu tenho quatro irmãos. Meus irmãos são bem mais velhos do que eu. Tenho irmão que o mais novo deles é 7 anos acima de mim. E depois vem um que é 8, o outro que é 10, e outro que é 11 anos acima. Então, só tem meninos lá em casa, eu sou a única menina.
P1 - E você a temporã então, a caçula?
R - Sou. E tem uma história engraçada aí, porque o meu pai, no primeiro filho, até imaginava que fosse um menino. E aí, o primeiro já tinha nome, era José Luiz. Aí, quando minha mãe estava esperando o segundo, naquela época não tinha as ressonâncias, essas coisas. Então, o segundo já se chamava Regina. Não, mas aí veio o Paulinho. Aí, o terceiro se chamava Regina. Aí, veio o Robertinho. O quarto era Regina, aí veio o Ronaldo. E aí, chegaram a fazer até enxoval cor-de-rosa, e um dos meninos ganhou um enxoval cor-de-rosa. Mas aí, os meus pais achavam que não vinha mais e até chegaram a pensar em adoção. E naquela época, no interior, era muito comum, às vezes, os pais, por algum motivo quererem que alguém criasse os filhos. E...
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Entrevista de Regina Maria Ruschi
Entrevistada por Lucas Torigoe
Vitória, 17/04/2025
Entrevista nº PCSH_HV1453
Realizada por Museu da Pessoa
Gravado por Alisson da Paz (Zoom)
Revisado por Bruna Piera
P1 – Regina, pedi só para você se identificar primeiro, falando o seu nome completo, a cidade que você nasceu e a data, por favor?
R - Meu nome é Regina Maria Ruschi, eu nasci em 4/06/1964, sou de uma cidade do interior, chamada Linhares, aqui no Espírito Santo.
P1 - E te falaram como é que foi o dia que você nasceu? Como é que foi a gestação sua ou não? Como é que foi isso?
R - Olha, a minha mãe nunca teve problemas nenhum, nem em gestação, nem no nascimento da gente. Em Linhares, ainda muita gente nascia em casa, mas eu não, eu já nasci em hospital. E foi tudo bem, não tivemos problema nenhum.
P1 – Entendi. E você tem irmão, Regina? Irmão, irmã?
R - Sim, eu tenho quatro irmãos. Meus irmãos são bem mais velhos do que eu. Tenho irmão que o mais novo deles é 7 anos acima de mim. E depois vem um que é 8, o outro que é 10, e outro que é 11 anos acima. Então, só tem meninos lá em casa, eu sou a única menina.
P1 - E você a temporã então, a caçula?
R - Sou. E tem uma história engraçada aí, porque o meu pai, no primeiro filho, até imaginava que fosse um menino. E aí, o primeiro já tinha nome, era José Luiz. Aí, quando minha mãe estava esperando o segundo, naquela época não tinha as ressonâncias, essas coisas. Então, o segundo já se chamava Regina. Não, mas aí veio o Paulinho. Aí, o terceiro se chamava Regina. Aí, veio o Robertinho. O quarto era Regina, aí veio o Ronaldo. E aí, chegaram a fazer até enxoval cor-de-rosa, e um dos meninos ganhou um enxoval cor-de-rosa. Mas aí, os meus pais achavam que não vinha mais e até chegaram a pensar em adoção. E naquela época, no interior, era muito comum, às vezes, os pais, por algum motivo quererem que alguém criasse os filhos. E como meu pai era uma pessoa muito querida, então um senhor que era amigo dele, que perdeu a esposa e ficou com um monte de crianças pequenas. E aí, chegou a querer que meus pais criassem um filho deles, explicando que ele não tinha condição de cuidar, morava na roça, precisava trabalhar e tal. E meus pais aceitaram. E aí, vinha uma menininha. Mas quando veio, veio um menino, porque alguém esteve na frente, e aí não tinha a menina, então veio um menino. Esse menino foi até adotado não pelos meus pais, mas por uma pessoa também da família, que criou esse menino. Mas até essa história apareceu por causa da Regina que não chegava. Aí, sete anos depois, quando eles já não tinham mais nenhuma perspectiva, aconteceu e aí veio a encrenca, sou eu!
P1 - E me fala um pouquinho, então aproveitando aí, me fala um pouquinho dos seus pais? Quem é o seu pai? Quem é sua mãe? Ee onde que eles vêm, enfim?
R - Meu pai se chama José Ruschi Filho, meu pai filho de italianos e da cidade de Santa Teresa, aqui no interior do estado. Ele constituiu família aqui no Brasil, não tinha mais nenhum parente do nono que morava aqui na época, tinha até parente da nona que era descendente de italiano com austríacos também, mas do nono não tinha. E aí criaram uma família grande, a família de pai, a nona teve 16 gestações. Dessas 16, 14 nasceram, mas dois não cresceram, por causa dessas doenças tropicais, essas coisas, e 2 não cresceram. E criaram-se 12 filhos, 6 homens e 6 mulheres. Então, todos os Ruches que tem no Brasil são originários do nono. Hoje nós somos uma família bem grande. Também, começou com 12, então somos muitos. O meu pai era agrimensor e projetista. E sempre a família de pai foi muito ligada a questões ambientais. Tenho tio que é muito ligado a isso, até criou um museu aqui no estado, que o museu chama Mello Leitão, que era onde era a casa do nono. E esse museu é muito dedicado às questões da Mata Atlântica, dos beija-flores, e orquídeas e morcegos. Então, ele tinha uma série de pesquisas, uma série de obras nesse sentido. E tem vários da família que também são ligados a essa área. A gente gosta muito dessa área. E aí, o meu pai era projetista e agrimensor. Então, sempre também teve muita ligação com o campo. Minha mãe... Meu pai era daqueles italianos antigos, então a minha mãe não trabalhava fora, apesar de que ela queria continuar estudando, queria trabalhar fora, mas meu pai não concordava muito e aí ela arrumou um jeito de trabalhar. Ela começou a costurar para os meus irmãos e aí começou a costurar depois para sempre, a vida inteira a minha mãe costurou. Ela gostava muito também de bordar, de crochê, dessas coisas, mas como trabalho era costura, que ela fez até hoje ela ainda costura alguma coisa. Hoje ela está com 93 anos. Meu pai já faleceu. E de 10 anos para cá, minha mãe é também rendeira de biurbo, a partir desse projeto de resgate que a gente desenvolve na Barra do Jucu.
P1 - E a sua mãe, qual que é o nome completo dela? A família dela é italiana também, como que é?
R – Não. O nome da minha mãe é Giza Guimarães Ruschi. A minha mãe é descendente de portugueses, tanto pelo lado da mãe, que é da família Durão, quanto pelo lado do pai, que é da família Guimarães. O meu avô veio de Minas, e ele é da família de Guimarães, lá de Cordisburgo, perto de Sete Lagoas. Então, boa parte da família está por lá. E a minha avó, a família está toda em Linhares.
P1 - E você sabe como é que eles se conheceram, por acaso?
R – Sim. Meu avô sempre gostou muito de passear, gostou muito de andar. E Minas Gerais tem uma ligação histórica com o Espírito Santo, né? A minerada vem baixar nas praias aqui direto. E com isso, meu avô veio ao Espírito Santo, acabou que conheceu amigos aqui e veio trabalhar aqui no estado. Daqui ele foi trabalhar em Linhares, na época chamava coletoria, como fiscal do estado. Então, o avô foi trabalhar em Linhares, lá conheceu a minha avó e se casou e a família se constituiu toda em Linhares. Minha mãe tem cinco irmãs, então são seis mulheres na família dele.
P1 - E me diz uma coisa, você quando nasceu, a sua família estava morando onde? Em Linhares? Como é que foi a casa da sua infância? Como que ela era? Você puder me descrever?
R – Sim. A nossa casa era num terreno contínuo ao terreno onde moravam os meus avós. E a gente criado muito próximos, muito próximos. Eu tinha paixão pelos meus avós, sempre fui muito ligada a eles, mesmo depois que vim pra Vitória, continuei indo muito a Linhares, eles também vinham muito aqui. Então, sempre foi uma ligação muito próxima. E essa ligação, eu hoje tenho essa ligação com minha mãe, eu e minha mãe também somos muito grudadas. E com certeza eu herdei da ligação dela com a minha avó também. Então, é isso.
P1 - E me conta uma o que mais te marcou na infância? Tem algumas passagens que você lembra mais, que chega um dia ou outro, hoje em dia você lembra assim, ou não?
R – Sim. Tenho muitas lembranças ótimas de Linhares, porque a gente morava numa cidade pequena, a gente morava em volta da praça, a família praticamente toda morava naquela região, que é a parte mais antiga de Linhares. Então, o convívio com os primos a gente manteve desde aquela época, então fomos criados juntos mesmo. E tínhamos um sítio em Linhares que ficava na Lagoa Juparanã, onde tinha uma prainha. A Lagoa Juparanã é linda, linda, linda. É a segunda maior lagoa do Brasil. Em água doce é a primeira e ela é muito bonita. E lá a gente vivia muita coisa boa com os amigos, com os primos. Então, tenho... Só tenho boas lembranças de Linhares. O jardim onde eu estudei era em frente à nossa casa, a menina que cuidava de mim quando era criança era a mesma que cuidava do meu primo, então a gente cresceu muito ligado. E a gente preserva essas relações até hoje.
P1 - E vocês brincavam do que nessa época? O que você gostava de brincar, com quem?
R - A gente brincava muito na pracinha que era em frente de casa, era só atravessar a rua. Mas brincávamos de televisão, cortava uma caixa de papel, fazia como se fosse uma tela e ali atrás a gente contava história, encenava coisas e cantava. E tínhamos umas amigas que moravam na mesma calçada, e essas amigas, a gente estava sempre juntas, aí eram principalmente duas meninas, Cátia e a Rosângela, e aí a gente brincava de casinha, brincava de joguinhos. Na época tinha uma coisa, você me fez lembrar agora, que chamava jogar saquinho ou pedrinha, era uma coisa que jogava para cima, uma brincadeira bem... me fez lembrar agora. Então, tenho ótimas memórias. Lá atrás de casa, a gente morava numa ladeirinha que dava no Rio Doce, porque a cidade de Linhares fica 30 metros acima do nível do rio, então tinha uma ladeira grande até chegar no rio. E dali de casa pra baixo era proibido passar, porque o Rio Doce era muito perigoso, então a gente tinha muito chamego, muita curiosidade com o Rio, mas não ousava chegar lá não, só meus irmãos que eram mais atentados.
P1 - E me conta uma coisa, como que era o dia a dia da sua família? Como que era o cotidiano da casa? Quem fazia o que? Como que funcionava?
R - O meu pai trabalhava, na época lá de Linhares, tinha uma ________, que se chamava Delegado de Terras. O Brasil tinha muitas terras que não tinham proprietários reconhecidos. Então, chamavam terras devolutas. Eram matas, quilômetros e quilômetros de mata, como se fosse a Amazônia, que não tem donos assim, de registros em cartório, essas coisas. Então, as pessoas podiam requerer aquela terra, e se não tivesse nenhum posseiro, o delegado de terras tinha essa função de averiguar se tinha alguma pessoa ocupando aquela terra, se não tivesse, passava legalmente, o estado fazia medição da terra e legalmente passava a posse daquela terra para quem tivesse requerendo. Isso era interesse do governo, porque assim que as terras eram trabalhadas, eram agricultadas. Então, o meu pai tinha essa função de delegado de terras. E era uma pessoa muito... Meu pai era muito rígido e era uma pessoa muito reconhecida, muito querida, por não deixar que se apropriassem da terra desses poceiros, porque aí proprietários maiores, gente com mais recurso, tentava de alguma forma fazer com que aqueles poceiros saíssem dali para que a terra fosse considerada desocupada e que eles tivessem acesso àquela terra. E aí, o meu pai era um grande protetor desses poceiros, então era querido por muitos, mas também não era querido por todos, porque esses que tinham esses interesses assim, o meu pai combatia muito. Então, sempre foi conhecido como uma pessoa muito rígida, mas muito séria, muito honesta. Ele criou a gente um pouquinho dentro desse sistema assim, um pouco rígido. Então, ele trabalhava lá na delegacia de terras. E também ele media muitas terras, então às vezes ficava dias viajando em algumas dessas propriedades, onde ele fazia as medições de terra. E a minha mãe, minha mãe como já falei, ela cuidava de casa. Mas ela nunca se conformou e não trabalhar, então ela começou a costurar, costurava para os meninos, depois a mãe de algum primo ou de alguém queria alguma roupa, ela começou a costurar essa roupa, daí a pouco ela já tinha algumas costureiras trabalhando lá, ela construiu um espaço grande de costura, um salão de costura, e tinha algumas costureiras com ela lá, e ela criava os modelos, ela cortava e passava aquilo para as costureiras e tinham essas roupas prontas, que tinha uma pessoa que fazia a venda, ou lá em casa mesmo, as pessoas que conheciam iam lá. E a minha mãe trabalhou a vida inteira com isso, costurou muito, muito, muito a vida inteira. Hoje ela já não tem costurado mais tanto assim, por causa da idade, tem problema numa perna, que ela usa cadeira, mas ela ainda vai na máquina, ainda alguma coisa ela faz, um pijaminha para um netinho que vai nascer, por exemplo, ela tá fazendo. E sempre teve muita alegria com o trabalho dela, ela adora costurar, adora criar aquelas coisas, então ela foi muito muito feliz com o trabalho dela. E era assim, compravam para as crianças, depois os filhos dessas crianças também compravam roupa para esses filhos, depois para os netos, depois... E de geração em geração a mãe ia costurando para famílias inteiras. Então, ela tem uma história muito muito boa com isso.
P1 – Muito bonito isso. E ela chegou a te ensinar quando você era menor ou você teve contato com esse salão, com essas mulheres? Como foi isso para você?
R - Em Linhares não, porque em Linhares eu era muito pequena, eu vim para Vitória com 7 para 8 anos de idade, quando meus pais mudaram para cá, porque meus irmãos já iam para começar a faculdade, então eles já estavam migrando, e aí meus pais resolveram que estava na hora de vir. Então, viemos para Vitória. Em Vitória, tive sim, porque a escolha do apartamento onde a gente foi morar, o critério de mãe para escolher o apartamento foi onde tivesse espaço para ela botar as máquinas dela de costura, porque ela não ia parar de costurar. Então, ela veio para Vitória e continuou a vida inteira trabalhando aqui em Vitória. Aí, como era num apartamento, tinha uma costureira. Então, ela cortava tudo... Eu lembro muito da minha mãe, a noite ela cortava muita costura, ela pegava peças inteiras de costura e arrumava em cima da máquina e aí na copa, onde era muito grande, ela arrumava ali em cima, botava os moldes, e fechava as portas para não incomodar vizinhos, era uma parte bem central do apartamento, fechava as portas e ali ela com a máquina cortava aquele monte de roupa que já deixava pronta, que aí tinha serviço para uma semana ali para elas. Então, ela e essa costureira trabalhavam o dia inteiro na costura. Eu tenho muito orgulho da minha mãe, porque apesar de sermos de uma família que não tínhamos muitas posses, minha mãe quis me dar o mesmo estudo que ela teve. Em Linhares não tinha escola para ela quando era jovem, só tinha uma escola que era longe, só à noite, então minha avó não queria que ela estudasse lá, e a minha avó tinha por costume mandar as filhas para Vitória para estudar em internato. E minha mãe veio para Vitória estudar em internato. As irmãs também vieram para Vitória estudar, mas são mais novas do que a minha mãe, a minha mãe é a mais velha. Aí, a minha mãe, o colégio que tinha na época era o Sacré-Cœur, era um colégio particular, e minha avó, assim como minha mãe, trabalhava muito, costurava muito. E vinha leite da roça, ela desnatava aquele leite todo e fazia manteiga, fazia requeijão, fazia e vendia leite, manteiga, requeijão e tudo, pra sustentar as filhas na escola, que ela fez questão que todas as filhas também estudassem. E minha mãe seguiu a mesma história. Hoje, que ela depende da gente pela situação de saúde dela, ela fica: minha filha, mas é muito. Eu digo, mãe, não é muito, porque é exatamente o que a senhora fez por a gente, então a senhora fez tudo o que pôde pra gente, agora é a hora da gente fazer alguma coisa pela senhora. Meu pai também tinha muito orgulho, porque ele trabalhava igual um doido, às vezes, no meio de brejo, a semana inteira, e era para ter uma condição melhor para dar para gente. E aí, minha mãe fez questão que eu estudasse no Sacré-Cœur também, não seria um padrão para a gente na época, mas ela deu conta do recado, porque ela queria me dar o que ela teve, então é assim, é um orgulho enorme desses meus pais. Eu tenho uma relação, eu digo que minha relação com minha mãe ainda é umbilical, a gente é muito colada. Então, é uma história muito prazerosa.
P1 - E ela te ensinou a costurar também?
R - Pois é, quando eu estava entrando na faculdade, eu tive um tempo, e aí ela costurava muito, e eu aprendi com ela a costurar naquela época, aquelas coisas que ela costurava. Então, ela tinha maior orgulho de dizer que eu fazia uma bermudinha, uma costura muito boa, que eu pregava um fechecler, que eu fazia essas coisas. Então, na época, eu aprendi a costurar com a minha mãe sim. Mas aprendi para ajudar ela, tinha curiosidade, aí ajudei um bocado a ela. Mas depois a minha vida foi sempre muito corrida, já entrei na faculdade, comecei a trabalhar logo, então foi muito corrida, então não levei à frente a costura. De vez em quando ensaio alguma coisa, mas não sou boa no serviço não.
P1 - E me diz uma coisa, quando foi que você decidiu que ia fazer tal, qual faculdade? Por que foi? Por que você acha que você seguiu o caminho que você acabou seguindo?
R - Eu acho que realmente foi fruto, assim, de muitas vivências. O meu pai era agrimensor, mas era projetista também. Na época existia essa figura do projetista. Então, em Linhares, meu pai desenhou muitas casas, muitas coisas lá em Linhares, desenhou até prédios lá. Então, pai desenhava sempre, até por causa da profissão que ele tinha que fazer as plantas também. Sempre vi meu pai na prancheta com esquadros, compassos e tinta nanquim, papel vegetal, essas coisas. Então, acho que começou por aí. Meu pai não gostava de obra lá em casa, ele era muito acomodado, e minha mãe aproveitava algumas épocas de trabalho longo dele, que ele tinha que ficar fora, e aí ela fazia as reformas que ela achava lá em casa, ela pintava a casa, ajudava alguém que estivesse lá pintando, ela ajudava também. E ela disse que eu pegava papel e pegava os esquadros de pai e os lápis, e começava a riscar, aí eu riscava como se fosse uma parede e fazia um risquinho e uma bolinha na ponta e explicava para ela: Mãe, aqui é a lâmpada, que na época as lâmpadas eram penduradas ainda, ligava na própria lâmpada, então. Aí, ela disse que eu gostava de fazer aqueles desenhos desde muito pequenininha. Então, eu acho que foi por aí, boa parte dessa inspiração para eu ter feito a faculdade de Arquitetura e Urbanismo. E também me encantava muito a Arquitetura e Urbanismo por ser multidisciplinar. Em Arquitetura, a gente estuda muito cálculo, porque tem todos os cálculos, de elétrica, de hidráulica, de estrutural e tudo. Confesso que não era a parte que eu mais gostava. Então, a gente estudava também muita coisa de arte, de arquitetura, de história, aí tudo isso, muito envolvido com a vida dos povos, com a cultura dos povos. Então, essas coisas já me encantavam. Quando entrei em arquitetura, fiquei muito encantada também com a questão socioeconômica, que para trabalhar com urbanismo, você tem que planejar uma vivência boa entre as pessoas, tem que planejar uma cidade humana, uma cidade que comporte todas essas relações, que comporte esses desníveis todos que a gente vive. A gente, como projetista, a gente tem que imaginar um local de viver melhor, a gente tem que imaginar uma sociedade mais equilibrada. Então, eu me apaixonei por isso. E também pela questão de... Em arquitetura também a gente trabalha com o paisagismo, o paisagismo também tem essa mesma função, em tornar as cidades mais agradáveis, menos ásperas também, mais humanas, mais hospitaleiras. Então, também me apaixonei por esse tema. Então, faculdade de Arquitetura e Urbanismo, para mim, foi uma grande abertura, somou muito para ser o que eu acredito hoje. Então, está aí. Depois eu fiz pós-graduação em Ecologia e Recursos Naturais, porque queria trabalhar com paisagismo, como trabalhei junto com meu marido, mas eu queria trabalhar com paisagismo que não fosse só para fazer jardim bonito, coisa assim, eu queria mexer com recuperação ambiental. Então, fazer paisagismo usando plantas da nossa Mata Atlântica, no caso, se fosse aqui no estado, e da gente trabalhar com recuperação de espaços mesmo.
P1 - Que ano você entrou na faculdade? E me fala um pouquinho de como que era a Vitória nessa época que você entrou na faculdade.
R - Entrei na faculdade com 18 anos, tinha acabado de fazer 18 anos, então 1964, soma 18 aí, dá 74, 81. Eu entrei na faculdade em 1982. E aí, entrei na faculdade, Vitória era uma cidade bem menor, já estava sobre influência de grandes projetos que implantação aqui, por exemplo, da Vale do Rio Doce, da CST, siderúrgicas, que ficam dentro do nosso perímetro urbano. Essas indústrias trouxeram muitos operários, muita mão de obra qualificada, mas a maior parte não qualificada para a implantação dessas siderúrgicas. E aí, vários bolsões de pobreza foram formados em Vitória e na cidades da Grande Vitória, por conta da implantação desses macro-projetos. As indústrias ficaram prontas e essa mão de obra desqualificada, muita gente vindo da Bahia e de Minas, essa mão de obra ficou perdida aqui na região urbana. Eram pessoas que vinham do interior, da zona rural, e para lá não quiseram voltar. Então, tem muitas áreas de Vitória que foram invasões, invasões de mangue principalmente, foi criado um grande bolsão de pobreza numa região aqui que chama São Pedro, que hoje são muitos bairros, tem São Pedro 1, São Pedro 2, São Pedro 3, resistência, um monte de bairros assim. Vila Velha tem um monte de bairros que também são pessoas originárias desses grandes projetos. E aí, foi o período que eu entrei na faculdade, tanto que alguns trabalhos nossos de urbanismo foram feitos nessas regiões, a gente tentar entender como é que era o modo de vida daquelas regiões, como é que as pessoas sobreviviam naquelas condições, o comércio, o que que tinha de comércio, o que que tinha... Então, era tentar mapear aquilo ali pra entender a origem daquelas pessoas e o que elas faziam. Esse bairro que eu falei, que é a Grande São Pedro, ele foi todo construído em cima de mangue, em cima de um lixão, era o lixão da cidade, São Pedro. O lixo era jogado in natura no mangue, inclusive lixo hospitalar. Então, tem um documentário aqui que me marcou muito, que é um documentário chamado Local de Toda a Pobreza, Lugar de Toda a Pobreza. Então, mostrava como aquelas pessoas disputavam, porque quando os caminhões jogavam o lixo lá, aquelas pessoas iam recolher o que servia para elas daquilo ali. E como disputavam com urubus, com porcos, cachorros, com tudo que é tipo de animal. Rato, abeça, tudo. E as pessoas moravam em palafitas. Então, isso para mim foi uma... E a gente estava estudando aquilo, estudando aquilo nos fundamentos socioeconômicos da vida. E aí, aquilo me marcou muito, porque eram pessoas, assim, de uma carência extrema, e aí a gente sabia que a gente tinha muita coisa importante para fazer na vida, com aquilo que a gente estava ouvindo e estava aprendendo ali. Então, foram coisas bem marcantes no período de faculdade. Era essa a vitória.
P1 - Você se formou, então, foi trabalhar direto ou o que você foi fazer depois?
R - Pois é, menino. Bom, eu não falei de todas as partes de Vitória, que Vitória também eu adorava, a gente sempre morou num lugar gostoso, próximo à praia, tinha muitos amigos aqui, e me familiarizei logo com a cidade, então sempre gostei muito de Vitória também, sempre foi muito prazeroso. Bom, quanto a trabalho, eu estava no começo da faculdade, na verdade, eu entrei em 1983. Eu estava no começo da faculdade e aí eu queria trabalhar, eu precisava trabalhar. Lá em casa, todos nós estudamos, mas trabalhando, então eu também queria. Meu pai achava que não, que eu tinha que primeiro me formar para depois pensar em trabalhar. E, nossa, quando eu fui fazer arquitetura, aquilo não era só um sonho meu, era um sonho dele também. Então, ele estava se realizando com aquilo também. E eu queria trabalhar, eu fiz um cursinho de inglês, antes do vestibular, e aí nesse cursinho conhecemos alguns amigos, eu e mãe éramos da mesma turma. Aí, conhecemos alguns amigos, e esses amigos, um deles trabalhava... Era o casal mais próximo a gente. Trabalhava na Receita Federal. E aí, abriu um concurso para a Receita Federal. E esse amigo, o Ronaldo, começou a me incentivar. “Regina, por que você não faz o concurso da receita?" Eu disse: “Mas, Ronaldo, eu estou fazendo arquitetura, vou fazer o concurso da receita.” “Não, Regina, é um bom trabalho, depois lá pelas tantas se você quiser, você larga a receita, vai cuidar da arquitetura, mas você está querendo trabalhar, então vai.” E aí, eu ficava pensando, meu Deus, mas a receita são oito horas, e na universidade eu tinha aula em diversos horários e tal. Mas a minha mãe me incentivou muito. “Vai Regina, estuda, faz, depois você vê as possibilidades e tal, ninguém vai te obrigar a ficar e tal.” Minha mãe muito incentivadora, meu pai não. Eu sentava para estudar, ele sentava do meu lado, para estudar para o concurso, porque só tinha a noite para estudar. Eu sentava para estudar para o concurso, meu pai sentava ao lado. “O que você vai fazer no Ministério da Fazenda? Você não tem nada a ver com isso. Você está fazendo arquitetura. Primeiro você tem que se formar, depois você vai pensar em trabalhar.” Ele nunca se conformou, meu pai morreu sem se conformar de eu ter trabalhado na receita. Mas aí, estudei muito para o concurso, e passei, e comecei a trabalhar na receita ainda muito nova, quando eu passei tinha 21, com 22 anos eu já trabalhava lá. E trabalhei lá e não foi infeliz para mim ter trabalhado na Receita, eu gostava, a gente tinha amigos de todas as áreas, na Receita. Os concursos federais, quando não são aqueles que só servem os do direito, junta gente de todas as áreas. Então, tinha muitos amigos que eram da área de engenharia, tinha médico, tinha dentista, tinha de tudo lá. E fui muito feliz trabalhando lá. Eu nunca gostei de ficar pedindo para chegar tarde ou eu não venho por isso ou por aquilo. Então, a escolha que eu fiz foi trabalhar na alfândega, onde na alfândega eu podia trabalhar nos plantões. Então, como minhas aulas de arquitetura, a maior parte era no turno da manhã, então, eu trabalhava na alfândega de 15h da tarde às 23h da noite, então tinha faculdade de manhã e depois eu ia para o trabalho. Alguns dias que eu tinha aula fora do período da manhã, eu pegava plantão no fim de semana, porque a gente trabalhava em escala, eu pegava plantão no fim de semana e trocava com algum amigo que me sedia aquele dia. Eles adoravam, porque tinha o fim de semana livre. Então, foi assim. Lá, a parte da noite, assim, o trabalho era bem menor, então, lá eu lia minhas coisas de faculdade também, nas horas vagas, porque iam nos buscar no plantão que era dentro dos portos, a gente só entrava com o carro da receita. Então, iam me buscar nos plantões 23h da noite, então lá eu conseguia estudar alguma coisa também, nesses horários. E fiquei lá por sete anos, na alfândega, depois já estava formada. Bom, quando formei eu não queria ser formada em arquitetura, eu fazia questão de ser arquiteta. Então, eu formei e como tinha o horário da manhã vago, que não tinha mais a faculdade, aí eu e outros dois amigos de faculdade, uma amiga e um amigo, montamos um escritório de arquitetura. Então, de oito ao meio-dia, eu trabalhava no escritório de arquitetura e de três da tarde às onze, eu trabalhava na alfândega, na época. Então, fiquei assim durante algum tempo, depois parei, depois parei com o escritório. Quando me casei, aí montei escritório em casa, com meu marido.
P1 -Você trabalhou muito tempo, muitas horas, né?
R – A vida inteira, para te ser sincera, virou uma... não sei, eu sou muito, muito ativa, eu não sei ficar parada. E aí, como eu peguei esse ritmo, esse virou o meu ritmo de vida. Então, eu sempre me dividi entre as minhas duas profissões, na receita, que depois fui trabalhar no serviço interno, fui trabalhar em tributos internos, mas continuei também com a arquitetura. Aí, tinha um escritório em casa, junto com o meu marido, meu marido é designer, a gente fez depois curso de paisagismo juntos também. E aí, a gente trabalhava lá no escritório, onde tinha uma outra arquiteta que trabalhava com a gente, uma estagiária. Aí, minha vida era mais maluca ainda, porque chegava, tinha trabalho para passar para as pessoas lá, para conferir, para criar e tal. Entrei numa roda viva danada. Mas também não sou triste com isso não, sou arquiteta, então sou realizada. Não fui só formada.
P1 - Me fala, então, como é que você conheceu o seu marido? Quem que é ele? Em que época vocês se conheceram? Enfim, como é que foi isso?
R - O meu marido chama Paulo César Pinheiro Guedes. Ele é formado é designer, formado na Universidade de Juiz de Fora. E ele também trabalhou desde novo, ele nasceu numa cidade lá interior de Minas, em Recreio, depois a família foi morar em São João Nepomuceno. E os irmãos mais acomodados, mas ele nunca foi, ele queria estudar, então muito cedo ele saiu de casa, foi para Juiz de Fora e lá ele buscava trabalho para se sustentar, ele já desenhava muito, então fazia coisas de artes gráficas e foi chamado para trabalhar lá em agência, em algumas coisas assim. E aí, fez faculdade em Juiz de Fora. Trabalhava lá e surgiu uma vaga aqui na Garoto, aqui no Espírito Santo, na indústria do chocolate. E um amigo dele viu esse anúncio, acho que na época foi na Folha de São Paulo. E ele viu esse anúncio e disse: “Ah, César, é a sua cara esse trabalho e tal, por que você não vai?” E ele já gostava muito do Espírito Santo, já vinha muito por aqui, então ele resolveu e veio aqui concorrer a essa vaga. E aí, ele conseguiu essa vaga aqui no estado e veio trabalhar aqui na Garoto. Trabalhou na Garoto muitos anos. Ele que fazia as embalagens da Garoto aqui. Na época, o departamento de artes da Garoto era interno. A Garota não contratava agências para fazer as embalagens, essas coisas. Então, ele trabalhava nesse departamento, foi chefe desse departamento muito tempo, trabalhou lá por 18 anos. Aí, ele fez várias embalagens bem conhecidas, do Mundi, do Talento, desses chocolates assim. E tem uma história engraçada aí, que um vendedor de livros, que vendia livro pra mim lá na UFES, no Rocha, ele levava livros pra lá, os livros que eu gostava, então, livros de muita coisa de paisagismo, muita coisa de madeira, muita coisa... Esses assuntos assim. E eu não conhecia Cezinha, mas o Rocha, também Cezinha era cliente dele lá na Garoto, ele levava lá na Garoto para vender os livros para Cezinha também. E ele sempre me dizia: “Ah, ó, esse livro eu tenho esses dois, porque tem um cliente que compra sempre esses livros também. E aí, quando nós casamos, que fomos juntar as coisas a gente tinha um mundo de livros iguais, porque o Rocha vendia para ele e vendia para mim também os livros. Então, assim, muitas afinidades. E bom, Cezinha veio morar aqui no Espírito Santo e sempre gostou muito de pescar, e o Rio Jucu, ali onde a gente mora, é a Barra do Jucu, a Foz do Rio Jucu. Então, quando ele conheceu a Barra do Jucu, ele já se encantou com as questões ambientais, com essas questões locais. Quando conheceu o povo da vila, aí se apaixonou pela vila. Não, é nesse lugar que eu quero morar. Então, já veio procurar terreno lá na Barra do Jucu, e comprou terreno lá, e lá já começou a construir, e aí morou na Barra durante muitos anos. Cezinha foi casado anteriormente, e aí ele separou, e a gente tinha amigos em comum, nos conhecemos, eu frequentava muito, muito a Barra do Jucu, porque gostava daquelas coisas da vila. Eu gosto dessa coisa de vila, parece uma cidadezinha do interior, todo mundo se conhece, a gente vive de uma forma mais humanizada, a pessoa que cuida do jardim da casa da gente, que pinta a parede, é amigo da gente mesmo, não tem essas separações que a gente vê em cidades maiores, em bairros mais urbanizados do que aquele lá. E quando sai fim de semana, as coisas da cultura, é tudo para todo mundo. Então, essas coisas me encantavam e era por isso que eu frequentava muito a Barra do Jucu, pelas questões culturais de lá. Lá moram muitos, muitos artistas plásticos, muita gente ligada a teatro, o teatrólogo mais antigo do Estado mora lá, muita gente ligada à música, o Congo. Então, tem uma efervescência cultural e as coisas acontecem dessa forma, não precisa estar programado. A gente lá, por exemplo, se a gente quer sair, à noite, eu não preciso ligar para uma pessoa, marcar, “Ah, passa aqui. A gente encontra lá ou não.” A gente sai e aí encontra uns amigos num bar, encontra outros no trailer, encontra outros... E ali a gente para, a gente conversa. Então, a vida é mais solta. E foi a mesma coisa que me encantou naquele lugar. E aí, depois de muitos anos que a gente era amigo, a gente acabou começando a namorar e nos casamos. Ele disse que nunca namorou inimigo, então namorar amigo era comum, namorar amiga era comum. Então, aí estamos casados há muitos anos.
P1 - Vocês se casaram em que ano, Regina?
R - Vem você com pergunta difícil. Eu sei que foi em setembro, porque eu precisava ter uma época de feriado para vir os meus parentes de fora e os irmãos de Cezinha, então a gente casou em setembro. Agora, a data exata... Ai, Lucas, faz pergunta difícil não, exato eu não lembro, mas já temos assim, porque eu lembro quanto tempo a gente tá junto, mas a gente morou junto algum tempo e aí casamos depois. A gente tá junto há 27 anos. Então, para mim casamento é isso, a data que foi lá no cartório, que a gente oficializou... É bom que a gente não briga, tem muita mulher que briga com o marido porque não lembra do dia do casamento. Lá em casa não vai ter essa briga nunca, porque nem ele nem eu, então... É isso.
P1 - Entendi! E hoje vocês moram na Barra do Jucu, não é?
R - Sim, sempre moramos na Barra do Jucu. Temos duas filhas.
P1 - Me fala um pouquinho da sua trajetória profissional, tanto com o seu marido, vocês trabalhando juntos, quanto no escritório anterior. O que você fez que você gostou? Algum projeto que te marcou mais? Algum trabalho que você lembra com mais carinho, que você puder puxar na memória pra mim?
R - Eu sempre gostei muito, em arquitetura, de projetar casas. Eu gosto mais de pensar no modo da pessoa viver, das relações na casa, porque uma casa... Eu vejo muitos projetos em arquitetura, que as pessoas passam pela rua, olham pra casa e dizem assim: aquela casa é de fulano. É o nome do arquiteto. E eu acho que a casa tem que ter a cara do dono, ela tem que ter o espírito, o modo de vida do dono. Então, sempre gostei muito dessa relação aí com o cliente, porque a pessoa tem que saber como é que ela gosta de viver, ela gosta de uma casa onde, por exemplo, as cozinhas funcionais, as cozinhas mínimas, será que é isso que a pessoa gosta ou será que ela gosta de uma cozinha onde a família pode estar em volta daquela mesa, onde os amigos quando chegam vão sentar ali também, porque o nosso costume, por exemplo, que veio do interior, amigo chega, é na mesa que a gente gosta de receber, não é na sala de visita, é numa mesa, onde a gente serve um café, se é hora de almoço a pessoa almoça com a gente. Então, eu acho que a gente tem que buscar nas pessoas esses sentimentos para que a pessoa realmente se sinta em casa, que a casa cumpra os objetivos dela. Senão a gente cria uma coisa pasteurizada, parece que todo mundo tem que ter uma sala linda, com almofadas lindas, porque a sala é de visita. Por que a sala não pode ser das pessoas da casa e também das visitas? Então, essas relações assim, muita gente... Por que a cozinha tem que ser separada, totalmente separada do resto da casa? Se hoje, muitas vezes, a pessoa da casa é que cozinha, ou faz parte do prazer dela cozinhar junto com o marido, ou marido com a mulher, ou com o filho, ou com um amigo. Então, por que não ser tudo mais... A gente tem que entender os anseios da pessoa, o modo de vida da pessoa, para a gente projetar para elas. Eu vejo assim. Lá em casa, tivemos experiências difíceis com pessoas com pouca mobilidade, o meu irmão, que vem logo acima de mim, com 27 anos, ele sofreu um acidente muito sério, e ele tinha 27 para 28, e nesse acidente ele perdeu massa cefálica, ele ficou com uma perna muito mais curta, ficou em coma oito dias, então ele ficou um ano que ele não podia andar, era cadeira de roda. Então, imagina uma casa onde a pessoa pensa assim, ah eu quero uma casa, onde a parte de baixo vai ser social, então a parte de baixo eu quero isso, eu quero aquilo, eu quero a churrasqueira, eu quero não sei o que, eu quero tal. E aí, a parte íntima da casa eu quero toda lá em cima. Eu acho que cabe a gente, até pelas experiências de vida, conversar com a pessoa sobre isso. Olha, não é só uma questão de uma pessoa que se torna cadeirante, mas uma pessoa que pode ter algum período da vida que tenha dificuldade de locomoção, se você puser tudo no segundo andar, se você fizer tudo com portinhas mínimas de 60 centímetros, essas pessoas não vão ter acesso às coisas que elas precisam dentro de casa, você vai ter que reformar a casa para acomodar essas pessoas, mesmo que seja uma coisa transitória. Então, são conversas que eu acho que podem amadurecer um projeto. Ou não, ou a pessoa está muito certa do que ela quer, ela quer aquilo mesmo, então, claro, o projeto é dela, a casa é dela. Mas então, essas coisas sempre gostei muito. E quando você projeta uma casa, e aí você pode falar para as pessoas assim: olha, por que você não trabalha um pouco a questão de ter planta, de ter um jardim, de ter uma área mais humanizada, de ter um lugar onde você possa descansar, uma rede, um lugar para receber os amigos que não seja de uma questão tão formal? Você não gostaria de um espaço assim? Então, a gente consegue às vezes despertar alguns desejos ou despertar algumas memórias naquela pessoa que quando vieram para a cidade grande elas até meio que foram aculturadas e acham que o que é bonito é o que tá nas revistas, um luxo todo, e que às vezes não condiz com o modo de vida, nem com as memórias afetivas dela. Então, isso me dava muito prazer em arquitetura. Fiz também projetos de interior, mas confesso que não eram os que eu mais gostava, desenhar um móvel com detalhezinho de puxador, disso, daquilo, não era muito minha praia, não. E o paisagismo, em paisagismo, aí é muito prazeroso, porque o paisagismo ele também, além da questão ambiental, ele também desperta muitas sensações, muitas memórias afetivas também. Em paisagismo, por exemplo, se você propõe para a casa de uma pessoa uma determinada planta que ela goste, ou que você sabe que aquela planta é adequada naquela situação, e que aquela planta floresce no dia do aniversário seu, ou do seu marido, da sua filha, da sua mãe, de alguém. Se você proporciona isso, ela vai ter prazer todo ano com aquele jardim. Porque se a flor.... Lá em casa, por exemplo, tem uma orquídea que floresce adoidada, na época do aniversário da minha mãe, porque as orquídeas normalmente florescem no mesmo período, então na época do aniversário da minha mãe, aquela árvore tá sempre com aquela torceira de flor, aí a minha mãe quer ir lá em casa ver, aí eu quero que minha mãe vá lá em casa ver, então tem uma afetividade ligada. E assim você pode ser com outra pessoa da família que você queira que a natureza de um presente no dia dela. E em paisagismo tem uma coisa assim legal também, que são surpresas, você às vezes vai num caminho assim, num paisagismo, um jardim muito previsível, um caminho com plantas de um lado, com plantas de outro, uma coisa sem sinuosidade, sem coisas assim. E se você cria essa sinuosidade, se você cria uma diversidade de cores, você cria surpresas ao longo do caminho, seu jardim pode não ser grande, mas atrás de alguma coisa pode ter alguma coisa, ou um vaso diferente, ou uma obra diferente, ou um banquinho, um recanto, ou uma planta propriamente dita, ou um laguinho com peixinhos, que é uma delícia você ter um tempinho para descansar ali vendo aquele mexido dos peixinhos. Então, quer dizer, você tem como transformar um espaço que está dentro do meio urbano numa coisa mais mas humanizada. Você tem como trazer uma fruta da sua infância, que às vezes nem no mercado vende, mas você, se tiver um espaço, de repente, você pode cultivar uma fruta dessa. Você vai trazer memórias afetivas para a família inteira, para os seus irmãos, para os seus tios, para todo mundo e para você, principalmente. Um pé de carambola, não é tão fácil se achar carambola no mercado. Um pé de carambola em casa é uma coisa diferente. Um pé de araçaúna, que é uma planta que nem se vende em mercado, nem tem em áreas urbanas. Então, são coisas assim, mais humanizadas, que me encantam mais.
P1 - Agora, tem algum projeto, alguma casa, alguma paisagem que você se orgulhe mais de ter feito, de ter projetado, enfim, que fica mais na sua memória hoje em dia?
R - Sim. Eu fiz no meu projeto da especialização, que eu fiz em ecologia, eu fiz um projeto de recuperação ambiental, de uma área que chama ACEFAS, é uma Associação dos Funcionários do Ministério da Fazenda, era uma área que o que era presidente da CEFAS, na época, era colega meu de trabalho também, tinha um engenheiro muito amigo também, que se dispôs a ajudar na parte de engenharia, meu pai foi para lá e fez o levantamento topográfico lá da região. E aí, eu fiz o projeto, na época, dessa especialização, o meu projeto de conclusão de curso foi um paisagismo para lá com recuperação ambiental. Então, esse projeto a gente estudou muitas espécies nativas dessa região de Restinga, que o projeto fica próximo ao mar também, e pudemos implantar lá. Com isso lá em casa a gente acabou desenvolvendo depois muitas mudas de bromélias, muitas coisas assim que não tinha nos viveiros comerciais. A gente acabou desenvolvendo muitas plantas porque a gente tinha interesse em usar plantas nativas, e não só essas plantas que vem, a maior parte vem de Holambra, as plantas vendidas comercialmente, as plantas comerciais do Brasil, vem maior parte de Holambra. A gente fez curso em Holambra também, uma maravilha o que aprendi lá. Mas por que não usar espécies nativas? Então, a gente trabalhou com espécies nativas nesse projeto e recuperação ambiental. Foi muito prazeroso esse projeto de paisagismo lá. Depois fiz alguns condomínios, coisas assim com paisagismo também. Em projeto de arquitetura, um que eu gostei muito, tem um casal muito amigo e ela é brasileira, é capixada, e ele é holandês, e uma pessoa, assim, muito criativa, os dois. Ela é da área de comunicação, também é uma pessoa muito criativa. E os projetos que fiz para eles, fiz muitos projetos para eles, e tinha muita liberdade de criação. Lá na Barra do Jucu mesmo, na casa onde eles moravam, a gente fez um projeto lá de paisagismo, e depois eles tinham um espaço lá, que era uma casa para guardar coisas de jardim, uma casinha para guardar coisas de jardim. E ficou tão bonitinha a casinha que a gente projetou lá, que eles resolveram montar uma loja de brinquedos educativos. Então, eram só brinquedos daquele tipo que a gente tinha antigamente, aqueles piões de madeira, aqueles tipo um patinho, que você empurrava uma rodinha e o patinho fazia um barulho com o bico e batia uma asa, jogos da memória com animais da Amazônia, com animais da Restinga. Então, eram assim, só brinquedos desse tipo. Fizemos essa lojinha lá. E a lojinha não cabia, então, eles acabaram que compraram um imóvel aqui em Vitória. Primeiro mudaram para uma lojinha pequenininha aqui em Vitória, mas já maior que aquela, num lugar onde tinha mais comércio. E aí, depois de lá, a lojinha deu tão certo que eles compraram uma casa e essa casa a gente reformou essa casa toda, aí mantive azulejos lindos que tinham na entrada, eu não gosto de destruir muita uma coisa quando faço reforma, não, eu gosto de aproveitar tudo que aquilo ali tem e tentar atender aos anseios. E assim, a gente fez a reforma dessa casa. Adorava projetar para eles, porque tinha muito essa liberdade de criação e eles gostam muito de cores, e aí eu dizia, a única coisa que eu não consigo opinar é em cores, com a construção de vocês, eu não tenho essa capacidade. Porque eles conseguiam botar numa casa 30 cores, a ponto de janela ser assim, a janela, o alisar era de um jeito, as peças mesmo da janela eram de outra, baguete era de outra, e tudo muito colorido, mas assim, impressionante como eles tinham capacidade, porque era tudo lindo, era de um bom gosto, não era um samba de crioulo doido, era muito bonito mesmo. E aí, era uma troca, muito bacana. Aí, essa loja ficou uma delícia. Começaram a ter várias pessoas que eram compradores das lojas, e aí queriam fazer festas para as crianças na loja. E tinha um espaço externo com uma casinha que a gente projetou na árvore, tinha um espaço externo muito bacana e eles começaram a fazer essas festinhas no espaço externo dessa casa, dessa loja, e dentro, no espaço coberto, toda festa tinha que ser acompanhada de uma oficina. Então, era uma oficina de contação de história, era uma oficina de fazer alguma comida, era uma oficina de arte, de música, de um monte de coisa. Acabou que o espaço virou uma casa de festa, atrás a gente reformou um espaço para eles virem passar fim de semana aqui, vinham da Barra, ficavam aqui no fim de semana, e acabaram tendo que desocupar esse espaço, porque a coisa da festa cresceu tanto que aí eles ampliaram para esse espaço também. A loja se chamava Tapete Mágico. E o Tapete Mágico existiu por muitos anos, mas era numa área muito urbana, aqui na Praia do Canto, e numa área onde não tinha estacionamento, onde tinha muita vizinhança, então, uma hora eles sentiram que ali não dava mais para ser, até tentamos fazer projeto em outros lugares, mas área para isso precisa de muita vaga de garagem, o que inviabiliza boa parte dos projetos nos meios urbanos mais conturbados. Eles não conseguiram mais reabrir essa loja em outro lugar. Mas, assim, um projeto que me deu muito prazer. E depois fiz uma casa para eles também nas montanhas, numa região onde só tinha mata em volta, num condomínio antigo, um condomínio, chama Parque das Hortênsias, só tinha mata em volta do terreno que eles tinham, era um terreno bem grande, e uma clareira, onde o antigo proprietário pretendia construir, mas acabou não construiu, vendeu pra eles. E aí, fizemos uma casa maravilhosa também. Era a casa que meio que entrava no meio da mata, assim, a mata meio que abraçava a casa, muita coisa em vidro. Eles gostam muito de telhado sem laje, segundo andar não tinha laje, então, tudo tem um mezanino, no quarto das crianças, por exemplo, tinha um giral em cima, uma escada onde as crianças subiam para brincar no giral que ficava na parte mais alta do pé direito. Então, essas viagens me encantavam. É isso.
P1 - Regina, você falou que se mudou para a Barra do Jucu, que é uma região de Vila Velha, certo? Queria que você falasse um pouquinho mais, você já falou de como é a vibração da região, de que tem muitos artistas lá, uma vida mais comunitária. Mas fala para a gente, inclusive até quem não conhece, onde que fica a Barra do Jucu? Quais as ruas mais importantes? Enfim, dar um panorama desse bairro e como é que é a sua vida, a vida da sua família, onde você mora?
R - A Barra do Jucu, ela fica no município de Vila Velha, mas entre a gente e a área mais urbana de Vila Velha, tem uma reserva, chama Reserva de Jacaranema. A Reserva de Jacaranema é bem pertinho, é no fim da nossa rua, no fim da nossa quadra. Então, é um lugar assim que a gente ainda tem muito contato com a natureza. Tem a reserva, tem o rio, tem o mar. Então, é um lugar agradável. A gente tem muita liberdade, ninguém precisa se arrumar para sair de casa, as coisas são... É vila mesmo, é uma vida de vila. As pessoas ainda botam cadeiras na calçada, e aí, o filho chega, o neto chega, o amigo chega, o outro passa. Então, tem sempre histórias pra contar, tem os causos do lugar, que são muitos, muitos, muitos. Perdemos, recentemente, a maior contadora de causos de lá, que era a Lulu. A Lulu, todo dia, cadeira na calçada. Antes era o pai, a mãe, ela, as duas irmãs e o marido. Toda tarde, aquele monte de cadeira na calçada e todo mundo da comunidade, passa na padaria, passa na frente da casa dela, vai na padaria, passa na frente da casa dela. impossível passar sem parar. Então, a gente vai comprar pão e volta cheio de história. Então, a Barra do Jucu tem dessas coisas ainda, eu acho isso assim de uma civilidade enorme, porque as pessoas arrumam tempo umas para as outras, para se relacionarem, coisa que num prédio você mora um monte de gente, e, às vezes, você mal dá bom dia, boa tarde num elevador, então, a pessoa mora lá não sei quantos anos, você não sabe nem que a pessoa morava naquele prédio. Então, é muito diferente. Quando a gente mora numa casa, as pessoas passam, veem que o carro está na garagem, passam e falam com você, passam e tocam a campainha. “Então, não sei o que, passei para ver como...” É diferente, é muito diferente da vida num centro urbano assim. E essa é a Barra do Jucu. A nossa casa, por exemplo, é visitada demais por animais. Então, passarinhos é um monte, é pica-pau, é sofrer. Agora, eu estava saindo de casa, aí meu marido disse: “Regina, olha o que está aqui na Palmeirinha.” Um passarinho que eu não vejo há anos, chama gaturão, é um amarelinho e preto, pequenininho, lindo, tem um canto lindo, o gaturão estava lá. Então, é muito passarinho. Todo dia a gente tem visita de um gambazinho, porque tem gambás que andam lá pela barra nos fios, então, tem até uma bebida, que é típica lá da barra, que chama jucuzinho, que o rótulo é um gambazinho, de tão querido que são esses gambás, que andam pelos fios do bairro todo. E eles vão lá em casa comer ingá. Bom, também vão comer ovinhos de passarinho, se tiver passarinho filhotinho no ninho, tudo isso faz parte, mas eles vão lá em casa. Tem um outro bichinho que chama Ouriço Caxeiro, que às vezes lá em casa já aconteceu de a gente acordar à noite com a cachorrada numa latição danada, foi mexer com Ouriço Caxeiro, cheio de espinho no focinho. Ah, de vez em quando aparece uma cobrinha, então tem essas visitas aí, que a gente vai aprendendo a conviver. Então, é assim, uma vida muito mais natural, a gente encontra com os amigos o tempo inteiro e todo mundo conhece todo mundo, é muito gostoso viver lá. E aí, eu acho que essas coisas assim ligadas à cultura, eu acho que essas coisas fluem bem no ambiente assim, porque é uma vila de pescadores lá, o rio tá muito tá muito detonado, tem muita poluição no rio lá, o mar também tem poluição, as matas vão ficando mais degradadas, tem uma pressão imobiliária muito grande, porque a única área de praia de Vila Velha agora é daquela reserva para lá, em direção a Guarapari, então a pressão imobiliária é muito grande, a gente tem muita preocupação com o significado disso, com a gentrificação daquilo lá. Mas ainda é um lugar bem gostoso, ainda tem um ambiente bem saudável. Então, é isso.
P1 – E como é que começou esse trabalho seu com a cultura local, com rendeiras, pelo que eu entendi, com as rendas? Como é que você conheceu essa cultura ou você já cultivava isso? Como é que começou essa atuação?
R - Eu gosto muito de cultura popular tradicional, sempre gostei, sempre em viagens assim, meus destinos sempre estavam muito ligados a questões assim, adoro artesanato, coisa de arte e cultura popular, essas manifestações culturais, essas coisas me emocionam muito, eu gosto muito. E isso foi o que me encantou na Barra do Jucu, essa efervescência toda. Quando comecei a frequentar lá, tinham vários barzinhos, tinha sempre muito congo, porque lá tem várias bandas de congo, e tinha muito reggae, tinha muito reggae, rock e congo. Era o que mais tinha lá no lugar. É um lugar de surfista, a Barra do Jucu é uma praia muito pra surfista. Então, o esporte também é muito presente. E aí, já ia lá por causa disso, e quando fui morar na Barra, e conversando mais com as pessoas nessas idas e vindas para a padaria, por exemplo, conversava muito com a Lulu, e tinha uma tia dela, que foi a nossa primeira mestra das rendas de bilro, a dona Rosinha, que se chama Rosa Leão Malta. E aí, conversava muito sobre as coisas da cultura local. E a dona Rosinha era rendeira. E a mãe dela também era rendeira. Era a única fonte de renda das mulheres lá da Barra do Jucu até no século passado, até os anos 70, por aí, elas ainda faziam renda para vender, o dinheiro da renda ajudava no sustento das famílias. Quando elas eram mocinhas, era no sustento da família, mas também era pra compra das coisas que elas tinham interesses também. Então, todas as mulheres da vila praticamente faziam renda. E essa história foi me encantando. Eu disse: mas por que pararam de fazer renda? E ela me contava que não tinha mais os compradores para as rendas de bilro. Eles perderam o mercado para as rendas industriais. E como não tinham compradores, elas foram parando de fazer, porque as famílias que antes incentivavam que elas fizessem, porque aquilo era uma fonte de renda, depois as famílias falavam: mas você fica aí fazendo essa porcaria, isso não vale mais nada, fica fazendo isso pra quê? E essa história comum a toda região litorânea brasileira, onde ainda tem rendeira, se você for ouvir porque pararam, pararam pelo mesmo motivo, não tinha mais mercado, e aí tinha até uma pressão para que não fizessem mais, porque tem que cuidar dos meninos, tem que lavar roupa, tem que cozinhar, tem que não sei o que, tem que fazer um trabalho, e você fica aí fazendo isso. Então, as rendas que tinham um lugar de destaque na casa, foram parar primeiro no canto da sala, aí depois foram parar dentro de um armário. Aí, estava ocupando o armário e foi pra cima do armário. De cima do armário foi pra baixo da cama. Debaixo da cama a coisa se perdeu e elas acabaram, a maior parte delas queimaram tudo. Então, se você for perguntar a história de renda de Bilro, ao longo do litoral brasileiro todo, é a mesma. Tem uma máxima que vem de Portugal que diz que onde há rede, há renda. Porque onde tinha rendeira, tinha redeiro, tinha pescador. Quando tinha alguma invernada, alguma coisa, e que o recurso financeiro não vinha do mar, vinham das rendas que elas produziam. Enquanto os maridos teciam redes, as mulheres teciam rendas. Então, essa história foi me encantando. E eu comecei a fazer perguntas sobre isso, a querer conhecer quem mais, e ir atrás. Então, fui fazendo uma pesquisa sobre isso. E aí, aconteceu que num período na Barra do Jucu, a gente mora de um lado da rodovia, Rodovia do Sol, e do outro lado tem um daqueles bolsões de invasão, de pobreza, também oriundos de grandes projetos. E uma região que tem 80 mil pessoas. Então, perto de um bairrozinho que a gente mora, que deve ter 5 mil. Então, uma doideira. E aí, a gente foi começando a sentir a Barra do Jucu perigosa, a gente já não gostava mais de sair à noite, muitas coisas foram parando de ter movimento, de bares, de restaurantes, dessas coisas à noite, e uma turma lá da Barra, muito ligada à cultura, resolveu criar um projeto chamado Culturada Viral. Ao contrário do Virada Cultural daí, aqui é Culturada Viral. E aí, a Culturada Viral, era justamente pegar essas tradições, pegar essas brincadeiras, pegar essas coisas da cultura da Barra, das vivências da Barra. E num período de dez dias, organizaram um calendário para que nesse calendário essas coisas acontecessem. E foi lindo! Foi uma coisa assim que revolucionou o lugar mesmo, porque a comunidade inteira se mobilizou, a comunidade ficou super mexida com as memórias afetivas e se deu conta de tantas perdas. E aí, começaram a ter essas apresentações, e a gente estava sempre lá. E aí, um dia, a gente voltando para casa, eu e meu marido, fomos conversando. Tinha saído num jornal local, que a escola municipal que fica exatamente atrás lá de casa, é uma escola enorme, com uma estrutura física muito boa. Mas tinha saído num jornal como tendo tido um baixo, um baixíssimo desempenho, na escola. E a gente ficou assim, poxa vida, a gente tá aqui, a gente pode ajudar, a gente pode ir pra lá, tem um auditório muito bom, a gente pode levar alguns filmes, esse pessoal daqui, muita gente nunca viu cinema, a gente leva alguns filmes lá, passa alguns filmes, depois abre alguns debates sobre filmes com temas interessantes, abrir alguns debates, por que a gente não pode fazer isso? Por que a gente não tenta encantar essas crianças a dar continuidade com o estudo...
P1 - Imagina, você estava falando da escola, de levar algumas coisas para o pessoal de lá, no auditório, só para não perder o fio.
R - Tá. Pois é! Então, aí a gente, eu e meu marido, voltamos para casa conversando sobre isso, de poder contribuir com as escolas. E a gente já tinha passado por algumas experiências, porque quando as meninas eram pequenas, a gente precisou de babá, por exemplo, e aí algumas meninas, assim, muito inteligentes, e eu ficava impressionada, porque elas tinham parado de estudar. Eu disse: Mas vocês pararam de estudar por quê e tal? Elas disseram assim: “Ah, porque eu terminei.” Então, a gente via que a noção de estudo era quase que uma obrigação. Chegou o segundo grau, terminei, pronto, não preciso mais de estudo pra nada, esquece. E às vezes a gente vê que essas pessoas, às vezes tem até, você tá falando de um assunto, de uma geografia, de uma história, de uma coisa, que elas também estudaram aquilo, mesmo de uma matemática ou de um português, e eles não se sentem nem à vontade de entrar numa conversa dessa, porque parece muitas vezes que esse mundo não é deles, eles não se sentem nesse meio. Então, a gente se perguntava sempre, como que é esse negócio de terminei? Porque estudo é um meio, não é um fim. É para você ter uma opção melhor de trabalho, uma qualificação, uma coisa qualquer, mais prazerosa e tal. Então, aí começamos a conversar sobre isso. E, bom, levamos essa coisa lá para conversar com os amigos que também estavam lá no Culturada. E quando terminou o Culturada, foi decidido que aquele grupo se dividiria em áreas, uma área que ia cuidar de meio ambiente, outra de esporte, outra de cultura, outra de... Coisas assim. E nós ficamos no grupo de meio ambiente, a princípio, e no grupo de educação e cultura. E nesse grupo, educação e cultura, que foi o que a gente continuou trabalhando mesmo, a gente viu que a gente precisava criar um grupo para que a gente ajudasse aquelas culturas, aqueles elementos da cultura que estavam se perdendo, que a gente ajudasse a resgatar aquilo, que a gente servisse como um guarda-sol que desse suporte, que desse fomento para que essas manifestações culturais voltassem a ser abundantes como já tinham sido. Na cultura popular tem muito isso, às vezes pessoas muito simples, essas pessoas apesar da tentativa de democratização de recursos e de tudo, como editais, essas coisas, se as pessoas não têm a condição de informática para escrever um edital, nem a condição mesmo de defender uma ideia, de fazer uma proposição. O democrático foi por água abaixo, porque elas não vão ter acesso mesmo. Então, que a gente fizesse um grupo que pudesse dar suporte a isso. E aí, criamos o Museu Vivo da Barra do Jucu. O Museu Vivo da Barra do Jucu, a gente criou inspirado no Museu Vivo do São Bento, que é no Rio de Janeiro. E aí, para criar o Museu Vivo da Barra do Jucu, a gente trabalhou toda a comunidade para mostrar para eles a importância que tinha uma coisa assim e a importância que tinha, a necessidade que tinha que eles participassem daquilo, porque a gente era instrumento, mas a gente queria resgatar uma coisa que era dali desde sempre. Então, aí fomos nas casas conversando com todo mundo e trouxemos dois membros do Museu Vivo lá de São Bento, a área lá onde era Lixão, que era a área lá do Rio de Janeiro, que não contava a história bonita do Rio Capital, do Rio Reforma Urbana, então a área feia. E aí, essas pessoas vieram e mostraram a importância de um museu vivo. Nós fizemos um seminário sem dinheiro nenhum, nenhum, nenhum. Nós conseguimos botar lá no auditório dessa escola, 180 pessoas, e trabalhamos lá durante três dias, a gente fez o seminário. Aí trouxemos representante do IFAM, representante do IBRAM, representante da cultura da Universidade Federal, da Escola Técnica. Fomos juntando esse pessoal todo para fortalecer a ideia. Criamos o Museu Vivo. E aí, o primeiro projeto do Museu Vivo, foi o resgate das rendas de Bilro, que já era uma área que eu estava mais aprofundada na pesquisa, já sabia onde buscar, já sabia quem podia nos ajudar. E começamos a fazer o resgate das rendas de bilro no museu, foi o primeiro projeto do museu. Aí, para manter isso aí, as oficinas, a gente tinha uma feira lá de arte, gastronomia e cultura na praça, que a gente participava, a gente era membro, e lá a gente botava uma barraca que vendia caldo, vendia cuscuz, vendia coisa que a gente mesmo doava e ia pra lá, vendia, e com aquele dinheiro a gente ia fazendo as almofadas, ia fazendo os cavaletes, ia comprando as linhas e os bilros. E, bom, montamos o projeto das rendas de bilro. Começamos com dez alunas, e uma professora, dona Rosinha, que na época tinha 86 anos, e ela era uma pessoa da vila, super querida, uma mulher muito sagaz, mas, assim, não tinha muito estudo, e tinha sido rendeira, e ela se dispôs a nos ajudar. Nos ensinou a fazer a almofada, nos ensinou a fazer os bilros, nos ensinou a fazer os piques, que são os desenhos das rendas. E aí, nos preparamos para isso. Então, começamos com essa turma aí. A minha mãe ajudou muito, porque minha mãe, eu, meu marido e minha mãe, a gente fazia as almofadas. No começo, as primeiras, tivemos a ajuda de várias pessoas da comunidade para fazer almofadas e bilros e tudo. Mas depois o negócio cresceu demais, aí a gente não parava mais de produzir bilro, almofada, porque não tinha dinheiro para isso. Então, era tudo no voluntariado. E fomos fazendo. As aulas, a princípio, eram só sábado pela manhã e depois, a gente colocou uma aula na terça-feira também, porque as pessoas que não podiam, fim de semana, podiam na terça-feira. Então, aí, bom, as rendas foram crescendo muito. Desenvolvemos outros projetos lá no museu, escrevemos um edital para o ponto de memória do Museu Vivo da Barra do Jucu, escrevemos um edital também para criar uma galeria a céu aberto, uma galeria de arte a céu aberto, lá pelas ruas do bairro, que a ideia foi até eu que escrevi o projeto, se chamava a princípio Colorindo a Barra, depois passou a chamar a galeria a céu aberto. Então, esse projeto, o objetivo era a gente dar vida ao corredor gastronômico e cultural da Barra. Então, que voltassem os restaurantes, que voltassem as pousadas, que voltassem... Que as pessoas quisessem ir na Barra ver a rua, porque estava bonita. E realmente foi um sucesso. Hoje eu já não sou mais do museu, porque a renda cresceu muito, e a gente acabou virando um projeto próprio das rendas de Bilro. Hoje o Barra de Renda tem cerca de 60 mulheres, que fazem parte do Grupo das Rendeiras. Mas o museu continua lá e faz vários projetos desses, já tiveram vários outros da Galeria Livre de Arte. E eles têm muitos projetos interessantes para a cultura local. E a gente foi trabalhar especificamente as rendas. Depois de um tempo a dona Rosinha adoeceu e a gente teve duas novas instrutoras, já do grupo, que começaram a trabalhar com a gente e é quem está lá como instrutora até hoje.
P1 - E me fala um pouquinho de pessoas que você conheceu durante esse período das rendeiras, se você puder contar a história de alguém que foi marcante para você, que o projeto, o museu tenha mudado a vida dessa pessoa? Se você tiver alguém na sua memória agora.
R - Tem muitas. A primeira, a Dona Rosinha, que foi essa nossa primeira mestra. A Dona Rosinha era uma pessoa, assim, incrível, de uma alegria, de uma vontade de fazer as coisas, de uma disponibilidade. Na verdade, ela estava muito feliz com aquilo tudo. As rendeiras de Bilro da Barra, quando não tiveram mais mercado para os seus produtos, elas começaram... A vila já tinha crescido um pouquinho também, e elas começaram a se dedicar a atividades do tipo... Algumas foram ser lavadeiras, outras foram ser ajudantes de cozinha, outras foram ser faxineiras, outras foram cuidar de criança, outras foram... E profissões assim, de jeito nenhum desmerecendo qualquer uma delas, mas que não davam para elas o prazer, o orgulho, sabe. A autoestima delas, era muito maior na época das rendas, porque a renda de Bilro é um trabalho delicado, é um trabalho difícil, é um trabalho de memória, você tem que saber fazer e tem que ter, com o tempo você desenvolve habilidades, e aí, você consegue fazer uma renda cada vez melhor, cada vez mais elaborada. E as pessoas que compravam as rendas delas, tinham elas assim, como pessoas muito especiais, donas de uma arte, uma cultura muito especial. E aí, quando foram para essas outras atividades, a autoestima fica prejudicada. Quando a pessoa está dentro da sua cultura, que a cultura é valorizada, é reconhecida, que faz diferença naquele lugar, as pessoas têm uma sensação de pertencimento muito maior. Esse lugar aqui, eu posso ir morar lá na Barra do Jucu, mas essa cultura é nossa, essa cultura é dos nossos ancestrais, minha mãe fazia isso, minha avó fazia isso, minha comunidade fazia isso. Assim acontece com os pescadores também, as comunidades que são tradicionais, quando elas perdem os seus ofícios, quando elas perdem a sua cultura, elas ficam muito fragilizadas.
A gente vê, em comunidades indígenas, por exemplo, quando eles perdem a capacidade de pesca, a capacidade de caça, a capacidade de colher os frutos, as coisas na selva, as danças, quando eles perdem a cultura, eles ficam muito fragilizados. É muito comum você ver essas comunidades se encostando perto de alguns centros urbanos e daqui a pouco elas estão degradadas, elas começam... É muito comum ter pessoas assim, muito envolvidas com álcool, com droga, com prostituição, com um monte de coisa, não estou falando especificamente da nossa comunidade, estou falando de quando perdem essa autoestima, quando perdem essa noção de pertencimento que tem do lugar. Então, fica frágil. E assim, é com a comunidade de pescadores também, que é o caso da Barra do Jucu. Os pescadores, quando já não tem mais como sobreviver dignamente da pesca, muitos deles não aceitam ser, por exemplo, ajudantes de pedreiro, não aceitam, eles eram mestres. Pescador, então, eu vejo assim uma fragilidade enorme, porque os pescadores eles entendem de astros, porque eles saem para pescar quatro horas da manhã, e naquela época não tinha luz, então eles se guiavam por astros, eles iam e voltavam se guiando por pontos geográficos, os morros. Então, eles sabiam cada peixe que tinha em cada lugar, porque naquele lugar só dava aquele peixe, porque no fundo tinha uma pedra, então a alga que dava naquela pedra, era a alga que aquele peixe comia, então, ali não tinha areia, ali tinha pedra, então, eles tinham aquele mar mapeado. Eles conheciam todas as espécies de peixe. Eles sabiam fazer as embarcações. Eles sabiam quando ia chover, quando não ia chover. Eles sabiam fazer as velas. Eles sabiam de tudo dentro da profissão deles. Quando pararam de pescar, ou quando não tiveram mais condição de sustentar dignamente suas famílias com a pesca, essa comunidade degrada. Então, é muito triste ver isso. Como é que um cara que sabe tanto, que toda vida foi tratado como mestre fulano de tal, agora é um ajudante de pedreiro. É uma profissão assim, varre uma rua, varre... Então, a gente começou a enxergar que o papel da gente estava em vários setores daquela comunidade e que a gente podia ajudar. Então, bom, como te disse, o grupo cresceu, e o grupo das rendeiras, ele tem um papel muito além da questão da renda e do resgate cultural. A gente tem um outro pilar, que é a economia, economia solidária, economia criativa. Então, a gente se vira para criar produtos, para criar coisas, para aquelas pessoas terem orgulho do que fazem, de ter alguma possibilidade de comercialização. A gente também cria, depois da pandemia, então, muita gente teve muito problema de depressão, as pessoas mais idosas, então, foi muito sério, porque essas pessoas ficaram muito fechadas dentro de casa e perderam muito convívio social. Então, lá você resgata, toda tarde tem os encontros lá, e aí vão aprender piques novos, vão aprender pontos novos, vão fazer renda, vão trocar ideias, vão conversar sobre a família, vão contar casos engraçados. Então, tem uma amiga nossa de lá que chama de Bioroterapia, porque o marido dizendo pra ela: Hoje você faz isso aqui. “Hoje? Nem pensar, hoje é dia da minha Bioterapia, não faço não.” Então, em todos esses aspectos. Muitas pessoas mais velhas hoje, são ainda, o recurso delas, aposentadoria, pensão, ainda sustenta muita coisa da casa, enquanto os filhos, ou alguém sai para trabalhar, elas têm as atividades todas da casa, então a vida delas vai ficando cada vez mais dentro de casa, cada vez menos socializadas, e aí cada vez mais tristes, mais depressivas, mas... Um monte de situações que lá, não, a pessoa se sente, faz parte de um projeto, a gente planeja coisas, e aí a pessoa está envolvida na confecção daquilo, a gente vai para cinema, a gente vai, como agora participamos da exposição do Museu Vale, a nossa peça no Museu Vale, chama Onde a Rede A renda, que é uma referência a toda essa história, essa máxima que vem desde Portugal. Comunidades pesqueiras e rendeiras juntas. Então, aí fomos várias vezes ao museu. Imagina, tinham pessoas ali que nunca tinham ido a um museu. Arte contemporânea, nunca tinham nem ideia do que era. Então, ir no ônibus, ou na van, é uma alegria danada, uma conversaia, uma risadaiada danada. E a gente vai descobrindo pessoas, como o caso da dona Rosinha, que já faleceu. Estava em casa, tinha perdido o marido, andava muito depressiva, muito sem motivação, de repente, ela virou uma professora. Aí, escrevemos um edital para ela, um edital de mestre da cultura popular tradicional aqui do Espírito Santo, e ela foi contemplada no edital, além do recurso, além de tudo. Gente, o orgulho dela, uma pessoa que não tinha uma formação nenhuma, primária, ela virou mestra da cultura de um povo, foi receber a premiação lá. Depois, uma segunda mestra que nós tivemos, que também era uma pessoa muito simples, a dona Enedina, Dona Enedina sempre morou na Barra também, como dona Rosinha, fazia renda também, desde 7, 8 anos de idade, e também para ajudar no sustento da família, a mãe dela fazia renda, a irmã fazia renda. Mas a dona Enedina, ela não se casou, sempre, depois que os pais morreram, continuou morando na casa onde morava uma irmã e o marido, os filhos e tal, então sempre envolvida naquela vida familiar. Extremamente tímida, extremamente tímida, não vai em lugar onde tem mais pessoas, só dava uma voltinha na praça de manhã, enquanto ainda não tinha gente na rua. E aí, a gente estimulou muito a dona Enedina, ela nos passava muitos ensinamentos das rendas pela oralidade. E aí, também escrevi o edital para a Dona Enedina, e a Dona Enedina também ganhou o título de mestre das rendas de Vila Capixá. A Dona Rozinha, já tinha falecido. E aí, depois... Ela morre de rir quando a gente chama ela de mestra. Agora faleceu, ano passado, a dona Enedina também. Mas ela morria de rir que a gente chamava ela de mestre, ela morria de rir assim, porque ela não imaginava, como é que ela podia ser uma pessoa tão simples e ser assim. Mas ela era uma mestra. E aí, escrevemos no edital do estado, e ela ganhou, a mestra da cultura popular tradicional do estado, aí foi receber lá no Palácio Anchieta, da mão do governador, recebeu o titulo. Então, isso para elas é uma coisa assim, enorme. E para a gente mais ainda, porque... Nossa, a gente saber que o nosso empenho traz sensações assim, traz esses merecimentos, traz à tona esse merecimento delas, esse reconhecimento. Então, é um prêmio para todos, na verdade. E essas pessoas muito, muito especiais. Temos mais algumas lá. Uma das nossas professoras, a Marisa, ela é bisneta de uma das grandes rendeiras que tivemos lá na comunidade, a Dona Bernardina. É a única foto do século passado que nós temos de uma rendeira em ofício lá da Barra. Comunidade tão pobre que não existia uma máquina fotográfica naquela comunidade. Então, não tem registro. Então, a Marisa nunca viu a bisavó dela fazendo renda, nem sabia dessa história da renda, nem que a bisavó era rendeira. A avó dela fez renda também, as tias dela fizeram renda também, e ela nem sabia dessa história. Mas quando a Marisa entrou para fazer renda com a gente, e aí ela foi sabendo dessas histórias todas, ela foi possuída por um orgulho de estar envolvida com dar continuidade àquela cultura que era do povo dela, que era da comunidade, que era da família, que ela abraçou aquilo com unhas e dentes, hoje ela é uma guardiã, ela é uma guardiã disso, ela tem um orgulho. Então, é uma coisa assim, que eu falo sempre, não pensem que porque a coisa está em vias de desaparecimento, ou porque a coisa não está mais, a manifestação, não pense que não dá para resgatar. Dá para resgatar, e você vai resgatar tudo de bom que tinha no bojo daquela cultura, o pertencimento. A comunidade não quer mudar de lá, então fica até mais forte para aguentar esses apelos da indústria imobiliária, a sensação de guardar seu território, de guardar suas histórias. Então, a gente contribui para que a comunidade seja mais forte. Então, a Marisa é uma representante de tudo isso. A nossa outra instrutora, a Rose, ela começou a fazer renda com a gente desde o princípio. Meu marido, que conhecia, empolgou muito e ela foi. E tinha uma filhinha de oito anos que não tinha com quem deixar. Aí, a Pamela ia para lá. E a Pamela ia e começou a se interessar. E aí, ela de olhar, quando via a pessoa fazendo alguma coisa errada, de olhar, ela já dizia: “Não, esse bilro aqui primeiro do que esse, então, é assim.” Começou a explicar, mesmo sem fazer. Aí, perguntamos pra ela, minha mãe, “Pamela, você não gostaria de uma almofadinha para você fazer?” “Ah, eu gostaria.” E fizemos a almofadinha da Pamela, cheia de cachorrinho, cheia de bichinho, e ela começou a fazer renda. Hoje é uma menina linda, tem 18 anos, faz renda desde aquela época, faz rendas lindas. Pode saber que a almofada dela sempre é a que tem mais bilro, porque ela tem uma vaidade com aquela almofada danada. A almofada dela tem mais de 100 bilros numa almofada. Então, é assim, ela também se descobriu como parte daquilo. Então, é um orgulho muito grande ter a Rose e a Pâmela lá junto com a gente. E são inúmeras as histórias. A minha mãe. A minha mãe começou a fazer com 85 anos de idade. Começou a fazer as almofadas e tal. No começo, a gente tinha 10 alunas, duas semanas depois, a gente tinha 7. Aí, eu disse: “Mãe, não vai dar pra ficar só na tentativa de coordenar o resgate, não, mãe, nós temos que entrar, porque se sair mais uma, as outras desistem também, mãe, vamos?” Aí, minha mãe começou a fazer renda também, ela ia lá pra casa fim de semana. Começou com 85 anos, fez muita, muita renda, sempre doando pro projeto, borda muito até hoje pro projeto, as toalhinhas que ela borda são as campeãs de venda lá, do nosso produto lá, dos nossos produtos. E hoje ela faz pouca renda porque às vezes a cabeça falha um pouquinho, e ela fica angustiada de não conseguir ir para o próximo ponto, então quando a gente vê que está assim a gente nem estimula muito para isso não trazer sofrimento. Mas a almofada dela está lá na sala, ela não desistiu dela não. Então, minha mãe também me dá muito orgulho porque é essa guerreira, não vai deixar o barco afundar. Então, se é esse o caso, tô dentro. Então, tem muitas histórias boas lá entre a gente.
P1 - Infelizmente, a gente vai ter que ir para as perguntas finais agora, até por conta do tempo, né Regina? Ficaria muito mais tempo aqui ouvindo você, essa história, mas nós temos todos que irmos. Mas eu achei interessante que você começou muito falando da sua mãe, voltou a sua mãe agora, né? Então, eu queria saber pra você assim, como é que foi contar um pouco da sua história pra gente, a história da sua mãe? Essa história aqui também é de muitas outras pessoas, né? A gente não chegou nem a falar das suas filhas também, né? Se você quiser falar um pouco delas também? Mas no geral, se você puder falar um pouco delas e como é que foi contar a história de tantas pessoas e da sua também, né? Pra gente hoje.
R - Minhas filhas, uma tem 22 anos, ela está morando fora do Brasil, aliás eu acho que ela foi mesmo, o namorado dela está lá também, moram no Canadá e está muito feliz lá, tá terminando a primeira etapa da faculdade e está feliz. Minha filha, essa mais velha, gosta muito de pintar também, tem muito dom para pintura. Meu marido pinta muito também, então puxou essa veia aí. Então, tá lá. A outra filha tem 18 anos, essa mora com a gente, ela faz faculdade de direito, vivencia todas essas coisas lá da Barra com a gente, ela vive muito, tem muitos amigos na comunidade, dentro desse espírito que eu te falei, de comunitário mesmo, de todo mundo junto, ela é bem feliz lá, estuda fora de lá, lá não tem faculdade, mas assim, se relaciona com os amigos de fora e também com os amigos de lá. E eu acho que vai ficar nela também, no direito ou na profissão que ela for exercer, eu acho que vai carregar essa bagagem que a gente tem de valores, que vem desde os pais, dos avós. Então, a nossa perspectiva é bacana em relação às meninas. E lá na Barra do Jucu, você perguntou como é a minha sensação em relação a essas coisas? O que você...
P1 - Na verdade, como é que foi contar um pouco da sua história pra gente aqui? Que é uma história que você contou história de muita gente ao mesmo tempo também, né?
R - Olha, um prazer enorme. Principalmente porque posso contar a história de muita gente. Eu fico acanhada em contar muita coisa assim sobre mim, essas coisas assim, as pessoas vivem falando da importância desse trabalho e tal, mas eu gosto muito das coisas coletivamente, sabe? Porque as pessoas lá me falam muito do papel que eu tenho nisso tudo e tal, eu acho que é importante mesmo, eu sou um meio, porque as pessoas talvez não tivessem acesso a coisas que eu tenho, como escrever editais, mesmo acompanhar, mesmo prestar contas, mesmo ter relações com diversos órgãos, com diversos setores, como você mesmo tem visto aí com o museu, essas relações que a gente tem que ter. Então, eu acho que tem um papel mesmo. E também sou muito sonhadora, então eu sonho, mas sonho com um foco já em procurar meios de realizar os sonhos. Então, eu acho que isso impulsiona também. E acaba que as pessoas do grupo embarcam nas histórias e o grupo só vai crescendo. Nós paramos em 60 porque a sala que a gente ocupa é mínima. Então, como a sala é muito pequenininha, a gente tem que dividir em todos os dias da semana, a turma. E só entra alguém, tem uma lista de espera enorme de gente querendo ir lá com a gente, porque é tudo gratuito lá também, a gente se vira em edital, se vira de tudo quanto é jeito, para sustentar aquilo, mas ninguém vai pagar, porque se pagar a gente talvez esteja excluindo as pessoas da comunidade, que é quem mais a gente quer que faça parte novamente dessa cultura. Então, eu fico muito feliz quando você me pergunta sobre muitas pessoas, porque realmente... Tá, meu papel é importante, mas se aquelas pessoas não estivessem lá, não acreditassem, não abraçassem a causa, não brigassem por aquela causa lá, o que eu ia fazer sozinha? Como é que se resgata a cultura se você não tem a comunidade junto? Então, muito feliz em fazer parte disso. Não esperava que fosse ficar tão feliz, porque não esperava que vocês fossem me dá todo o espaço para falar de tanta gente que, na verdade, são os atores principais dessa coisa que eu tanto defendo, que eu tanto acredito. Então, assim, a felicidade é enorme, e tenho um respeito pelo Museu da Pessoa muito grande. Então, fazer parte de alguma coisa nisso, para mim, é muito. Estou muito lisonjeada. Muito feliz!
P1 - Imagina, a felicidade é nossa, Regina. Obrigado por ter dado o depoimento aqui para a gente, tá? Eu acho que ao longo da conversa ficou muito claro que, sim, você, apesar de dar bastante humildade sua, sim, é uma pessoa certa de representar o povo de Vila Velha e da Barra do Jucu. A gente agradece muito o seu tempo, a disponibilidade de ter contado essa história pra gente. Obrigado, viu!
R - Obrigada a vocês. Ah, e só contando uma história, já estamos partindo pra outros municípios. Já tem um ano que a gente ajudou a resgatar Meaípe, em Guarapari, que foi a última comunidade rendeira do Estado. Então, a gente quer levar isso para o Estado todo. E vamos levar.
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