Projeto Vidas Vozes e Saberes em um mundo em chamas
Entrevista de Ênio Nilo Schiavon
Entrevistado por Luiza Gallo
Colônia São Manoel, 8º Distrito, 4 de julho de 2025
Entrevista número: PCSH_HV1482
Revisado por Nataniel Torres
P - Eu queria que você começasse se apresentando, dizendo o seu nome completo, a data e o local de nascimento.
R - Bom, eu sou Ênio Nilo Schiavon, mais conhecido por Nilo Schiavon. Nasci dia 17 do dez de 1963, no município de Pelotas.
P - E te contaram como foi o dia do seu nascimento?
R - Tem muita história sobre esse dia de nascimento. Tem uma família vizinha aqui também. Tem um rapaz que nasceu também no mesmo dia. Somos irmãos gêmeos de data de nascimento. Só que eu nasci uma hora mais antecipada que ele. Então, sempre onde a gente se encontra é o meu irmão. E outra história é que eu era muito pequenininho quando nasci. Aí eu tinha um vizinho, naquela época as famílias se visitavam muito, não tinha televisão, não tinha telefone, era o contato pessoal, família se visitando. E um dos vizinhos que vinha, que era amigo do pai, amigo da família, e vinha visitar muito, ele sempre me chamava de _____. _____ quer dizer preá em alemão. Preá é um bichinho que vive com nós aí. Então ele chamava de _____, de tão pequenininho que eu era. Era parecido com _____, uma preazinha. Então isso aí é uma coisa que marcou a infância. Mas assim, eu era muito ativo, muito arteiro, fazia esculhambação, fazia de tudo. E na propriedade onde eu morava, onde eu nasci, era mais no fim lá, de tarde, a gente vai poder conhecer. Conhecer não, mas ver onde é que ela fica. E era bem perto de um arroio. Passava um ípsilon de água, de arroio, uma nascente. É a nascente do quilombo. Praticamente aqui o meu açude é a nascente do quilombo e a água que abastece Pelotas. Sai daqui, a cabeça dele sai daqui. Então daqui ele vai até Pelotas onde é abastecida a cidade com essa água. E aí diz que um dia de uma chuvarada...
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Entrevista de Ênio Nilo Schiavon
Entrevistado por Luiza Gallo
Colônia São Manoel, 8º Distrito, 4 de julho de 2025
Entrevista número: PCSH_HV1482
Revisado por Nataniel Torres
P - Eu queria que você começasse se apresentando, dizendo o seu nome completo, a data e o local de nascimento.
R - Bom, eu sou Ênio Nilo Schiavon, mais conhecido por Nilo Schiavon. Nasci dia 17 do dez de 1963, no município de Pelotas.
P - E te contaram como foi o dia do seu nascimento?
R - Tem muita história sobre esse dia de nascimento. Tem uma família vizinha aqui também. Tem um rapaz que nasceu também no mesmo dia. Somos irmãos gêmeos de data de nascimento. Só que eu nasci uma hora mais antecipada que ele. Então, sempre onde a gente se encontra é o meu irmão. E outra história é que eu era muito pequenininho quando nasci. Aí eu tinha um vizinho, naquela época as famílias se visitavam muito, não tinha televisão, não tinha telefone, era o contato pessoal, família se visitando. E um dos vizinhos que vinha, que era amigo do pai, amigo da família, e vinha visitar muito, ele sempre me chamava de _____. _____ quer dizer preá em alemão. Preá é um bichinho que vive com nós aí. Então ele chamava de _____, de tão pequenininho que eu era. Era parecido com _____, uma preazinha. Então isso aí é uma coisa que marcou a infância. Mas assim, eu era muito ativo, muito arteiro, fazia esculhambação, fazia de tudo. E na propriedade onde eu morava, onde eu nasci, era mais no fim lá, de tarde, a gente vai poder conhecer. Conhecer não, mas ver onde é que ela fica. E era bem perto de um arroio. Passava um ípsilon de água, de arroio, uma nascente. É a nascente do quilombo. Praticamente aqui o meu açude é a nascente do quilombo e a água que abastece Pelotas. Sai daqui, a cabeça dele sai daqui. Então daqui ele vai até Pelotas onde é abastecida a cidade com essa água. E aí diz que um dia de uma chuvarada encheu o arroio e o Nilo desapareceu. E o nono, meu avô, fazia vinho. E era no inverno, as pipas de vinho, pipa de mil quilos de uva, sempre a gente guardava elas de boca para baixo. E o Nilo entrou por baixo e ficou dentro da pipa, escondido. E procura daqui, procura dali, ninguém achava o Nilo. “Onde é que estava o Nilo? Onde é que estava o Nilo?” E o arroio cheio, todo mundo preocupado que tinha caído dentro d'água. E o Nilo escondido dentro do porão, debaixo da pipa. Aí foram achar, apareceu as perninhas dele. Então tem umas histórias assim. E eu vivi muito, a gente até, naquela época não tinha as comunidades que tinha hoje, de festa não tinha quase. E a gente foi começar a sair com 17, 18 anos, que foi começar a sair para as primeiras festas, primeiro jogo de futebol, coisa assim. Então, o nosso divertimento era brincar, juntava a turma toda, a gurizada toda, brincar nos matos. Era o nosso brinquedo, ou caçar passarinho, caçar preá, que era o _____, ou senão brincar dentro dos matos. Então, desde aquela época eu já gostava de andar dentro do mato. A gente fazia competição dentro dos matos, pegava numa borda do mato e tinha que passar o mato sem tocar os pés no chão, por cima das árvores. E a gente não se matava porque não era tempo. Então, esse era o nosso brinquedo naquela época. Grande parte de... A gente já tinha, trouxe da infância: o conhecimento de árvores. Justamente por causa disso. Então, uma infância boa.
P - E aí você andava no meio do mato com a sua família e eles iam te contando? Como que você foi aprendendo?
R - A gente aprendeu muito porque naquela época não tinha motosserra e, naquela época, desmatavam, cortavam os matos para fazer roça nova. Praticamente não tinha terra pronta, era tudo mato. Então se cortava de machado. E eu quando o pai, algumas das áreas que a gente tem aqui, uma das áreas ainda, eu me lembro que eu ajudei a derrubar na mata nativa. Então, eles derrubavam de machado e eu de facão ajudando a cortar. Então, a gente conheceu muitas árvores. E o maior conhecimento das árvores aconteceu depois. Isso lá depois de 95 em diante. Mas já naquela época a gente já tinha alguma coisa de conhecimento.
P - E vocês brincavam com os vizinhos?
R - Sim, a gente juntava aí sete, oito, dez jovens, entre guris e gurias, era tudo junto. E a gente brincava. Os domingos era nosso: juntar a turma e vários brinquedos. Na propriedade do pai lá tinha um campo e tinha uma descida. E nessa descida ali era grama. E a gente deixava uma tábua no sol, no meio-dia. No verão, que era bem quente. Só que uma tábua, se tu deixar no sol, ela vira, ela é empena, e vira as duas pontas pra cima. E era o nosso brinquedo sentar em cima daquela tábua e largar naquele ladeirão pra deslizar. E ali existia as competições: quem ia chegar lá embaixo primeiro. Então, cada um tinha a sua tábua, cada um preparava a tábua como queria,pra largar ali, pra fazer esse tipo de brinquedo. Então era o nosso divertimento nos domingos. Então era esse aí.
P - E nos outros dias da semana, como que era o dia-a-dia?
R - O trabalho normal da lavoura. Nós trabalhamos com pêssego, feijão, milho. Plantamos lá no início, a gente plantou alguma coisa de cebola também, mas era nessas culturas. E depois era cuidar dos animais, que naquela época tinham os animais, a gente tinha muito, muito não, mas sempre tinha a vaca de leite, tinha os gados. Então era preparar pasta para os bichos para o inverno, fazer isso aí. Tinha os porcos, tinham as galinhas, como a gente tem até hoje.
P - E aí desde cedinho já acordava?
R - Sim, eu era o que levava... Naquela época a gente vendia leite e dava um quilômetro da casa até a estrada onde passava o caminhão pra pegar o leite, de manhã. E ele passava seis horas. Então cinco horas eu tinha que sair de casa com o carrinho de mão, com o tarro de leite pra levar lá na estrada. Então esse era o meu serviço.
P - Quantos anos?
R - Eu tava, nessa época, eu tava com 14, 12, de 12 pra cima já comecei a fazer isso aí. Então foi, mas era um divertimento. Isso aí pra nós era um divertimento.
P - E como você descreveria a sua mãe? O jeitinho dela?
R - A mãe era o meu esteio. Era a minha base. A mãe, quando o pai faleceu, a gente se mudou pra cá. Ela veio pra cá comigo. E a mãe, assim, nunca, nunca... Assim, disse: “Olha, tá difícil”. Num momento ou no outro: “A coisa tá difícil”. A gente não tinha muito recurso. Nós éramos muito pobres. Quando a gente chegou aqui, não tinha nada. Pra trabalhar, só tinha uma juntinha de boi. Era o que a gente tinha pra trabalhar. Uma casinha velha, que a gente depois reformou. Sem piso, sem forro, sem reboco. E foi onde a gente começou, aqui. E a vó sempre me dando força: “Vamos lá, vamos lá”. Então, aquela coisa era a minha base. Uma pessoa que nunca reclamou de nada, nada. Eu nunca vi ela dizer assim: “Olha, tá ruim, tá ruim”. Ela sempre teve muito problema de coluna, que eu acho que eu herdei um pouco disso aí dela. Mas ela se torcia de dor e nunca dizia: “Olha, eu tô com dor”. Nunca dizia. Então, uma pessoa que sempre foi muito, muito de elevar, nunca de esmorecer. Então, muito boa.
P - Desde menino você conseguia ver isso.
R - Sim. O pai já sempre foi mais duro, mais rígido, mas a mãe era muito amigável, muito tranquila.
P - E seu pai, que recordações você tem dele?
R - O pai também, o pai era muito rígido com nós. Assim, muito reto. Mas eu tenho boa recordação dele, me ensinou demais. Quando ele faleceu, eu tive que assumir a propriedade toda. Então foi bem difícil. Eu tinha vinte e poucos anos. Mas eu já toquei, já tocava propriedade desde que ele adoeceu, quando eu saí da escola, com 14 anos, ele disse: “Olha, tu vai ter que tocar”. E aí eu assumi a propriedade. Toda a questão de culturas, o que fazer, quando fazer. Então, desde essa época eu já tinha meus compromissos mais rígidos. Diferente dos outros, da outra juventude, dos outros jovens. E assim, aprendi. Aprendi muito cedo a fazer isso aí. E depois, quando ele faleceu, aí foi mais complicado. Porque a gente perde a âncora. Mas, estamos aí. Estamos aí, sobrevivendo.
P - Você teve que se tornar muito responsável novo.
R - Muito novo. Muito novo.
P - Você pensou em desistir em algum momento?
R - [intervenção] Eu sempre trabalhei. Aí em 88, início de 88, a gente, eu casei, a gente casou, casei com a Márcia. E dois anos antes já tinha entrado a questão dos agroquímicos nos pomares. Que nós sempre trabalhava com pêssego, mas nunca colocava nada. Aí então dava uma fruta mais torta, mais com defeito, e as indústrias começaram a reclamar. Aí quando começou a aparecer os venenos lá em 84, 85, apareceu os dito “remédios”. Eles diziam que era remédio. E era os agroquímicos de hoje. E as indústrias diziam que tinha que botar o remédio porque senão o pêssego ia ficar torto e eles não iam receber na fábrica. E era o único mercado que nós tínhamos. E a gente começou a colocar, só que eles não nos diziam naquela época como é que tinha que colocar isso aí. E muitas vezes eu coloquei esse veneno, porque dizia remédio, mas é veneno, na lavoura, na fruta de bermuda e sem camisa. E aí, em final de 88, eu estava colhendo pêssego, comecei a passar ruim, passar mal, passar a ficar tonto. E acabou eu indo para o hospital. Foi quando, em 80, no início de 89, nasceram o Rômulo, o Robson e a Luana. E eles nasceram numa sala do hospital e eu estava envenenado na outra. E eu estava na outra sala. Então, aquela época que passou um pouquinho essa questão de querer sair da lavoura. Mas, como eu não tinha estudo, a única coisa que eu sabia fazer era trabalhar na agricultura, eu digo: “Não, vamos ter que ficar aqui”. Mas uma coisa que me incomodou dali pra frente foi isso aí. Parei de fumar, que eu fumei dos 17 até os 25, eu fumei. E naquela época que eu estive no hospital eu parei com cigarro também. Isso faz 37 anos. Que bom! E assim, foi um pouquinho desse aí o começo de... Aí depois em 94, aí a gente veio pra cá. 94, a gente veio pra cá, as crianças pequenas, os filhos pequenos, tavam três anos. Uma propriedade totalmente morta, isso aqui não produzia nada aqui dentro. Pra vocês terem uma noção do que era isso aqui, nós trabalhamos cinco anos fora da propriedade, plantando milho, plantando feijão, para conseguir ter a subsistência aqui dentro. E nesses cinco anos a gente começou a recuperar a terra aqui dentro.
P - Como?
R - Adubação verde, palha, tudo que era lixo, que os outros agricultores aqui na volta não queriam, que eles iam botar fogo, que naquela época era muito comum queimar. Botar fogo para limpar a terra. A gente ia buscar essa palha e trazia pra dentro da nossa propriedade. E naquela época até a gente adquiriu vários apelidos. Quando a gente chegou aqui, todo mundo dizia que nós era louco de vir morar numa propriedade com a família, que é uma propriedade que nunca conseguiu ninguém sobreviver em cima. Que era uma propriedade muito pobre. Muito desgastada. Que ela foi muito desgastada, naquela época já tinha soja, só que tudo feito manualmente. Lavrado de aradinho de boi, plantado de saraquá e cortado de foicinha de mão. Não tinha máquina, era tudo na mão. E aí, então, terminava de colher, trilhava, e aquela palha, para não incomodar no ano seguinte, era queimada. Então, botava fogo, queimava aquela palha, para evitar o problema no ano seguinte, e por causa do tipo de arado, de tração que nós tinha, não podia ter palha, senão não bocava a terra. Então, era limpo. E a terra foi morrendo. Cada vez mais, mais morrendo. E aí, onde a gente começou a recuperar com botar palha, botar sementes, pra tentar ter um pouquinho de cabelo em cima da terra. Porque não tinha nada. E quando a gente chegou aqui, os vizinhos diziam que nós íamos morrer de fome aqui, porque aqui só tinha cobra e pedra. E até hoje, isso faz 30 anos, 32, eu não achei nem as cobras e nem as pedras ainda. Então, estou procurando, vamos ver se eu acho. E nisso aí a gente, nesse tempo aí, a gente começou, depois dos cinco anos que a gente trabalhou fora da propriedade, a gente voltou para trabalhar aqui dentro.
P - A gente quem? Quem que é?
R - Nós da família. Nós, eu e a Márcia e os dois moleques. Em 95, aí surgiu... Fiquei sabendo através de uma missa que a gente foi na nossa paróquia. Lá na Maciel, vocês passaram na igreja lá, a matriz, que estava se iniciando um trabalho de agroecologia na região, através das igrejas, através da Igreja Luterana, que era pelo CAPA, e pela igreja católica, que era a Pastoral da Terra. Aí um rapaz lá, que era ministro, ele disse: “Nilo, tu tem que participar disso aí. Eu vou te mandar o meu filho”, que era o agrônomo, Marcelo Souza, naquela época, que era que estava mexendo os pauzinhos, disse: “Eu vou mandar o Marcelo falar contigo”. E aí o agrônomo entrou em contato comigo, a gente conversou, só que isso já era uma coisa que me incomodava, a questão de eu ter me envenenado. Desde o início me incomodava, de que eu não vou poder continuar a vida inteira nesse trabalho. Porque eu continuei trabalhando com pêssego, só que com veneno, antes desse trabalho, de começar essa história. E um dia as crianças vão crescer, vão me pedir um pêssego pra comer, e eu vou ter que dizer que não pode comer porque eu botei veneno. Então isso aí me incomodava muito. E quando surgiu a ideia de trabalhar agroecologia, nós somos uma das primeiras famílias a entrar nesse trabalho, isso em 1995. Começamos a conversar e daí começamos a buscar mais informação e eles nos trazer informação, porque a gente não tinha muito acesso, naquela época não tinha internet, não tinha nada. E aí conseguimos formar um grupo de agricultores. Nós éramos 38 famílias quando foi fundada a Associação ARPA-SUL. Isso em dia 7 de setembro de 1995. Foi fundada a Associação Arpa. Aí tá, foi fundada a associação. Tá, “podemos trabalhar”. A partir daí, começamos a brigar por espaço de comercialização. E nós já estávamos plantando alguma coisa aqui na lavoura. Plantando algum canteiro, a gente tirava terra de mato, alguma coisa de esterco de gado, esterco de porco para botar fazer canteiro e já tinha alguma produçãozinha, só que a gente continuava ainda vendendo para o intermediário. E aí praticamente inviabilizava, porque o intermediário comia 70% do teu lucro. E nisso aí foi passando o tempo. Eu vou ter que voltar um pouquinho. Quando a gente chegou aqui em 94, a gente trabalhou um ano e meio com leitaria. Era a única fonte de dinheiro pra dentro da propriedade, porque não tinha outra fonte. Aí naquela época eu comprei três vacas, só que comprei animais errado pra propriedade. Eu comprei animais holandeses, que são animais de grande porte e muita necessidade de pasto. E nós não tínhamos esse pasto. Então a gente conseguiu ter uns animais com as crias, tivemos três terneiras fêmeas, que foi o meu lucro, porque o leite a gente não conseguia produzir muito porque não tinha comida para a vaca. Um ano e meio a gente trabalhou com isso aí e depois paramos porque inviabilizou. Porque a gente via a nossa terra empobrecendo cada vez mais. Tudo que saía da terra tinha que ir para a boca da vaca, e aí então inviabilizou aquilo ali. E aí eu vendi os animais, vendi as terneiras, foi o lucro que a gente teve, que deu para começar outro trabalho a partir daquilo ali. E aí a gente começou, que naquela época eu estava junto da coordenação desse trabalho de agroecologia, buscar espaços de comercialização. Essa foi a pior briga que nós tivemos. A gente entrou em contato com os responsáveis pelas feiras de Pelotas, que a gente queria trabalhar direto para evitar o intermediário. Nós queríamos sair do campo e ir lá vender nosso produto. E a gente encontrou muita dificuldade para conseguir um espaço de feira para trabalhar, porque nós éramos loucos. “Onde é que já se viu querer trabalhar sem adubo e sem veneno?” Mas era o contrário do que estava se projetando naquela época. E aí brigamos até, de setembro até final de novembro, dia 18 de novembro de 1995, a gente conseguiu o nosso espaço e fizemos a primeira feira na Dom Joaquim, onde é até hoje.
P - Como foi esse dia?
R - Muito brigado, porque a gente fez divulgação, fizemos divulgação, a gente tinha bastante, nós tínhamos bastante produto naquela época. Porque eram várias famílias e todos tinham se preparado por 4, 5 meses com produção. Então tinha bastante produto. E a gente fez, a gente saiu daqui, muita gente saiu daqui, pegava um ônibus daqui, ia pra Pelotas, pra fazer entrega de panfleto de santinho, na imediação do Dom Joaquim, que não tinha a população que tem hoje, que do lado da feira, depois a gente descobriu umas maracutaias ali. Tinha a avenida, a Dom Joaquim, a República, e do lado só tinha o Parque Tênis e um posto de combustível. Foi o único lugar que nos deram pra trabalhar, fora da cidade. Só que na beira da feira, do lado da feira, tinha gado pastando, era campo. E aí a gente começou a fazer divulgação, panfletagem, boca a boca convidando o pessoal pra feira. Chegamos lá, duas horas da madrugada, para montar os pavilhões que ninguém sabia como é que era, como é que se fazia, como é que é aquilo. Chegamos lá e montamos o pavilhão e esperamos até às sete horas para o cliente chegar. E realmente chegou bastante gente. Se vendeu muito bem aquele dia. Todo mundo saiu faceiro. Na semana seguinte fizemos a mesma coisa. Eu saía daqui, que eu era um dos que tinham um caminhão, que depois deu problema, estourou o motor, fez um monte de problema, e sem dinheiro pra recuperar, então foi... Na segunda semana que a gente fez a feira, nós fomos pra lá, descarregamos a mercadoria, descarregamos, montamos tudo, descarregamos toda a mercadoria, e o cliente não veio. E meio dia nós descarregamos tudo e viemos de volta. Então foi o início, assim, muito difícil. E isso se passou quase uns quatro meses, assim.
P - Não tinha cliente?
R - Não, cliente não vinha.
P - Por quê?
R - Porque o nosso produto, em relação ao convencional naquela época, era um produto muito pequeno, muito feio. A gente não tinha noção, porque ninguém tinha noção de trabalhar com hortaliças. Todo mundo trabalhava com milho, feijão, essas coisas. E aí, então, o cliente chegava lá: “Bah, mas essas coisinhas feias aí, isso aí não dá para comprar”. Até a gente conseguir dizer para o consumidor que aquilo ali era outro tipo de produto, até mostrar para ele, fazer entender que era outro tipo de produto. Levou uns quatro meses. Muitos agricultores nós perdemos, nós ficamos com doze agricultores só. Naquela época, que baixou de 38, baixou para 12. “Porque vamos fazer o quê aqui? Não se vende nada”, então acabaram não resistindo. Então, ficou as famílias mais teimosas. Ficamos 12 agricultores mais teimosos. E esses 12 estão até hoje. Seguiram. Depois, isso aí evoluiu, começou a gente vender um pouquinho mais, começamos a ter retorno e esse dinheiro voltou para dentro da propriedade como incentivo aqui dentro, como melhoras na propriedade. Como melhorou a renda, começou a melhorar o solo e começou a melhorar os produtos. Começou a ter produtos de mais qualidade e começamos a ter mais clientes. Começaram a entender qual era o objetivo daquilo tudo e começou a ter mais gente. E com isso aí começou a evoluir, evoluir esse trabalho. E todo mundo na feira dizia: “Bah, mas uma feira só com hortaliça”, porque só tinha três, quatro tipos de coisa. Ou era feijão, feijão, batata, batata doce, mandioca e rúcula, alface, rabanete e salsinha. Era o que tinha. “Onde é que pode uma feira sem fruta?” E aí isso aí começou a despertar pra mim. Bom, como eu tinha vindo da fruticultura, pra mim foi mais fácil de partir pra esse lado. Só que com muita dificuldade, que a gente viveu a vida inteira fazendo uma coisa de um jeito, e aí tu tem que mudar essa forma de trabalho. Mas os primeiros pomares de pêssego que a gente fez, a gente fez ali onde está a casa da Luana, daquele lado, sem êxito, porque a gente não conhecia a propriedade aqui. E a gente plantou pêssego, que é uma coisa sensível ao frio, na área mais fria da propriedade, que aquele é o lado gelado. Esse lado aqui é quente. Esse lado para a esquerda é quente. E até a gente descobrir isso aí, passou uns quatro anos. E a gente nunca colheu nada daquele pêssego. Aí a gente começou a notar que quando vinha da lavoura lá do fundo, tu vinha até aqui em cima, perto de casa, era quente. Daqui pra cima gelava. “Então, tá aí. Tá aí o que tem que fazer.” Aí tiramos mata de eucalipto, que isso aqui era tudo mata de eucalipto, a gente tirou tudo, plantamos lá do outro lado e botamos o pêssego tudo pra esse lado aqui. E aí começamos a colher. A partir dali começou a se colher fruta, colher o pêssego. Daí entrou o pêssego, depois entrou o primeiro pomar de citros que a gente plantou lá no fundo. Depois entrou a uva. E daí evoluiu. Hoje é mais fácil vocês me perguntarem que tipo de fruta que não tem aqui dentro, do que a que tem. Então hoje ela é praticamente, gera em torno da fruta. Então tem muitas variedades. A gente vai conhecer isso de tarde.
P - E tem frutas nativas daqui?
R - Sim, sim.
P - Quais são? Qual é a diferença? Tem alguma diferença na plantação?
R - Tem, tem. Tem muita diferença. Mas isso aí, vamos chegar mais adiante, vamos chegar nessa parte. Então, a gente começou em 95. Eu comecei, como a gente tinha que fazer, em primeiro preparo, para conhecer o trabalho de agroecologia, para ver o que era, como eram os princípios básicos de agroecologia. Eu fui a Ipê, uma viagem que foi um luxo, nós fomos nove em uma Toyota, que era para cinco, nós fomos nove. Cada posto de polícia, cada posto da polícia que nós passava tinha que descer aquele monte de gringo lá de dentro e explicar o que nós íamos fazer. Aí fomos, passamos, foi um curso de uma semana no Centro Ecológico, no Ipê, onde eu conheci várias, várias pessoas, assim, que até hoje são meus esteios, meus mártires. Itair Vigolo, Maria José Guazelli, Delvino Magro... Ah, como é o nome dele? Esse das Águas Florestas, o... Ah, esqueci. Falei pra vocês hoje de manhã, agora esqueci o nome dele. Esqueci o nome dele, depois eu lembro. Itair Vígolo, onde a gente começou a entender o que era um sistema de agroecologia.
P - E o que é um sistema de agroecologia?
R - Um sistema de agroecologia é você viver em harmonia com a natureza. Não ser a natureza separada. Você tem que conviver com a natureza e com a terra. Você tem que ser parte dela. Você tem que ser parte desse sistema. Não é um sistema isolado, não tem como. E depois que eu entendi isso aí, é que começou a juntar os pedacinhos. E como eu gostei, porque eu não tinha estudo. Muitas coisas que foram faladas no curso lá eu não conseguia captar, não conseguia entender o que eles queriam dizer. Digo: “Não, mas eu vou ter que procurar aprender um pouquinho mais”. E a partir dali, a partir de 1995, eu comecei a buscar cursos. Onde tinha um curso que me interessava, eu ia fazer. E aí eu fiz gestão ambiental, administração, gestão de propriedade, agroecologia. Tô com 28 cursos feitos até hoje. Então, onde tinha um curso, a gente ia fazer, independente de onde fosse. Então, foi o que me deu força pra tocar pra frente. E cada curso desses aí, eu tenho um pouquinho instalado aqui dentro. Então, nunca fiz um curso sem trazer nada para cá, porque uma das formas que a gente, que eu entendi que tinha que ser feito para poder aprender era ir fazer o curso, mas levar a propriedade na cabeça. Olha, o cara estava falando lá, o professor estava explicando lá, estava falando uma coisa, daqui a pouco, plim, batia o sininho ali: “isso eu posso fazer” “Eu tenho como fazer isso”. E voltava para casa e botava na prática. Então, tem de tudo aqui dentro, partezinha de tudo isso aí.
P - O que? Você consegue dar alguns exemplos?
R - Tem vários. Administração de empresa, foi um dos cursos que eu fiz. E a administração, ela está em tudo, em tudo, em tudo aqui dentro. Em tudo que tu vai fazer, tu precisa de uma boa administração para poder ter êxito. Administração, gestão rural, gestão da propriedade no todo, mercado. Então, são vários e vários aprendizados que a gente teve e, graças a Deus, estamos aqui até hoje.
P - E com a terra também?
R - E com a terra também, recuperação de solos, curso de recuperação de solos, a gente fez: água, meio ambiente, foi onde eu aprendi a gostar mais de árvore ainda. Então, são coisinhas pequenas que a gente pega um pitaco aqui, um pitaco ali, e tu vai conseguindo montar um quebra-cabeça. É como eu sempre disse: “Eu nunca vou para um lugar sem levar um caniço para pescar, pescar ideia”. Às vezes estão falando aqui e ali assim, daqui a pouco, “plim!” Uma ideia aí que me serve. Então eu acho que isso aí é muito bom. E eu tenho essa capacidade de pescar essas ideias. Então, aí a gente tocou até 95, onde a gente formou a feira. Já com o solo um pouco melhor, a gente começou a plantar as frutas, começamos a plantar o pessegueiro, começamos a colher, começamos a vender, abriu esse mercado. A gente já tinha duas feiras e mais ainda uma feira extra que a gente faz em São Lourenço, nos meses de novembro e dezembro, 60 dias. A gente faz as duas feiras que a gente montou em Canguçu, Pelotas e São Lourenço por semana. E essa feira de São Lourenço, eu fiz ela até 2017, desde 96, 97, quando eu comecei, até 2017. Até o prefeito caçar minha licença. Entrou um prefeito novo ali e caçou minha licença e nunca mais eu consegui ter. Ele tá lá faz... Desde 2017 ele tá lá mesmo. Porque eu era de outro município. E aí ele simplesmente me proibiu de entrar na cidade com frutas. Porque o cunhado dele era dono da maior fruteira da cidade. Então, tem explicação. E aí, como a gente tinha uma clientela muito grande lá, e foi o ano que entrou a Universidade, a FURG, para o município de São Lourenço, e aí a gente tinha muito contato com eles, porque desde que é da Universidade de Rio Grande, eles vinham aqui conhecer o nosso trabalho. E a gente tinha muito contato com os professores, com toda a equipe da FURG de lá. E quando o pessoal soube que o prefeito tinha cassado minha licença, se revoltaram, fizeram, por conta deles, um abaixo-assinado, deu 2.500 assinaturas que eles recolheram para mim ficar na cidade, para continuar o meu trabalho ali.
P - Como foi pra você isso?
R - Olha, assim, eles se mobilizaram, os alunos saíram colhendo a assinatura, porque todo mundo me conhecia. E aí todo mundo assinava. E aí fomos levar pro prefeito, ele simplesmente pegou aquilo na mão e disse: “Olha, isso aqui pra mim é lixo” Botou fora. Disse: “Não, pra mim é lixo. Aqui quem manda sou eu e não tem. A tua licença eu não vou liberar mais”, e simplesmente me tirou da cidade. E a gente, como tinha essa clientela formada, a gente formou um grupo, que na época já existia o Zap. A gente formou um grupo de comércio. Só que na época que eu estava lá dentro permanente, eu pagava licença, pagava as taxas, pagava as licenças e tudo, tudo, como um comerciante. Quando surgiu isso aí, a gente começou a entrar na cidade roubado. Fiz, continuei vendendo, só que eu ia lá fazer entrega a domicílio. Aí ele não pôde me barrar. E eu continuei, hoje tem 58 famílias que a gente entrega. Então, por um lado, ele me ajudou. Hoje eu faço a minha venda meio dia e volto pra casa. Então foi uma forma de continuar atendendo meus clientes. E eu tenho clientes até hoje lá que não compram pêssego de outro lugar. Eles não comem pêssego a não ser daqui. Então, porque o pêssego daqui é diferente, o sabor é diferente. Então, coisas boas aconteceram.
P - Sabe o que eu queria te perguntar? Como foi a primeira colheita de pêssego quando deu certo?
R - A primeira colheita...
P - O que você sentiu? Como que é isso, assim?
R - Uma criança ganhando um presente de Natal. Os primeiros pêssegos que a gente colheu foi numa lavoura que vocês vão ver de tarde. O pessegueiro com cinco anos, ele não tinha um metro de altura. Com cinco anos. E já tinha fruta. Começou as primeiras frutas. Acho que ainda tenho fotos dessa época. Hoje, pessegueiros, naquela época, com 5 anos, dava 3, 4 frutas por planta. Hoje, com 5 anos, ela me dá 3 caixas, 60 quilos, com 5 anos. Então, hoje nós temos solo, temos como produzir. Mas assim, foi o início. As primeiras frutas que a gente colheu foi aquela satisfação de: “Tô ganhando”. Então, foi muito bom. E ali as crianças eram pequenas, a sensação assim, o sabor de ver as crianças ir lá pegar um pêssego e comer, sem a gente ter que dizer que não podia comer, que tinha veneno. Então, isso foi muito bom. E aí evoluiu, esse pêssego começou a ir para o mercado, começou a ir para as feiras, tudo que ia se vendia, porque era uma fruta diferente, uma fruta diferenciada. E com isso começou a entrar retorno. Foi onde a gente construiu a casa, fizemos a casa, reformamos a casa, construímos isso aí tudo. Construímos as áreas de galpão que a gente não tinha também, que era tudo... Os primeiros galpão que eu fiz aqui eram quatro suportes, quatro esteios tapados de palha, de palha de massega, porque eu não tinha dinheiro para comprar telha. Aí a gente destruiu isso tudo, construímos de material de alvenaria. E foi evoluindo. Em 2007, as crianças se formaram, até 2010, por aí, eles findaram o primeiro grau. A Luana fez o magistério e o menino foi pro quartel, e quando voltou de lá, se especializou na mecânica da Scania E aí os dois ficaram seis anos na cidade, e nós ficamos sozinhos aqui de novo. Aí nasceu Rômulo, que ficou pequenininho, e nós, de novo, começando de novo com um filho pequeno. Mas já com uma estrutura melhor. E é onde a gente começou a tocar pra frente. Aí, em 2011, surgiu aquele seminário em Goiás, onde eu fui representando o Bioma Pampa junto com o pessoal da Embrapa. Uma viagem assim, que eu nunca tinha viajado de avião. Nossa Senhora, o maior medo de andar naquele troço. E marcamos, eu e o Joel Cardoso, que era um técnico da Embrapa, que me acompanhava aqui. Ele sempre dizia: “Nilo, tu tem que fazer agrofloresta porque tu tem uma afinidade com isso aí”. Eu sempre plantei hortaliça tudo misturado. Tudo misturado. Tomate com beterraba, alface com brócolis, cenoura com abóbora, tudo misturado, porque a propriedade era muito pequena. E as áreas que a gente tinha melhorado, que tinha se recuperado o solo, eram muito pequenas. Então, para ter um pouquinho mais de produção, tinha que adensar, misturar tudo. E foi aí que ele sempre, ele via e dizia que eu tinha que fazer agrofloresta. Só que eu não conseguia entender o que que era aquilo. Porque ia haver competição por água, por luz, por nutriente, por “n” fatores. Já tinha visto falar Ernst Goethe. Era o nome do professor que, em 1995, lá em Ipê, ele já tinha me explicado, já tinha explicado para nós o que era a agrofloresta. Só que não tinha batido. E aí, em 2011, surgiu essa oportunidade de ir a Goiás e eu fui. Só que a gente tinha marcado embarque para os dois juntos, porque ele ia de conhecido, já conhecia, e eu não, nunca tinha chegado no aeroporto. E na hora de embarcar, quando a gente saiu daqui, ele disse: “Nilo, eu não vou poder ir no mesmo voo. Tu vai ter que ir, eu vou só amanhã”. Digo: “Bah, e agora?” Mas eu fui. Peguei o ônibus aqui em Pelotas, fui até Porto Alegre. Como o ônibus fazia a parada na rodoviária e depois ia pro aeroporto, pra quem precisasse ir pro aeroporto, nem desci, fui direto. Cheguei no aeroporto, fui pegar minha bagagem, minha mala: “Cadê?” O motora tinha deixado na rodoviária, em Porto Alegre. Toda a minha roupa, tudo, tudo lá dentro. Digo: “Bah, e agora?” Aí eu digo: “Não tem o que fazer, né?” Aí liguei pro Joel, ele disse: “Não, Vai lá, faz o check-in e vamos embora. Vai embora. Lá a gente dá um jeito de arrumar uma roupa, alguma coisa”. Aí o motorista ficou louco. “Bah, e agora? Eu tô aqui com o documento de embarque da bagagem e não tem a minha bagagem”. E aí ele disse: “Que hora é o teu voo?” Eu digo, era duas horas da tarde: “É às quatro”. Ele disse: “Não. Até lá eu tô de volta”, e voltou a Porto Alegre, voltou na rodoviária. E a mala tinha ficado na calçada, onde ele tinha deixado, ninguém tinha pego. Aí era 13h30, ele chegou no aeroporto de volta com a minha bagagem. Bom, aí já foi embora. E assim, muita coisa nova aconteceu. Muitos encontros. E desde daí, fiz aquele curso, aquele seminário.
P - Como foi esse seminário?
R - Ele foi um seminário onde se reuniu vários tipos de trabalho de agroflorestas e de vários biomas, só que na região sul aqui não tinha nada ainda. Então a gente foi mais para conhecer o trabalho. É onde a gente viu vários trabalhos e fomos conhecer uma das propriedades do Ernst, no Cinturão de Brasília, no entorno de Brasília, onde a gente conheceu um trabalho dele. Aí quando nós... Eu me lembro que eu disse pro Joel, quando a gente chegou na porteira da fazenda, aí eu disse pro Joel, digo: “Joel, eu tô em casa. Cheguei em casa”. Que era tudo muito parecido com o que a gente fazia aqui. E aí, entramos lá, e aí o Ernst tava lá. Aí tive a oportunidade de apertar a mão dele pela segunda vez, que é, a mão dele era uma pedra. A minha já é dura, mas a dele era uma pedra. E assim, eu conheci a coisa andando, não foi só na fala. Vim implantado ali. E dali pra cá, voltei pra casa, mês seguinte, a gente começou a instalar isso aqui.
P - O quê? Como foi?
R - Sistema de agrofloresta. Era uma lavoura nua, isso aqui era uma lavoura nua, vocês viram ali. Era uma lavoura nua, pedregulho onde a gente plantava milho e feijão. Preparamos o solo, preparamos as linhas, botamos um pouco de esterco, calcariamos a terra, porque tinha que dar uma melhorada pra plantar citros. E botamos as mudas. Aí o Joel sempre dizia: “Nilo, quando tu vai implantar isso aqui, vamos fazer como o Ernst falou”. Só que isso, antes disso, quando nós voltamos de Goiás, a gente fez um curso aqui dentro da propriedade de agrofloresta. Onde veio um instrutor de Brasília, da Embrapa Cerrado, para ministrar o curso. Foi três dias aqui dentro da propriedade. Quarenta pessoas passaram três dias aqui dentro. E a gente fez o curso, só que eles lá costumam plantar muita semente. É muita coisa de semente. Só que aqui nós não temos semente. Não tem muita semente. É muito pouco. Aí é muda. É pegar muda na mata e botar pra cá. Aí o Joel dizia: “Nilo, quando tu vai plantar isso aqui, tu me avisa que eu quero estar junto. Vamos fazer como o Márcio - que era o técnico - mostrou”. Só que aquilo ali é uma coisa que não... “Nós não temos tanta semente para fazer isso aí? Vamos plantar como muda”. E eu me botei a plantar sozinho. Aí, quando já tinha plantado a lavoura, eu avisei o Joel. Digo: “Joel, vem aqui dar uma olhada como é que ficou. Ele chegou e falou: “Mas tu já plantou? Bah, nós íamos plantar de sementes”. “Não, mas deixa assim, vamos ver o que vai dar. Isso aqui é a minha cabeça”. E plantamos. Aí, como nós tínhamos que fazer o registro desse sistema para poder, no futuro, por exemplo, eu poder fazer uma poda, fazer um desbaste, retirar uma árvore, eu tinha que ter documento, tinha que ter um registro disso aí. E aí a gente começou a buscar, através dos órgãos ambientais de Pelotas, esse registro. Aí o Haroldo, que era um técnico da SEMA naquela época, ele me mandou um documento para me preencher com o nome de plantas, densidade de plantas, metragem de plantas, tudo, só que a planilha dele não comportava isso aí. Não tinha como fazer, que era uma planilha de reflorestamento de eucalipto. Como é que tu vai botar numa planilha de reflorestamento de eucalipto um sistema de produção nativa? E aquilo não funcionava, não funcionava e já tinha plantado. Aí nós plantamos cítrus, plantamos acácia, plantamos as nativas e plantamos o aipim no meio das leiras. O primeiro ano a gente já pagou todo o sistema com a colheita do aipim. A mandioca que nós colhemos ali pagou o sistema. Pagou as mudas, pagou o adubo, pagou o calcário, pagou o serviço, tudo. E as nativas, como cedro, canjerana, capororoca, são plantas sensíveis ao sol. Ela não resiste ao sol e nem ao gelo, nem ao frio. E aí, no verão, a gente plantou flores, do lado de cada pé de cedro ou de cajarana, um pé de dália. Esse aqui. Pra fazer cobertura, pra tapar ele do sol, pra ele não pegar sol na cabeça pra poder crescer.
P - Mas Nilo, isso foi da sua cabeça?
R - Da cabeça.
P - Como?
R - Não sei. E com isso aí que começou a venda de flores na feira, porque a gente começou a ter essa flor sobrando. “Não, vamos levar pra feira”. Nisso já tinha as flores do pessegueiro também, e a gente começou a vender a flor do pessegueiro. E na feira os outros agricultores diziam que o Nilo era tão miserável que nem a flor do pessegueiro não perdia. Porque geralmente tu corta e ela vai pro chão. Então, virou uma coisa. E hoje, graças a Deus, a nossa banca é conhecida como Banca das Flores. Se vende ali uma quantidade enorme de flores. Então, são histórias que vão se misturando, muitas vão se misturando. Então isso aí a gente conseguiu fazer cedro, canjerana, capororoca, angico, várias delas crescerem no meio das flores. Porque aí no inverno a gente cobria com palha. A banca adquiriu o nome de Banca das Flores, porque a gente sempre tem, o ano inteiro sempre tem alguma coisa de flores na nossa banca. E, assim, é interessante que a gente vende ali 80, 100, 120 buquês de flores por semana. E outras bancas levam flores também, levam uma caixa com 7, 8, 10 buquês e ficam na banca. Aí, quando a gente termina a nossa, a gente pega aquelas flores, bota na nossa banca e ela é vendida. Então é a questão de local e já costume do consumidor ,de chegar ali e escolher a sua flor. E é muito interessante porque são diversos tipos de pessoas que compram flores. Não é específico um tipo de pessoas, mas é muitos, desde o jovem ao idoso, senhoras, moços, independente, todo mundo leva a flor. E aí tem as ocasiões especiais, como dia das mães, dia dos namorados. Esses dias especiais aí, quando a gente tem flor, a gente já leva bem mais, porque sabe que vai vender bem mais. Então, ela é um ótimo mercado. É um ótimo mercado. E depois, quando entra agora, a partir do final do mês, aí entra a flor do pessegueiro. Então, aí não tem o que chegue. E é gratificante pra quem compra, porque é uma flor do pêssego agora dura de 15 a 20 dias no vaso. Sempre bonita. E pra nós, ele é obrigado a fazer a poda. Tem que fazer a poda. E esse ramo ficaria na lavoura. Ele ficaria dando matéria orgânica. Construindo matéria orgânica. Só que se eu puder botar ele no bolso. Isso aí é muita coisa, porque a gente vende por ano em torno de 1.500 a 1.700 buquês por ano, a R$10,00. Isso aí se torna uma renda bem significativa em um prazo de 60 dias. Então ela tem o seu valor comercial muito grande. E aí depois incorpora com as flores cultivadas. Aí vem várias. Vem as flores de palha, vem a zínia, o crisântemo, a margarida, vem “enes” variedade de flores.
P - Nilo, sabe o que eu queria te perguntar? Você estava contando dessas... Eu não lembro o nome como você falou, mas que você primeiro fez uma... Plantou ali uma área, depois foi pra outra área, vários diferentes plantios.
R - Das agroflorestas.
P - Como foi esse processo e essas percepções sensíveis, assim, de aqui é mais interessante isso por conta do clima, por conta da luz, por conta do vento, aí a história dos passarinhos.
R - As agroflorestas surgiram porque a gente já tinha uma afinidade com o plantio intercalado, de hortaliças. E aí o rapaz da Embrapa, que era praticamente amigo nosso direto, ele dizia: “Nilo, tem que fazer agrofloresta”. E quando a gente começou esse trabalho, começamos a primeira área e só que o resultado foi tão impressionante, tão grande, que não paramos mais. A gente seguiu fazendo, que normalmente a gente planta um citros, ele leva de 3 a 4 anos para começar a produzir. Dentro dos sistemas agroflorestais, como a gente fez aqui, no segundo ano a gente tinha fruta. As nativas, o araçá, a guabiroba, a uvaia, são plantas nativas, normalmente é de 7 a 10 anos. Com cinco anos, nós começamos a ter fruta. Então, houve uma precocidade de tempo, acelerou o tempo de produção. Então, isso aí impressionou e digo: “Não, vamos fazer mais porque dá certo”. E aí começamos a escolher áreas dentro da propriedade. Então, aqui a gente tem a primeira. Fizemos outra, a segunda foi lá no fundo, que a gente tem lá, onde está a maior densidade de erva mate. Lá está com três variedades de bergamota e laranjas diferentes da que a gente tem aqui em cima. E é onde a gente tem, assim, são diferentes os trabalhos. Eu não consegui fazer hoje. Hoje a gente está com quatro áreas de agrofloresta implantadas e não tem nenhuma igual a outra. Cada uma é diferente, dependendo da situação, o que a gente quer fazer, formato de modelo que a gente quer dar para o sistema. Então, tu vai fazendo conforme a tua cabeça manda. E não tem limite, não tem limite de tu dizer: “Olha, eu não posso fazer isso aqui”. Não existe a palavra “não posso” em sistemas agroflorestais. Tu pode fazer tudo. É só tu querer fazer. “Ah, eu quero botar, por exemplo, um pé de café”, que na nossa região aqui não produz café por causa do frio. Quando ela tiver com 6, 7 anos, 10 anos, tu pode botar o café, sim, no meio, intercalado. Hoje nós estamos produzindo café? Nós temos o nosso café aqui já dando fruta. Pena que a gente não consegue colher porque o jacu... O jacu estão comendo todo ele. Descobriram que aquilo é bom. Então, quando ele fica vermelho, que ele pega a madurar, o jacu come ele, os passarinhos comem. Mas a gente tem ele produzindo, é sinal que consegue produzir, sim. Temos com manga, temos com abacate, produtos de climas tropicais. E que a gente consegue, dentro dos sistemas agroflorestais, implantar com sucesso. A banana também, a gente produz bastante banana, que não é normal para essa região do sul produzir banana, mas a gente consegue. E se usa muito também a questão de usar o sistema agroflorestal já como uma barreira contra o vento. Fazer o sistema, projetar ele de uma forma que ele venha a beneficiar a questão de equilíbrio com o clima, com a questão do vento, geadas, então tudo isso aí a gente consegue fazer com esses sistemas. E como a gente criou os sistemas agroflorestais, a gente proporcionou alimentação, muita fruta, muitas frutas, frutas nativas, como a guavirova, o araçá, o chincho, o chachau. Então são várias frutas nativas que a gente trouxe para dentro dos sistemas e isso atraiu o passarinho para dentro do sistema. E o passarinho, como ele veio pra comer essas frutas que eu plantei, ele começou a plantar semente pra mim. E começou a plantar erva mate, que é uma das coisas que a gente não tinha nem ideia de trabalhar. Hoje a gente tem uma grande quantidade de plantas. E foi o passarinho que começou todo esse processo de plantio pra mim. Trazia erva mate dentro das nossas matas, onde tem os pés nativos. Ele trazia semente lá e plantava pra mim dentro do sistema de agrofloresta. Então hoje a gente tem aí as nossas áreas com erva mate, que foi o passarinho que começou a botar essa ideia na cabeça da gente. Então, seguir um pouquinho o que a natureza nos disse. Seguir esse tipo de trabalho aí é muito ser parceiro da natureza. Não exigir da natureza, e sim compartilhar com ela o que ela te ensina. Então são coisas boas que acontecem aí.
P - E a família sempre participando?
R - Sim, todo mundo participa de tudo. Aqui todo mundo faz, todas as pessoas fazem tudo. Porque não adianta nada eu ficar para mim um conhecimento, se amanhã ou depois eu não posso fazer, acaba terminando. Então todo mundo faz de tudo. Desde a parte de produção, de comercialização, parte de casa, se tiver que fazer uma comida a gente faz. Então tudo junto.
P - Desde pequeno?
R - Desde pequeno, todo mundo faz isso aí. E graças a Deus os filhos, todos eles pegaram esse dom de fazer esse trabalho.
P - Você contou que seus filhos saíram daqui, mas você não contou como eles voltam.
R - É, os filhos saíram, se formaram, trabalharam fora durante seis anos, fora da propriedade, e a Luana foi a primeira que voltou. A Luana, ela fez magistério, e quando estava fazendo o magistério, estava dando aula numa escola do município, aí Pelotas, ela começou a fazer faculdade de escola do campo na Universidade da FURG em São Lourenço. Primeiro grupo de escola do campo que houve na universidade, ela ingressou. E o primeiro mês de aula que ela teve dentro da universidade, todas as aulas falavam daqui, da propriedade. E aí ela começou: “Bah, mas o que eu estou fazendo aqui? Se tudo que falam, falam de lá”. Aí ela um dia chegou em casa e disse: “Pai, eu vou voltar pra casa”. E aí eu disse pra ela, digo: “Olha filha, tem tudo pra te trabalhar aqui, tem tudo pra te trabalhar aqui”. Aí ela voltou para a cidade e na semana seguinte ela trouxe a mala, largou o com o curso e veio embora. Aí concretizou, ela concretizou a universidade, fez todo o curso, se formou em escola do campo, mas continua trabalhando com nós aqui. E o Robson também, logo depois, ele veio também. Ele trabalhava numa mecânica da Scania e casou com uma menina que é técnica agrícola. Ela tinha uma terrinha, seis hectares, em Canguçu, e aí acabaram voltando pra terra. Então, começaram a trabalhar agroecologia também, como nós aqui. Muito parecida com essa propriedade. Então, estão trabalhando até hoje.
P - Como foi a volta deles pra você?
R - Ah! Impulso. Porque a gente tava ficando velho, a gente tá ficando velho. E precisa de sucessão. Então foi uma coisa assim que, talvez, vão tocar o que a gente construiu aqui. Uma coisa que deixa a gente meio emocionado, lembrar de tudo isso aí. Mas foi o que a gente passou. Nesses anos aí de trabalho. Então foi muita coisa, muita coisa boa. Passei muito trabalho, mas estamos aqui. Trabalhando.
P - E sabe o que eu queria voltar, se você topar? A chegada deles, assim, a descoberta de gêmeos. Como foi esse momento, você numa situação delicada.
R - A chegada deles que foi, assim bem, não sei como é que eu poderia falar mas a gente não sabia. Já tinha, naquela época, tinha os preparo pré-natal, tudo mas nunca aparecia gêmeos, aparecia um só. Aparecia só um porque estavam sobrepostos. E aí apareceu só uma. Na hora que nasceram, a médica disse: “Tu vai ter que comprar mais roupa, porque uma só não dá”. A gente foi saber na hora que nasceram. A Márcia fez cesárea. E na hora que nasceram, a gente foi saber que eram dois.
P - E aí?
R - E aí corre atrás de roupa, ou botar roupa do mesmo jeito. Não teve outra alternativa. Aí a Luana nasceu... Eu não me lembro direito os pesos, três quilos e duzentos e pouco. E o Robson nasceu com dois quilos e cem. Ele era bem menorzinho. Então a Luana sempre foi mais forte, mais encorpada. Mas, graças a Deus, os dois com muita saúde. E vieram embora. Estão aí. Estão aí até hoje. E aí depois, 20 anos depois, nasceu o Rômulo. Aí a gente já tinha mexido em toda a estrutura da propriedade, tinha feito a casa. Foi quando a gente estava fazendo a casa que logo depois nasceu o Rômulo. Então, uma caminhada.
P - E você acompanhou o parto?
R - Não.
P - Estava internado?
R - Eu não pude acompanhar. Foi quando eu estava com um problema, ali que eu estava doendo, estava com um problema do veneno, então não consegui.
P - E como você se recupera disso?
R - A recuperação? Veneno, eu tive 28 dias no hospital. E só abaixo de soro, não me deram medicamento. Que o veneno, ele é cumulativo. Então, no momento que tu elimina ele do corpo, ele baixou aquele nível que ele chegou, que é onde ele chega ao nível que te dá problema. Do que ele baixou esse nível, tu não tem mais nada. Tu não tem nada. Ele vai acumulando, acumulando, acumulando, até chegar a um nível que te derruba. No momento que esse nível aí, com limpeza do organismo, ele baixa, tu não tem mais nada. Os médicos diziam, pra mim, diziam: “Olha, tu não tem nada. Tu não tem nada”. Só que eu não parava de pé. Não parava de pé, dor de cabeça, dor de estômago. Quando, logo que eu saí daqui eu sei que eu cheguei no hospital lá, e eu só sei que eu entrei na porta, e depois não vi mais nada. Desmaiei, fui acordar, no quarto lá, e estava muito ruim mesmo. E aí passou aquele processo ali, não teve nada, não tem mais nada. Só que hoje, por exemplo, se eu entrar na... Passar na rua, na porta de uma pecuária, eu já sinto mal-estar do problema do veneno. E muito aqui também, na colônia, na estrada, porque tem várias lavouras de pêssego e soja aqui no entorno. No passar na estrada, eu sinto se botar o veneno. Já começa a ter irritação no nariz, já começa a ter mal-estar. Então, eu fiquei muito sensível a esse tipo de coisa. Mas, graças a Deus, aqui tamos tranquilo. Porque a gente não está livre, não estamos livres dos venenos aqui de jeito nenhum. Eu vou mostrar para vocês de tarde plantas que me dizem que já tem veneno. Nós temos árvores aqui que dizem: “Olha, já tem veneno no ar”. Já aparece. Então, cada época do ano ela te mostra uma tonalidade diferente na folha, conforme a densidade de agroquímico, mas ela vai mostrando essa tonalidade.
P - E como surge a agroindústria?
R - A agroindústria surgiu, como a gente começou a plantar fruta e começou a ter uma demanda e uma grande sobra também de materiais de fruta, porque tinha mais produção do que comércio, começou a sobrar fruta e aí surgiu a ideia da agroindústria, vamos usar, isso aí vamos beneficiar porque a gente está perdendo material. Em 2017, a gente construiu o prédio e legalizamos a fábrica. E como a ideia inicial era reaproveitamento das frutas, a gente começou o primeiro ano, a gente fez realmente com essas frutas que tinham defeito, tirava aquele defeito e produzia. Só que ficou um material que não era adequado ao que eu queria. Material que saiu com gosto amargo, uma tonalidade de cor diferente. E aí, “não, não é isso que eu quero”. E aí é onde a gente começou a mudar o tipo de fruta que a gente colocava dentro da agroindústria. Hoje a melhor fruta que a gente produz é a que vai pra dentro da agroindústria. E é a que vai pra garrafa. Então, hoje a gente conseguiu ter um produto de qualidade, um produto aceito pelo consumidor. Então, hoje nós estamos vendendo para as feiras, para o PNAE, PA, um suco que cada ano eles nos procuram para pegar. Então, é questão que está bom. Achamos a fórmula certa de trabalhar.
P - Sabe o que eu queria te perguntar? A especificidade desse bioma, o Pampa, e essas frutas nativas, quais são os desafios e os aprendizados de trabalhar com isso?
R - Nós temos aqui, ainda não dá para dizer que é Pampa, nós temos um resquício de Mata Atlântica aqui. Onde vai da Serrinha dos Tapes, que vai daqui do alto da cascata, antes de Pelotas, ela vai até Santana, um pouquinho mais adiante de Santana, que é a Serrinha dos Tapes, chamada Serra dos Tapes. E nesse intervalo aqui entre o Pampa e a Lagoa, nós temos esse resquício de mata atlântica aqui, onde a gente está inserido, que nós pegamos aqui um resquício de mata atlântica ainda. Então nós temos aqui uma… É muito regionalizada, cada espécie de árvores, por exemplo, o angico, o angico é uma das plantas que nós não tínhamos aqui nessa região, não tem angico natural, que não é específico daqui. Ele é mais da borda do rio Camaquã e a nossa é uma das únicas propriedades que tem angico plantado. Nós temos várias e várias plantas de angico aqui dentro. Então a gente conseguiu trazer espécies de outros lugares e se adaptaram perfeitamente aqui. Bracatinga. A bracatinga também, ela não é daqui, é mais da divisa de Santa Catarina, Paraná, pra cima. E a gente tem elas aqui dentro da propriedade tranquilamente, produzindo muito bem. Que é uma das nossas leguminosas que a gente tem, como a acácia. São leguminosas que a gente precisa pra recuperação de solo. Então são árvores muito boas, tanto pra leguminosa quanto pra lenha também. E das nossas nativas, todas elas que a gente tem na nossa área de mata, nós temos uma área de 2,8 hectares de mata nativa, que são a nossa reserva. E tem no total, já vamos falar um pouquinho do volume de terra, são 9,8 hectares total. Dentro dessas 9,8, tem 3,4 de área de APP e reserva, que é a área de mato e as áreas de borda de sanga que a gente construiu as áreas de APP, que não tinha quando nós chegamos aqui. Era sanga aberta, corria água exposta. Hoje está tudo fechado de mato. E as águas que passavam dentro da propriedade, que é uma pequena sanguinha, essa água não é usada. Ela só passa dentro da propriedade. Porque é uma água que vem da propriedade do vizinho e ali a gente não sabe o que tem. Então a água que se usa na propriedade, toda ela é de subsolo ou chuva. Não tem entrada externa de água. E as plantas, as árvores nativas, todas elas que tem dentro da nossa mata nativa aqui, todas as árvores de fruta, a gente colocou dentro dos sistemas de agrofloresta. Todas elas. Que é aquela questão de trazer o passarinho pra dentro do sistema. Trazer a vida de novo, de volta, pra dentro do sistema. Trazer o jacu, a jacutinga, as saracuras, o tucano, os sabiás, todas as aves pequenas. E também as árvores, as aves noturnas, que a gente já vê muito dentro do sistema de agrofloresta aqui na frente. A gente vê muito já o corujão de orelha, que ele é só de mata nativa antiga. Eles já estão vindo aqui. E também o urutau, que são aves noturnas, que só vivem em matas bem formadas. Então, o nosso sistema hoje já está tão equilibrado que já consegue atrair essas aves para dentro do sistema. Então, isso é muito bom.
P - Você chegou aqui e não tinha...
R - Não tinha nada.
P - [intervenção] Estava te perguntando dos animais. Queria saber como era quando você chegou e agora, essas transformações.
R - Sim. Quando nós chegamos, isso aqui não tinha... Era campo aberto, lavoura aberta. E praticamente não tinha bichos silvestres, animais silvestres. Não tinha praticamente, tu viu uma lebre aqui, outra lá, muito dispersa. Tatu não tinha, paca nem pensar, cutia também não. Hoje nós temos aqui, tem o tatu, tem a paca, tem o gato do mato, tem a cutia. Então são animais que vieram pra cá depois que a gente conseguiu proteger esse pedacinho de terra. Conseguimos proteger e então é um belo habitat pra esses bichos. Agora, de um ano pra cá, apareceu foi bandos de quati, que esses aí sim estão sendo problemas, porque são muita quantidade, a proliferação deles é muito grande, e como desmataram toda a borda da propriedade, que eram terras, que era mato, e o ano passado tiraram tudo, esses animais que moravam lá, hoje estão morando tudo aqui dentro. Então tem, esse ano perdemos bastante uva e bastante estrago com milho também, por causa desses animais. Mas fazem parte também do sistema, então estão aí.
P - E essas perdas, pensando no clima, como vocês vivem, como vocês sentem essas transformações do clima e como vocês lidam com essas perdas?
R - Não tem, nessa questão de climática, não tem muito o que a gente fazer. A questão é só tentar se adaptar para ter o mínimo de perda possível a esses eventos climáticos. Por exemplo, hoje, se não tivéssemos sistemas agroflorestais, nós teríamos perdido muita fruta, muita bergamota, muita laranja, por causa do gelo. Então hoje tem os sistemas agroflorestais que protegem todo esse sistema, então ali não tem problema nenhum. Nas áreas de uva, a gente tem elas todas praticamente com sistema agroflorestal com moirão vivo, com aroeira. Então esse sistema já protege também contra o vento, contra a geada, então consegue proteger. São adaptações que a gente tem que fazer para tentar amenizar as questões climáticas, que esses eventos climáticos estão aí, não tem o que fazer com eles. E a gente vê que eles vêm a cada ano com mais intensidade, mais fortes. Então é tentar se adequar a eles e fazer ter a mínima perda possível com esses problemas. Porque a gente sempre teve esses eventos climáticos, esses temporais, granizo, de tudo, sempre teve. Mas com as adaptações que a gente conseguiu fazer dentro da propriedade, a gente consegue amenizar isso aí.
P - E a agrofloresta, ela mesma se protege, pensando que tem diferentes tamanhos de árvore aí?
R - Sim, a agrofloresta, ela cria um microclima específico dentro do sistema, onde ele se protege equilibrando a questão da temperatura. No verão, tu entra lá dentro, é um ar-condicionado, e no inverno, tu entra dentro dele, é um sistema que está quente. Então ele se protege, ele forma uma bolha de proteção. E questão de vento também, não pega vento, muito pouco. E a questão de granizo, coisas assim que é mais problemático. Com a intensidade de árvores de grande porte que a gente tem dentro dos sistemas, quando a pedra chegar nas nossas frutas, ela vai chegar já com mais calma, não chega tão violenta. Ela já bateu em duas, três árvores antes, já chega mais amena. Então, ele é uma proteção natural para o teu sistema.
P - Tem algo que você mais gosta de fazer aqui dentro? Algum trabalho que te dá mais prazer?
R - Tudo. Não, é tudo. Não tem, assim, dizer: “Olha, esse trabalho eu gosto de fazer mais que o outro”. Porque todos eles têm o seu grau de importância e, assim, todos são gostosos de fazer. Então, tudo é bom.
P - E lazer? Como vocês têm esse tempo de lazer? O que vocês gostam de fazer?
R - Tem, a gente tem, a gente sai muito. No final do ano a gente sempre tira um período para uns 15 dias, 10 dias, 15 dias para a família toda. Aí fecha a propriedade, sai todo mundo. E durante o ano sempre tem eventos, a gente participa muito de seminários, de cursos. A própria rede Ecovida proporciona os encontros da rede, que cada ano é num estado, onde abrange Santa Catarina, Rio Grande do Sul e Paraná, parte de São Paulo até Turvo, aquela região ali, e esses encontros são realizados cada ano num local desses aí. Então aí a gente divide, cada ano vai uma pessoa da família acompanhar, fazer esse trabalho. Então ali fica uma semana fora, é bom. E tem os dias que a gente vai fazer acampamento, vai pescar. Então, isso aí também… E a gente, nós aqui, somos muito de juntar a família. Eu sei muito de visitar parente e juntar parente. Então, eu sou muito de fazer isso aí. Prezo muito esse vínculo familiar, que eu acho que tem que ser preservado. Porque senão a gente vai deixando quando é amanhã ou depois, os parentes nem se conhecem mais. Então a gente se junta muito também com a família. Os familiares.
P - E o que vocês gostam de fazer juntos? Vocês contam histórias? Tem algum dia marcante para vocês?
R - Não, a gente tinha até enquanto a avó era viva, era o aniversário da avó, que era dia 22 de dezembro, era o aniversário da avó. Então a gente todos os anos fazia naquela data, fazia no Natal, então reunia todos. E agora se foi, a gente não tem data específica. Fizemos agora, 14 dias atrás, a gente reuniu todo o grupo de novo. Então, eu acho que daqui pra frente vai começar a reunir de novo. E aí sim, a gente tem pessoas bem idosas, tem pessoas aí com 90, 95 anos, e que eu gosto muito de conversar com essas pessoas. Sentar e ficar escutando o que contam de histórias lá do passado, de coisas antigas. Eu gosto muito disso aí.
P - Eu queria saber a origem da sua família, do seu sobrenome, se você mantém algum costume familiar específico.
R - Sim, a família Schiavon é italiana e a família Ludwig é alemã. Família alemã. E a gente conserva muito da família italiana ainda os hábitos alimentares. Polenta, muita polenta, muito radite, o vinho, então essas coisas que se conserva. E da origem alemã, a cuca, a chimia, o pão com banha, o pão com banha de porco. Muito bom. Então, são coisas que era muito costumeiro nas origens alemãs e a gente conserva isso aí. A avó gostava muito disso aí, então a gente pegou o hábito de fazer.
P - E voltando na sua infância, você estudou um tempinho.
R - Até a quarta série.
P - Que recordações você tem? Você gostava de ir pra escola ou não? Teve algum professor marcante?
R - Não, a minha professora foi sempre a mesma. Foi sempre a mesma, desde o início. Não, gostava de ir, sim. Gostava de ir com muita dificuldade, porque a escola ficava a dois quilômetros da casa. E a estrada que a gente ia, ela bordeava o arroio quilombo. E dias de inverno, quando enchia os arroios, a gente... Naquela época não tinha muito calçado. Era tamanca de cepa de pau, de couro. Com cepa de madeira. E a gente ia de calçado até chegar perto do arroio, aí tirava o calçado, botava o pé na água, chegava lá do outro lado, botava o calçado de novo pra ir pra escola. E chegava no inverno com os pezinhos congelados. Mas era bom, era uma turma grande que ia sempre junto. E bom.
P - Você estava contando da escolinha que aí não pegou.
R - Uma das recordações que a gente tem era quando dava temporal, dava chuva, muita chuva, a professora nos tirava de dentro da sala de aula porque a escola ia cair, que era um prediozinho muito velho já e era feito de barro e tinha fresta grande nas paredes, então a professora nos tirava de lá. Porque ia cair, ia cair o prédio. Só que o prédio tá de pé até hoje, ainda tá lá. Tá montado lá. Não caiu ainda. Então são tempos bons. Eu me lembro de tempos bons. Também a turma que a gente tinha como colegas de aula. A gente se dá muito bem até hoje. Então, muito bom.
P - E tem algum parente muito especial pra você que você gostaria de contar?
R - Já é falecida, eu tinha uma tia, era irmã do meu pai, grande parte dessa questão dos sistemas agroflorestais eu já via desde pequeno, que ela já fazia isso aí sem saber o que estava fazendo, ela fazia isso aí. Ela morava dentro da cidade de Canguçu, no entorno da cidade. Hoje, como a cidade cresceu, a cidade abraçou a propriedade que era deles. Ela já plantava tudo misturado. Tudo laranja com araucária, com nozes, com Ipê, com cedro, com tudo. Então, ali, muita coisa que eu, depois, quando comecei a fazer os sistemas agroflorestais: “Mas isso aí a tia já fazia. Há muitos anos sem saber”. Então, e era uma pessoa, assim, de muita sabedoria. Uma pessoa que gostava muito da natureza, e eu acho que um pouco eu puxei dali também. E ela também era pra mim, assim, como uma mãe. Então, foi muito, muito bom. E depois, os outros tios, a gente não tinha tanto contato. Mas o mais foi a tia Mônica, que a gente teve mais contato com ela, dos mais antigos. Mas a gente se dava bem com todos os tios. Nós, dentro da família, a gente não… Não me lembro de ter tido uma desavença. Não existe. Mesmo na questão do falecimento do pai, quando teve as partilhas e tudo, tudo assim. Sendo que naquela época, quando teve a partilha das propriedades. O meu irmão, que é falecido hoje, nós somos dois homens e quatro mulheres. Aí ele, como era o mais velho, tocaria para ele fazer essa questão de partilha e tudo. Aí ele chegou aqui e disse: “Olha, Nilo. Toma aqui os papéis, tu vai fazer essa questão aí. Vê a divisão, o que tu fizer, pra nós também”. E aí, peguei aquela documentação, peguei os mapas. Eu sempre gostei muito de fazer mapa. Mapeei a propriedade do falecido pai, lá dividi ela. E aí mostrei pra eles: “Olha, isso aqui fica bom pra vocês?” Aí ficou a casa da cidade pra duas irmãs, a propriedade lá pra três. E eu fiquei com essa aqui por causa da avó. É maior um pouquinho. Quando o agrimensor veio fazer a medição da propriedade, ela deu a diferença de 3 metros do mapa que eu tinha feito na cabeça. As medidas que eu tinha feito na cabeça deu a diferença de 3 metros, as linhas. Então, assim, praticamente certinho. E o que eu, assim, tinha exposto pra eles foi o que aconteceu. As duas gurias ficaram com a propriedade de Canguçu. Então... Sim, sempre deu muito certo. E sempre nos demos bem, tanto os irmãos, as gurias, quanto ele também. Muito bom o convívio, assim.
P - E como você conheceu a sua esposa?
R - Isso aí foi nos bailes, no futebol da colônia. Principalmente futebol, que a gente ia muito em futebol. Juntava 40, 50 pessoas, botava em cima de um caminhão e ia pros bailes, pros jogos. Era tudo... Naquela época não tinha. O ia a pé. O ia a pé, o ia em cima de um caminhão. Aí se lotava um caminhão de gente ali e ia embora. Era o nosso tempo de juventude. E nós era uma turma grande. Nós era, mais ou menos, em torno de 30 jovens, que era um grupo. Que todos os bailes, todos os jogos que ia um grupo, ia todo mundo. E aí, então, todos os domingos era a mesma turma junto. Então, enfim, era muito bom. E aí depois, quando eu consegui tirar a habilitação, aí o pai tinha o caminhão antigo que nós tínhamos, que estava comigo até. Era uma 350, ano 63, que era a minha data de nascimento, 63 também, e que esteve na minha mão até dois anos atrás, quando eu tive coragem de trocar por outro caminhão novo. Mas senão ela estava na minha mão até hoje. E aí eu fazia, era eu que levava essa turma toda nos bailes, nas festas. Era uma turma boa, turma boa de juventude. Tempo bom.
P - Que nem hoje nas feiras?
R - Que nem nas feiras. Era um tempo bom. Hoje a juventude é muito diferente. A gente até participou de um evento agora domingo, domingo passado, teve uma festa no município vizinho aqui. “Festa da cuca, da linguiça e do caminhoneiro”. Então, teve muita cuca, muita linguiça, só que pegamos um dia de frio, assim, frio e chuva, muito gelado. E assim, eu estava observando: a juventude é totalmente diferente daquele tempo que nós íamos. Ah, tá, é muito, muito diferente, mas evolução dos tempos.
P - O que que mudou?
R - Eu acho que o formato da juventude é muito diferente, o agir, o agir dessa juventude. Aquele dia eu estava percebendo lá, pega um carro, bota um som a mil, vai lá para a beira de um mato, de uma coisa lá para tomar cachaça, tomar uísque, e se chacoalhar cinco ou seis rapazes na volta do carro, com aquele barulhão, que não é música. É só aquela zoeira. Então é muito diferente, muito diferente do nosso tempo. Nosso tempo ainda era o tempo de tu conseguir conversar, de sentar numa mesa aí, 20, 30, jovem e ficar conversando. Tomava uma cerveja, comia um lanchinho e ficava conversando. Depois ia dançar ou coisa assim. Hoje praticamente não tem mais isso. Não tem mais. É muito diferente. Sendo que também a... Depois daquela questão da Boate Kiss em Santa Maria, terminou todos os bailes da região aqui, terminou tudo. Não tem mais. Antigamente aqui tinha seis, sete salões de baile no entorno aqui. E hoje fechou tudo. Não tem mais. Então a juventude não tem muita opção, a não ser se juntar e fazer isso aí. Não tem, não tem opção, que naquela época tinha os calendários. Todo fim de semana já sabia onde é que ia ser o baile, onde é que ia ser a festa. Então era bom.
P - Mas então você conhece a Márcia com essa galera da Colônia, com essa turma?
R - Sim.
P - E vocês começam a namorar?
R - Sim, a gente começa a namorar.
P - Quando?
R - Ah, isso foi em... Peraí. [intervenção]
P - Eu tava te perguntando do seu namoro, como foi esse começo...
R - É, a gente se conheceu nas festas, a gente namorou, isso foi em setenta e três, setenta e quatro. A gente namorou uns quantos anos. E namorava, soltava, pegava, soltava. E até que a gente casou. E aí tamos aí até hoje. Mas foi um tempo bom. Uma juventude, assim, dá pra dizer que foi boa. Foi boa bem... A gente aproveitou. Aproveitou a juventude.
P - Nilo, a gente caminhando para o fim, queria te perguntar os desafios de fazer essa comida orgânica, que a gente chama de orgânica, mas nem sei se vocês chamam de orgânico.01:31:56
R - Sim, até o nosso… A gente tem esse trabalho que a gente faz, que já passou do orgânico, porque são etapas. O orgânico, o ecológico e o... Eu trabalhei com homeopatia, o... Ah, como é o nome? Está na boca, não consigo dizer. Daqui a pouquinho a gente lembra. Então, a gente já está usando esse tipo de homeopatia, de solo, de tudo, biodinâmico, os biodinâmicos. Então, a gente já trabalha com os biodinâmicos. Então, são etapas da agroecologia que vai se passando. A produção orgânica é simplesmente trocar um pacote tecnológico. Você troca o adubo químico pelo orgânico e segue a mesma coisa. A agroecologia já prevê toda uma estrutura de ambiente, de proteção de solo, proteção de água, proteção do teu ecossistema. E o biodinâmico já é um incremento a mais para todo esse processo, que são pequenas porções de preparado que tu faz, para aplicar, então que incrementa todo esse conjunto de medidas. São crescimentos. São coisas boas que vem a acrescentar cada vez mais. Tudo isso aí dá uma diferença, por exemplo, na nossa uva. A nossa uva tem dois gramas de açúcar a mais todo ano do que qualquer um dos agricultores que trabalham no nosso grupo ou da região aqui na volta. A gente consegue dois gramas de açúcar a mais. Se a dos outros agricultores está com 15 gramas de açúcar, a nossa vai para 18, 17, 18. Simplesmente uma mudança de formato de trabalho que a gente usa. São pequenas técnicas que eu vou mostrar pra vocês depois e que dão um excelente resultado. E aí a questão de melhor qualidade no seu produto. Que todo esse trabalho que a gente tem dentro da propriedade só vem a beneficiar o nosso consumidor final, que é o produto. Então ele tem uma qualidade melhor, tem um sabor melhor, tudo muda.
P - E os desafios disso aqui no entorno, não sei se você quer falar um pouco.
R - Desafios. Hoje praticamente a gente não encontra mais desafios grandes como a gente enfrentou no início. No início, sim, tinha desafio. “Será que a gente vai conseguir?”, muito a gente pensou nisso aí. E também as questões, os problemas que se tinha com as questões climáticas. Antes de ter a propriedade no formato que está hoje, nós já tivemos anos que a gente perdeu praticamente 80% da nossa safra com o granizo. Praticamente perdemos tudo com o granizo. E a gente tinha pouca diversidade naquela época. Teve um ano que a gente plantou, nós plantamos 3 mil pés de tomate. Estava a coisa mais linda, assim. Naquele sábado que veio o granizo, eu tinha tirado as primeiras duas caixas para levar para a feira. E quando eu cheguei da feira, não tinha mais nenhum pé na lavoura. O granizo deixou um lastro no chão. Destruiu tudo. Nós perdemos todas as hortaliças, perdemos o pêssego, perdemos a uva, perdemos tudo. Foi um ano que passou sem nada. Hoje não. Hoje a gente já tem tido temporais aí de a gente perder uma cultura, mas sobra mais 10, 12, 15 culturas. Então a gente tem uma diversidade que consegue te safar. Então, dificuldades hoje existem, mas são bem mais amenas do que há anos atrás. E assim, temos conseguido o que a gente conseguiu. Com esse trabalho eu comprei meu primeiro trator em 1995, comprei o primeiro micro tratorzinho, um micro trator. Aí depois em 2005 eu comprei o segundo, que até é o que está com o meu filho, quando ele foi pra lá eu dei pra ele, um trator maior, também um micro, mas bem maior. Em 2017 eu tirei esse aqui, esse tracionado novo. Me animei a tirar esse aí novo. Então, foi evoluindo. Sempre pra melhor. Não tivemos, assim, de dizer que a gente piorou. Sempre foi uma progressão, sempre pra melhor. E aí agora, dois anos atrás, três anos, a gente comprou o caminhão. Trocamos de caminhão, então ficou... Dá bem pra trabalhar.
P - Queria te perguntar se você gostaria de contar algo que eu não tenha te perguntado. Alguma passagem da sua vida, alguém, algum momento, uma história, uma mensagem...
R - Eu acho que a gente já abrangeu quase tudo. Eu acho que a gente já falou quase tudo que tinha pra falar. Alguma coisa vocês vão lembrar depois na caminhada aí também, eu posso me lembrar e a gente pode comentar. E depois eu quero mostrar pra vocês também a nossa planilha de trabalho, nosso caderno de trabalho, até pra vocês terem uma noção de como é que a gente trabalha. É uma coisa que a gente brigou muito pra chegar nesse formato de trabalho. Como a gente trabalha lá na feira, os produtos não têm identificação. É uma coisa que a gente, desde o início, dentro do grupo, não tem identificação no produto. Os produtos são vendidos no momento que eles sobem no caminhão, ele não tem mais dono. Aí é o grupo. Aí ele vai para a banca, ele é exposto tudo em cima da banca e nós sabemos o que é de cada um. A gente tem a noção do que é de cada um, mas o consumidor, não. Então o consumidor vai pegar o produto que ele escolher. A gente não incentiva o consumidor a pegar: “Esse aqui é meu”. Não se diz isso aí. É o que tem ali, não. “Quer uma alface?” “Tem. Aqui tem uma alface de várias espécies”. Aí ele vai pegar o que ele quer. É uma forma que a gente achou de dar mais qualidade para o nosso produto, para todos do grupo. Porque no momento que você botar um produto de má qualidade, ele não vai ser vendido. E esse produto vai voltar para o dono. Aí, na próxima vez, ele vai melhorar a qualidade, porque ele precisa vender. Então, é uma forma de dar qualidade ao material que é vendido. A não ser com exceções, com produtos identificados, como o suco, como o vinho, como a erva mate, como as geleias, que são identificadas. Aí, sim, o pessoal procura aquele produto. Ou feijão, feijão a gente também leva ele com uma marca, a gente coloca dentro do pacote duas folhas de louro, que é a nossa marca. Então, desde o início a gente tem essa marca, que é o feijão do louro. Então, tem pessoas que preferem aquilo. E o restante é tudo vendido junto, e aí no final cada um tem uma planilha e faz a soma ali. Já fizemos o acerto de conta lá na feira e cada agricultor sai com o seu dinheiro no bolso já certinho. Então, é muito bem organizado para conseguir fazer. Outra coisa que eu acho que é interessante falar é a pandemia. A pandemia para nós, assim. Pra mim, foi bem difícil. Pra mim foi bem difícil na época da pandemia, porque eu tive que aprender a mexer com o celular. Eu não sabia. Tive que pegar um celular melhor, porque eu tinha aquele só pra ligar e ouvir e falar. E aí, com a entrada da pandemia, a gente teve que ter um pouco mais de acesso à internet. Onde se começou as vendas pelo WhatsApp. As listas chegavam, a gente formulava a cesta e no outro dia saía dois caminhões na cidade para entregar, entregar 40, 50 cestas todo sábado de manhã. E para nós acumulou mais serviço, porque agora em vez do cliente fazer a compra, eu que faço a compra para o cliente, então tivemos que botar mais duas pessoas na banca. Aí duas pessoas ficam só praticamente tirando as encomendas. Mas nós não tivemos problema de venda no período da pandemia. Nós não tivemos problema de venda. Pelo contrário, a nossa aumentou. O grupo todo aumentou as vendas. Pela questão da gente ter se mobilizado e ter feito essa questão de entrega a domicílio. Só que isso aí acarretou que até hoje, ainda tem aqueles que acharam muito bom. Tem aqueles que acharam muito bom isso aí. E hoje tem em torno de 12, 13 encomendas no nosso grupo, que são que a gente faz entrega. Ou que, se não faz entrega, a gente pega o produto e chega ao meio-dia, quando o pessoal sai do serviço, passa na feira e recolhe as cestas. E são pessoas, ranchos grandes, de R$150, R$200, R$250. Então, vale a pena, vale a pena a gente fazer esse trabalho. E fideliza. Fideliza, porque a gente tem os nossos clientes aí. Eu tenho clientes lá de 30 anos. Desde o início da feira, tem uma doutora, a doutora Elisabeth Ramos. Ela teve, quando iniciou a feira, ela veio procurar alimento melhor, limpo, para o primeiro filho dela. E os filhos dela estão com 30 anos, o mais velho está com 30 anos, aí esteve lá na feira. Aí ela está dizendo que quem me ajudou a criar esse menino foi vocês. Então, que bom que a gente pode fazer isso aí. Então, tem muitos clientes, assim, fidelizados que passam. E outra coisa, que eu sempre gosto de dizer que nós não temos mais clientes. Nós temos amigos. Tem pessoas que vão lá na feira só para saber como é que nós tamos. “E aí, Nilo, como é que vocês estão? Como é que está lá fora? Como é que está a geada? Como é que está isso? Como é que está aquilo?” Pessoas que se preocupam com nós. Muitas vezes chegam lá na feira. “Bah, Nilo, como é que vocês vieram hoje de manhã com esse tempo? Que estava chovendo, coisa assim”. Então, se preocupam com a gente. Então, isso é muito bom. É um vínculo de amizade de muito tempo então, muito bom isso aí. Bom de lidar com esse tipo de coisa. E muita coisa se aprende também, muita coisa que tu aprende uma fala ali, uma conversa, uma coisa. Então, muita coisa tu aprende ali também. É bom esse tipo de coisa, de trabalho. Pelo menos eu gosto de fazer isso aí. E como eu estava dizendo para vocês hoje no meio-dia, é só nós que fizemos esse tipo de trabalho de mostrar esse trabalho de agroecologia, de mostrar isso aqui. Aqui do nosso grupo é só nós. As outras famílias não recebem. A gente aqui recebe estagiário. Esse ano, agora em janeiro, tiveram dois da EFASUL. Já tive estagiário de Botucatu, da Universidade de Botucatu, São Paulo. Ele ficou 90 dias comigo aqui. Passou um tempo bom com nós aqui. Mas uma excelente pessoa. E assim em geral, de várias outras universidades aí também que... E trabalhos de doutorado, mestrado, que são feitos aqui dentro. Agora esse ano terminou a do Marcos. O doutorado dele foi em cima de coleta de serapilheira. Ele fez três amostras, uma de campo aberto, uma das áreas de agrofloresta e uma da mata nativa. E aí, dois anos de trabalho. Ele vinha todo mês coletar serapilheira. Eram vinte e cinco amostras num raio de cem metros de largura por dez de comprimento por dez de largura, aonde ele tinha as amostras, e aí ele coletava a serapilheira de 50 centímetros quadrados em cada amostra, e aí levava, secava e codificava. E a maior produtora de massa, de matéria orgânica, foi a agrofloresta, mais que a mata nativa. Foi bem interessante o trabalho dele. Coisas boas. E que venham a beneficiar o nosso trabalho. Tu fica sabendo o que está acontecendo aqui dentro. Trabalho também, o doutorado é do Hélvio, o professor Hélvio Casalinho, de Solos também, ele trabalhou dez anos com nós aqui, para montar o doutorado dele. E, assim, quando chegou no décimo ano, aí ele disse: “Olha, eu não tenho mais o que fazer aqui, porque a tua terra de campo está melhor que a terra de mato. Que tu já conseguiu com o teu trabalho melhorar o teu solo além do que a mata nativa faz”. Então, aí até tem um livro escrito desse trabalho aí. Tem muita história aí. Então, é bom, é bom isso aí. E que bom que se propaga esse tipo de trabalho aí, sai para mais longe. Se propaga. Como nós estávamos falando da questão dos vizinhos não virem aqui dentro da propriedade. Nós temos sistemas agroflorestais, como esse nosso aqui, no estado inteiro. A região, principalmente a região da fronteira, perto de Passo Fundo, aquela região ali, ali tem vários e vários. De famílias que vieram lá, viram o sistema funcionando aqui e implantaram dentro das propriedades. Então isso aí é muito bom, muito bom de ver. Uma pena que santo de casa não faz milagre, esse é que é o problema. Os mais de fora enxergam viabilidade e as pessoas aqui de perto não enxergam. Mas é bem assim, é normal isso aí, não tem o que fazer.
P - Nilo, quais são os seus sonhos?
R - Sonhos? Sei lá, tomara que... Sonhos assim são que um dia alguém possa tomar conta disso aqui. E seguir fazendo o que eu tava fazendo. Porque a gente vê... A gente vê muita coisa. Que enquanto as pessoas que estavam ali ainda vivem, o projeto segue. Depois termina. Então, tomara que alguém siga fazendo isso aqui.
P - Como foi pra você contar um pouquinho da sua história pra gente lembrar de tudo isso, dividir, se emocionar?
R - É emocionante, porque há muito tempo a gente não se lembrava de tudo isso aí. Mas é bom, é bom. E que bom poder compartilhar isso com vocês. É bom.
P - Obrigada. Obrigada mesmo por tudo isso, por nos receber aqui. Tão amoroso e gentil.
R - Que bom, que bom. A gente pode compartilhar com vocês um pouquinho da nossa história. Que poucas pessoas, assim, que eu acho que é poucas valorizam esse tipo de trabalho. Teria que ter muito mais. Teria que ter muito mais porque a gente parece... Eu me sinto um pouquinho na contramão do mundo. Todo mundo vai para um lado e eu estou indo para o outro. Mas eu acho que ainda estou certo. Pelo que a gente vê aí, esse modo de trabalho, de expansivo aí, como está acontecendo aí com muitas culturas, isso aí não tem muito futuro, não. Não vai muito longe. Porque vai existir, enquanto ainda tiver um solo, ainda tiver um pouquinho de terra fértil, vão indo, mas daqui a pouco isso aí termina, vai exaurindo a cada dia, tu vai tirando, tirando, tirando, daqui a pouco não tem mais. Então, as pessoas não estão se dando por conta disso aí. E a natureza está se mostrando cada dia mais, mais agressiva por custo desse, desse tipo de trabalho, né? Então, cada dia vai, vai voltar mais isso aí. E é o que a gente tem pro futuro eu acho que a natureza vai se cobrar, vai se cobrar desse descaso que estão fazendo aí com a natureza. Que bom se as pessoas se acordassem um pouquinho mais cedo. Já está tarde, mas se acordasse agora, daria tempo ainda de recuperar. Mas a gente não vê muita perspectiva de isso aí acontecer, porque as questões… Os nossos governos, as questões políticas são voltadas tudo para isso aí, para esse tipo de trabalho. E um pouco também como a gente se sente marginalizado por ser dessa forma. Mas vamos lá, tocar para adiante.
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