Entrevista de Lucas Luiz Gomes
Entrevistado por Lucas Torigoe
Quilombo do Moinho, Alto Paraíso de Goiás, 29/09/2025
Projeto: Vidas, Vozes e Saberes em um Mundo em Chamas
Entrevista número: PCSH_HV1509
Realizada por Museu da Pessoa
P/1 - Lucas, qual é o seu... Pergunta difícil, tá? Qual é o seu nome completo, local e data de nascimento, por favor?
R - Bom, Lucas, meu nome é Lucas Luiz Gomes. Data de nascimento, dia 10 de janeiro de 1990. E onde eu nasci foi aqui mesmo, no Quilombo do Moinho, em Alto Paraíso.
P/1 - E você nasceu aqui, foi em hospital, como é que foi?
R - Eu nasci de parteira, então foi aqui mesmo, no Moinho.
P/1 - E os seus pais te contaram como foi a gestação, o dia antes do seu nascimento?
R - Eu sei que eu dei um pouquinho de trabalho pra nascer, né? Na verdade, quem me contava muito foi quem fez meu parto. A gente fala mãe Fulô, mas é conhecido como Dona Flor. Então, ela fala que eu era muito grande. Ela falava que eu era muito grande. E aí isso dificultou um pouco. Mas, graças a Deus, deu tudo certo.
P/1 - E você... Me fala um pouco o nome do seu pai.
R - Meu pai é Domingos Luiz Gomes, né? Minha mãe é Maria Conceição de Muro Gomes.
P/1 - Você sabe como eles se conheceram?
R - Meu pai veio da Bahia. Minha mãe é daqui. Minha mãe é remanescente quilombola, meu pai é baiano. Então meu pai veio da Bahia pra cá. Naquela época a situação era muito complicada. Meu pai veio com os meus avós e os irmãos, eles vieram de Japé, da Bahia, aqui para o Goiás. E aí aqui eles se conheceram, os dois. Minha mãe é remanescente quilombola daqui mesmo, do Moinho. E aí eles se conheceram aqui e casaram.
P/1 - E como é a história da família do seu pai? Você conheceu seus avós?
R - Eu não cheguei a conhecer os meus avós. Quando eu nasci, acho que eu tinha, se não me engano, se não me engano, minha mãe falou que eu tinha oito meses quando eles faleceram, né? O meu avô foi o último. Então eu não...
Continuar leituraEntrevista de Lucas Luiz Gomes
Entrevistado por Lucas Torigoe
Quilombo do Moinho, Alto Paraíso de Goiás, 29/09/2025
Projeto: Vidas, Vozes e Saberes em um Mundo em Chamas
Entrevista número: PCSH_HV1509
Realizada por Museu da Pessoa
P/1 - Lucas, qual é o seu... Pergunta difícil, tá? Qual é o seu nome completo, local e data de nascimento, por favor?
R - Bom, Lucas, meu nome é Lucas Luiz Gomes. Data de nascimento, dia 10 de janeiro de 1990. E onde eu nasci foi aqui mesmo, no Quilombo do Moinho, em Alto Paraíso.
P/1 - E você nasceu aqui, foi em hospital, como é que foi?
R - Eu nasci de parteira, então foi aqui mesmo, no Moinho.
P/1 - E os seus pais te contaram como foi a gestação, o dia antes do seu nascimento?
R - Eu sei que eu dei um pouquinho de trabalho pra nascer, né? Na verdade, quem me contava muito foi quem fez meu parto. A gente fala mãe Fulô, mas é conhecido como Dona Flor. Então, ela fala que eu era muito grande. Ela falava que eu era muito grande. E aí isso dificultou um pouco. Mas, graças a Deus, deu tudo certo.
P/1 - E você... Me fala um pouco o nome do seu pai.
R - Meu pai é Domingos Luiz Gomes, né? Minha mãe é Maria Conceição de Muro Gomes.
P/1 - Você sabe como eles se conheceram?
R - Meu pai veio da Bahia. Minha mãe é daqui. Minha mãe é remanescente quilombola, meu pai é baiano. Então meu pai veio da Bahia pra cá. Naquela época a situação era muito complicada. Meu pai veio com os meus avós e os irmãos, eles vieram de Japé, da Bahia, aqui para o Goiás. E aí aqui eles se conheceram, os dois. Minha mãe é remanescente quilombola daqui mesmo, do Moinho. E aí eles se conheceram aqui e casaram.
P/1 - E como é a história da família do seu pai? Você conheceu seus avós?
R - Eu não cheguei a conhecer os meus avós. Quando eu nasci, acho que eu tinha, se não me engano, se não me engano, minha mãe falou que eu tinha oito meses quando eles faleceram, né? O meu avô foi o último. Então eu não cheguei a conhecer. Eu conheci só minha avó materna. Só. Nenhum mais. Nenhum avô, nem pro lado de pai, nem pro lado de mãe. Mas só a avó pelo lado da minha mãe. Eu convivi com ela bastante tempo ainda, antes dela falecer.
P/1 - Fala um pouquinho dela então. Qual é o nome dela? Como ela era? Como foi viver com ela?
R - Maria de Moura é o nome dela. Ah, e foi um momento muito especial, porque é a única referência de avó e avô, vamos dizer assim, que eu tive. Foi ela, então eu me dava muito bem com ela, eu me dava super bem com ela. Aliás, acho que todos os netos davam super bem com ela. Então, era uma mãe. Minha mãe fala aqui que todo mundo fala que vó é mãe em dobro. Então é basicamente isso mesmo. Foi um papelzão de vó mesmo, de cuidado com a gente. Preocupação, cuidado. Então foi bem bacana esse tempo que eu pude conviver com ela. Quando ela faleceu, eu tinha... Exatamente meus 21 anos.
P/1 - Ah, conviveu bastante com ela, né?
R - Sim, convivi bastante. 20 para 21 anos. Nessa época eu já morava aqui no Moinho, né? Eu tinha ido embora para morar em Alto Paraíso. Mas ela passou muito tempo doente também, assim, né? Perda de memória. Aí ela passou muito tempo sendo cuidada pelos filhos. Aí chega um certo ponto, quando você tem essas doenças, aí vira criança de novo, né? As pessoas mais velhas acabam virando crianças. Mas eu convivi muito bem com ela, assim, no meu tempo. Dela lúcida, dela saudável. Eu convivi muito, muito, muito.
P/1 - E ela contava histórias pra você da sua família, dos avós dela, ou não? Como que era isso?
R - Contava. Contava, contava muitas histórias pra nós.
P/1 - Você pode contar uma que você lembra? Ou algumas?
R - Nossa, deixa eu pensar aqui. Mas nessa época a gente tinha um... Eu costumo dizer que... Os meus primos, na mesma faixa etária de idade, a gente se reunia muito. Era a época que não existia celular, internet, televisão então. E a gente se reunia muito pra poder, em época de frio, fazer fogueira. Não era nem fazer fogueira, não era acender fogo, esquentar fogo. Então, os causos, as histórias, elas acabavam saindo aí, né? Porque aí juntava todo mundo. E aí ela sempre contava muitas histórias de... De bicho mesmo, de animais. Porque nessa época, o único predador que a gente tinha e medo que a gente tinha enquanto criança, era de onça. Onça, lobo. Eram as histórias que tinham. Não era essa coisa horrível que é hoje em dia. Essa maldade. Então, o terror nosso era mesmo. Eram as onças que rodeavam. Para quem morava em roça, em lugar que tinha muitos desses animais, porque naquela época existiam muitos desses animais, eram essas histórias. Então ela contava muito sobre os bichos, falava bicho, sobre os bichos.
P/1 - Mas ela contava histórias como assim, de uma caçada?
R - É, envolvia muito a questão de caçada, mas contava algumas histórias de bicho, de onça. Falava bicho, mas a gente já sabia que era onça, que comia os outros, as pessoas que moravam mais distante, coisas e tal. E naquela época era o terror, até porque naquela época, enquanto nós fomos remanescentes quilombolas, vem dessa parte aí de caça e pesca, vem do nosso histórico. E muito se dava prejuízo, né? A onça que comia ali, o porco que comia, a vaquinha que tirava o leite. Então, ela contava muito dessas histórias das pessoas que caçavam essas onças, dos especialistas, que eram as pessoas mais antigas, os senhores mais antigos, que tinham experiência. Então, era de arrepiar, assim, as histórias que elas contavam.
P/1 - Você lembra de algum exemplo que você possa contar para a gente, para deixar registrado?
R - Lembro, lembro. Eu lembro de uma muito interessante, que ela contava da nossa família. Eram várias onças. A onça está comendo os porcos de fulano, a onça está comendo a vaca. Não era gado, não. Era vaquinha de leite. Era subsistência mesmo, né? E aí, animal, o Mia, né? Que era o cavalo, a égua, eles falavam animal. E eu lembro muito que eles contavam essas histórias pra gente, de uma onça que tentou pegar um burro preto do meu avô na época, ele tinha um burro preto, e aí esse burro era muito arisco e muito esperto. Ele escapou dela, né? Ele chegou a escapar, mas aí ele ficou deficiente. E aí, né? Com meus tios, o povo mais antigo, junto com meu avô e tudo, eles fizeram uma reunião pra poder… pra eu caçar essa onça, né? Vamos dizer assim. Como se juntasse pra fazer, pra matar a onça, pra parar com que ela abatesse os animais e dar a criação, né? Então, assim, aí ela contava isso à noite, assim, ela sempre contava que esses caras saíam à noite em redor de fogueira. E aí aqui o (Akula?), um cabra jogando uma pedrinha, mexia com um galinho de pau e no ar todo mundo assustava, né? E aí ela contava que eles fizeram esse mutirão e tudo, e foi um trabalho muito grande pra poder abater essa onça na época, né? Então...
P/1 - Conseguiram pegar?
R - Pegaram, ela conta que pegaram. Na época, né?
P/1 - E você chegou a ver alguma onça?
R - Não, não. Nessa época que a gente era criança e ela contava isso, isso era na época que ela era adolescente ainda, né? Que ela era adolescente, ou seja, há muito tempo.
P/1 - E tinha-se histórias de visagem, de espírito também aqui ou não?
R - Tinha bastante. Bastante.
P/1 - Alguma te marcou assim, em específico, que você ouviu nessa época?
R - Sim, eu lembro de uma até hoje. De um tio meu que contava. Ele disse que tinha um senhor que bebia muita cachaça na época. As comunidades quilombolas, de forma geral, têm muito problema na questão do alcoolismo. Hoje nem tanto pelas questões... que as pessoas têm vários trabalhos que inibem isso, diminuem. Mas antigamente era o único refúgio mesmo para o sofrimento, para a dor, para a desilusão, era mergulhar na cachaça. E aí já vem a questão da fabricação da cachaça, que muitas pessoas fabricavam mesmo. Tinha um alambique que acabava fazendo a sua própria pinga artesanal e ele era um prato cheio. Então, o meu tio contava isso rindo e eu falava: “Isso é mentira”. Ele falava: “Não, é sério, é sério”. Só que ele falava rindo e aí a gente, de uma certa forma, não acreditava. Mas também não desacreditava, né? Porque essa pessoa bebia muito e tudo. E aí ela conversava sozinha, né? Conversava sozinha. Aí tudo vinha e contava: “Hoje eu não vou não, você tá me chamando, você já veio me buscar”. Essa pessoa falava sozinha, ela bebia muito, falava sozinha. E aí ele disse que isso foi meses e meses e meses e meses. E aí, um dia ele, ele, é, é, disse que veio um cara, um homem montado numa mula, com um chapéu preto, e aí ele falou: “Ó, chegou essa hora”. Mas só, só o cara que enxergava isso. Ele falou: “Ó, chegou essa hora”. Eu disse, e aí? Ele: “Não, não é agora, não. Não foi agora que foi o nosso combinado, não. Não combinou de nós ir agora, não”. E aí, pronto. Aí diz que certo dia esse rapaz sumiu. Ninguém mais… Nunca ouviu notícia dele. Aí eles falam que era a hora que ele tinha marcado pra poder ir. Morrer, né? E ir pra onde também, eu não sei. Então eram histórias essas e várias, e várias, e várias outras.
P/1 - E... como é que era na sua casa? Me descreve a primeira casa que você lembra que você viveu com seus pais, com sua família.
R - Ah, não esqueço, não. Era uma casinha simples, de adobe, toda de adobe, banheiro, não existia porta, as portas que existiam na casa eram só na porta da rua, que a gente falava, porta da rua e porta dos fundos. O resto tudo era cortina e cortina de lençol, ou seja, eram dois preguinhos, um preguinho pendurado em cada lado e o lençol amarrado, e aí você passava, você abria, as portas eram assim. Então, se chegava, se tivesse alguém trocando de roupa, você não batia. Você perguntava se tinha gente. “Tem gente?” Então, eu lembro muito bem. Eu tinha um quartozinho na entrada da casa. Desse mesmo jeito, bem pequenininho. Chãozinho batido. Então, pra você limpar, todo dia você tinha que águar a casa, a gente falava águar a casa. Minha mãe sempre falava: “Vai águar a casa para varrer”, que é jogar água para poder varrer para não levantar a poeira. Então era isso, era bem simples. A casinha na cozinha tinha um fogãozinho a lenha, como todo mundo tinha. Ninguém usava fogão a gás, nem existia. Energia da minha época era a candeia, não tinha energia aqui. Então era a candeia. Vela, então, era coisa de outro mundo. Era mais candeia mesmo. E era isso.
P/1 - Você tem irmão?
R - As prateleiras eram... Os guarda-louça hoje em dia… antigamente era prateleira de madeira. E aí forrava aquelas panelas de alumínio batido, tudo areadinho assim por cima. As conchas eram tudo penduradas em cima do negócio do fogão. Perfeitamente.
P/1 - E você tem irmão?
R - Nós somos cinco irmãos. Eu de irmão, eu de homem. E quatro mulheres. Então nós somos cinco.
P/1 - E como é que você é nessa escadinha?
R - Eu sou o Caçula. Sou o mais novo.
P/1 - E quem são as suas irmãs?
R - Cristiane, que é a mais velha. Aí vem a Helena. Depois vem a Ana Glécia e a Gleciana. E aí depois eu.
P/1 - Então você nasceu, já tinha uma idade?
R - Já. Eu, por exemplo, de mim para a Gleciana, que é a mais nova, segunda mais nova, acho que a diferença é treze anos. Doze, treze anos.
P/1 - E quais são as primeiras lembranças que você tem na sua vida? Você consegue puxar pra gente?
R - Eu lembro. Lembro, lembro muito. Eu acho que o que marca é o que você vai lembrando assim, né? Eu lembro muito que meu pai trabalhava muito, hoje meu pai já tá bem velhinho, mas ele trabalhava muito fora do moinho, no moinho aqui não tinha serviço. E eu lembro muito que eu ficava esperando ele chegar no final de semana trazendo bolacha recheada. Então eu tenho essa visão de ele chegar com os pacotinhos de bolacha recheada, eu já sabia que ele ia trazer e ele já sabia que ele tinha que trazer. Então ele chegava cansado, botava as coisas lá e tudo. E eu cumprimentava ele, tudo ele assim. Antes mesmo dele pegar pra mim, eu já corria lá no saco. Não era mochila, era saco trelado. Eles andavam em saquilinhagem, que era o que carregava tudo pra cima e pra baixo. Aí desamarrava lá, que era atrelado ao outro. Desamarrava e dentro lá tinha os mantimentos que ele trazia, as coisas. E a bolachinha recheada. Biscoitinho recheado, bolacha recheada. Ele falava bolacha recheada. Eu lembro muito disso.
P/1 - E a recheada é como o quê?
R - É esses biscoitos de supermercado hoje, né? Tem esses biscoitinhos que é recheado, só que naquela época lá a gente falava muito bolacha recheada, né? Aí tinha ela de morango, de baunilha, né? E aí era o negócio que você tiver, era bolacha recheada e refrigerante.
P/1 - Você gostava?
R - Você tá doido? Era bom demais. Não tinha, ué. Aí quando chegava...
P/1 - E o que vocês comiam? O que a sua mãe cozinhava?
R - Minha mãe é cozinheira. Minha mãe trabalhou muitos anos em escola, merendeira de escola. Hoje ela tem um restaurantezinho que ela faz a comidinha dela. Hoje ela já é mestra mesmo do saber. E... Aqui, na época nossa, nós não tinha esse negócio, não. Eu acho que eu vim comer uma maçã, tomar um iogurte, eu já tinha aí meus 14 anos. Eu não sabia nem o que era.
P/1 - Essa bolacha também foi...
R - É, essa bolacha era um negócio mais comum porque era um produto que não era perecível, né? Então, as budeguinhas que tinha antigamente, as vendinhas que eles iam, sempre tinha essas bolachinhas, essas bolachas recheadas. Isso aí durava mil anos. Eu falo mais dessas coisas que são mais perecíveis, derivado de leite, essas coisas. Leite a gente usufruía de coisas daqui, que era o requeijão, o queijo, que era feito. E na minha época, de menino, a gente comia tudo que minha mãe fazia. Eram os biscoitinhos, pão de queijo enroladinho, tudo com coisas daqui mesmo. O pão caseiro, isso quando ela fazia pra passar semanas. E aí quando tinha aquilo que você não tinha nada pronto pra comer, é aquela coisa que ela inventava ali de última hora, que é um biscoito mentira, que é um biscoito frito, um bolinho doce de frito, que hoje fala bolo de chuva, quando ela falava bolo de frito. Coscorão, é um biscoito de trigo frito, com chá, com café, um negócio que quando você não tinha aquela coisa pronta pra comer, um bolo, um pão de queijo, uns negócios que fazia, aí ela providenciava ali na hora, né? Aí era bom demais.
P/1 - E o que que a sua mãe faz que você mais gosta, você acha?
R - Hoje?
P/1 - É hoje ou na sua vida?
R - Não, acho que não tem uma coisa que ela não faz que eu não gosto.
P/1 - Tá falando isso porque você tá sendo gravado.
R - Não, pior que não, você acredita? Tudo que ela propõe a fazer, eu gosto. Minha mãe é muito boa na cozinha. Tudo que ela propõe a fazer, eu gosto. Mas ela faz uma carne de panela que é diferente. Porque dessa carne, ela cozinha ela e depois que sobra, se sobrar alguma coisa, ela ainda faz uma farofa do final dessa carne, no outro dia. Que aí ela já tá cozida, né? Então tem todo um segredo. Minha mãe, quando ela tá com tempo de fazer essa carne, ela não bota a carne no fogo na hora não. Ela põe a carne em fogo cedo, que é fogão a lenha. Então ela fica marinando, marinando, cozinhando devagarzinho, tempero e raio entrando. Quando chega na hora de comer mesmo, aí o trem tá no grau. E aí come, come, come. No outro dia, ela faz mais uma misturinha lá e acrescenta a farinha que ela mesmo faz, de mandioca. Mistura. Rapaz, você tá doido. Um cafezinho bem ralo. É louco. Bom demais.
P/1 - E a sua mãe cozinha, foi merendeira por muito tempo. E o seu pai, o que ele fazia?
R - Meu pai sempre trabalhou no serviço braçal, né? A vida toda, ninchada de foice, madeira. Meu pai era madeireiro. Naquela época lá, você tirava madeira com machado, né? Então, ele era contratado por dono de fazendas, né? Pra tirar madeira e fazer... Porque a galera fazia curral, fazia cerca. Então, ele passava meses e meses no meio do mato, assim. E aí, naquela época, a ferramenta que tinha era machado, então... É devido muito aos problemas de saúde dele hoje. É devido a esse serviço, que foi muito puxado, enquanto ele ainda tinha força. E aí que ele não acaba estourando a pessoa por dentro e a cobrança chega quando a idade chega junto. Então, é isso. Mas era um modo que ele tinha de criar a gente.
P/1 - E as suas irmãs, elas faziam alguma coisa quando você era criança, já trabalhavam?
R - Eu fui o único a ficar aqui. Minhas irmãs, elas foram pra Alto, pra casa de família, né? Vamos dizer assim, morar com pessoas, trabalhar e morar. Porque precisava estudar e aí aqui não tinha como. Então elas foram embora pra cidade e lá elas moravam, moravam e trabalhavam.
P/1 - Então você, quando era criança, você crescia, estava o seu pai e sua mãe em casa?
R - Eu só tenho a lembrança, exatamente, do meu pai e da minha mãe. Porque elas já tinham ido, né? A idade que eu tinha, quando eu era criança, ela já era a idade que não tinha mais como elas estudarem aqui. Então elas tiveram que ir embora. Então, da minha infância, eu não lembro o tempo que elas ficaram, assim, ou seja, eu era muito novinho. Esse tempo que elas ficaram junto.
P/1 - E a sua avó morava com vocês?
R - Não, ela morava no moinho, mas não morava com a gente não. Ela tinha a casinha dela.
P/1 - E como é que você vivia essa época? Você brincava? Você tinha primos, né? Como é que foi sua infância?
R - Nossa senhora, era bom demais. Nós somos um tanto de primos da mesma faixa etária de idade, alguns um pouquinho mais velhos, outros um pouquinho mais novos, mas era um tempo que tinha muita criança, na minha época era uma época que tinha muita criança. E aí você estudava, a gente estudava um período ali, e aí no outro período era brincar mesmo. E aí eu lembro que a casa de vó era o lugar lá de reunir todo mundo. E aí eu pedia muito pra minha mãe, todo mundo pedia a mãe pra ir pra casa de vó. “Mãe, posso ir na casa de vó?” “Vou lá na casa de vó”. “Você vai pra onde?” “Vou na casa de vó”. “Posso ir na casa de vó?” Ir pra casa de vó era o momento em que ela sabia que você queria se divertir. Então se ela quisesse te castigar era ali. “Não, você não vai pra sua vó hoje não”. “Não, não vai não. Só amanhã”. Ou então: “Enquando você não fizer isso, você não vai pra casa de sua avó”. “Se você ficar me empirraçando, você não vai pra casa de sua avó”. Era meio que uma ameaça, né? Porque sabia que lá era um lugar que encontrava todo mundo. Até porque, na época, minha avó, ela praticamente criou, não sei, cinco netos, quatro netos, que moravam com ela da mesma faixa etária de idade. Então, era muito menino que tinha, né? E aí juntava todo mundo. Lá era o ponto de partida das brincadeiras.
P/1 - Vocês brincavam do que?
R - De tudo. A gente fabricava os carrinhos, todo mundo era fazendeiro. Fazendo uns boizinhos de abacate, fazia as fazendinhas. Naquela época tinha uma tradição muito forte nossa, que era a questão de fazer os piqueniques. Só que os piqueniques nossos não era o negócio de você levar as coisinhas prontas e forrar um paninho no chão, igual muito se faz hoje. Nós acendíamos fogo mesmo. Fazer as trempes, né? Se falava trempes. Que é os lugarzinhos de... que juntava as pedrinhas ali. Botava a panelinha e acendia o fogo por baixo. E ali fazia a comida nossa, nós mesmo.
P/1 - Com que idade, assim?
R - Oito anos, dez anos. E ali já mexia com faca afiada, com tudo. E os pais, né? não lembrava, não me lembro de ter acontecido alguma coisa grave. Então era muito piquenique, e era muito normal de fazer esse piquenique no domingo, só que tinha a ver que a gente não aguentava esperar chegar o domingo, fazia até antes. Então tinha muita questão de sair para o cerrado também, nós encontrarmos, meninada, encontrar para sair para o cerrado, para catar a faca, catar fruta do momento, né? Cajuzinho, araçá, goiabinha, né? Que a gente falava. Tinha uma bosta de arara que a gente falava também, que era uma frutinha, né? Caju. Então tinha muito essa tradição de sair pro cerrado pra catar fruta mesmo.
P/1 - E vocês saíam em quantos? Que horas vocês saíam, geralmente?
R - Normalmente saía depois das aulas. A gente almoçava, aí ficava em casa, fazia o que tinha que fazer, porque tinha as regras, né? Você almoçava, se tivesse que varrer o terreiro, você tinha que varrer o terreiro, se tivesse que varrer a casa, você tinha que varrer a casa. O que tivesse que fazer, você fazia. E aí, quando você fazia estudo, e era todo mundo, quando você fazia estudo, as nossas mães ficavam muito alegres. E aí você podia pedir. Agora, quando você não fazia nada, ficava ali moscando, aí você podia até pedir, mas levava um não na cara.
P/1 - Vocês saíam por volta dessa hora, duas e meia?
R - Sim, três horas, quatro horas. Durante a semana. Durante a semana, porque final de semana era o dia todo fora, praticamente. E aí muitos, a gente brincava muito fora de casa e no quintal da gente. Aí os meus primos pediam: “Não, posso brincar na casa de Tia Ceição?” - que é a minha mãe. Posso brincar na casa da outra tia minha, do outro tio? E aí autorizava, autorizava, a gente passava o dia todinho debaixo de uma árvore, eram as brincadeiras mais saudáveis que tinha.
P/1 - E quando você fala que vocês iam para o cerrado, é que vocês iam mais longe, é isso?
R - Sim, saía do moinho, né?
P/1 - Saía do moinho.
R - É, saía do moinho e atravessava o cerrado. É onde é que você encontrava as frutas. Ananás, você saía para pegar muito ananás, gravata, que são frutas do cerrado. Então a gente já sabia onde é que tinha, né? E ali, quando achava, era uma alegria. Fruto de época, mangaba. Porque a mangaba e o cajuzinho do cerrado são praticamente da mesma época. Então, hoje nós vamos pegar a mangaba. “Já está tendo caju?” Aí saíram as conversas. “Já está tendo cajuzinho?” “Já está tendo”. “Só que a mangaba está caindo, será?” “Está, está caindo”. Então todo mundo já sabia que tinha que...
P/1 - Isso pequeno já?
R - Pequeno, pequeno.
P/1 - E alguma pessoa, algum adulto ensinava isso para vocês? Ou vocês iam...
R - É porque a gente sempre viu eles fazerem. E aí muitas vezes a gente, não, a primeira vez que a gente vai, que a gente tem essa lembrança, é indo junto com as pessoas mais velhas. Com os tios, com as avós, no caso com a minha avó, com os pais, os irmãos mais velhos. Aí a gente sempre ia, ia junto. E aí depois, aqui tinha um lugar chamado Chapadinho aqui, a vida toda, todo mundo aqui da minha idade sabe que era o lugar de pegar caju, cajuzinho de cerrado. Mas isso aí a gente foi com as pessoas mais velhas primeiro, né? Depois a gente já ia sozinho, se virava e já ia sozinho. Então era bem legal.
P/1 - E tinha medo de bicho, cara, essas histórias ou não?
R - Rapaz, aqui e acolá você lembrava, mas quando você estava na adrenalina do cerrado e correr e ver um pé, não tem coisa melhor do que você chegar no cerrado na época de caju e achar um pé de caju vermelhinho. Um pé de mangaba carregadinho e mangaba no chão, porque quando… ela primeira está no chão, você pode pegar as de cima, né? Você chegar no meio de um ananasal assim e ver um monte de amarelinho e tudo assim, você correr e pegar. Então naquela época pra nós não tinha coisa melhor. E aí era o que nós comíamos. Era o que nós comíamos. É a mesma coisa do menino hoje, ir ao supermercado e pegar um pote de sorvete, pegar um biscoito ali da hora que ele gosta, um chocolate que ele gosta. Ele fica alegre pra caramba, né? Nós ficávamos alegres quando nós achávamos um pé de araçá carregado. Então era a cereja do bolo pra nós, né?
P/1 - E vocês ficavam aqui também ou tinham que voltar?
R - Não, só antes de escurecer a gente tinha que voltar. Porque à noite tinham as visitas noturnas, né? E aí era dos pais. Normalmente os pais, eles visitavam o primo, o irmão, um amigo, eles sempre visitavam à noite, porque durante o dia estava todo mundo trabalhando, todos os seus afazeres. E aí naquela visita, eu lembro muito, nessa visita da noite, a gente ia também. Enquanto eles estavam conversando lá dentro, a molecada estava lá fora, deitando o cabelo, né? E pica e esconde, pica e pega, não sei o que, qualquer coisa. E aí era bem legal. E é isso mesmo. Eu lembrava muito... Vai falando, a gente vai lembrando. Lembro muito do... Minha mãe... Quando eu queria brincar na casa de um tio, de uma tia. E aí eu chegava pra minha mãe. “Olha, a senhora não vai na casa de meu tio hoje, não? Já tem tempo que a senhora não vê meu tio”. Eu usava nesse lado aí, assim, sabe? Aí ela já sacava também. Falei: “Eu sei o que você tá querendo”. Então a noite falaram: “Não sei não, vamos ver, não sei não”. Mesmo sabendo que ela ia, esse povo mais antigo nunca dava certeza pra gente. A gente se quisesse ficasse ali na expectativa, se rolasse de ir, bom, se não, paciência.
P/1 - Me fala quem é essa turma que você saia, o nome deles, o pessoal que era mais junto assim?
R - Nós tínhamos uma turma boa, rapaz. Eu tenho um amigo, que é o Abadnei, amigo e vizinho, ele não é da minha família, mas é como se fosse. Porque crescemos juntos, estudamos juntos a vida toda. Então, muita gente pergunta se ele é meu primo. Eu falo: “Não, sanguíneo de sangue a gente não é, não. Mas é como se fosse irmão mesmo, porque tem amigos, tem…” Tem pessoas que você teve a sua infância próxima que você considera, às vezes, até muito mais de um parente que está mais distante. Então nós tínhamos uma primaiada, vamos dizer assim, que era a Esté, a Janaína, que são duas primas minhas que a gente aprontava muito, as duas principalmente, que era faixa etária, de idade. Aí já vem meus primos, o Rafa, o Noab. O Noab é um pouquinho mais novo, aí o Rafa é um pouquinho mais velho que eu. Vem o Gabriel, que é mais ou menos da minha idade. O Samuel, um pouquinho mais novo, mas pouca coisa. O Johnny, que é da minha idade. A Débora. que foi embora daqui já há bastante tempo. O Gil, que já faleceu, o Jessé, que eram vizinhos que a gente brincava muito, né? Na época o pai dele, minha mãe dava certo, meu pai dava certo com o pai dele, e aí acabava que a gente brincava muito, assim, por ser próximo uns dos outros, né? E era bem legal, muito, mas muito mesmo, muito. Tinha muito primo, assim, próximo.
P/1 - Essa era a turma?
R - É. Uma turma boa, rapaz. Boa, mas boa mesmo.
P/1 - E você lembra algum... você tá lembrando aí, né? Você lembra de algum dia com essa turma que te marcou? Uma história que cê sempre conta quando cê se reúne? Que você possa contar, tá?
R - Não, são várias, são várias. O engraçado é que quando a gente junta, hoje em dia, aí começam a sair as histórias. E aí quando a gente vai lembrando, relembrando, é tão legal, porque tem coisas que alguns lembram e outros não. Aí quando ele começa a contar, a gente vai relembrando também, entendeu? Mas tinha muita história, muita história, muita, muita. Deixa eu ver se eu lembro um aqui que pode ser contada. Ela aprontava demais, moço. Mas aprontava muito, muito. Menina artimosa. Tinha medo de nada, assim, não. Mas era... né? É... Deixa eu ver. Nossa, não vou lembrar.
P/1 - Algum dia, assim, alguma coisa que vocês fizeram? Alguma confusão que vocês arrumaram?
R - É, não. Nós aprontávamos muito. Uma história legal que tem entre eu, a Janaína e a Esther, que são duas primas minhas, na mesma faixa etária de idade. Trabalho de escola, as coisas de escola, nós sempre fazíamos juntos. E aí tinha um amigo meu também, só que ele foi nascido aqui, mas os pais não são daqui, são de fora, que é o Sura. E aí a gente estudava junto, e brincava junto, e ele morava perto de casa e aí era a primeira casa que a gente viu que era mezanina naquela época, que era o que o pai dele tinha feito. E era mezanina de madeira em cima. E ficava bem em frente à escola e minha mãe trabalhava à tarde nessa época na escola de merendeira. E aí nós, a família nossa, o povo representativo mesmo, a comunidade, os povos nativos, é um povo muito desconfiado, um povo muito arisco em relação a qualquer coisa, e a criação nossa foi assim. Então a gente sabia o que os pais da gente queriam com a gente só com o olhado. Dependendo do olhado que ele te dava ali, ele caçava um rumo, porque senão o bicho pegava. E... Nós podíamos ser bagunceiros na casa nossa ou entre nós pra bem longe. Mas se tivesse alguém de fora ou se tivesse no meio de alguém, se a gente inventasse alguma coisa, alguma bagunça... Tanto que nessa época não existia menino mal-educado. A gente sabia se comportar. E aí eu lembro que a gente tava fazendo um trabalho de escola, eu, o (Surya?), esse amigo meu e as duas primas, essas duas minhas primas, em frente à escola praticamente. A gente tava de manhã e às seis da tarde a gente se reunia pra fazer trabalho. E aí era um dos motivos, porque as vezes que a gente não queria brincar ou queria aprontar alguma coisa, a gente falava que ia na casa de fulano fazer trabalho. Aí as mães sempre deixavam, né? Afinal era trabalho de escola. E aí nós estávamos lá, e aí eu e o (Surya?), a gente aprontando mesmo, lá embaixo correndo, chutando bola dentro da casa da mãe dele. A mãe dele não estava, só estava ele na casa, nós todos na mesma idade. E as duas meninas lá em cima, as minhas primas lá fazendo trabalho. E minha mãe sabia que nós quatro estávamos dentro de casa. E aí nós quebrou não sei o que foi lá e quebrou alguma coisa e fez um barulho. E aí minha mãe já gritou lá da escola. Só que gritou as meninas, né? “Ah, vou contar pra mãe de vocês que vocês estão aí, bagunçando”. E as pobrezinhas lá em cima se matando de tanto fazer trabalho. E nós dois lá. Aí eu mandei o (Surya?), que é esse colega meu, gritar. Falar assim: “Não moço, grita aí assim”. “Janaína, Esteve, vocês quebraram não sei o que da minha mãe”. Eu não lembro o que era. E aí ele gritou bem alto assim: “Minha mãe vai me matar, Janaína e Estévia, vocês quebraram isso dela”. E aí minha mãe já escutou de lá, nossa senhora. Então já foi um negócio dela, já veio igual uma arara, já pra brigar com as meninas, porque as meninas estavam lá fazendo bagunça. E nesse caso aí ela podia falar o que elas quisessem, que não ia resolver nada. E aí, no final da história, nós livramos e as coitadas que estavam lá trabalhando, quase se matando de tanto trabalhar, ainda levaram à culpa de ter quebrado as coisas da mulher. Então é assim, elas hoje, principalmente a Janaína, eu falo assim: “Você me xinga até hoje por causa disso”. Aí a gente começa a contar a história e ela fala: “Vocês lembram daquela vez que vocês pagavam por alguma coisa que nós não fizemos?” E aí começa. Falei: “Moço, esquece, foi passado”. “Não vou esquecer, não”. Ela falou: “Não vou esquecer nunca”. Falei: “Larga pra lá, isso aí, ué, já passou”. Mas elas têm fama.
P/1 - Você falou que elas tinham a fama de aprontar também.
R - Pois, é isso que leva, entendeu? Que é isso. Se era uma pessoa que não tivesse a fama, era fácil desmentir, colocar ali. Não é a mentira, mas como era da bagunça também, então, ninguém...
P/1 - Mas elas faziam o quê, por exemplo?
R - Não, era arteiro, coisa de menino arteiro mesmo. O que pedia para não ser feito era o que a gente fazia.
P/1 - Antes de falar de outras coisas, esse projeto tem muito a ver com a relação da natureza, o que as pessoas têm com a natureza e tal. Você falou muito que desde criança você já andava no cerrado. Como é que você se sente quando você está andando no meio da mata? Você consegue dizer pra gente o que você sente, o que você pensa?
R - Eu não me vejo em outro lugar a não ser no meio do cerrado. Porque é muito isso hoje, né? Tem uma fala do Nego Bispo que eu acho muito interessante. Quando eu vi ele falar isso, eu falei: “É, rapaz”.
P/1 - De quem?
R - Desculpa. O Nego Bispo. Que ele fala da questão do relacionamento com o ambiente. Aí eu parei pra pensar, entendeu? Eu falei assim: Eu sempre me relacionei com o ambiente. Sempre, sempre. Então, eu costumo dizer que eu não preservo, eu me relaciono. Porque é desde criança. A história que eu te conto pra vocês aí, porque nós sempre estamos dentro do cerrado. Eu me relaciono do cerrado desde que eu me entendo por gente. Então, eu falo isso com propriedade porque é muito fácil pra mim. Eu tô dentro. Não é ninguém que me falou ou me ouviu falar, não. Eu nasci dentro. Então, para mim, é muito sossegado em relação a isso. Então, eu substituí essa parte de preservar para relacionar. Então, eu não me vejo fora de outro espaço. Sinceramente, eu não me vejo fora. Eu passo uma semana na cidade grande, dois dias, três dias, eu já fico doido. Eu já fico doido, eu sinto falta do silêncio, eu sinto falta do cheiro, do cheiro que o cerrado exala, das flores, das frutas. Então, quando você sai e depois você retorna, eu falo no sair no sentido de ficar, passear ou ir para o trabalho, é nítido a diferença do quanto isso faz parte da minha vida, do quanto eu preciso disso para sobrevivência mesmo, para o bem estar. Então, eu costumo dizer que sinto que não tem muito o que explicar. É vivência. Você vai explicar se você tirar o seu fogo de vida, você tem como se explicar alguma coisa? Não tem. Você sabe que você precisa do fogo de vida, de respirar para poder viver. Eu acho que é basicamente isso. Me tirar daqui e levar para uma cidade, para morar em uma cidade onde eu não tenho contato direto com a natureza, com o meio ambiente, com o cerrado, com os rios, com a água. É a mesma coisa de cortar a asa de um passarinho, acho que não tem sentido.
P/1 - E você falou que se sente mal na cidade, é isso? Como é que você se sente na cidade quando você fica um tempo? E quando você volta pra cá, quais os sentimentos que você tem?
R - A cidade, eu costumo dizer, a cidade tem as suas belezas. Eu gosto muito, no sentido de você ir lá, passear, vivenciar, desfrutar daquilo que você tem a vontade de ter, porque na época de criança a gente só ouvia falar. Então era uma curiosidade que a gente sempre tinha, de conhecer a cidade, de comer um cachorro-quente no saquinho ali, feito ali nessas empresas. Então era um negócio que chegava pra gente e parece que era coisa de outro mundo. E tem os seus... né?
P/1 - Atrativo.
R - Sim. E aí a gente... Hoje eu, por exemplo, vou. Eu saio pra uma praia, eu fico uma semana. Primeiro dia é a coisa mais linda do mundo. Segundo dia é maravilhoso. Terceiro dia, bom demais. No quarto dia, você já vai dando uma baqueada. No quinto dia, você já fala: tá legal, mas não tá... No sexto dia, que bosta, hein? Tô doido pra voltar. Então é isso, assim, né? E aí a gente chega e a gente cada vez mais valoriza, né? Quando você sai lá pra fora e vê coisas legais, coisas não tão legais, quando você chega aqui, você fala: “Ô, rapaz, que maravilha”. É aqui que eu quero morrer.
P/1 - E a sua referência de cidade, quando você era pequeno, era o quê? Brasília, Alto Paraíso?
R - Brasília. É a próxima, a mais próxima, né? Brasília. Brasília.
P/1 - Você via onde? Na TV?
R - No rádio? Sim, sim. Né? Tinha, sim. As pessoas que a gente conhecia mais próximas, que vinha passear ou que tinha parente aqui, ou que era amigo de algum parente, que vinha para cá, eram as pessoas de Brasília. Então, você é de onde? Brasília mesmo, porque ele morava ali no entorno. Morava ali nos entornos. Ele chegava aqui porque era de Brasília. Ele chegava grandão. Eu sou de Brasília. Então, ele tinha um respeito por ser de Brasília. Eu lembro muito bem disso. Quem chegava aqui na época falando que era de Brasília era tratado como rei, né? Então quem é nóis menino, quem é que não ia querer ser de Brasília?
P/1 - Vocês viam qualquer imagem que vocês tinham de Brasília que vocês viram na TV? O que você imaginava que era?
R - A gente tinha as imagens de Brasília muito na questão de roupa. De comprar roupa, de comprar brinquedo. Maçã, aquelas maçãs cheirosas de feira. Nós não sabíamos o que era isso. Nós não tínhamos o costume. Então era basicamente isso. Aí quando traziam um brinquedo que a gente nem sabia o que era, traziam uma balinha, uma balinha diferente. Nessa galera que vinha pra cá, aí trazia pra dar na época de Páscoa. Eu lembro muito bem dos negocinhos de ovo de Páscoa, que trazia com um papelinho, um molduzinho de coelho, que aí vinham os chocolates lá dentro. Isso só vinha na época que as pessoas que tinham família aqui, ou que tinham amigos, vinham na época de feriado pra cá, aí trazia essas coisinhas. Então pra gente, a gente sempre associava a cidade, a Brasília, a isso. Essas coisinhas legais. A gente adorava fazer nossos carrinhos, nós fazíamos nossos carrinhos de mão, com um volantinho com chinelo, cortava o chinelo, fazia as rodas de chinelo. Tinha um primo meu que já faleceu, que era bem mais velho do que nós, só que ele tinha um espírito nosso, assim, de brincadeira. Então ele sabia fazer esses carrinhos. E aí fazia, a gente saia dirigindo, saia aquela turma com cavalo de pau, criava muito cavalo, os animais mesmo, naquela época nossos pais tinham, né? E aí, nem sempre a gente tinha como pegar e ficar andando, a gente fazia os nossos, os nossos cavalos e botava os nomes, que eram os nomes dos cavalos que existiam mesmo, que eram dos meus tios, do meu pai, né? Aí a gente fazia o nó de pau, aí por exemplo, meu tio tinha um cavalo que chamava Baião, e aí dava briga no cavalinho de pau pra ver quem era, porque era um cavalo muito bom, bonito, aí dava briga pra ver quem é que colocava o nome de baião no cavalinho de pau, né?Que você sentava nele e saía. Então era bem legal.
P/1 - E quais eram esses cavalos que tinha na época que vocês ficavam olhando assim?
R - Eram os cavalos que eram dos nossos tios, né? Nossos pais. É porque o que acontece? Aqui no Moinho, a gente tinha essa uma outra terra que ela fica aqui uns 80 quilômetros, quase 80, 90 quilômetros daqui. E aí era uma época que a gente saía daqui pra ir pra lá, eu digo da minha família. Porque a minha família tem muita gente, é muito menina, muito assim, na época era muita criança assim nessa faixa etária. E aí era um espação muito grande de chapada. E lá a gente tinha uma tropa de muito animal. Aí todo mundo da família tinha dois, três, quatro, né? E aí ele ia reproduzindo, reproduzindo, reproduzindo. E aí, como era longe daqui, a gente só ia nas férias. Um em feriado prolongado, assim, que não tinha aula. E aí lá a gente passava. Era mais isolado do que Omuí, na época, então. Só ia a família nossa lá mesmo. E aí tinha um prazo de validade de ficar lá. E aí lá tinha esses animais todos, que ficavam lá na chapada, comendo. E aí lá a gente passava o dia todinho, montando de cavalo, mexendo com cavalo, caindo de cavalo. Eu era o mais moço da turma. Meus primos eram todos espertos, eu que era o molão. E aí eu só tinha uma éguinha que era mancinha, mancinha, que o meu pai tinha, que eu peguei ela pra mim, que era mança, mança, mança. E dela, até dela eu caía, entendeu? Então os meninos riam de mim demais. Eu sempre fui tachado como o mais moço da turma. E aí... Todo mundo tinha os nomes das éguas, dos cavalos e tudo. E quando a gente não estava lá e a gente estava aqui fazendo os nossos cavalinhos de pau, aí a gente usava o nome dos que estavam lá. A referência nossa era os lá. A égua do meu tio, a égua de outro tio. Então, aí todo mundo falou. Aí pegavam e falavam assim: “A minha égua é a égua de fulano”. Aí todo mundo sabia: “Ó, aí é bom, a égua é boa, o cavalo é bom”.
P/1 - E qual era o nome da sua égua?
R - Rapaz, eu não me lembro o nome dessa égua. Não me lembro. Eu lembro que era uma égua que nós usávamos, que só eu montava nela e tudo, mas não tinha um nome. Eu não me lembro, assim. Acho que se tivesse um nome, era muito aleatório e eu não chamava pelo nome, assim. Porque não é um negócio que me lembra alguma coisa. Tipo o cavalo do meu tio, que chamava Baião. Sabe? Era um cavalo que tinha esse nome e que todo mundo, nós aqui, sabe o nome até hoje. Quando a gente senta e fala, o baião, um cavalo baião que tivesse, que era meu tio Gérson, ele cavalo era bom. E aí era...
P/1 - Agora, vocês iam daqui pra lá de carro?
R - De a pé, não.
P/1 - De a pé mesmo? Oitenta quilômetros?
R - De a pé. É, existia carro não. A gente saia daqui tipo cinco horas da manh, se mandava quatro horas da manhã, às três horas, quatro horas, você estava lá, da tarde.
P/1 - Parava no meio?
R - Levava matula. Parava num lugar que chamava Rego, sempre parava nesse lugar, que é um rio. E aí parava pra matular, depois seguia a viagem. Demos sorte umas duas vezes, que quando a gente chegou no meio da estrada, aí a tropa tava lá perto. Como era muito grande, às vezes a tropa saía de lado, o rancho, que era rancho de palha, no lugar que plantava, que tinha plantação de... a chácara e tudo. Eles iam andando pela chapada toda. Aí tem umas duas vezes que a gente foi e encontrou eles no meio da estrada. Pensa numa farra. E aí não tinha cabresto nem nada. Aí saía gente desamarrando as cordas, porque naquela época não existia bolsa, era saco trelado. Você pegava esse saco de lenhagem, esse saco de ração hoje. Aí você colocava dois _____ na ponta, no outro. E amarrava a corda pra poder fazer o engate. E aí amarrava as duas pontas na cabeça do saco. Aí você enfiava uma mão aqui, a outra aqui e fazia a mochila. Ou então você pegava dois sacos e trelava com tudo que você ia levar. E aí botava aqui. Ficava um saco aqui e o outro pra trás. Esse meu pai usava muito isso. Ele tem tanta marca aqui assim ainda hoje, até hoje. Era porque machucava, né? Era muito pesado e aí ele acabava cortando. Então... Se você botasse aqui um saco desse de dez quilos, se você chegasse lá, ele estaria pesando uns 50, 30. Ele cada vez mais ia pesando e machucando.
P/1 - E qual era o nome do lugar onde vocês chegavam lá?
R - Santa Maria.
P/1 - E aí tinha mais parênteses lá?
R - Não morava ninguém lá.
P/1 - Era só casa?
R - Só rancho de palha. E plantação, né? Banana, muita banana, muita cana. Que era o que nós gostávamos, né? Chupacana.
P/1 - Vocês deixavam plantando e pegavam pra ver como é que tava.
R - É, exatamente. Aí não tinha uma coisa melhor do mundo. Você chegava lá... Aí quem ia, por exemplo, a banana de vez, você cortava aí uns... Era muita banana. Era banana maçã, era banana gostosa. Você cortava uns 10 caixas, botava dentro da gamela e tampava. E aí, você vinha embora. Aí, em certo tempo, você falava pra uma outra turma, da família mesmo que ia. Às vezes, ia separar as turmas. Falava: “Ó, se você for lá agora, vai ter muita banana madura, que nós enchemos a gamela lá”. Aí, quando você chegava perto do rancho, eu já cheguei assim perto do rancho, você sentiu o cheiro da banana madura. Aí, você chegava perto do rancho, você abria a gamela, tava aquela banana madura, assim. Era bom demais. Carne seca, né? Às vezes você não comia tudo. Aí você deixava lá estendida assim, por cima do fogão. Aí quem chegava ia e comia.
P/1 - Lucas, vou dar uma tossida, tá? Você tem alguma árvore, algum cantinho daqui que é preferido seu?
R - Aqui. Esse pé de manga.
P/1 - Qual? É esse?
R - Esse aqui.
P/1 - Ah, esse aqui que está aqui.
R - É. Ele ficou aí estrategicamente, pela questão da memória afetiva mesmo, de quando eu era criança.
P/1 - Como é que é essa história?
R - Hoje, no espaço que nós estamos aqui, eu ministro oficinas de rapadura. É a oficina afetiva. Fez parte muito da minha infância fazer isso que eu faço hoje. Só que na época que eu era menino tinha todo um ritual. Na época, menino tinha que saber o que ele fazia. Menino, por exemplo, não chegava perto de um tacho, nem era porque era perigoso, porque se os pais quisessem eles supervisionavam. É a questão de superstição mesmo, falando na linguagem de hoje, mas antigamente ritual. Num doce, por exemplo, porque na minha idade eu não podia mexer, porque se eu botasse o doce perdido, por exemplo, o doce perdido é no sentido de que você vai mexer e não sabe, aí o treino não dá certo. Então tinha muito dessas coisas. Então na minha época, na minha época de criança, eu tenho muito essa memória. Meu pai tinha muita cana, a plantação de cana dele aqui era muito boa, e era uma cana que tá cada vez mais perdendo a semente dela. Hoje quase ninguém tem mais, que é a cana roxona. Então é uma cana muito doce e é uma cana que ela cresce aí 5 metros. Tem cana que antigamente ela dava 5, 6 metros pra cima. Era muito doce e ela amadurecia uma vez por ano. Se você não tirasse, ela secava e matava a touceira. Diferentemente de hoje, desses cruzamentos de cana e tudo, que a cana dura o ano todo, você cortando ou não cortando, ela continua do mesmo jeito. Antigamente não. Essa cana era uma vez só. E aí quando ela penduava, soltava o pendão e a flor, se você não cortasse, ela secava ali e matava a touceira. Então quando chegava na época, ela amadurecia tudo de uma vez. E aí você tinha que cortar tudo de uma vez. E aí meu pai não tinha a oficina nessa época. A oficina que a gente fala é o espaço. É o espaço, que é onde está a fornalha. E antigamente o cavalo, o engenho, que era puxado no cavalo, não existia coisa elétrica. E aí meu tio, que morava na época na fazenda, ele trabalhava e morava nessa fazenda, acho que uns 10, 15 quilômetros daqui, aí meu pai ele cortava no mês de julho, que era o mês que eu e minha mãe saía de férias, eu como estudante e minha mãe como merendeira. E aí a gente tirava 15 dias no mês de julho, ele cortava essa cana todinha, e aí a gente… vinha um caminhão da prefeitura, né? Era um momento bom também pra gente andar de carro, de caminhão, né? Isso era uma alegria pra nós. E ele enchia esse caminhão de cana, e aí juntava eu, aí ele pegava mais uns dois, três primos meus, da mesma idade, e a gente descia pra essa fazenda onde meu tio trabalhava. E lá a oficina, o espaço, era debaixo de um pé de manga desse, só que enorme, assim, era um trem gigantesco. E aí lá eram feitas as fornalhas, e tinha um engenho do lado. E aí, do ladinho assim, minha mãe fazia um barraquinho de lona, meu pai fazia, né? Pra dormir. A cozinha era feita também debaixo do pé de manga. Porque passava um corregozinho assim. Meu tio tinha a casa lá, né? Mais do lado assim. Mas aí nós ficava lá nesse pé de manga. Porque era a época, era mês de julho, não chovia aqui. E aí era uma época que a gente ia pra fazer a rapadura, né? E aí ficava lá fazendo a rapadura. E aí nós, meninos, nessa época, eu e os meus primos que ia com a minha mãe e com o meu pai, nós servíamos pra tocar o cavalo. Andava cedo, numa preguiça, sono. E aí você ficava o dia todinho tocando isso. O dia todinho, quando terminava de moer, aí a gente tava liberado. Aí nós íamos caçar um trem pra brincar, uma bola, um negócio lá. E aí quando tava pra sair o tacho, a gente já sabia a hora que tinha que ir lá tocar o cavalo, porque ele ia moer de novo, porque tirava um e tinha que colocar o outro. Aí moía dois, três tachos por dia. Então eu me lembro muito, tem muita essa memória dessa época. E aí quando eu fiz a minha oficina hoje aqui, quando eu vi esse pé de manga foi a mesma coisa que eu tenho uma visão. Aí eu tirei tudo, aí os meninos quando foram fazer ramo tiraram o pé de manga aqui porque senão ia cair em cima da casa ou ia fazer muita sujeira de manga na época, porque começa a amadurecer. Falei: “Não, eu quero fazer lá exatamente por causa desse pé de manga, né? Porque ele tem história”. E era, assim, a proporção era muito maior, mas era praticamente isso. Um pé de manga grosso e ele refolhava assim, né? Então fazia uma sombra muito boa embaixo. E aí a fornalha era tudo feito debaixo desse pé de manga. O fogão era feito na trempa e aí a gente passava 15 dias ali. Até moer toda a cana que tinha levado pra poder fazer a rapadura.
P/1 - Você achou esse espaço aqui como? Quando é que foi esse dia que você teve essa visão?
R - É porque o pé de manga é muito normal, tem vários pés de manga. Enquanto a gente é criança, adolescente, passa até para a fase adulta. Quando você não chega num ponto de maturidade, de ver realmente o que você quer da vida, o sentido da vida, o que é legal da vida, o passado, você tentar, não que vai ser igual, mas você ter referência do passado, tanto de coisas, de pessoas. Eu tenho uma linha de raciocínio disso. Eu tenho que ser igual a um fulano. O meu avô, a minha avó, os meus tios, muitos que não estão aqui mais. Outros que estão ainda falando que querem ser igual o cicrano, igual o fulano. E isso é bem legal, sabe? Quando você chega nesse nível de percepção. E aí eu peguei e cheguei a um ponto que eu falei assim: “Eu vou seguir o legado, não posso deixar esse negócio morrer”. Entendeu? Já foi embora, já morreu muita coisa, E, infelizmente, a gente não teve a oportunidade e o discernimento e a orientação de alguém para poder falar: “Moço, por que você não está fazendo isso que fulano fazia? É tão legal”. Infelizmente, junto com muita coisa legal, acabou indo embora com muitas pessoas legais, muitas pessoas boas, de coração bom, com muita história boa. Mas, como diz o outro, antes tarde do que nunca. Então, chegou um certo ponto que eu falei, falei assim: “Eu tenho que dar continuidade. A minha história tem que ser referência para muita gente lá na frente”. Então eu fui juntando os caquinhos de tudo o que restava ainda e comecei a construir a história para, sei lá, daqui a 50 anos, 60 anos, 70 anos, quando a gente não estiver mais aqui, servir de exemplo para alguma coisa. E, diferentemente de antigamente, hoje a gente tem câmara, registro, que eterniza o negócio. Antigamente não, era na memória, era contada. Às vezes tem essa dificuldade de lembrança, exatamente porque você viveu uma vez só. Tem muita gente que tem a memória boa, muita, muita, muita. Minha mãe, por exemplo, não lembra de muita coisa. Já viveu muito, mas não lembra de muita coisa. E isso devido a tudo, devido à comida que a gente come. Os enlatados, as coisas que fazem mal hoje, antigamente não existia. Então o povo era forte, tanto fisicamente como mentalmente. Então é isso.
P/1 - Eu gostaria de voltar mais pra frente sobre essa história de você construir aqui, tá? Mas... Vamos voltar um pouquinho. Me fala como é, voltando você criança ainda. Qual foi a primeira vez… você se lembra da primeira vez que você chegou perto do processo de fazer rapadura? Que dia foi? Como foi? Você se lembrou por acaso? Não sei se foi a primeira vez.
R - Sim, sim. É o que eu sempre falo. Quando a gente era criança, nós não tinha essa... Essa mentalidade de chegar e falar: Nossa, eu tô chegando perto pela primeira vez da rapadura, tô fazendo a primeira vez. Não, aquilo pra gente era muito prazeroso. Mas era muito limitado. O que a gente podia fazer estava muito nítido pelos pais da gente. Era tocar o cavalo, pegar a cana na roça e não deixar você cortar, além de você machucar com o facão afiado, tinha toda a questão de que você não podia cortar a cana nem muito alta nem muito baixa. Então, ela tinha todo esse ritual aí, essas regras, vamos dizer. Então, eu tenho muita lembrança do que a gente fazia, de comer a puxa. A primeira vez, eu me lembro, assim, é muito bom, porque o que você repetiu, o que você gostava, eu acredito que na primeira vez que você provou, você amou demais. Que é comer a puxa, que é a bala do melado ali, quando está quase saindo a rapadura. Então, é tomar a garapa cedo. Nós tomávamos caldo de cana o dia todo. Então, são coisas legais que eu acredito que foi muito bom. Feito pela primeira vez, que a gente sempre gostava de repetir. Quando se falava em fazer rapadura, é isso. Muita doçura, né? Muito caldo de cana, tomar muito caldo de cana. Cozinhar a mandioca dentro da garapa de cana. É depois que você tira o tacho, você tá com a carne seca ali, você assar. Então é coisas que acredito que quando a gente provou pela primeira vez, a gente gostou muito, que a gente repete até hoje.
P/1 - Como é que é o cheiro de fazer rapadura?
R - Nossa, é muito bom! E vai longe! É um cheiro de doce que vai longe, de um verdadeiro doce, do doce puro. Então ele ecoa, a fumaça dele vai longe. Quando eu faço aqui, muita gente que passa lá na rua, lá em cima, já fala: “Lucas tá moendo hoje”. Pelo cheiro. Simplesmente pelo cheiro. Toma lá.
P/1 - Bora. Quer fazer uma pausa?
R - Fala. Hã? Essa história, ela é o quê? Ela é digitalizada? Ou é no próprio vídeo?
P/1 - É, a gente vai... Você vai ter o vídeo na íntegra, o arquivo.
R - Nossa, é grande demais.
P/1 - É grande. A gente vai diminuir a qualidade, não pra ficar ruim, mas pra você conseguir baixar e tal. E a gente coloca no site também, museudapessoa.org. Eu vou te mandar um exemplo pra você ver como é que fica.
R - Ah, sim, sim.
P/1 - Transcreve também, enfim.
R - Bacana.
P/1 - Eu perguntei pra você do cheiro da rapadura, no caso. Vou fazer uma pergunta que nunca fizeram pra você, Lucas. Como é que faz rapadura? Como é o processo?
R - O processo? É muito simples. O primeiro passo, eu costumo dizer que é você plantar a cana. É colher a cana, cortar, colher, trazer para o pé do engenho, extrair o caldo conforme o tamanho do tacho que você tem, se é um tacho de 50, se é de 70, se é de 100, se é de 120. É 120 litros de garapa. Aí as pessoas falam, o meio que eu faço a oficina, que eu aplico a oficina, ele é de 70 para dar rápido, não demorar muito. E as pessoas falam, e dá quantos pedaços de rapadura? Tem a questão do nível de doçura da cana, ou seja, do nível de madurez da cana, se ela está muito madura, pouco madura. Isso aí contribui muito. Extraiu o calto da cana, você joga, faz a limpeza do tacho, que é a limpeza do caldo, a gente usa algumas coisas ancestrais, por exemplo, eu uso hoje a seiva da casca da mutamba, que depois que você joga o caldo no tacho e acende o fogo, antes dela abrir a fervura, você coloca ali aquela seiva, isso aí é como se fosse um processo da piscina, quando você joga o produto para a sujeira ela descer, ela decanta, aqui não, ela sobe. Então ela vai fervendo, vai fervendo e você vai fazendo a limpeza com a escumadeira, que é uma escumadeira de alumínio ou de coité, que é como se fosse uma conchona grande, furadinha, para você ir tirando a sujeira e deixando só o caldo. E isso você faz até limpar, esse processo você repete até você limpar o caldo, a gente fala limpar o caldo. Posteriormente, você vai ferver, ferver, ferver, começa a transformação do líquido insólido, que é da garapa no melado, e aí depois você tira o ponto, quando para o tacho, que para de subir como se fosse leite, você tira o ponto na água fria e aí você escolhe a densidade. Você quer uma rapadura mais mole, você quer uma mais dura, você tira no tato. Chegou no ponto que você quer, você tira do tacho, joga na gamela, e aí vai batendo, chegou na consistência legal, você já coloca nas formas que já vai estar montado. E aí, só esperar esfriar e embalar.
P/1 - E as rapaduras que você faz aqui, no moinho, elas têm alguma coisa específica? Por exemplo, no Nordeste faz de outra forma, em Minas?
R - Eu costumo, com a vinda das pessoas de vários estados, do país, a gente tem feito algumas comparações.
P/1 - Como?
R - A vinda de algumas pessoas do país inteiro, principalmente do Nordeste, a gente tem feito algumas comparações. No Nordeste eles costumam usar muita rapadura preta, mas eles falam isso mesmo, é rapadura preta. Eu costumo dizer, até que eu peço a um rapaz de Pernambuco, ele vinha aqui, aí ele falou: “Nossa, muito gostoso”. Eu falei: “É, mas se eu levar essa rapadura lá no estádio de vocês lá, muita gente vai achar ela horrível”. E ele: “Por quê? Porque não é preta, né?” Eu falei: “Acertou”. Então, assim, a cultura é comer a rapadura preta. A minha aqui, a gente faz tanto essa limpeza que ela sai como se fosse um doce de leite, a cor. Assim, né? Depende muito da cana, é lógico, mas a cana que a gente usa, ela sai uma cor bem cremosa, bem bacana. Primeiro você come com o olho, a gente costuma dizer que… Então, eu costumo dizer que a diferença é essa. E tem muita questão do sabor da cana, questão da cana ser salgada ou não, interfere muito no produto final. Mas tem alguns lugares que eles gostam dessa cana com um pouquinho de sal. Mas não é colocado sal, é o próprio caldo da cana, que a gente fala salobra, que é um pouquinho salobra, que é um pouquinho meio que salgada. Mas isso é um paladar bem mais apurado assim, sabe? Só realmente quem entende vai saber decifrar assim. Pegar alguém que não entende muito do sistema da rapadura, ele não vai diferenciar nada. Mas para quem faz uma rapadura mesmo, se ele botar na boca ele sabe. Essa cana aqui é solúvel. Não, essa é doce. Essa é arienta, né? Essa é puxenta, né? Então eu acho que é isso.
P/1 - E essa que vocês usam aqui é essa que você falou que as sementes estão acabando, é isso?
R - Também. Também. Hoje a gente planta muita cana normal, dessa cana que teve esses cruzamentos aí, né? A 120, a cana cuba. E essa cana roxona, ela tá, realmente ela tá acabando. Realmente. E não é por falta de plantar não, que a gente até tenta. Mas eu acredito que as mudanças climáticas contribuem muito para esse fator, porque é uma cana bastante antiga, é uma cana que não se usava nada para plantar ela, não tinha cruzamento de nada, era assim. Cortou ela, você plantava, dava um negócio. Mas aí a chuva vinha na época certa, parava na época certa. Meu pai sempre falava, nessa época meu pai sempre ele contava muito a questão da chuva em plantar no pó. Ele limpava a roça, limpava o roçado, o que ele tinha que fazer, e aí o solzão, época de seca, seca, seca, seca, ele pegava a semente e jogava. Ele plantava normal na seca, porque ele sabia que tal dia ia vir a chuva. Falava: “Vamos plantar no pó”. E aí, realmente, o dia que eles marcavam, a chuva vinha. A semente ficava ali dentro, ela não ia desenvolver nada, até a chuva chegar. Mas eles adiantavam o serviço. Hoje em dia, você perde a semente, a mão de obra, tudo, porque não vem. Então, a relação das mudanças climáticas, ela contribuiu muito para esse fator, o desequilíbrio de tudo. E isso afeta nós, as comunidades representativas, que tem as referências nossas, é exatamente baseado no que hoje, como uma pessoa nova, é baseado no que os meus pais, os meus tios, que são pessoas mais velhas, minha avó, falavam. Até tal dia vem a chuva, até tal dia para a chuva, até tal dia você pode plantar, até tal dia você não pode plantar. Então tem mudado tudo.
P/1 - E essa cana roxona, ela foi trazida por quem? Você sabe disso?
R - É uma cana muito antiga. Muito antiga. Eu acredito que nem minha mãe hoje vai saber de quem é que foi que traga essa cana para cá. Mas é uma cana muito antiga, muito antiga mesmo.
P/1 - E, Lucas, você falou que tinha um ritual, que não podia chegar perto do tacho. Quando é que você foi introduzido a esses rituais de fazer? Quando foi isso e quais são esses rituais? Primeiro me conta como foi.
R - Enquanto criança, né? No sentido... Lógico, primeiramente, de não se machucar, porque hoje é o início das oficinas para criança. Normal, eu tenho todo cuidado, eu sei onde ela não pode tocar, onde ela não pode passar perto e onde é que parece ser perigoso, mas ela pode estar ali mexendo. Lógico, com a minha supervisão do lado. Só que eu fui treinado para isso, já os meus pais não. Colocava ali aquilo como muito perigoso e ainda tinha o lado da moeda de que nós não sabíamos fazer, e eles não tinham paciência de ensinar. Costumo dizer que a paciência do povo de antigamente não é igual à de hoje. Então o menino era tratado aqui, na rédea curta. Não, você não pode fazer isso, você não sabe fazer isso. E pronto, mas também não preocupava em ensinar a fazer não. Agora os curiosos aprendiam. Eu aprendi de curioso. Vendo ali, na primeira oportunidade que eu tive de pegar e fazer, parece que eu já fazia há milhares e milhares de anos. Mas basicamente com... olhando. Olhando sempre, olhando e lembrando de como que fazia. Porque é a coisa que repetia muito. Se você fazia rapadura, a gente contava por tacho. Meu pai fazia três, quatro tachos por dia e o processo é o mesmo. Então eu via aquilo ali. E aí... não tinha muito segredo.
P/1 - Você se surpreendeu quando você fez a primeira vez e deu certo, ou não?
R - Rapaz, surpreendi! Por mais, igual eu falei, por mais que você sempre saiba o que é, mas é uma coisa que você vê o resultado, né? Eu falei: “É, deu certo, eu sei fazer mesmo”. E é um negócio que não é que ninguém me ensinou aqui semana passada, ou peguei uma receita no Instagram, não. É coisa que eu vi desde os meus oito, dez anos de idade, meu pai fazer, né? Sempre acompanhei. Então, eu falei assim: “O legado eu fui passado”. Tanto que hoje o meu filho de dezesseis anos, ele pega pra fazer, ele já faz. Ele já consegue fazer sozinho, se for o caso.
P/1 - E o seu pai, seus tios falaram o que pra você quando você fez?
R - Não, eles não tem... eles não costumam falar muito, não. Muita coisa, não. Quando é meu pai mesmo, ele fazia, é. “Uai, tá sabendo, já tá sabendo fazer”. “Uai, ficou, foi boa. Uai, tá bom, uai. Ficou, foi boa. Mas podia ser, sim”. Porque os pais, esse povo mais antigo, eles elogiavam, mas desconfiavam. Não é coisa de espantar não, mas no fundo eles sabiam que a gente ia sempre dar conta de fazer mesmo.
P/1 - E como é que foi essa decisão, esse processo que você falou, vou fazer isso para a minha vida?
R - É aquilo que eu te falei, na questão de dar continuidade ao legado mesmo.
P/1 - Mas você tinha quantos anos?
R - E gostar! Vamos lá, 20 anos. 22 anos. É, porque foi no processo que eu fui pra cidade e depois retornei pra cá. Mas é um negócio que não sai da cabeça. E aí eu peguei e fiz. Simplesmente deu certo. Porque não tem segredo, né? Pra gente que viveu isso aí desde os 8 anos de idade. Participando dos processos. Às vezes não. Fazendo o processo todo. Mas participando e vendo como que faz. Então é uma, como dizer, uma faculdade muito grande, muito extensa, né? Então, foi isso.
P/1 - Mas você foi pra cidade o quê? Você foi trabalhar em outra coisa?
R - Isso?
P/1 - Como é que foi isso?
R - É, quando eu fui, eu sempre gostei do lado turístico, né? De trabalhar no lado turístico. Só que nessa época o Alto Paraíso não era o que era hoje a cidade. Era muito... Nem se comparava, né? Assim, as pessoas não viviam exclusivamente do turismo, né? Era muito fraco mesmo, assim, a chapada. E aí eu fui para trabalhar, eu trabalhei em pousada, a gente trabalhava muito em construção civil na época, lá na cidade, nas construções. Até porque aqui, na nossa cabeça, a gente estava indo para caçar um modo de vida melhor. E aí consegui fazer um curso de guia na época, um curso de guia regional, entrei para o turismo. E aí foi a época que eu resolvi voltar pra cá. E aí, com a mudança do turismo, as coisas foram chegando onde chegou. Nessa relação do turismo de base comunitária. Hoje eu tenho uma percepção muito boa do turismo de base comunitária, de receber pessoas, pessoas selecionadas, pessoas que vêm pra cá realmente sabendo o que ela quer, o que é aqui. Então, pra isso, o trabalho foi longo. Tá sendo longo, porque é tudo de um aprendizado. E as coisas acontecem quando você quer. Não adianta você acelerar. Tudo tem um tempo. Eu já percebi. O Moinho é muito isso. Aqui é muito isso. E isso é legal porque não atropela o processo. Um degrauzinho de cada vez.
P/1 - Vamos voltar então, agora a gente chegou nessa história talvez de você construir aqui então, né? Então você estava andando aqui, olhou pra essa mangueira, é isso? Como é que foi?
R - Não, eu na verdade, o meu espaço não era aqui, o meu espaço era em outro lugar, junto com onde minha mãe faz a farinha, né? E é um espaço muito apertado. E até então a gente fazia pra venda e nem vendia. Era um negócio que não tinha divulgação, não tinha saída, as pessoas não conheciam o poder da rapadura, do açúcar, do melado, do açúcar mascavo, do doce do amendoim do pé de moleque com rapadura, do doce do babaçu com a rapadura, o valor nutricional para quem faz muita trilha, no caso, região de muita trilha. E aí você comeu uma barra de chocolate, ao invés de comer um pedaço de rapadura, entendeu? As pessoas não tinham essa dimensão do que é a rapadura. Tanto que hoje eu não consigo entregar as encomendas que tem porque eu também dou as oficinas. Eu priorizo, no caso, as oficinas. E hoje muito se usa em academia na cidade. As pessoas querem muita rapadura. Muitas pessoas que malham, gastam energia, elas encomendam a rapadura. Até imploram: “Separam um pedacinho para mim”. Os trilheiros, as pessoas que fazem trilha de longo percurso, ele quer substituir um doce do mercado lá, um trem lá. Que não é natural por um pedacinho de rapadura, um pedacinho de doce de amendoim com rapadura, de um babaçuzinho com rapadura. Então é isso, assim.
P/1 - Aí você foi em um lugar maior.
R - Aí eu fazia lá junto e era muito apertadinho, muito desconfortável. E não era pra... não tinha essas... porque a gente fazia pra nós mesmo. A maioria perdia, né? Porque rapadura você faz ela e a gente não sabia armazenar e aí melava tudo. Melava e ela derretia, né? Aí morfava em época de chuva, porque você não sabia isolar ela, armazenar bonitinha. E aí perdia. Você era mais na farra ali de fazer mesmo, assim, sabe? E comia, lógico, a gente comia. Só que é muita rapadura, você não consegue, né? E aí, em 2023, eu tive a oportunidade de participar de um projeto piloto do Ministério do Turismo, que chamava Experiências do Brasil Original, que foi a possibilidade, no caso, a UF, que é a Universidade Federal Fluminense, que trabalhou esse projeto, financiada, no caso, pelo Ministério, apoiada pelo Ministério. E aí eles vieram e formataram as experiências, porque as experiências já existiam, as pessoas já faziam isso aqui, tanto a rapadura como outras experiências. E aí eu vi essa possibilidade e deu super certo. As pessoas vêem, vivenciam, vêem como que era feito, as pessoas trazem essa questão da memória afetiva. É tanto que já aconteceu várias e várias vezes, a gente tá aqui fazendo a oficina com algumas pessoas e de repente a pessoa cai no choro, cai chorando aí. E aí, nas primeiras vezes eu assustei, porque eu pensei que a pessoa tinha machucado. Porque ela participou do processo de extrair a garapa antes de informar. Eu costumo dizer, é as pessoas que fazem a sua rapadura para levar. Então, isso mexe muito com a cabeça. Aí várias e várias pessoas saíam, umas choravam mais reservadas, outras já abriam a boca aqui no meio de todo mundo mesmo, porque lembravam do avô, lembravam do pai, de uma tia querida, de um tio querido, que fazia isso há muito tempo atrás. E aí despertou, que às vezes estava adormecido ali, mas a partir do momento que você começa a mexer, que você começa a lembrar, aí quem é mais...é a questão da memória afetiva mesmo. Aí vem a tona, aí entra a emoção no caso. É bem legal, bem legal.
P/1 - E essas oficinas demoram bastante tempo então, imagino?
R - É o dia todo. O dia todo.
P/1 - Até ficar pronta?
R - Até ficar pronta. É todo o processo. Todo o processo. E aí é com calma. É com paciência que você vai explicando. É o passo a passo. Você não está produzindo, você está fazendo Você está demonstrando como que é feito, diferentemente da produção.
P/1 - Você se lembra, você consegue lembrar de alguma pessoa dessas que você falou que se emocionou, o que ela contou para você?
R - Consegui, estranho, porque você pensa que a questão cultural principalmente da rapadura, de produtos trabalhados com a cana, é só no Nordeste. Quando a gente fala de rapadura, automaticamente você já liga ao Nordeste. Várias do Nordeste. Se emocionou e tudo. Mas o estranho foi uma do Sul, né? Ela se emocionou bastante. E aí ela falou do avô, que fazia isso lá em uma cidadezinha perto de Porto Alegre. E aí foi muito surpresa. E aí foi engraçado que ela contou tudo. E aí tinha algumas coisas que eram muito parecidas, mas tinha algumas coisas que a linguagem era diferente, mas aí eu começava a falar a minha linguagem, regional, e eu percebi que era a mesma coisa. Só não é, só a diferença é porque lá é o Sul e aqui não é. Então, foi muito surpresa pra mim, por ser uma pessoa do Sul, assim, de não ter essa, não ser costume de ter essa cultura.
P/1 - O que você aprendeu que você acha que é bem curioso, que foi bastante útil nessa caminhada com outras culturas de fazer rapadura, de tratar cana, enfim?
R - Ah, eu acho que a gente tem que estar sempre inovando. A gente tem que estar sempre agregando o trabalho nosso. Você não pode estacionar. A sua cultura, o seu jeito de fazer, aquilo que seu pai passou pra você, que sua mãe, que seu avô passou, isso aqui vai ficar guardado na sua memória e no seu coração pro resto da vida. Pronto, ponto. Isso aí ninguém tasca. Mas você pode agregar outras coisas, outras culturas dentro daquela que você tem. Não estou falando na linguagem de hoje, gourmetizar o negócio, vamos dizer assim. Então eu acho muito interessante, muito, muito, muito, muito mesmo. Eu já tinha ouvido falar, eu nunca tinha feito. Nesse dia teve uma menina, eu não lembro do estado que ela era, e ela conhecia tudo. Ela falou assim: “Você já passou a Lima dentro do Melado?” A fruta ou uma laranja da terra que tem um gosto forte. Eu falei: “Não, a gente faz isso muito lá e aí sai uma rapadura com o sabor daquilo que você colocou ali. Mas especialmente a lima e a laranja”. Aí eu falei: “Que legal. Eu tenho a lima e a laranja”. Quando jogamos o produto dentro da gamela que bateu um pouco, e a gente veio com a lima e com a laranja da terra e mergulhamos ela dentro do mel ali grosso ainda. E aí quando a gente mergulhou, o cheiro já recendeu aqui assim. E aí ele vem junto. A gente bota como se fosse uma maçã do amor, né? Porque aí você enfia lá dentro e espera endurecer. E aí quando endurece, aí você tira a casca. Vai tirando a casca que a rapadura já vai estar dura. Rapaz, ainda foi provar aquilo. Você tá doido, é bom demais. A rapadura ali saborizada, né? Com gostinho de laranja, com a lima da pérsia. É bem legal. Então assim, é coisa que agrega. Ou se fosse pra mim poder vender e fazer, eu faria. Rapadura, rapadura de laranja, rapadura de limba, rapadura... onde é que tem? Sai da questão tradicional mesmo.
P/1 - Enquanto vamos falar de outra coisa que tem a ver também, mas eu fiquei curioso de talvez seja importante registrar aqui, Lucas, já que a gente tá aqui. Quem é o Moinho? Quem são essas pessoas que estão aqui? Qual é a história que você... que te contaram, que você viu, enfim, dessa comunidade aqui?
R - É, igual eu falo, o Moinho, a gente tem um primo aqui, que ele é MC hoje. Eu sou o atual vice-presidente da associação, que é a associação Quilombola do Moinho. Ele é o vice-presidente e ele é o MC. E aí ele criou um álbum onde a frase que tem no álbum é O Moinho é meu mundo. Essa frase é muito legal, porque realmente é o nosso mundo. Quando nós fomos certificados enquanto comunidade representativa, comunidade tradicional, em 2014, a fundação, no caso da Fundação Cultural Palmares, eles fazem todo o estudo da comunidade, para ver a história, para certificar se ali é uma comunidade remanescente de Quilombola ou não. E a primeira coisa que eles levantam é a idade, até então nós não tínhamos. E aí chegou-se à conclusão, através de relatos de pessoas mais antigas, muitos que já até morreram, que o Moinho existia em 2014, 250 anos escravaram. Ele tinha mais de 250 anos. Nós colocamos 250 anos. Ou seja, é muito antigo. Isso através de relatos das pessoas mais antigas, até o momento. Pessoas com 88 anos, quase 90 anos, que já não estão mais aqui entre nós. Então, para mim que é de 1990, por aí vocês atiram. E o que a gente sabe é o que conta. É o que os nossos pais contam, né? O que foi passado pra gente. Eles também sabem o que os pais deles, os nossos avós passaram pra eles. Mas comunidades, volto a repetir, comunidade tradicional, representativa principalmente, comunidade Quilombola, as pessoas, entre seres, não têm o costume de conversar. Pai com filho. Isso vem melhorando a cada geração que passa, mas antigamente não. Os pais não tinham o costume de conversar com o filho. Então era um negócio muito rígido. Por isso, muita coisa acabou não sendo passada. Por essa cultura, muita coisa acabou não sendo passada.
P/1 - E a sua família, você, na comunidade em geral, professa alguma religião ou algumas religiões?
R - Eu nasci numa família evangélica, que veio da católica, né? Eles passaram do católico para o evangélico. Quando eu nasci, minha mãe já era evangélica, né? Então, eu não... Já as minhas irmãs não. As minhas irmãs nasceram, ela era católica, todas elas. Então eu não, ela já era evangélica. E aí hoje aqui tem muitas pessoas que são evangélicas dentro da comunidade e tem muitas pessoas que são católicas também. A prova disso são as duas igrejas que tem na comunidade, uma evangélica e outra católica.
P/1 - E você acredita em Deus? Tem relação com Deus?
R - Sempre, sempre.
P/1 - Como é essa relação?
R - Por nascer no lar evangélico, eu acredito muito em Deus. Muito, muito, muito, muito. Acredito muito no bem. Eu acho que Deus está em tudo que é de bom, Deus está. Então eu acredito muito em Deus. Eu nasci em um lar evangélico mesmo. E me relaciono, me dou bem com todas as pessoas, com qualquer tipo de religião. Todas as religiões, pessoas de todas as religiões têm amigos, que são diversas religiões. E me dou super bem com todo mundo, porque eu acredito que Deus está no bem. Quem faz o bem, eu acredito que Deus habita. Então, acho que não tem muito segredo.
P/1 - E você acha que Deus está na natureza também?
R - Super! Em tudo. Deus está na chuva, Deus está na... na flor, no fruto, no ar, em tudo. Deus está em tudo. Se não tiver Deus nessas coisas, as coisas não seriam tão belas. Eu sempre falo assim, que Deus está no céu mais feio, que está na formação de uma chuva, ele está numa trovoada, no Relâmpago, onde muita gente acredita que não é coisa de Deus. Eu acho que tudo se faz necessário. Porque depois do céu feio, do céu fechado que a gente fala, vem a chuva. E a chuva cai na planta que está precisando para alimentar eu, alimentar você, alimentar as pessoas, alimentar os animais. Apagar o fogo que queima o cerrado. Então eu acho que tudo é necessário.
P/1 - E quais são os animais que você mais gosta, que você tem mais paixão? Você falou dessa mangueira, por exemplo. Vamos falar de outras coisas do mundo natural. Os bichos, as flores, as frutas. O que você gosta mais? Se puder eleger, né?
R - Não, eu assim, se for pra eleger mesmo, de coração, de coração, sem sacanagem, nós vamos ficar aqui dois dias. Aí eu vou falar uma, quando eu falar uma eu vou lembrar da outra, aí eu vou falar a outra e aí depois eu... Porque eu sou muito amante do cerrado, em relação a tudo isso. Eu nasci sendo... Eu nasci aprendendo e vendo da minha mãe criar galinha, criar... Minha mãe nunca teve o hábito de criar, por exemplo, um gato. Eu nunca gostei porque minha mãe nunca teve. A gente nunca... Mas cachorro, ela passou a vida toda. Então são os bichinhos que eu gosto. Criar galinha, tanto que hoje eu crio minhas galinhas. Eu tenho uma cachorrinha que eu adoro ela. E eu tenho cavalo. Aí sim é uma paixão muito grande que eu tenho, que é de cavalo. E aí isso tudo se resume naquilo que a gente conversou. Então, hoje eu crio. Naquela época a gente era, como eu costumo dizer, barriga verde, que não entendia muito das coisas. A gente sabia de criar, que eram uns bichos brutos, que a gente criava e mexia, mas não tinha esse conhecimento que a gente tinha hoje. A questão do trato, também muita coisa foi mudando com o tempo. Então hoje, quando eu tô em casa e não tô fazendo nada, eu pego a minha escova, eu pego a minha tesoura, eu pego a grossinha de lisar os cascos, eu pego um shampoo, que antigamente não existia isso, e aí eu desço pra onde ficava a aia dos meus cavalos. E ali eu passo horas e horas e horas e horas maquiando os bichos, cortozando, limpando a orelha. Então isso pra mim é uma terapia muito grande. Até mesmo mais do que andar. Isso muito pela questão da minha esperteza. Como eu falei pra vocês, que era demais. Do lado oposto, é claro. Então às vezes eu tenho preguiça de selar um cavalo. Mas às vezes faço. Mas o meu prazer mesmo é ir pra lá, mexer os bichinhos, botar o cabelo, fazer eles rodarem. Então isso é bem legal pra mim.
P/1 - E a gente, indo para as perguntas finais já, eu acho, a gente tem entrevistado muitas pessoas que moram na cidade, né? Então tem, às vezes, estão mais afastados da natureza, e tem uma relação muito específica com a vida não humana, como se o resto estivesse abaixo do ser humano. A vida dos animais. Como é que é o seu sentimento com relação a isso? Você acha que o ser humano está acima de tudo ou não? Como é que você pensa isso?
R - Não entendi, repete a pergunta.
P/1 - A gente tem falado com as pessoas, e isso é um tema desse projeto, que as pessoas pensam muito que o ser humano é mais valioso do que outras vidas. Eu, você, é mais valioso que as galinhas, que os cavalos, que as árvores e tal. Como é que você vê isso? O que você acha? Qual é o seu pensamento sobre isso? Você tem alguma posição?
R - Sim. Olha, eu acho que cada um, cada ser, ele vem com uma função. Eu costumo pensar assim, não é que o ser humano é mais do que um cavalo, alguma coisa. Eu acho que cada um dentro do seu quadrado, cada um tem a sua parcela de responsabilidade muito grande ali. Então, a partir do momento que, mais por ser um ser racional, o ser humano, ele é que precisa conduzir tudo isso com muita maestria, com sabedoria. O ser humano não tem que fazer essa comparação. Até porque ele é soberano nesse sentido. Agora, ele tem que ser responsável, exercer o verdadeiro papel de humano, o verdadeiro sentido do humano. Você viu muito o que repercutiu no país. Um cavalo que o cara gostava tanto, e eu sou criador de cavalo, eu sei que ele gostava do cavalo porque o cavalo era bem tratado, bonito, coisa e tal. Mas o simples fato de uma cavalgada ele ir, e tem muito disso do cavalo cansar, isso é muito normal quem cria cavalo sabe, de um cavalo cansar, alguma coisa aconteceu. O que ele tem que fazer? É parar, ver o que aconteceu, resguardar o cavalo, aplicar o remédio que é necessário no cavalo, dar aquilo que o cavalo precisa. Ponto. Não é ir lá e cortar as quatro patas do cavalo. Então, isso é nós, ser humano. Se isso acontecer com você, o cavalo não vai saber. Se você está aqui do lado, ele passar mal, você passar de um trem, o cavalo não vai fazer uma massagem cardíaca em você, ele não vai poder fazer isso. Então, eu acho que o ser humano tem que conduzir, essa é a palavra. Ele tem que conduzir, ele tem que saber certinho. O ser humano tem consciência que ele não vai bater em uma galinha, espancar uma galinha e deixar ela viva. Eu, quando eu quiser comer uma galinha caipira, eu vou matar a galinha caipira, vou limpar ela e vou comer. Ela está ali para isso, ponto. O meu cavalo está ali, eu tenho a consciência de que eu trato ele bem, eu amo ele, eu gosto do cavalo, mas quando eu precisar, eu vou botar uma cela nele, vou montar e vou sair para onde eu vou, ponto. Então eu acho que a minha percepção em relação a isso, eu acho que é nessa linha de seguimento. O cachorro é o nosso melhor amigo, é o que vai te anunciar se está chegando alguma coisa, que vai vigiar, é o que te dá carinho, é o que recebe carinho.
P/1 - E com relação às plantas e frutas e frutos, é alguma coisa assim também?
R - Sim, sim, sim. Eu acho que é cuidar de si mesmo. Se você cuida bem do seu pé de caju ali, você está cuidando de você. Se você parar de cuidar de um pé de jabuticaba ali, você está parando de cuidar de você. Entendeu? Porque você cuida dele ali, ele vai te dar o fruto. Você vai alimentar, você vai ficar forte. Então, acho que o ser humano tem que ver, tem que se espelhar nessas coisas como se fosse a si próprio. Acho não, tenho certeza. Então, pé de manga, você vai podar ele na época certa pra ele produzir mais. Por que ele tem que produzir mais? Tem algum sentido? Você vai ter mais poupa, mais fruta. E isso é bom pra quem? Pra nós, ser humano. Então, é um jogo que ele bate lá e volta. E, no fim de tudo, quem é privilegiado e recebe todo o retorno final somos nós. Não tem como.
P/1 - E desde que você se entende por gente até hoje, mudou o cerrado? Você vê, sente?
R - Demais, demais.
P/1 - No que, por exemplo?
R - É outro. O clima é outro. A mudança climática é nítida. Hoje você não... Antigamente, quando eu falava, quando eu falei lá no começo que a maior alegria minha enquanto criança era subir no cerrado e achar um pé de caju carregadinho, um pé de araçá. Hoje tem. Mas não é igual antigamente, mas... Então, as mudanças favoreceram muito pra isso. A secura, o fogo. Ele vem, ele queima, ele torra tudo que tem que torrar. Eu não me lembro de fogo, assim. Se eu falasse que me lembro de fogo num cerrado queimando tudo, eu tô mentindo. Eu não me lembro. Tinha os fogos, sim. Principalmente na área de Chapada, que era onde faziam as queimadas para a época de seca, para as pessoas que criavam o gadinho de leite. Hoje é que a gente faz as queimadas controladas. Mas não tinha, tanto que antigamente as casas eram todas feitas de palha. A resposta está aí. Existia palha para poder fazer casa e a casa mantinha. O fogo não vinha e não queimava. Hoje em dia, se você fizer uma casa em um lugar mais afastado e vir embora, o risco de você perder tudo que tem lá dentro é grande. Tudo pelas questões das mudanças mesmo e do dedo do ser humano.
P/1 - Você já passou perigo por conta de fogo ou por conta de não conseguir plantar?
R - Não, perigo eu não me lembro de eu ter passado, não. Não. Agora, em plantação, sim. A gente plantou, a chuva não veio, a chuva veio descontrolada, em período errado. Vamos dizer assim, né? E aí você não tem o resultado final. E aí é esperar o próximo ano. Você vai plantar um feijãozinho ali, se ele não deu bom, você não arranca o feijão e planta de novo. Não, não existe isso. O que não prestou. Simplesmente você não vai colher o que você colheu o ano passado. É esperar a outra chuva, a outra água, para poder plantar tudo de novo e ver o que acontece. É isso.
P/1 - E me contou uma coisa. Como é que é você... Vou mudar de assunto um pouquinho. Gostaria de falar disso também. Você é pai, né? Você tem quantos filhos?
R - Eu tenho dois, um casalzinho. Um de 16 e uma de 10.
P/1 - Qual é o nome deles?
R - Uma é João Lucas, né? E a outra é Luana.
P/1 - E como é ser pai pra você? Mudou a sua vida?
R - Ah, totalmente. Eu fui pai muito cedo, né? Eu fui pai com 19 anos. Então foi uma mudança de chave. Eu costumo dizer, eu sempre falo para os meninos hoje, naquela época ali ainda foi anormal para mim. Para todo mundo, para a sociedade, né? Acho que foram os últimos dos anormais. Porque foi um Deus nos acuda quando o povo descobriu que eu ia ser pai. Parecia que o mundo ia acabar, entendeu? Para mim, primeiro, e depois para outras pessoas, né? Que me conheciam, as pessoas que estavam mais próximas. Era o mundo do que eu ia ser pai. Foi o assunto do ano. Era um horror. De ser pai cedo mesmo, assim, né? E isso com 19, né? Porque hoje é muito normal você ver criança, eu falo nem... é criança mesmo, de 14 anos, de 15 anos, até de 13 anos, sendo pai. Entendeu? Então, normatizou o negócio. Mas na minha época, eu com 19, foi um baque. Mas isso foi muito bom, porque eu amadureci muito cedo. Eu tive que sair, lógico, do meu ciclo de amizade, né? Porque, afinal de contas, eu era uma criança que estava vindo ao mundo. Então, a responsabilidade que chega a um certo ponto que você quer extravasar. Todo mundo tem as suas fases, né? Eu, nessa época aí, eu trabalhava muito, né? Mas o que eu ganhava, eu costumava dizer que o que eu ganhava cedo, eu gastava tarde. Não tinha responsabilidade. Então, eu tive que me afastar do que o meu grupo fazia, não das amizades, porque os amigos ganham até hoje do mesmo jeito. E aí também todo mundo foi acabando, saindo desse ciclo de vivência, de mudar de fase, vamos dizer assim. E aí eu falo por mim que eu fui o primeiro. Porque aí já era outra coisa, já era responsabilidade. Então, isso me ajudou bastante também. Eu costumo dizer que no começo foi difícil, mas depois isso aí virou muito a meu favor. Foi o momento em que eu comecei a construir as minhas coisas, que eu comecei a pensar que eu já não tô mais no mundo sozinho, entendeu? Eu já tenho algum ser humano aqui pra tomar de conta, pra ser exemplo.
P/1 - E foi nessa época que você começou, né? Você voltou pra cá e começou...
R - Não, eu ainda fiquei uns 5, 6 anos ainda na cidade, depois disso. Ainda persistir por lá ainda. Acho que tudo é processo, faz parte do processo. Então nessa época a gente trabalhava de diária, de servente de pedreiro. E aí a gente ganhava muito pouco, muito pouco mesmo. Morava de aluguel, o aluguel era muito baratinho em comparação a hoje, mas não existia o fluxo de dinheiro. Então a gente acabou sofrendo assim. Passei algumas necessidades, é lógico, não tem jeito, pra poder ter o que, na época, o meu filho comer, eu e a minha esposa no carro tivemos que passar por algumas necessidades. Isso foi bem normal. E aí eu sempre fui muito responsável, assim, em relação... não sei se... Não sei nem se é responsável pela palavra, mas eu sempre fui muito recatado em ter a consciência de que a partir do momento que eu tinha uma mulher e um filho, eu teria que ter essa responsabilidade. Então eu passava algumas necessidades e eu lembro que a minha mãe no Moinho aqui, ela sempre mandava recado ou ia lá. Existia celular, telefone pra perguntar se eu tava precisando de alguma coisa. Ela via que eu tava precisando de alguma coisa. E só que ela perguntava, e eu: “Não, tá tudo certo, tá tudo bem, mas só eu sabia, né?” Mas eu falei: “Não, agora é outra coisa, a situação mudou agora”. Mas isso é uma coisa muito de mim. E mãe sente, não adianta, eu lembro muito bem, é uma história muito triste, assim, que eu lembro muito bem. As minhas memórias de Natal, minha mãe nunca deixou faltar nada pra nós, assim, ela sempre correu muito atrás, ela, o meu pai. Pra dentro daquilo que a gente tinha, ela nunca deixou faltar nada. Do jeitinho dela, do jeitinho deles. O que a gente tinha era aquilo, então não faltava. E ponto. E aí, depois disso, é exemplo, né? Depois que eu casei, tudo...
R - No Natal, na época de Natal, época de festas comemorativas, finalmente o Natal, era uma época muito esperada aqui no Moinho, assim, das famílias. Porque era o momento que as pessoas de fora, que não moravam no Moinho, que era daqui, vinham pra cá. E era o momento de você encontrar todo mundo, as famílias, os outros, os amigos. E aí as pessoas tiravam essas folgas pra poder deixar pra vir no Natal. Então, ou seja, era uma data muito especial por isso. Encontrava todo mundo. E aí sempre minha mãe preparava, todo mundo criava o seu leitãozinho. Ah, vou engordar pro Natal. Isso aqui é pro Natal. Já separava as melhores galinhas pra poder matar na época do Natal, que era o que a gente gostava. A roupinha, a melhor roupa que você comprava ali durante o ano, você separava pro Natal. Ou falar, tem que comprar uma roupa pro Natal, tem que comprar uma roupa pra passar o Réveillon. E aí sempre foi isso, sempre foi isso. Então foi uma data que ficou guardada na minha memória até hoje. Tanto que a gente sempre reúne. É normal todo mundo reunir, mas nós reunimos a família e tudo. Chega essa data, é muito especial por isso. E aí nessa época eu fui pra lá e até passavam algumas necessidades assim. Eu lembro que chegou perto do Natal e aí minha mãe perguntou se eu tava precisando de alguma coisa. Então eu falei não, não tava precisando de nada não. Duas semanas, três semanas antes do Natal. Falei: “Não, tá tudo certo”. Mas eu comia arroz só. Eu e a minha esposa, ela comia só arroz pra não faltar as coisas pro menino na época. Pra ele não era o que era hoje. A cidade não era, nunca…E aí sempre foi, e foi indo e indo. E aí chegou uma semana antes. O que ela fez? Eu lembro disso como se fosse hoje. Ela foi no mercado, ela fez uma compra pra todo mundo. Até algumas das minhas irmãs que já nem precisavam tanto. Porque acho que… qual o pensamento dela? Ela falou, se eu levar só pra eles, não vai pegar porque tá pensando que eu tô levando só pra eles. Então, aí eu falo pra ela, pergunto se foi isso e ela fala que não é não. Aí rindo, eu falei: “Eu sei que é”. O que ela fez? Ela comprou pra todo mundo e aí levou a minha. Lógico que a minha foi mais recheada, né? Foi com mais coisas, né? E aí, foi um momento, assim, de muita alegria, assim, né? Porque aí eu falei: “Meu Deus, de onde é que eu ia? Eu não ia ter, né?” E aí ela teve, ela ia perguntar, ela sabia que eu não ia falar. E aí ela pegou pra todo mundo: “Não, é o que eu estou dando, uma para cada um dos irmãos. Um para cada um”. E aí eu peguei com a maior alegria que foi o que salvou. Então, são coisas assim que a gente não esquece nunca. Passa o tempo que passar, a gente não vai esquecer nunca. E aí eu sempre falo para os meus filhos: “valoriza mesmo”. A questão de valorizar o que tenho. Aí eu uso de exemplo. Meu avô, ele teve uma vida difícil, mas não como o meu tataravô. A minha mãe, ela teve uma vida difícil, mas não como o meu avô. Eu tive uma vida no começo difícil, mas nem beira o que minha mãe e meu pai passou. Aí eu falo pra eles: “Vocês podem ter uma vida até difícil, mas nunca vai ser igual a minha, porque quando eu casei com a sua mãe, nós tínhamos duas panelas. Simplesmente, duas panelas. A gente juntou duas panelas. E aí a gente foi trabalhando e conquistando as coisas. Com muita ajuda do meu pai, da minha mãe. E tudo que a gente conquistou até hoje foi com muito trabalho, com muito suor”. E eles veem isso. E aí eu sempre falo. Às vezes começam a reclamar de uma coisinha, eu já sento e já falo: “Ah lá, peraí. Não é assim não”. Entendeu? E aí estou sempre passando, eles estão sempre comigo. O que eu falo muito é, vai chegar um certo ponto que aí é você que vai ter que tomar suas próprias decisões. Até certo ponto é eu que vou te falando:
R - “Muita coisa eu vou podar, porque ainda está sob os meus domínios. Eu vou cortar, eu vou liberar. Vocês vão ter que me pedir. Vai chegar certo ponto que vocês vão precisar fazer isso e mais nada. Mas aí a lapada do mundo é pior para quem quer seguir um outro caminho. E aí eu sempre deixo isso muito claro. Aproveito enquanto eu estou podendo cortar, enquanto vocês têm que permitir. Porque a partir do momento que vocês começarem a tomar suas próprias decisões e não tiver que pedir nada e perguntar nada para ninguém, é muito bom. Mas isso tem sua consequência também”. Então eu sempre passo essas coisinhas assim. Graças a Deus são dois meninos muito bons, um já com 16 anos, inclusive hoje está indo para o seu... amanhã começa o seu primeiro emprego no Menor Aprendiz, pela primeira vez. Sempre trabalhou comigo, mas amanhã ele começa no primeiro emprego dele, no Menor Aprendiz, conciliado com a escola. E aí a gente segue.
P/1 - Fala um pouquinho da sua mãe e do seu pai, só um pouquinho que a gente não falou muito deles, né? Como é que eles são? Qual é a importância pra você?
R - Sim, minha mãe e meu pai são a base, né? Minha mãe e meu pai hoje, meu pai já vem de idade, eles são a referência. Você pode crescer, você pode ter barba na cara, mas eles não vão deixar de ser a minha referência nunca. Né? Nunca, nunca, nunca. Então, meu pai é bem calmo. Minha mãe é mais agitada. Eu já levei muita peia da minha mãe. Muita peia, porque nós aprontamos mesmo. E meu pai também nunca me bateu, porque uma maneira de corrigir naquela época era no cipó mesmo. Era no cipó de marmelo e goiabeira. E... Minha mãe sempre, sempre, sempre, sempre. Os dois, os dois. Os pais sentem, né? Quando o filho precisa, mesmo já depois de criado. Então, hoje, sempre foi, não tem muito o que explicar, não. A base são eles e os melhores conselhos que a gente pode receber por resto, a vida toda nossa, o resto da nossa vida, sempre vai ser deles dois. Não tem amigo, não tem profissional, não tem quem é estudado na psicologia humana, não sei o quê. Não tem. Não tem o chat lá, o trem lá, que descobre lá, sei lá como que é. Não tem. É pai e mãe. Sempre vai ser. Sempre. Tem que, na verdade, tem que ser. Hoje com as mudanças do mundo, o mundo tá esquisito, muita coisa muda. Mas a minha geração são os pais. Sempre vai ter os melhores conselhos, as melhores ideias, sempre vai ser eles. Embora pareça ser uma coisa de louco, e aí você vai contra. Lá no final, quando tudo dá errado, você nem imagina que é aquilo. Aí se você parar um pouquinho, você volta lá atrás e fala, realmente, se eu tivesse feito daquele jeito lá, talvez não teria dado esse resultado.
P/1 - E diz uma coisa, indo para quase a última pergunta, tem alguma coisa que você gostaria de falar que eu não perguntei? Algum assunto, alguma história que você lembrou durante essa conversa? Tem alguma coisa que você gostaria de deixar registrado antes da gente terminar? Ou tudo bem?
R - Não, eu sempre falo assim, em relação a tudo isso, que a gente bebe hoje aqui, e como uma pessoa que veio, chegou ao mundo pelas mãos de uma parteira, que é a mãe Fulô, conhecida como Dona Fulô, e que viveu a vida, que vivia a minha vida toda aqui, muito feliz, eu não tenho o que reclamar de nada da minha vida, da minha infância, da minha adolescência, dos meus perrengues, que até os perrengues fazem parte do crescimento humano, do crescimento de pessoas mesmo. Então eu não tenho o que reclamar. Tem hora que eu paro e penso o quanto a gente era feliz naquela época. A gente tinha outras dificuldades, outros problemas, mas jamais essa maldade do ser humano que se assola cada vez mais no mundo, com guerras, simplesmente por poder... O que eu falo, deixo registrado sempre para as pessoas quando a gente encontra. Eu gosto muito de conversar. Hoje eu tenho um prazer muito grande de conversar com pessoas mais velhas. Eu tenho essa... Enquanto tem muita gente que corre de conversar com as pessoas mais velhas, eu corro para pra cima mesmo, de ouvir, de pegar as experiências de vida. Eu sento fácil com uma pessoa de 70 anos, de 60 anos, de 80 anos, em duas horas, só escutando ela falar. Isso está cada vez mais rápido. Então, é uma porta de entrada muito para a depressão dessas pessoas mais velhas, porque ninguém quer escutar elas mais. Com o mundo moderno, todo mundo acha que não precisa mais. E sem lembrar que nós estamos caminhando para lá. E na toada que vai, a tendência é cada vez mais estreitar. Então, eu acho que é isso. Eu sou muito feliz pela vida que eu tenho e eu acredito que vou ser muito feliz ainda pela que vem, pela frente. E é um recado mesmo para as pessoas mesmo. Se amem mais, se curtam mais a natureza, preserve mais. Porque, na verdade, como eu disse, não é nem se preservar, né? É se relacionar mais com tudo, com a natureza, com o ambiente, porque é bom. E o tempo passa rápido. Então, o tempo, eu costumo dizer que ele é mais valoroso do que dinheiro. Então, é isso. Eu sou uma pessoa considerada muito feliz. Tudo faz parte para contribuir para a felicidade, até os perrengues.
P/1 - E como foi contar um pouquinho da sua história nessas duas horas com a gente?
R - É interessante, rapaz. Interessante porque vai movimentando e aí tem muita coisa que você vai... É porque eu costumo dizer, eu tenho uma amiga minha aí que ela falou: “Vamos fazer um livro, vamos contar um livro”. Eu falei: “Moça, como?” Ela falou: “Não, vamos contando e você vai lembrando, você vai vivenciando”. Então, quando houve essa proposta, eu falei: “Caramba, qual é a dinâmica?” Por isso que eu te perguntei. De entrar. Porque aí, assim, é um tipo de negócio, se saísse mais 300 perguntas, eu teria resposta diferente aqui agora. Porque eu estou mergulhado dentro do passado, da história, é muita coisa, isso aqui não é nem a... Então pra gente, aí você falando da diferença de quem tem 36 anos no caso, pra uma pessoa que tem 80 anos, concordo, mas 36 anos muito intenso também tem muita história, né? Acaba vivendo muita, a gente vivencia muita coisa, né? E eu sempre parti de movimentos mesmo, sabe? Eu já fui... de Corpo Diretivo de _____ Estudantil, na minha época. Então, eu sempre gostei de estar no meio da atividade, das discussões, dos debates. Então, isso é muito interessante. Isso a gente vai vivendo e vivenciando essas trocas com outras pessoas, experiências. Então, isso é bem bacana. E eu poder compartilhar isso aqui, Nem que seja por uma hora e meia. Foi bem interessante. Que bom, que bom.
P/1 - Eu que agradeço você.
R - A gente agradece, na verdade.
P/1 - A ideia era ficar mais tempo, mas a vida, né? A vida corre e você também tem que fazer muita coisa, né?
R - Não, mas é que eu acho que é isso. Se você estiver, não por mim.
P/1 - Eu acho que podemos cortar então, porque...
Recolher