Projeto Vidas, Vozes e Saberes em mundo em chamas
Entrevista de Eduardo Góes Neves
Entrevistado por Luiza Gallo
São Paulo, 18 de julho de 2025
Entrevista número: PCSH_HV1484
Revisado por Nataniel Torres
P - Obrigada por nos receber aqui na sua sala. Queria que você começasse se apresentando, dizendo seu nome completo, a data e o local de nascimento.
R - Meu nome completo, bom dia, Eduardo Góes Neves. Hoje é dia 18 de julho de 2025, eu nasci em São Paulo no dia 24 de março de 1966, estou com 59 anos.
P - E te contaram como foi o dia do seu nascimento?
R - Eu tenho uma lembrança do meu dia... Meu avô, que já morreu, uma figura que foi muito importante na minha vida, me dizia que quando eu nasci, eu nasci da Beneficência Portuguesa, um hospital aqui em São Paulo, que fica perto de uma avenida importante, que é a Avenida 23 de Maio. E o meu avô me dizia que quando eu nasci, a 23 de Maio estava em obras. Então, ele olhava da janela do quarto do hospital, da maternidade, e vi as obras a 23 de maio. É isso que eu me lembro do meu nascimento. Eu nasci de cesariana. A minha mãe teve quatro filhos em três anos. Em quatro anos, né? Eu tenho um irmão aqui de 67, um irmão aqui de 68 e outro de 69. Foram quatro cesarianas. Eu fui o primeiro dessa leva.
P - E qual é a história do seu nome?
R - Meu nome? Meu pai se chama Eduardo. Meu pai se chama Eduardo, porque tinha uma tia que se chamava Eduarda, que eu nunca conheci, uma tia-avó que eu tive. Eu tenho o nome do meu pai e meu pai tem esse nome por causa de uma tia dele.
P - E você sabe um pouco dessa tia?
R - Olha, eu sei que a família do meu pai é de Portugal. Meus avós eram portugueses. Eles se casaram em Portugal. Inclusive, meu pai viveu em Portugal quando era criança. Depois voltou para o Brasil. Eu sei que essa tia era portuguesa. Eu nunca a conheci. Eu conheço a minha família lá de Portugal. Eu tenho um monte de primo lá. A gente tem uma família. A gente tem muito contato...
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Entrevista de Eduardo Góes Neves
Entrevistado por Luiza Gallo
São Paulo, 18 de julho de 2025
Entrevista número: PCSH_HV1484
Revisado por Nataniel Torres
P - Obrigada por nos receber aqui na sua sala. Queria que você começasse se apresentando, dizendo seu nome completo, a data e o local de nascimento.
R - Meu nome completo, bom dia, Eduardo Góes Neves. Hoje é dia 18 de julho de 2025, eu nasci em São Paulo no dia 24 de março de 1966, estou com 59 anos.
P - E te contaram como foi o dia do seu nascimento?
R - Eu tenho uma lembrança do meu dia... Meu avô, que já morreu, uma figura que foi muito importante na minha vida, me dizia que quando eu nasci, eu nasci da Beneficência Portuguesa, um hospital aqui em São Paulo, que fica perto de uma avenida importante, que é a Avenida 23 de Maio. E o meu avô me dizia que quando eu nasci, a 23 de Maio estava em obras. Então, ele olhava da janela do quarto do hospital, da maternidade, e vi as obras a 23 de maio. É isso que eu me lembro do meu nascimento. Eu nasci de cesariana. A minha mãe teve quatro filhos em três anos. Em quatro anos, né? Eu tenho um irmão aqui de 67, um irmão aqui de 68 e outro de 69. Foram quatro cesarianas. Eu fui o primeiro dessa leva.
P - E qual é a história do seu nome?
R - Meu nome? Meu pai se chama Eduardo. Meu pai se chama Eduardo, porque tinha uma tia que se chamava Eduarda, que eu nunca conheci, uma tia-avó que eu tive. Eu tenho o nome do meu pai e meu pai tem esse nome por causa de uma tia dele.
P - E você sabe um pouco dessa tia?
R - Olha, eu sei que a família do meu pai é de Portugal. Meus avós eram portugueses. Eles se casaram em Portugal. Inclusive, meu pai viveu em Portugal quando era criança. Depois voltou para o Brasil. Eu sei que essa tia era portuguesa. Eu nunca a conheci. Eu conheço a minha família lá de Portugal. Eu tenho um monte de primo lá. A gente tem uma família. A gente tem muito contato entre as nossas famílias. Eles vêm para cá, a gente vai para lá. Mas essa tia eu não conheci. Quando eu fui para lá a primeira vez, ela já tinha morrido. Ela era irmã da minha avó. Minha avó tinha um monte de irmãs, era um matriarcado lá e ela era uma das irmãs da minha avó.
P - Como era sua avó?
R - Essa minha avó, a Isaura? Ela morreu quando eu tinha 11 anos, ela morreu em 77. Mas eu me lembro dela, ela era uma figura muito carinhosa, muito doce. Depois que o meu avô, que era o marido dela, o nome dele era Joaquim, morreu em 74, ela vestiu luto até morrer. Então eu me lembro da minha avó sempre vestida de preto. Ela era, de novo, uma vovozinha muito doce, muito carinhosa, mas eu sei que pra ela, essa coisa de ter vindo pro Brasil foi muito difícil. E ela não queria, nunca quis, nunca aceitou direito a vida. Ela teve que separar da família dela, das irmãs. Ela tinha uma vida estruturada lá em Portugal, e meu avô resolveu vir pra cá, e essa coisa de vir pra cá nunca foi uma coisa fácil. Tanto que eles voltaram pra Portugal quando meu pai era pequeno, moraram seis meses, mas a vida em Portugal naquela época, o Brasil era um país que tinha muito, ainda acho que ainda é, mas naquela época muito mais oportunidade, resolveram voltar pra cá. Então eu sei que ela viveu, o meu pai me conta, a minha mãe, que não era filha dela, que era nora dela, conta pra nós, que ela viveu a vida inteira com essa dor, eu acho, um pouco de saudades, apesar de ter feito a vida dela aqui, ter tido filhos aqui, essa dor da separação, do lugar onde ela tinha nascido e da família dela lá em Portugal.
P - E seu avô, como que ele era?
R - Esse meu avô, Joaquim, morreu quando eu tinha oito anos. Então, assim, me lembro dele também. Ah, me lembro de uma... Ele era uma figura muito... Um homem muito doce, assim, muito carinhoso. Eu me lembro dele trazendo bala pra gente. Vindo visitar, dando beijos. Naquela época, engraçado, meu avô morreu, ele devia ter uns 68 anos. Pra mim, ele era um velhinho. Hoje em dia, 68 anos, eu tenho colegas aqui que têm essa idade e estão super ativos. Então, isso mostra como as coisas mudaram. Ele morreu em 74, ele morreu num acidente de carro em Santos. Ele estava num táxi, eu acho. Naquela época, os táxis, eu me lembro disso ainda, os táxis eram fusca, antigamente. Os caras tiravam o banco da frente no fusca e tinha uma corda que o motorista usava para abrir a porta. Acho que vocês não pegaram essa fase, né? Ele estava num fusca, teve um acidente, o carro bateu e ele foi para o hospital e acabou morrendo. Mas era uma figura muito carinhosa, muito doce. Me lembro dele com muito carinho.
P - Essa é sua família paterna?
R - É minha família paterna.
P - E a família materna?
R - A minha avó materna era filha e neta de italianos, era uma família bem paulistana e italiana do Bom Retiro. Minha avó se chamava Carmela, mas todo mundo chamava ela de Carmen. Essa minha avó morreu mãe da minha mãe quando eu tinha quatro anos, então eu tenho poucas lembranças dela. Ela era uma mulher bonita e morreu de câncer, teve um câncer. E ela era casada com o avô, meu avô materno, que foi dos meus quatro avós a pessoa com quem eu mais convivi. Esse meu avô morreu com 96 anos, em 2014. E eu convivi bastante com ele, porque era o neto mais velho. E esse meu avô era uma figura, ele era mineiro. Família dele veio pra São Paulo, teve aquela crise do café, 29. Perderam a grana que tinham, vieram pra São Paulo. Família veio vindo aos poucos pra São Paulo, ele veio também. Então, ele era um cara muito paulistano, ele andava pela cidade, andava a pé, era um cara que se sentia muito à vontade na cidade, sempre teve muita autonomia. Mas, ao mesmo tempo, ele era um cara muito mineiro também. Ele tinha uns hábitos que ele trouxe de Minas. E eu me lembro, por exemplo, eu cresci fora de São Paulo, numa chácara, em Cotia. Mas eu sempre estudei aqui na cidade. E eu lembro quando eu tava no terceiro colegial, em 82, eu tinha 16 anos. E eu tinha aula o dia inteiro. E aí era mais fácil, era longe, pegar ônibus, dar pra curtir. Eu vim morar com esse meu avô. E ele morava sozinho, ele era viúvo. Minha tia e meu tio, que eram mais novos, já tinham saído. E eu lembro que a minha mãe falou pra mim: “Olha”, isso foi em 82, meu avô morreu em 2014, ela falou: “Seu avô tá muito doente”. Ele gostava de tomar cerveja, comer torresmo, essas coisas, “seu avô tá muito doente, fica de olho nele. Ele não pode mais beber. Porque senão ele vai ter um negócio”. E aí eu falei: “Não. Tá bom, mãe”. Eu tinha 16 anos. Eu lembro que a primeira noite que eu estava lá na casa dele, ele abriu a geladeira, pegou uma cerveja, eu era menor de idade, ele botou dois copos na mesa e falou: “Ó, é o seguinte, eu não conto pra sua mãe e você não conta pra sua mãe”. E toda noite a gente tomava uma cerveja. Ele tinha uma namorada, que era uma figura, a tia Kika, ele ia jantar na casa dela, e voltava à noite, a gente sempre tomava uma cerveja antes de dormir, ficava conversando. Ele era um cara muito bacana, aprendi muito com ele.
P - Que histórias, que aprendizados você consegue dizer?
R - Ah, sem dúvida. Esse meu avô, por exemplo, com quem eu convivi mais, ele tinha uma sabedoria. Ele era um cara muito inteligente e, como todo bom mineiro, ele evitava entrar em bola dividida. Ele tentava resolver as coisas conversando, dando um jeito. Isso pode ser ruim por um lado. Aqui no Brasil, no nosso país, às vezes tem essa tradição de querer acomodar tudo e às vezes a gente tem que enfrentar os problemas. Então tem um lado que é ruim. Mas tem outro lado que eu acho que é muito interessante, que é tentar buscar uma solução através da conversa, através do diálogo, da escuta. Isso eu aprendi muito com ele, ele era um cara bom de papo. Meu pai também é um cara bom de papo, de outro jeito, mas eu aprendi muito com ele, com meu pai também, esse valor de você ouvir, conversar e tentar entender e tentar negociar também. Acho que é uma coisa importante, acho que faz falta hoje no mundo isso. A gente vive num mundo muito dividido, então essa é uma lição, são lições que eu aprendi com eles, com meus pais e com meu avô também, esse meu avô com quem eu convivi bastante.
P - E costumes familiares, seja de Portugal, de Minas, vocês têm algum hábito dessa família ou da Itália?
R - Assim, a minha mãe tem essa coisa muito italiana, de fazer a comida italiana. Essa família do meu avô não era uma família muito unida, assim, uma família mineira. E o fato do meu avô ter se casado com uma filha de italiano, nos anos 40, é uma coisa que a família dele não aceitava, porque era uma família de Minas, eles tinham essa mania de querer ser uma família tradicional, apesar de não terem grana, mas tinha aquela coisa mais, tinha uma empáfia ali. Então eles não aceitaram, pelo que minha mãe fala, nunca aceitaram muito o fato de ela ter se casado com uma filha de imigrantes. Porque os italianos naquela época tinham aquela fama de ser “carcamano”, de ser grosseiros. O meu bisavô italiano era sapateiro. Então seria como se ele estivesse casando com uma pessoa de uma classe social inferior. E conheci a minha bisavó, inclusive, a mãe do meu avô. Ela morreu em 83. Ela era uma figura um pouco mais distante. Eu acho que ouvindo, fazendo uma reconstituição, certamente era uma família muito racista. Uma família que tinha valores que eu acho que seriam super... Essa família mineira, né? Apesar de ter essa coisa de conversa e tudo, mas tinham valores que eu chamaria de super reacionários, com os quais eu não concordo. Então, a minha mãe traz um pouco, meio pela minha mãe, algumas expressões que a gente usa, que são muito paulistanas, de uma época de São Paulo, onde essa influência italiana era mais forte. Hoje em dia é diferente. Acho que a coisa que eu acho mais importante da minha família, da minha família nuclear somos em seis, é que é uma família que é muito unida, que a gente se dá muito bem, a gente atravessou essas brigas que ocorreram no Brasil nos últimos anos políticas, é todo mundo do mesmo lado. O meu pai é um cara mais conservador, por exemplo, é um cara que sempre votou, eu diria que na direita, mas é um cara que ficou horrorizado com o Bolsonaro, posso falar sobre isso? E a partir de uma régua moral, que é muito interessante. Eu tenho duas irmãs, e o meu pai diz: “Eu tenho duas filhas, eu não posso concordar com pessoas que dizem essas coisas, que agem dessa maneira”. Então existe uma liga que é muito forte, que é muito bacana. Toda a família tem as suas confusões, mas, em geral, é um saldo que é muito bacana. O lugar, pra mim, dessa família, eu vejo pros meus filhos também, pra minha companheira, é um lugar de acolhimento, de aceitar as diferenças e a gente se dá muito bem. Então, a coisa que eu acho mais bacana. Eu me lembro assim, por exemplo, a gente sempre jantava, quando a gente estava crescendo, todo mundo junto. Essa coisa de jantar junto até hoje eu acho importante. É uma hora de sentar todo mundo junto à mesa e conversar e falar como foi o dia, e às vezes até brigar também. Faz parte. Acho que esse é o valor mais importante que eu trago. Porque a família é uma instituição que, quando dá errado, é uma catástrofe e pode ser uma fonte de sofrimento para muita gente. Mas quando dá certo, é um lugar de acolhimento, é um espaço bacana de segurança. E no meu caso, eu acho que isso aconteceu. E eu agradeço muito aos meus pais por terem acreditado nisso e lutando para construir esse ambiente entre nós, que é muito bacana.
P - E hoje você reproduz com os seus filhos?
R - Sim, reproduzo. Eu tenho três filhos, né? Eu tô no meu segundo casamento. Eu fui casado, a primeira vez eu morei na Alemanha uma época, minha primeira mulher é alemã, e nós tivemos dois filhos que hoje em dia vivem na Alemanha. O mais velho tem 29, o nome dele é Lucca, e eu tenho o Carl, que tem 27 anos. O Karl mora em Hamburgo e o Lucca mora em Leipzig, mas eles já moraram aqui no Brasil comigo e eu tenho outro filho chamado Bernardo. Me casei de novo com a Dayna, que é a minha companheira, e a gente tem um filho, o Bernardo, que está com 18 anos. E sim, essa coisa, não sei se eu estou me adiantando um pouco, mas quando eu me separei da minha primeira mulher, resolvi voltar para o Brasil. E esses meus filhos eram pequenos. Na verdade, a Dorothy, que era a mãe deles, ela estava grávida no carro quando eu voltei. Depois eu voltei para o nascimento dele. E essa separação foi uma coisa muito difícil, porque eu fui educado num ambiente, digamos assim, que valorizava muito essa coisa de você ter uma família funcionando de alguma maneira. E eu percebi, quando eu estava com 29 para 30 anos, que o que estava acontecendo ali era uma família que estava totalmente esfacelada, digamos assim. Então, essa separação, essa volta ao Brasil foi muito difícil. Mas, assim, eu também aprendi que era uma coisa que tinha que lutar, pra tentar construir, a partir daquela situação difícil, alguma coisa que, algo que fosse funcional, que criasse um vínculo entre esses meninos, que hoje em dia são homens e eu. E foi muito bacana, assim. E acho que, assim, várias coisas. Primeiro, eu ligava todo domingo. Naquela época era difícil, era super caro, então ligava todo domingo, a gente conversava, eles não falavam português, eu conversava em alemão com eles. A mãe deles, com quem eu tinha uma relação muito difícil, ela sempre foi muito legal nesse aspecto, ela nunca me colocou como uma... A gente conseguiu respeitar isso. Ela criou esses filhos sozinha. A gente brigava muito, mas isso nunca respingou. Agradeço muito a ela por ter tido essa grandeza, essa sabedoria. Toda vez que eu podia visitá-los, eu visitava. Uma vez por ano eu ia pra lá. Depois eles iam pra cá com ela, passar férias. Depois passaram a vir sozinhos. E uma vez a gente fez uma viagem para Rondônia, em 2011, que deu tudo errado. O carro quebrou, a gente ficava numa biboca na beira da estrada. E eu lembro que no final da viagem, eles disseram para mim: “Pai, essa viagem…”, o mais velho, o Lucca que era o porta-voz: “Essa viagem foi a viagem mais legal que a gente fez da nossa vida. A gente quer morar no Brasil”. Porque naquela época o Brasil estava bombando também. Foi na época do primeiro governo Dilma, assim. E aí vieram morar aqui. E moraram. O Luca morou dois anos e meio, aprenderam português. E o Karl ficou até o Bolsonaro ser eleito. Ele voltou em 2018 e falou: “Acho que eu vou vazar”. E voltou para a Alemanha. Mas eles têm, né, essa presença, a vida deles aqui mudou muito a nossa... Porque eles aprenderam português, viveram em São Paulo, conheceram a cidade, fizeram um monte de amigos, tem uma rede de amizades até hoje aqui na cidade, então sempre voltam. Não sei se talvez até voltem a viver aqui. Essa é uma coisa que tá aberta ainda, mas eles trouxeram essa experiência deles, essa estadia deles aqui, foi legal porque abriu pra eles essa coisa, eles já eram cidadãos brasileiros, mas de fato se tornaram brasileiros, aí se reconhecem como brasileiros. Isso foi uma coisa muito bacana.
P - E foi a sua primeira experiência morando com eles?
R - Sim. Morando direto, sim. E assim, como eu falei, eles não falavam português. Eles me pediram, a mãe deles, era um pouco de medo para estudar. Foi uma época difícil, porque eu fiquei quebrado, não tinha grana. Eles, por exemplo, pediram para estudar, como estavam estudando lá na Alemanha, num colégio alemão aqui de São Paulo, que é super caro. Eu não tinha essa grana na época. Eu me lembro que eu fiquei super endividado. Mas assim, e que era um colégio muito conservador. Eles vinham de uma experiência, porque apesar das divergências todas, das brigas que eu tinha com a minha ex-mulher, a gente olha pro mundo mais ou menos da mesma maneira, digamos assim, se a gente tiver, sei lá, num espectro político, a gente seria mais progressista, digamos assim. E aqui, de repente, eles vão estudar numa escola que era uma escola que... Estudavam numa escola pública, lá iam a pé pra escola. E eu falei pra eles, cara, aqui não tem grana, vocês vão ter que ir de ônibus, pegar busão, entender como funciona. No começo a gente andava juntos de casa até a escola, para eles entenderem como é que era. E eu lembro que eu fui pedir o passe, para fazer o passe escolar lá na... E a secretária falou: “Olha, ninguém nunca pediu isso aqui, eu não sei como é que faz”. Porque os caras iam de chofer. E era uma escola muito conservadora. Era uma escola que atendia a filhos de executivos, alemães principalmente, que viviam aqui, que não tinham nenhum vínculo com o Brasil, que iam embora. E também filhos ou netos de alemães, que têm uma visão de mundo muito conservadora, geralmente, para usar de um eufemismo. Então foi um choque para eles. Foi muito difícil. E a entrada que eles tiveram para São Paulo foi meio essa e os primos. Então, esse começo não foi fácil. Aí mudaram. O Lucca terminou a escola nesse lugar, mas o Karl mudou de escola, foi para uma outra escola, conheceu. Então, isso mudou muito a relação deles com a cidade. Foi um desafio para todo mundo. Tinha que usar o uniforme, por exemplo. E eles não usavam. Era quase uma humilhação. De novo, foi um desafio, mas a gente atravessou juntos. É normal, um monte de conflito. Claro que não foi um caminho fácil, mas o resultado disso foi uma coisa bacana. Por causa do meu trabalho, eles foram várias vezes para o norte comigo, para a Rondônia, para o Amazonas, para o Maranhão. Então, eles conheceram também alguns lugares do Brasil que muita gente, muita brasileira e muito brasileiro não conhece também. Então, eles têm uma visão do Brasil interessante assim, que é uma visão meio de lugares que normalmente não andam juntos aqui no Brasil. Isso é uma coisa que eu acho que ajuda também um pouco, né?
P - Que legal! Vou voltar, mas a gente chega aí.
R - Tá bom, não, tranquilo.
P - Queria só que você descrevesse um pouco seus pais, se você sabe um pouco da história, como eles se conheceram?
R - Sim, claro. Meus pais se conheceram no bairro que eles moravam, na Vila Clementino, aqui em São Paulo. A minha mãe é uma mulher linda, tem olhos verdes, ela é super bonita. Meu pai também é um cara bonitão, se conheceram, começaram a namorar super novos. Minha mãe, acho que tinha 15, meu pai tinha 17, e meu pai começou a trabalhar cedo, se formou, terminou o colégio, não quis fazer faculdade, começou a ganhar uma grana, trabalhava nessa época, a indústria automobilística estava entrando no Brasil. Ele trabalhava como representante de empresas que faziam auto peças, essas coisas, e aí começou a ganhar uma grana, e resolveu se casar. Se casaram super novos, a minha mãe, eles se casaram em 65, a minha mãe faz aniversário em novembro, eles se casaram em maio. Minha mãe tinha 20 anos e meu pai tinha 20, acabado de fazer 23. Mas assim, meu pai comprou um apartamento pequeno, já com essa idade, trabalhava, minha mãe engravidou, eles se casaram em 65, eu nasci em 66, em 69 eles já tinham 4 filhos. Uma loucura, né? Meu pai tinha 27 anos com quatro filhos, mas naquela época do milagre econômico. Foi trocando de casa, aí compraram uma casa legal no Planalto Paulista e resolveram morar em Cotia, que tinha uma chácara que a gente passava no final de semana, que era no meio do mato, em 76. Quando eu tinha 10 anos, a gente foi morar lá em Cotia. Então, assim, eu cresci muito com essa... Minha mãe parou de... Minha mãe nunca trabalhava como professora, mas depois teve um monte de filho, parou de trabalhar pra criar. Mas eu cresci muito com essa ética do trabalho. Meu pai era um cara que trabalhava muito, ganhava uma grana, mas trabalhava muito. Essa coisa de trabalhar foi um valor que ele botou, lavagem cerebral na infância. “Tem que trabalhar, o cara tem que trabalhar, não pode ficar parado”. E que é uma coisa que eu acho legal, é um valor que eu acho importante, que você não vai ganhar nada se você não ralar, você tem que ir atrás. Tanto que essa coisa de ser arqueólogo, quando eu falei, meu pai falou: “Você está louco, você quer ser arqueólogo” E eu pensei: “Eu tenho que trabalhar muito, eu tenho que correr atrás disso e ralar muito, eu vou ter que me virar sozinho”. Porque eu não vou, não tem ninguém, eu não venho de uma família que tem uma tradição na academia. É uma família de intelectuais, é uma família de classe média, emergente do Brasil, da época da ditadura, que valorizava muito essa questão, de novo, da ética do trabalho, que é uma coisa que eu agradeço muito ao meu pai, de aprender que você tem que se esforçar muito para conseguir as coisas, que nada vai cair do céu. Tive uma educação privilegiada, estudei em escola particular, tudo isso foi uma coisa que eu agradeço, mas nunca tive essa... Não tinha nada que eu poderia herdar, no sentido de... Eu tinha que ir atrás das minhas coisas. Se eu quisesse seguir esse caminho que eu queria seguir, eu teria que construir isso por conta própria. Então, é uma casa muito com essa coisa de trabalhar, de ir atrás, que eu percebo que é importante para o meu irmão, para as minhas irmãs também.
P - Como é a relação com seus irmãos?
R - É muito legal. A gente se dá muito bem. É muito legal mesmo. Eu tenho um irmão que é músico, que é um cara que trabalha, rala também muito. Eu tenho duas irmãs que uma delas trabalha junto com o marido dela, eles têm um escritório de arquitetura. E eu tenho uma outra irmã que não trabalha, que é casada, que tem dois filhos. Todo mundo tem filho na família. E que é avó já, tem um netinho. A gente se dá muito bem. A gente sempre se deu bem, na verdade. Claro, é irmão, a gente brigava. Mas nunca teve um racha, uma maneira... De fato, eu acho que isso é uma história de sucesso. Eu tenho dois cunhados, com quem me dou bem também, e uma cunhada também, com quem me dou bem. A gente se dá bem, é uma família... Quando a gente tá junto, isso é legal. Meus pais agora, por exemplo, esse ano fizeram 60 anos de casados. E a gente foi... Eu não sei se eles passaram a lua de mel em Poços de Caldas, mas a gente foi pra Poços de Caldas, todo mundo. Menos os meus filhos que estão na Alemanha. A gente passou um final de semana lá, num grande hotel. E foi super legal. Porque a gente, cada um de manhã, ia fazer um negócio, ia dar um rolê. Tomar águas termais, massagens, almoçava juntos depois. E jantava. E ficava, e assim, muito bonito. A gente se sente bem estando junto mesmo. Porque também é uma coisa que... Tem família que se vê o tempo inteiro, não é que a gente tá todo final de semana junto. Isso é bom também, que dá tempo de respirar e voltar. Mas quando a gente tá junto, isso é bacana, é uma coisa legal, todo mundo fica feliz. A gente se alimenta, eu acho, dessa convivência.
P - E o que você gostava de fazer na infância? De brincar?
R - Olha, eu gostava de brincar, gostava de jogar bola. Nunca fui muito bom de bola. Meu irmão joga muito melhor, sempre jogou bem, sempre é bem melhor do que eu. Mas gostava de jogar bola, brincar. E eu cresci nessa chácara, quando eu tinha 10 anos, que era um lugar que quando eu era criança ficava no meio do mato. Era mato mesmo, assim. E hoje em dia é um lugar que está sendo engolido pela cidade. Então eu vi muito essa transformação acontecer, de ser um lugar… O que eu acho que eu vejo, hoje em dia, eu tenho muita clareza sobre isso. Eu vejo meus amigos de infância que cresceram aqui na cidade. A cidade também está se transformando de uma maneira muito radical, mas já existia uma cidade onde eles moravam. Hoje em dia tem prédio no lugar de casa. Eu vejo onde eu morava, era mato. Eu vejo hoje em dia, é difícil lugar que era mato, que eu ia brincar assim. Fábrica em lugar que era mato, o campinho, o campinho de rua, de terra, jogava bola na rua, no campo de terra. E o lugar que hoje também é que tem casa. Então, assim, eu acho que eu tenho um parâmetro para entender essa transformação radical da natureza. Tudo bem que eu também fui parte desse processo. Quando os pais fizeram a casa deles ali, era mato também. De certo modo, a gente começou essa onda que continua hoje em dia. Mas eu vi isso acontecer nos últimos 50 anos. Não é todo mundo que vem daqui de São Paulo, da Zona Oeste, da Zona Sul de São Paulo, que tem essa experiência de entender essas mudanças. A cidade é uma cidade muito dinâmica, ela vai engolindo as outras cidades em torno, vai crescendo. Nesse lugar, bom, tinha muito campo de terra, jogava bola. Também é uma coisa interessante que eu me lembro de uma experiência que, hoje em dia, eu fiquei muito tempo e me esqueci disso. Mas eu me lembro que a gente jogava, tinha um campinho de terra que a gente jogava bola, com uma molecada que morava ali, no bairro, com famílias que eram muito mais pobres, assim. E eu lembro que uma vez a gente tava jogando bola e tinha um menino, o Adilson, um pouco mais novo que eu, que a mãe dele veio chamá-lo, falou... “Adilson, vem pra casa. Tá na hora, tá escurecendo já. Vem tomar banho”. E eu não me lembro do nome dela. Eu falei: “Mas deixa ele jogar mais. Deixa ele jogar mais, estamos aqui”. Ela falou assim: “Não, porque você vai tomar banho quente. E lá em casa não tem água quente pra ele tomar banho, ele vai tomar banho frio”. E assim, foi uma coisa... Crescer nesse ambiente é uma coisa que logo cedo me expôs, eu acho, às diferenças sociais profundas que existem até hoje aqui no Brasil. Essa coisa de jogar bola, de andar no mato, fazer trilha, fazer acampamento, isso foi uma coisa bacana. E como eu não morava num condomínio, num lugar fechado, eu morava numa casa numa rua de terra, onde morava a gente, minha vizinha era francesa, e o pessoal da outra rua era uma galera que não tinha grana. Então era uma convivência. Tinha folia de reis, quando a gente vinha, folia de reis, 6 de janeiro. Então era uma convivência... Acho que isso me preparou muito pra viver no Brasil. Pra entender, não sei se quer dizer que eu entenda o Brasil assim, uma capacidade maior para entender um pouco essas diferenças que são, por um lado, horríveis, essa diferença, a desigualdade social no Brasil é uma coisa horrorosa, mas, por outro lado, entender essa riqueza também, essa diversidade que o Brasil tem. Aprender a conversar com pessoas que não vêm daquela bolha de onde eu vim, essas relações que a gente constrói na escola, que tem muito uma marcação de classe social aqui no Brasil. Acho que crescer lá em Cotia, nesse lugar, meus pais moram lá até hoje, me preparou para entender que o mundo era muito maior, mais diferente, mais complicado do que aquele mundinho no qual eu convivia. Principalmente através da escola, que eu acho que é o maior espaço de sociabilidade.
P - Quanto tempo você ficou lá?
R - Eu fiquei lá, me mudei pra lá, essa casa ficou pronta em 74, a gente se mudou pra lá em 76. E eu morei lá até 87, aí fui morar em Belém do Pará, morei um tempo em Belém, fiquei alguns meses em Belém, mas aí eu peguei uma hepatite, voltei. E aí depois, em 89, eu saí de lá e fui morar nos Estados Unidos, fui fazer doutorado. Então eu morei lá... Nem é tanto tempo, né? São 13 anos, quer dizer, não é pouco, mas... Mas morar ali foi uma... De novo, foi um lugar que me marcou até hoje. Foi uma experiência muito importante na minha vida. E as minhas irmãs moram lá perto até hoje. Elas não saíram de lá.
P -Mas é bem no momento de transição, de crescer?
R - De crescer. Eu lembro, por exemplo, que eu saía da escola, estudava no Paraíso. Eu pegava o ônibus até o Butantã e pegava o ônibus a Raposo. E, às vezes, tinha que ir a pé até casa. Era mais de três quilômetros, eu demorava duas horas para chegar em casa. Mas eu tenho colegas meus aqui no museu, que moram lá na Zona Leste Profunda, que levam duas horas até... Isso é uma coisa que a maior parte das pessoas que vivem em São Paulo... Não estou dizendo que... Não quero construir nada que seja heroico, mas estou dizendo assim, essa coisa de você entender o quão longe as pessoas moram, de onde elas trabalham, onde elas estudam, isso fazia um pouco... Eu não pensava dessa maneira naquela época, mas fazia parte da minha vida. Eu lembro que meus amigos chegavam em casa, meia hora depois já tinha almoçado e eu não estava chegando ainda. E eram longas viagens de ônibus. Eu lembro que eu sempre gostei muito de ler. Então, eu lia muito. Sentado no ônibus e a lendo. Quando dava para ir sentado, assim. E isso foi uma coisa, essa coisa do tempo também, entender um pouco a distância, que as coisas demoravam. Fui aprendendo isso meio sem querer, assim. Mas foi um aprendizado importante para mim também.
P - Então, você sempre fazia esse deslocamento para a escola? Sempre estava em São Paulo?
R - Sempre. Eu vinha de manhã com meu pai. E aí voltava de ônibus. Pegava o ônibus ali. Em 82, porque eu tinha aula o dia inteiro, eu passei a morar com o meu avô. Meu avô morava no Itaim, nesse meu avô mineiro. Então eu passei o ano de 82 morando com ele. E aí, essa casa desse meu avô passou a ser um lugar de apoio. Não tinha carro, então às vezes tinha festa, essas coisas, eu dormia na casa dele. Aí, a partir de 82, eu comecei a morar um pouco em São Paulo. Ficava lá em Cotia, que era a base, mas tinha essa casa do meu avô, onde eu ficava também. Tinha a chave, né?
P - Que era o da história da cerveja?
R - Da história da cerveja. Esse lugar passou a ser um lugar de... Uma base que eu tinha aqui em São Paulo também. Então, eu vi um pouco o bairro do Itaim também, que era um bairro que já tinha prédio naquela época, mas hoje em dia eu tenho um grande amigo meu, que mora em Campinas hoje, que é meu compadre. E ele morava numa vilazinha, lá no Itaim. Eu lembro que outro dia eu fui participar de uma reunião de trabalho, peguei um ônibus, desci ali na Faria Lima e fui andando. E eu não reconheci a rua dele. Tinha um baita prédio, a vila dele ficou cercada de... É uma loucura como mudou. Até eu falei: “Cara, estou aqui de frente à vila, como mudou isso aqui” Então, assim, mas é... A vida que eu tinha aqui em São Paulo tinha a ver com esse apartamento do meu avô, que era uma base que eu tinha aqui.
P - E essa escola da primeira infância, você tem alguma recordação importante, algum professor, alguma matéria, algum amigo?
R - Estudei numa escola, que é um colégio tradicional de São Paulo, chamado Colégio Bandeirantes, cujo nome é horroroso porque a gente sabe que os bandeirantes… Tudo bem, tem um papel na história do Brasil, mas também fizeram um monte de coisa horrível contra os povos indígenas. Mas é uma escola, pra quem não é daqui de São Paulo, que tem uma reputação de ser uma escola super difícil. É uma escola típica, hoje em dia eu vejo, eu vejo pelos meus amigos, que eu tenho amigos até hoje que estudaram comigo ali, é uma escola pra filho e neto de imigrante, que é bem o caso da minha situação, no meu caso meus avós eram portugueses, né? São famílias que vieram pra cá pra ralar, que não tinham grana, conquistaram algum tipo de estabilidade econômica e resolveram botar os filhos numa escola que garantisse a eles o acesso a uma boa universidade, a uma carreira, uma estabilidade. Então, eu lembro que é muito interessante isso. Naquela época, nunca tive nenhum colega preto, por exemplo. Não havia alunos pretos. Era uma escola de gente branca, ou tinha muitos asiáticos, eu tenho amigos até hoje chineses, ou nascidos na China, filhos de japoneses, muitos judeus também. Naquela época era uma escola de classe média, essa classe média meio insegura que quer apostar tudo na educação dos filhos, que era o meu caso, para que eles tenham uma carreira profissional bem-sucedida. Então, de novo, é interessante que eu vejo esse tipo de valor, que é uma coisa muito paulistana, baseada nessa coisa que valoriza o trabalho, que as pessoas chamariam hoje de meritocracia, que é uma discussão mais complicada, não sei se vale a pena falar sobre isso agora, mas no fundo eram os valores que meu pai tinha na minha casa. “Você tem que trabalhar, você vai ter que ralar, você vai ter que se virar”. E essa coisa de ser uma escola difícil, se você repetia dinheiro você tinha que sair da escola, não tinha classe mista. Era uma coisa meio pesada. Mas eu fiz muitos amigos nessa escola, que são meus amigos até hoje. Eu tenho um núcleo de amizade, de amigos, que são muito próximos até hoje. É interessante, porque cada um faz uma coisa da vida. Tem uns que ganharam grana, tem uns que não ganharam grana, muitos nem moram aqui em São Paulo mais. É engraçado que a gente passou por esse tipo de formação muito baseada na ideia do mérito, mas eu acho que pra nós, assim, a gente não avalia essa amizade que a gente tem entre nós a partir dessa chave, que é muito bacana. A gente superou um pouco essa… Mas sim, foi super marcante. Estudei sete anos nessa escola. Foi super marcante. Foi uma experiência que me marcou muito. E é uma escola que você vê, não tinha nem área de humanas. Só tinha exatas e biológicas. Eu resolvi fazer história, então... Eu tentei escapar um pouco dessa... Essa experiência me marcou muito, é muito importante na minha vida, mas, ao mesmo tempo, eu também tentei fugir um pouco disso. Eu tinha essa coisa de querer ser arqueólogo, veio dessa... Não queria me encaixar naquilo que estava sendo oferecido para mim como possibilidade de futuro naquela época.
P - Como foi isso, essa escolha por humanas? O que te encantava? O que você queria buscar?
R - Eu sempre gostei muito de ler, Luiza, sempre. Eu lembro que eu ganhei, quando eu era criança, esse meu avô mineiro me deu a coleção de livros do Monteiro Lobato, em capa dura. E um livro que eu li, que me chapou assim, eu tinha acho que 10 anos de idade, eu li várias vezes esse livro. Então, o livro que eu li, primeira vez, acho que eu tinha uns 10 anos, e que me marcou muito, é o livro A História do Mundo para as Crianças, do Monteiro Lobato, que era uma história do mundo, cabeça do Monteiro Lobato. Eu adorava. Eu lembro que meus pais compraram a enciclopédia Barsa. Eu gostava de ler verbete da enciclopédia. A minha mãe ficava meio preocupada, dizendo: “Por que esse cara não vai jogar bola e fica além da enciclopédia?” Mas, na verdade, eu lia porque era um menino muito curioso. Eu vejo o meu filho mais novo, o Bernardo, os meus filhos todos são muito curiosos. Ele se informa muito pela... Como eu convivo mais com ele hoje, que ele mora em casa, é muito... Ele lê, ele gosta de ler, mas ele se informa no mundo pelo YouTube, por essas coisas tudo. Se eu fosse uma criança hoje, eu acho, com a cabeça que eu tinha, eu ia ficar pirando nas redes sociais lendo. Porque assim, o jeito que a gente tinha de ler, de se informar naquela época, era através de coisas como enciclopédias, por exemplo. Eu sempre gostei muito de ler e eu sempre fui bom aluno de história. Lembram que também... Quando a gente recebia os livros escolares, no começo do ano, vinham os livros. Eu lia o livro de história inteira, na primeira semana. Eu adorava isso, literatura. Eu sempre fui bom aluno na área de Humanas. Tinha uma tendência, um talento natural. Tive essa sorte. E, assim, no resto, eu gostava de Biologia, mais ou menos. Então, eu sempre gostei de Humanas. E o que meu pai me dizia: “Você tem que ser advogado. Você vai ser um excelente advogado, vai ter…” Meu pai me imaginava, de terno e gravata, no escritório de advocacia. Que é bacana, poderia ter sido um caminho interessante. Eu até fiz um ano de direito, eu fiz um acordo com o meu pai, e quando eu resolvi fazer, seguir esse caminho da arqueologia, eu fiz vestibular pra história aqui na USP, que não tinha curso de arqueologia aqui, e pra direito lá na PUC. Eu fiz um ano de direito. Fiz um ano direito, eu passei bem na PUC, eu era bom aluno. Na PUC tinha uma coisa muito legal naquela época, que acabou infelizmente, que era o ciclo básico da PUC, que era maravilhoso. Não sei se vocês pegaram, se alguém estudou na PUC aqui. Esse ciclo básico da PUC era muito legal, eram cinco disciplinas, eu não me lembro todos os nomes de todas elas, mas tinha literatura, tinha antropologia, psicologia tinha uma que era Problemas Teológicos e Filosóficos do Homem Contemporâneo, que era um curso de filosofia maravilhoso, e tinha mais uma da qual eu não me lembro. Então, essas matérias do Ciclo... Eu aprendi muito no Ciclo Básico da PUC, aprendi muito assim. Tive professores maravilhosos e fazia algumas disciplinas do direito também, que tinha que fazer, que era obrigatório. Então eu fazia a história de manhã, a história à tarde aqui na USP e fazia direito na PUC de manhã. Mas eu vi que não, que eu não queria ser advogado. É até irônico, porque eu falo pro meu filho Bernardo hoje: “Cara, você deveria fazer direito. Eu acho que você seria um bom advogado”. Ele fala: “Pô, você não quis ser advogado e quer que…” Mas o que aconteceu comigo, essa coisa da arqueologia que me ajudou muito, é que tive sorte, tem uma grande arqueóloga brasileira que morreu esse ano, a Niede Guidon, que é uma figura muito conhecida, uma figura pública. E a Niede Guidon, que tem esse trabalho maravilhoso no Piauí, ela é prima, ela era prima de um grande amigo do meu pai. E esse amigo do meu pai, que é um cara que eu chamo de tio Dal, o nome dele é Dalberto, que é um cara que são amigos até hoje, a mãe dele, porque a mãe da Niede morreu quando ela era jovem, e ela foi um pouco criada pelas tias maternas. E uma dessas tias era mãe desse meu tio, desse tio por afinidade. Então eu me lembro, desde jovem, eu sabia já que existia uma profissão aqui no Brasil chamada, que a arqueologia podia ser uma profissão, que a Niede era uma arqueóloga. Eu fui ver a Niede falar na Aliança Francesa aqui, do Butantã, que nem existe mais. Quando eu devia ter uns 15 anos, eu vi uma apresentação dela. E eu lembro que a dona Dalva dizia: “Não, a Niede fica acampada lá no Piauí” E eu lembro, uma vez, ela contando isso e a minha mãe chorando, assim, e eu olhava, moleque, eu falei: “Cara, puta que pariu, a vida que eu quero é essa, né?” Porque a arqueologia tem uma coisa bacana, é que ela junta essa questão, é uma... É um campo do conhecimento, é uma disciplina científica, então você tem que ter uma formação intelectual importante, estudar, mas ela tem essa dimensão prática do campo, que é muito legal, que ela junta. Arqueologia não é a única ciência que faz isso, mas isso é muito forte na arqueologia. E na minha capacidade de entender o mundo como adolescente, isso era mais ou menos o mundo que eu achava que era ideal para mim. Um mundo que me deixasse, que permitisse eu exercer a minha curiosidade, e continuar estudando temas que me interessavam e, ao mesmo tempo, que me tirassem do escritório, que me tirassem de uma rotina de uma vida de escritório e me levassem para o... Então, assim, eu gostava muito de literatura... Isso vem muito do meu interesse que eu tinha por literatura de aventura, os livros do Júlio Verne. Eu li muito essas coisas quando eu era mais novo e isso acabou me influenciando. Eu lembro que quando eu tinha 10 anos, eu escrevi uma redação, era final da quarta série, quarto ano, que a gente ia pro ginásio. Hoje em dia mudou. Uma pena que eu não guardei isso, minha mãe acha que não guardou essa redação, mas a professora perguntou: “Escreva uma redação dizendo que você quer ser quando crescer”. E eu falei que eu queria ser explorador. Meu sonho era ser explorador, descobrir ruínas. Então, essa coisa da arqueologia é uma coisa que eu já tinha, mais ou menos, já estava presente na minha vida desde a infância. A sorte que eu tive foi encontrar a dona Dalva na minha vida, a Niede, e saber que existia uma, que tinha um caminho, tinha uma embocadura, digamos assim, para que isso pudesse se tornar uma profissão, uma maneira de viver.
P - Você se forma em história?
R - É, eu fiz história, entrei na faculdade, então assim, aí eu entrei em história e direito, em 83. E aquilo que eu falei, eu percebi que meu pai era super cético com essa coisa, ele achava que era uma coisa meio de playboy, que eu ia jogar a toalha. Não que ele achasse, acho que era uma dúvida boa que ele tinha. E eu percebi e falei: “Bom, essa coisa tem que dar certo”. Então eu comecei a estagiar com arqueologia logo no primeiro ano, primeiro mês do primeiro ano da faculdade, eu tinha 16 anos ainda no Instituto de Pré-História, com a professora Solange Caldarelli, ela faleceu no ano passado. Então, eu fazia o quê? Eu fazia faculdade de Direito, eu estagiava e fazia a Faculdade de História. Eu comecei a trabalhar. Eu não posso... Para essa coisa dar certo, eu tenho que... E foi isso, comecei a estagiar, eu comecei a trabalhar em 1985, eu tinha 19 anos, comecei a dar aula. Aí eu já tinha largado o curso de Direito. Então eu dava aula numa escola, no Galileu Galilei, eu era monitor de História e Geografia, fazia estágio aqui no Instituto de Pré-história, fazia a faculdade, eu passei pro noturno na faculdade e me formei. Eu não era um bom aluno, nunca fui um bom aluno na graduação, eu era um péssimo aluno. Essa coisa de trabalhar e tudo, mas eu também sempre gostei muito de festa. Eu acho que eu fui um cara, anos 80, vivi bastante aquela época dos anos 80 aqui em São Paulo. Foi uma época muito legal, muita festa aqui na USP, fora da USP. Olhando retrospectivamente, eu acho que eu consegui, de alguma maneira, equilibrar um pouco essas coisas. Eu gostava muito do que eu fazia. Eu queria muito ser arqueólogo. Então, pra mim, essa coisa de fazer estágio... Eu lembro que a primeira vez que eu fui participar de uma pesquisa de campo foi em setembro de 83. Eu nunca vou me esquecer, no interior de São Paulo.
P - O que era?
R - Era uma pesquisa que a professora Solange, que era a minha supervisora, ela tinha uma pesquisa aqui no interior de São Paulo, numa cidade chamada Guareí. Uma cidadezinha aqui, fica perto de Itapetininga. E assim, eram sítios arqueológicos, que tem mais ou menos uns 5 mil anos de idade, era material de pedra lascada na superfície. Mas assim, só o lance de você... Eu não entendia direito o que era aquilo, mas eu achava demais estar lá, fazer parte de uma equipe, eu era uma novo da equipe. Aprender com as pessoas, essa convivência do campo, acordar cedo e ficar o dia inteiro a céu aberto. Até hoje, eu sou um cara que vai... Estou indo para o campo na semana que vem, lá no Pará. Até hoje eu faço muita pesquisa de campo. Eu nem sei quantas... Não sei se eu vou fazer a conta. Este ano eu estou indo... Eu estive lá em Rondônia em fevereiro. Estou indo agora para o Pará. Eu vou de novo para Rondônia em agosto. Eu não sei quantas etapas de campo de arqueologia eu fiz na minha vida, mas... São 42 anos já. Sei lá. Muito, muito... Todos os anos. Pouquíssimos anos eu não fiz, desde 83, eu não participei de uma etapa de campo, então eu tô nessa, sei lá, há muito tempo, eu gosto muito dessa parte do meu trabalho. E até hoje eu sinto a mesma emoção, quando eu vou preparar a minha bolsa pra ir pro campo, sabe, porque eu tenho o meu kitzinho, minha rede, que eu levo o mosquiteiro, saco de dormir, as roupas velhas pra trabalhar no campo. Quando eu começo a botar na mala, eu sinto aquela mesma... A minha mulher fala: “Cara…” Ela falou assim: “Eu tenho quase vontade de te matar, pelo sorriso que você não consegue… Esse sorriso incontrolável que você tem na boca, a hora que você fala que tá indo viajar pro campo”, ela fala de brincadeira, né? Então, foi muito assim, me formei em quatro anos, fui fazendo, falei: “Eu queria ser arqueólogo, tenho que me formar logo” Não fui um bom aluno, sempre no noturno, fui me arrastando nas disciplinas, não fui um aluno brilhante na graduação, mas consegui me formar em quatro anos, que era o meu objetivo: sair logo. Pra poder ir atrás de um caminho, ligado à arqueologia mesmo.
P - E aí você vai para os Estados Unidos nesse momento?
R - Não, aí eu me formei em 86, eu trabalhava, trabalhando com arqueologia ao longo desses quatro anos, e a professora Solange Caldarelli, ela era da USP, mas ela saiu da USP, foi uma história horrorosa que aconteceu em 85. Porque naquela época era a época da reconquista da democracia no Brasil, das diretas já. Foi uma época muito legal, muita esperança.
P - Você tava aqui?
R - Eu estava aqui, estava na graduação. Eu lembro de ir lá nas manifestações, naquela grande marcha das diretas, eu estava no campo. Aquela que tinha muita gente, mas eu lembro que eu fui numa das que eu fui, foi naquela do placar, quando foi votado a emenda Dante de Oliveira. Ela foi votada e foi derrotada no Congresso, pelas eleições diretas. Eu tava na Praça da Sé nesse dia com um monte de gente. Então era muito legal. Essa época do Brasil, eu acho que o Brasil é legal até hoje. Acho que a gente tem problemas, mas acho que a gente é um país muito legal. Mas aquela época do Brasil, tem mais a ver com a minha juventude, agente pensa na juventude e projeta a nossa juventude na época que a gente vivia. Mas era a época da Constituinte, era a época das diretas já, era o fim da ditadura. Eu lembro quando o Tancredo morreu. Que foi horrível. Acho que foi dia 21 de abril de 1985. Eu estudava à noite já. Eu tinha saído da aula aqui, da USP, fui pra casa desse meu avô. E aí tava lá na televisão. Ele falou: “Pô, o Tancredo morreu, parece. E o que vai acontecer?” Aí veio o Collor, que foi um horror. O próprio Sarney… Por exemplo, colocando em perspectiva, o Sarney hoje até que foi interessante, eu acho. Mas o que eu quero dizer é que era uma época que tinha muita esperança. A minha geração não foi a geração que lutou contra a ditadura, a gente era muito novo pra lutar contra a ditadura, mas foi a geração que ajudou a dar pá de cal na ditadura, e que foi a geração que era jovem, né? Quando a ditadura tava acabando, e aquilo dava pra nós uma sensação muito legal, e foi uma época legal assim. Uma coisa interessante também nessa época, que eu lembro, é que as praias do litoral norte de São Paulo, Maresias, essas praias que hoje em dia estão lotadas, Camburi, elas eram desertas. A gente ia acampar nesses lugares. Não tinha ninguém. Lembro que fui acampar em Maresias em 81, eu tinha 15 anos, não tinha ninguém. Era gente acampando embaixo de uma árvore. Não é que a gente ficava num campo. Tinha os moradores, os caiçaras e meia dúzia de surfista hippie ali. Então tinha uma coisa interessante, que acho que tem, cada geração vai descobrir isso, mas assim, eu era um cara privilegiado, de classe média, tinha chance de poder fazer essas coisas, mas tinha uma coisa interessante, tinha essa coisa de você pegar a mochila. Eu viajei muito pelo Brasil, de mochila. A primeira vez que eu fui pra Belém, eu fui de mochila, em 1985. Fui de ônibus pra Belém daqui. A gente ia pro farol de Santa Marta, Garopaba. Garopaba não existia, era uma vila de pescador também. Ficava acampado em Garopaba. Em 83 fui para Garopa a primeira vez, então tinha uma coisa, esse litoral não estava tão ocupado como ele está hoje, e tinha essa sensação de você estar, que o mundo estava mudando, o Brasil estava mudando, a gente estava reconquistando a democracia, tinha um espaço de liberdade, você podia pegar uma barraca, uma mochila e com pouca grana, viajar pelo Brasil, isso era uma coisa muito legal, uma lembrança muito legal que eu trago dessa época, que acho que me marcou até hoje, como adulto, que foi uma coisa muito bacana. Mas eu me formei, aí fui para o meu primeiro emprego, para não perder muito o fio da meada, foi em Belém do Pará. A Solange, que era a minha supervisora, minha orientadora, ela conseguiu, ela saiu aqui da USP e ela construiu uma empresa que fazia consultoria ambiental na área de arqueologia. E o primeiro trabalho que ela pegou foi um grande projeto lá no Rio Xingu, aquelas usinas famosas, infames, usinas do Rio Xingu, Babaquara é aquela lá hoje, hoje em dia tem um Belo Monte lá. E a gente foi trabalhar, fazendo avaliação do impacto ambiental da construção dessas usinas. Então, eu lembro que eu fui pro Xingu a primeira vez em 86. E eu lembro que eu tava num avião, assim, chegando, olhando a janela e vi aquele rio. Falei, vou fazer o que falar: “Puta que o pariu. Que coisa! Que tamanho é isso?”
P - Você lembra dessa cena?
R - Eu me lembro dessa cena. Eu lembro de chegar em Altamira. Eu tô indo pra Altamira semana que vem. Eu lembro de chegar em Altamira em 86, assim. Eu tinha também uma coisa que foi muito importante pra mim, foram esses filmes, o “Bye Bye, Brasil”, do Cacá Diegues, que quando eu vi também, eu falei: “Putz, eu quero ir pra esse lugar: Altamira”. Você tá indo pra Altamira… Então, tinha o filme do Bodansky, “Iracema, uma transa amazônica”, eu conheci o Jorge Bodanzky depois, é um cara que eu tenho muito respeito, assim. Então, assim, eu tinha essa vontade de ir pro Norte já. Eu queria fazer arqueologia, mas eu queria fazer arqueologia no Norte do Brasil. Então, quando eu fui pra Belém, foi muito bacana, porque eu tive a chance de estar naquele lugar onde eu queria estar, abrindo esse caminho para fazer arqueologia ali.
P - E por que você queria estar ali?
R - Porque eu tinha essa intuição que o lugar mais interessante do Brasil não era São Paulo. Eu moro aqui, eu sou paulistano, eu gosto de morar em São Paulo, acho que talvez não seja mesmo, acho que São Paulo é legal, é um lugar interessante também, não gosto de falar mal de São Paulo, acho legal São Paulo. Às vezes a gente se irrita com a cidade, mas tem muita oportunidade, a minha mulher é de Porto Alegre, ela fala: “Eu vim pra cá, fiz minha vida aqui”. Eu gosto de São Paulo, mas o tipo de Brasil que eu queria, que pra mim era mais interessante naquela época, eu acho que não estava em São Paulo, ele estava no norte, no nordeste. Tanto que eu fui tentar conhecer esse Brasil viajando de mochila pelo norte e pelo nordeste. Que era o Brasil do quê? Da cultura popular, eu acho, de um tipo de cultura popular. Sei lá, eu lia o Macunaíma também no colégio, o Mário de Andrade. Tinha esse lugar que era uma coisa meio... Tinha também na época da ditadura esse imaginário do Brasil grande, que era a Amazônia, essa fronteira, a última fronteira. Então eu também fui influenciado por isso, eu acho. A minha mãe lia a revista Manchete. E você tinha aquelas reportagens, aquelas fotos coloridas na capa da Transamazônica. Eu lembro de ler aquilo e falar: “Pô, eu quero participar de alguma maneira dessa história, conhecer esses lugares”. Então, eu sempre tive essa vontade de ir para o Norte, até hoje, apesar de morar em São Paulo. Eu até hoje vou. Esse ano eu já fui pra Belém, fui pra Porto Velho, nem sei. Eu tive um laboratório em Manaus há muitos anos. Eu gosto do norte do Brasil, gosto de estar no norte. Me sinto bem, assim. Gosto do clima, gosto do calor, gosto da comida, gosto da música, gosto da sociabilidade. Me sinto bem. Apesar de morar aqui, isso é uma parte super importante da minha vida.
P - E como foi desenrolar? Você fez essa viagem, era uma viagem a lazer?
R - Quando eu fui a primeira vez? A lazer. Eu fui de onde? Fui para Belém com dois amigos. Chegamos em Belém, de Belém, nós ficamos uns dias lá e eu fui sozinho para o Marajó, eles não quiseram ir, fui para a ilha do Marajó. Fui pra Soure, viajei em Salvaterra, conheci a ilha do Marajó. Aí voltei pra Belém, aí um deles voltou pra São Paulo, aí com o outro nós pegamos um ônibus e fomos pra São Luís. Eu não sei se eu tenho tempo pra contar, mas aconteceu uma coisa muito legal nessa viagem. A gente chegou lá em São Luís, eu tava conhecendo meu amigo, que é meu amigo até hoje, o nome dele é Carlos Caramujo. Fomos pra Alcântara. Chegamos lá em Alcântara e estamos lá meio de bobeira. Alcântara é uma cidade histórica, linda, não sei se vocês conhecem. Fica do outro lado da Bahia, lá de São Luís. Aí a gente estava de bobeira ali e tinha aqueles moleques cabeludos, sei lá, de repente cruzando com uns caras ali, que estavam lá também, marcando ali, não sei se eu posso falar, mas a gente estava ali em Alcântara. Aí o cara falou: “Olha meu, vai ter uma festa. Tem uma comunidade chamada Cajueiro, que é um antigo quilombo, vão construir uma base de mísseis aqui”, que construíram depois, “e vai ter a festa de São Sebastião. Eles vão fazer a última festa, que é a festa do santo padroeiro da comunidade. Vocês não estão a fim de ir?" Eu falei: “Puta, claro, imagina. Na hora, né?” E o meu amigo não quis ir, eu fui sozinho com esses caras. Fomos andando por uma trilha, assim. E, bom, chegamos lá perto da... Eu lembro, foi uma coisa que eu aprendi, como eu era paulistano, eu achava que era um cara super... Chegamos ali na beira da comunidade, ficava o alto do morro, assim. E tinha um igarapé que passava. Aí todo mundo chegou lá, o pessoal se trocou. Todo mundo tomou banho e tiraram aquelas roupas que estavam usando e botaram uma roupa de festa. E eu estava de sandália havaiana, shorts e camiseta. Eu não tinha outra roupa pra colocar. Eu falei: “Pô, você vê que tem uma etiqueta, né? Dependendo de onde você vai, você tem que se vestir bem, se apresentar bem, né” E eu tinha essa coisa “não, essa coisa burguesa. Tem que ser cabeludo”. E aí lembro que nós chegamos na festa, e a festa tava rolando. Eu lembro que era uma festa rolando, rolando reggae. Maranhão rola muito reggae, todo mundo dançando, puta festa legal. De repente, meia-noite, eu já tava meio chapado, assim, essa hora meia-noite, para o negócio, para o reggae, e entra um monte de velha, umas velhas pretas, cantando uma novena pra São Sebastião, e cantando aquele coro de mulheres, assim. E eu tava muito louco. Eu falei: “Puta, cara, que loucura”. Essas coisas são legais. Isso é o Brasil. Tem uma história horrível. A comunidade sendo retirada à força de lá. Mas, ao mesmo tempo, essa coisa da novena e do reggae, de estar naquele lugar. Eu falei: “Puta, meu”. Foi uma experiência, eu não diria iniciática, mas foi uma coisa super importante, que mostrou que o mundo era muito mais complicado do que eu achava. E eu lembro que no dia seguinte, tinha chovido, dormi no chão, numa esteira, num canto, ali numa... Aí eu falei: “Pô, eu quero ir embora, quero ir embora”, os caras: “Fica aí, meu. Relaxa, fica aí. Fica aí”. E eu acho que eu enchi tanto o saco, que eles falaram: “Se você tá a fim de ir embora, pega essa estrada e vai andando”. E você vai... Tinha uns dois paulistanos ali na festa, os ansiosos eram os paulistanos, saíram andando e foram embora. E aí caiu uma baita chuva no caminho, e o ônibus passou. Eu falei: “Bom, o ônibus tá passando, ele vai passar na volta, vai pegar a gente”. E o ônibus passa, pega todo mundo, e a hora que o ônibus vai embora. Está indo embora, passa por nós, a gente faz sinal, o ônibus não pára e vai embora. E a gente teve que... Eles devem ter falado: “Deixa esses malas aí. Esses pentelhos, que ficam falando, quero ir embora, quero ir embora”. Então, assim, aprendendo um pouco como é que você tem que entender os ritmos dos lugares, que as pessoas têm ritmos diferentes, que não dá pra chegar com a sua agendinha particular e querer escalar o time ali. Essa viagem foi muito legal, fomos pro delta do rio Parnaíba, fizemos de barco, barco regional, assim. E foi muito legal essa viagem, foi uma lição pra mim. E me reforçou essa coisa de querer tentar fazer alguma coisa no norte do Brasil.
P - E aí como que vai desenrolando a sua vida?
R - Aí eu fui morar, aí em 86 teve essa chance de participar de uma pesquisa de campo, aí terminei a faculdade. E aí surgiu uma chance de morar em Belém em 87, trabalhando nesse projeto, e eu fui pra Belém. Fui morar em Belém, foi maravilhoso.
P - Você nem pensou?
R - Não, imagina, recém-formado, ganhando uma grana, 20 anos, eu me formei com 20 anos. Trabalhando, morando em Belém sozinho. Puta, eu falei: “Na hora”. Belém é uma cidade super legal, super animada. Eu lembro também quando eu fui a primeira vez num brega lá em Belém. Lá em Belém tem uns bregas, não sei se vocês sabem o que é, né? Eu lembro quando eu fui num brega a primeira vez, eu também tinha 20 anos, eu falei: “Cara, que porra é essa. Aquele som rodando, todo mundo dançando, os caras rodopiando, as mulheres, aquela coreografia... E o som bombando” Eu gosto de brega, de música brega, Reginaldo Rossi, assim. Cara, eu falei: “Nossa!” Me achei demais! Eu tava o rei do mundo. Ganhando uma grana, morando lá solteiro, sozinho, tava que nem um... Mas aí eu peguei uma hepatite super brava em Belém, aí voltei pra São Paulo pra me tratar. Aí voltei derrotado, por causa dos meus pais. Naquela época, hepatite, você ficava dois meses de cama. E aí, quando eu tava voltando pra Belém, abriu uma vaga, um concurso, porque a minha posição lá em Belém era um contrato de trabalho que não era estável. Abriu uma vaga no Instituto de Pré-História aqui da USP, que nem existe mais, pra técnico de nível superior. Abriram duas vagas. E eu prestei esse concurso em 87 e passei. E entrei na USP como técnico, em 87. Estou aqui desde 87, na USP. Entrei como técnico, depois passei para pesquisador, que é uma carreira que não existe mais, e hoje em dia sou professor, professor titular. Mas eu mantive, em algumas coisas eu tive sorte, porque essa posição de técnico me dava muita liberdade para fazer pesquisa, então eu continuei indo para Belém. Em Belém, eu estive nessa época, no final dos anos 80, era uma época muito legal, porque lá no Museu Goeldi, o Museu Emílio Goeldi é um museu que existe lá em Belém, que foi fundado em 1866. Ele é uma das pérolas da ciência brasileira. E eu trabalhava, estava ligado ao museu. Apesar de estar aqui na USP, eu tinha um vínculo com o museu. Nessa época havia no Museu Goeldi, alguns cientistas que estavam propondo algumas ideias que revolucionaram a pesquisa na Amazônia. A ideia de que os povos indígenas da Amazônia modificaram o meio ambiente, de que a Amazônia não é um ambiente puramente natural, mas que foi formado pelos povos indígenas ao longo do tempo. Eu fui aluno desses dois caras, dois norte-americanos que viviam em Belém nessa época: o William Ballet, que hoje em dia mora nos Estados Unidos, há muitos anos é professor na Universidade de Tulane, em Nova Orleans. E o Daryl Poser, que já morreu, que dava aula em Oxford, morava em Belém também. E esses caras eram geniais, Walter Neves também estava em Belém nessa época, que é um cara super importante para a arqueologia do Brasil. Então essas pessoas estavam, principalmente Bill e Daryl, mas o Walter também, propondo: “Olha, tem uma relação, a gente tem que entender essa relação dos povos indígenas com o meio ambiente na Amazônia a partir de uma outra perspectiva”. E lá em Belém eu conheci também um grande antropólogo que veio a ser meu orientador, o Emílio Moran, que é um cara que até hoje trabalha na Amazônia, desde 1974, faz campo na região de Altamira. Ele fez o doutorado sobre o impacto, sobre o modo de vida, a visão do mundo dos colonos da Transamazônica, que tinham chegado naquela época para lá. E conheci o Emílio lá em Belém, conversando com ele. Eu não tinha formação em arqueologia no Brasil nessa época. Eu falei: “Olha, eu queria fazer um doutorado no exterior”. E, resumindo uma longa história, ele falou: “Por que você não faz doutorado lá em Indiana, onde eu dou aula? A gente pode tentar conseguir uma bolsa pra você”. E aí eu escrevi o projeto, ganhei uma bolsa do CNPq também. Tive ajuda de pessoas como Carlos Coimbra, que é um antropólogo que estudava lá nessa época, o Ricardo Ventura também, que são caras importantíssimos, até hoje atuantes no Brasil, que estudavam lá. E consegui uma bolsa do CNPq e com 23 anos eu fui para os Estados Unidos fazer doutorado em arqueologia, achando que eu sabia de tudo. Percebi depois que eu não sabia de nada. E aí consegui uma licença da USP e fui para lá em 89. E fiquei até 92 nos Estados Unidos estudando. Aí voltei para o Brasil. Eu quis fazer uma pesquisa no Alto Rio Negro. Foi meu doutorado, que era um lugar maravilhoso, mas uma logística super difícil. Mas fiz a pesquisa de campo, em 93, 94, no Alto Rio Negro. Bom, aí eu comecei a me auto sabotar na minha vida pessoal. Eu achava que era muito novo. Eu comecei a falar que sou muito novo para fazer essas coisas.
P - Ah, é?
R - É, comecei a entrar numa crise, eu acho. Essa é uma viagem que eu tive. Síndrome do impostor. Não tem isso, né? Tive um momento de síndrome do impostor. Porque eu pensava: “Pô, eu tô aqui na USP, né? Tem gente que tá desempregada, que é mais velha que eu, que é melhor que eu. Eu tô com a bolsa no meu…” Mas tudo bem. Eu tô resumindo uma longa história aqui pra vocês também. Mas assim, eu conheci a minha primeira mulher lá nos Estados Unidos. A gente acabou tendo esses dois filhos juntos. Eu passei dois anos na Alemanha, afastado aqui da USP. Eu devo muito ao MAE e à USP, porque tive esse investimento na minha formação. Foram quase quatro anos nos Estados Unidos e dois anos na Alemanha. Na Alemanha, eu trabalhava no Museu de Antropologia, lá de Berlim, escrevendo esse doutorado, e aí terminei. Fui de 97 para o doutorado.
P - E como foi? São muitos anos e muito tempo. Como foi esse doutorado? Como foi essa experiência para você?
R - Olha, foi uma experiência super importante. Eu resolvi fazer uma coisa, eu resolvi dar um passo maior do que a perna. Eu achava que eu era melhor do que eu era. E chegou uma hora, em 1995, que eu estava com a minha companheira grávida, um doutorado que não estava terminando, e achando que eu tinha um monte de problema com aquela tese. Eu tinha uma pretensão intelectual que era muito maior do que os dados que eu tinha conseguido produzir, porque eu resolvi fazer um doutorado em um lugar super distante, com uma logística super difícil, eu achei que eu fosse super homem, e a realidade, se a vida resolveu me dar um choque de realidade, foi importante. Então, o que eu aprendi? Foi uma experiência maravilhosa, trabalhar com populações indígenas, o Alto Rio Negro, na fronteira com a Colômbia, lá na região do Rio Uapés. Uma experiência maravilhosa. Pessoal, conheci um monte de gente bacana, lugares maravilhosos. Passei, no total eu passei sete meses trabalhando ali naquela região, convivendo com as pessoas. Foi uma experiência maravilhosa. Aprendi muito e foi muito bacana. Como eu falei, eu aprendi uma coisa importante. Arqueologia é uma coisa que custa muito caro. Uma coisa é você participar de um projeto como alguém que está lá trabalhando. Outra coisa é você estar por trás de um projeto como coordenador. É mais ou menos como fazer um filme. Se você está produzindo aquela coisa, tem coisas que você nunca pensa, alimentação, logística. Na verdade, logística, eu falo com meus alunos hoje: “A qualidade e a quantidade dos dados que vão ser produzidos em uma etapa de campo depende diretamente da logística. Quanto mais você gasta para chegar em um lugar, menos grana você vai ter para fazer a pesquisa em si. Quanto menos você gasta com logística, alimentação e acesso, mais dinheiro você vai ter para fazer, levar mais gente para o campo, produzir mais informações”. Então eu aprendi isso da maneira dura. Eu gastava muito tempo e grana em logística. E os resultados, na hora de fazer a pesquisa, eu trabalhava sozinho com o pessoal que morava ali, basicamente. Foi ótimo, com os indígenas eu aprendi um monte de coisa. Mas eu nunca tive grandes equipes no campo, trabalhando comigo. Em arqueologia a gente tem que trabalhar em equipe, é um projeto que é coletivo, produção de conhecimento e arqueologia. Então eu aprendi isso pelo lado difícil da vida. Mas ao mesmo tempo, eu subi o Rio Negro de barco duas vezes. É uma puta experiência maravilhosa, pegar um barco em Manaus, e viajar quatro dias subindo o Rio Negro, que é um lugar maravilhoso, um dos lugares mais lindos do mundo. Cheio de praia, comunidades na beira do rio, é um lugar, assim, é uma beleza que é meio indescritível. É quase um sonho quando eu me lembro desses lugares, né?
P - Você tem acesso a cheiro, a sons?
R - Ah, sim, né? Toda vez que eu vou pra Manaus, eu saio do avião. Em Manaus, meu metabolismo muda, é impressionante. Eu percebo, meu corpo muda totalmente, tem a ver com cheiro. Cheiro, eu me lembro muito de cheiro de peixe defumado no Rio Negro. Eu me lembro muito do cheiro do caxiri, que a cerveja que eles fazem lá, que a gente tomava as festas de lá, são porres, que duram dois dias, você fica bebendo caxiri, 2, 3 dias direto, fica todo mundo bêbado, vomita, volta, vai pra rede, volta. Eu me lembro dessas festas. Peixe defumado, você comia peixe moqueado. Eu me lembro muito do café da manhã da gente, que era a quinhapira, que é uma sopa de pimenta com peixe defumado, e de fumar o cigarrão, que é porronca. Fazer um cigarrão, tabaco preto. E tomava aquele café do quinhapira, aquele café, e pá, fumava um cigarrão depois. Isso eu me lembro muito. Não, tenho. Tenho lembranças maravilhosas de cheiros, de comida, de coisas que vão além da arqueologia.
P - Sim.
R - Dessa experiência de estar lá nesses lugares, sem dúvida.
P - E ensinamentos pensando dessa relação com a população de lá, com os indígenas, com outras pessoas?
R - Então, sim. O que acontece? Eu fiquei anos sem voltar para lá. E isso é uma coisa que é um problema, porque você vai e entra na vida das pessoas, as pessoas te recebem, te acolhem e um dia você desaparece. Então isso é uma coisa que... Eu lembro que eu voltei pra lá a primeira vez em 2011 e eu tomei uma chinchada dura. Eu nunca parei de trabalhar, né? Trabalhei no Amazonas continuamente durante muitos anos, mas não mais no Alto Rio Negro, trabalhei em outros lugares. E isso foi uma coisa... Eu acho que eu tinha razão em tomar essa espinfrada, né? Porque você cria vínculos com as pessoas e é importante que esses vínculos não se rompam de uma maneira unilateral. Então, assim, isso é uma coisa que eu aprendi que é importante você... Pequeno príncipe fala isso: “Você é responsável por quem você cativa” Parece uma bobagem isso, mas você vira... Essas relações geram expectativas, assim. O que eu acho que eu aprendi de mais importante, assim, que eu acho que eu uso até hoje, eu vou muito pra, de novo, muito pro campo até hoje, vou pro mato, mas eu não sou o Rambo. Eu não sou um cara que pega uma corda e pendura, eu não sou um cara que pega um clipe e vai consertar o motor de um carro, entendeu? Eu não tenho esse tipo de capacidade. Eu sei me virar, obviamente, mas o que é mais importante, no fundo, é a etiqueta. Existe uma etiqueta, uma educação, que você depende das pessoas quando você faz o que a gente faz nesses lugares. E é importante estabelecer relações que sejam respeitosas, genuinamente respeitosas. Educação, você conseguir chegar bem a um lugar, mas sair de lá também. Deixando uma boa lembrança, uma boa imagem. Um pouco dessa chinchada que eu levei quando eu voltei em 2011, ele dizendo: “Pô cara, a gente gostou de você”. Não foi : “Você é um babaca”. Então, eu acho que é isso. A lição mais importante é uma lição de respeito, de etiqueta, de entender que a gente vive num mundo onde as pessoas são diferentes e se você quiser assumir um lugar de estar presente na vida delas, você tem que aprender os códigos de convivência dessas pessoas e respeitar esses códigos. E tentar incorporar isso até para a nossa vida em outros contextos também. Eu acho que isso foi a lição, talvez mais importante que eu tenha aprendido. Aprender a observar, respeitar, a conviver. Saber conviver, saber respeitar os ritmos das pessoas e as maneiras que elas têm de conhecer o mundo e que são diferentes das nossas.
P - Então você fica sete meses lá e volta como? Diferente, mudado, transformado, igual?
R - A gente nunca volta igual, né? Eu lembro que eu fiz uma etapa de campo no Amazonas uma vez, que eu fiquei 70 dias direto no campo, dormindo numa rede, morando numa praia, lá no Rio Negro também, mas não mais no Alto Rio Negro. Você não volta de uma experiência de morar 70 dias numa praia, na beira de um rio, comendo peixe, com a galera que mora ali, naquelas comunidades. Você não volta o mesmo. Tudo bem, depois a vida vai rapidamente. Aqui em São Paulo tinha essa... Neurasinha da cidade que a gente vai, mas é muito horrível. Sei lá, como é que você volta? Eu acho que eu sou um cara muito marcado pela... Eu tive uma experiência, eu sei que eu não consigo seguir a cronologia direito, Luiza, mas em 2019, eu tava lá no rio Iriri, lá no Pará. Estou indo para lá agora de novo. Eu tive uma experiência, pela primeira vez eu cheirei aquele rapé, Yakuana, que é o rapé que os Yanomami cheiram. Foi aplicado por um grande mestre Yanomami. E eu lembro que essa viagem do Yakuana, eu não sabia, eu estava tomando banho na beira do rio, eu estava indo dormir. E tinha uma galera sentada ali. Alguém falou: “Vamos lá”. Não sei se eu posso falar o nome. “Fulano tá lá, vamos lá falar um oi”. Chegou lá, o cara falou: Você não tá a fim?” Falei: “Ah”, eu tava com a toalha na mão. Eu ia dormir na minha rede, eram dez da noite. “Você tá a fim?” Falei: Ah, eu quero, vamos lá”. Sempre fui um cara aberto. E, de repente, ele põe, vocês já viram isso? Aquele canudão, você fica de um lado, o cara dá... Eu gosto de cheirar rapé, né? Até tem um rapé aí. Mas aquele rapé é outra coisa. Parece que arrancou o toco da minha cabeça. E alguém falou: “Cara, deita que você vai pra uma viagem agora”. E eu não sabia, eu já tinha cheirado esse rapé. Lá em Boa Vista, muitos anos atrás, eu fiquei meio doidão. Esse era um rapé de um pajé, poderoso. E lembro que eu deitei no chão. E eu comecei a ouvir umas coisas, os barulhos da mata. Eu comecei a sentir meu corpo ir embora. Eu tive uma viagem. E foi em 2019, era Bolsonaro já, foi uma viagem profunda. Depois eu fui dormir, fiquei deitado na rede, fiquei viajando. E assim, eu sou um cara que tem um estômago de aço. É difícil passar mal, como qualquer coisa, não tenho perrengue. Mas dois dias depois, quando a gente voltou pra Altamira, eu tive uma infecção intestinal em Altamira, tinha uma reunião super nervosa, um monte de ruralistas, o cacique Raoni. Ele foi agredido pelos ruralistas, tinha polícia, maior clima. Eu lembro que, nessa noite, eu volto pro hotel, e eu acordo a noite passando mal. Eu fiquei dois dias sem sair do quarto do hotel. Nunca tive isso na minha vida. Que eu acho que tem a ver com essa viagem. E essa viagem, por exemplo, me despertou para uma coisa assim: “Meu, o mundo pode estar acabando. O mundo que a gente conhece está mudando muito rápido. Você tem que fazer alguma coisa”. Eu não acho que eu vou salvar o mundo, mas me colocou num outro lugar, eu acho. Então, o que eu quero dizer é assim, a gente nunca passa por essas experiências, quando você vai pra um outro lugar e você nunca conhece o tanto que você acha que você conhece. Isso transforma muito a gente. Então, lá no Alto Rio Negro, eu tive essas festas em três dias, tomando caxiri, fumando aquele cigarrão, ficando meio chapado. Aquilo tudo vai te modificando, abre uns canais de comunicação com o mundo que não são os canais que a gente cultiva normalmente para a natureza, para outras formas espirituais. Eu sou ateu, particularmente, mas acredito muito, respeito muito outras formas de espiritualidade. Eu acho que elas são importantes. Então, isso tudo vai abrindo a gente. A gente não passa incólume por experiências como essa. Eu tento trazer isso um pouco para mim… Porque a universidade é um espaço onde a gente tem muita liberdade, mas ela pode ser muito careta também. Ela está mudando, eu acho que hoje. E uma coisa que eu tentei colocar para a minha vida desde cedo é que eu acho que existe uma confusão muito grande entre seriedade e caretice. Você não precisa ser careta para ser sério. Eu tentei, a partir da minha maneira de viver a vida e fazer as coisas, eu falava: “A gente pode ser sério e fazer coisas que talvez não estejam…” Hoje em dia mudou, “mas não estejam no cânone do que seria uma conduta séria”. Sei lá, careta, quadrada, não sei qual que é o termo. E eu acho que eu tentei trazer um pouco essa lição pra minha prática aqui na universidade: ser sério, fazer as coisas que tem que fazer, dar aula, começar a aula na hora certa, respeitar. Mas o mundo é muito maior do que esse arranjo que existe aqui, né?
P - Fico pensando e difícil muitas histórias, né?
R - Sim.
P - Mas como que é pra você tentar entender esse jeito indo pra campo, que você falou que tem toda essa preparação, essa mala, e quando você chega em um sítio arqueológico, você tem algum ritual? Como é chegar em cima de tanta história? Como é esse momento para você? Junto de tantas histórias que ainda vão ser redescobertas, reintegradas, não sei direito.
R - Olha, o sítio, é claro que a gente vai mudando ao longo do tempo. Mas eu acho que a prática de arqueologia de campo, no fundo, é uma prática de muita humildade. Você nunca sabe direito o que você vai encontrar. E a gente, quando está fazendo uma escavação, a gente está destruindo aquilo. O que a gente tenta fazer, na verdade, é uma destruição controlada, com um registro muito preciso de tudo o que está sendo feito ali, para que a gente possa depois, no laboratório, reconstruir os nossos procedimentos. Eu trabalho em alguns sítios há muitos anos, eu sempre volto para eles. Em outros casos não, são experiências mais rápidas. Eu acho que você poder trabalhar no mesmo lugar e voltar para aquele lugar mais de uma vez é uma coisa muito legal, porque cada vez você conhece uma coisa nova, tem um contexto que você não conhecia direito e que você começa a entender um pouco melhor. Ao mesmo tempo, novas questões surgem também. É um trabalho que depende muito dessa relação com essa dimensão prática, empírica. Eu lembro que a primeira vez que eu coordenei uma equipe grande de campo foi em 1999. Eu já tinha coordenado escavações aqui em São Paulo, mas uma equipe grande, que eu estava pilotando o negócio, 30 pessoas, foi 99. E eu lembro que eu tive uma furunculose, começou a espocar furúnculo, nós ficamos dois meses no campo. E começou a espocar um monte de furúnculo. E eu falei, porque era aquela coisa, você tinha que além de resolver as questões do campo, da escavação, o cara, um lá vai lá e se machuca, acaba a comida, tem que comprar combustível, você tem que cuidar de tudo. A gente faz a produção e a direção, digamos assim, num caso como esse. Eu era novo, tinha 33 anos, relativamente novo. Comecei a perceber uma coisa logo de cara. Falei: “Se alguém tiver uma ideia melhor que eu aqui, é melhor acatar. Porque no final, quem vai escrever o relatório sou eu. Se sair uma publicação daqui, eu vou estar como, talvez, o autor principal, porque eu coordenei esse campo. Então, se a ideia for melhor que a minha, é melhor que dê certo do que insistir numa visão, às vezes, meio teimosa, orgulhosa e, no fundo, insegura, que pode me levar a um lugar que vai ser pior para todo mundo, inclusive para mim”. Então, eu acho que eu percebi isso logo de cara, que eu tinha que abrir mão um pouco. O fato de você mudar de ideia não quer dizer que você está inseguro ou não sabe o que fazer. Mas, pelo contrário, mostra que você tem que estar tentando conduzir aquele barco para um lugar que seja melhor para todo mundo. Então, essa furunculose era meio eu brigando comigo mesmo, espocando um monte de furúnculo, para entender um pouco. Então eu aprendi isso, que quando você está no campo, geralmente são equipes grandes, você tem que ter alguém na coordenação, é a pessoa que é responsável. Agora a gente vai fazer um campo, por exemplo, no final do mês de agosto, vai ser durante o mês todo de agosto, mas eu irei só no final. Quem vai coordenar é a Natália Pinheiro, que é nossa estudante de doutorado aqui. Eu vou lá para ajudar a Natália, mas ela que coordena. Então você tem que ter alguém que seja responsável, porque essa pessoa vai colher os frutos, mas vai também. Às vezes vai ter que responder, não é para punir ninguém, mas alguém tem que falar: “Olha, aconteceu errado isso, esse tipo de coisa, não tem problema, é para seguir adiante”. Mas ao mesmo tempo, essa pessoa que é responsável, ela tem que ter a capacidade de ouvir quem está participando ali e trazer o que elas têm de melhor. Então eu acho que a prática de Arqueologia de Campo, ela nos ajuda a entender como é o trabalho em equipe. É para as pessoas se sentirem, se elas têm uma boa ideia e a coordenação acata aquela boa ideia, as pessoas se sentem valorizadas também. Isso é legal, porque é importante. Porque ninguém consegue resolver tudo sozinho mesmo. E, ao mesmo tempo, às vezes você tem que falar: “Gente, espera um pouco, deixa eu pensar aqui. Vamos dar a volta, daqui a meia hora a gente se encontra de novo. Vamos ver o que a gente faz”. Então, às vezes a gente chega nos impasses ali que você tem que resolver.
P - Tipo o que?
R - Tipo, você acha um sepultamento humano, por exemplo. Você vai escavar, hoje em dia, um sepultamento humano, os ossos humanos, eles trazem muita informação sobre estado de saúde daquela pessoa, idade, sexo, dá pra extrair DNA, tem um monte de coisa que a gente pode extrair. Mas a gente sabe que hoje em dia, escavar sepultamento é super complicado, do ponto de vista ético, porque muitas populações indígenas não gostam. Aqui nesse museu, nós temos armários e armários de ossos que foram escavados em Sambaquis, aqui de São Paulo, em Santa Catarina. Então, assim, é um dilema hoje em dia. Vamos deixar aquela pessoa descansando ali, porque quem enterrou aquela pessoa ali, queria que ela ficasse ali enterrada para sempre, pela eternidade. De repente, chegam os arqueólogos ou as arqueólogas e perturbam aquele contexto. Então, a gente tem que entender muito bem. Tem uma relação de respeito. E, às vezes, é melhor você deixar aquilo enterrado, entendeu? E deixa bem enterrado. Porque, botando na balança, o tipo de informação que pode ser obtida, claro que vai ser super importante, mas talvez seja menos importante do que o fato de você estar interferindo. Literalmente o descanso eterno daquela pessoa ali. Eu não sou um cara religioso, mas eu entendo quem respeita esse tipo de coisa. Então você tem que falar: “Será que vale a pena? Escavar, seguir essa escavação…” Aí você fala: “Olha, tem mais uma semana. Será que a gente consegue escavar esse sepultamento em uma semana?” Porque demora. Às vezes demora muito, é um trabalho super delicado. Então não vai dar, tem que fechar. Ou você fala: “Não, vamos abrir”. Aí chega cinco dias depois: “Puta, talvez não dê pra escalar. O que a gente vai fazer? O que nós vamos tirar daqui? Vamos tirar tudo? Vamos abrir?” Essas decisões são feitas o tempo inteiro no campo. E você tem que fazer uma... A gente tem aquela imagem do arqueólogo pincelando, mas às vezes você tem que trabalhar rápido, é meio bruto. Tem que passar um trator, se dá pra passar, às vezes, pra expor algumas... Isso é muito comum na Europa. Não existe uma fórmula de como você trabalha no campo. Você tem que saber aonde você quer chegar. O tempo que você tem pra fazer isso e a grana que você tem pra fazer isso. Você tem que botar essas três coisas na balança e aí calibrar as alternativas que são disponíveis pra chegar naquele lugar. E tem que saber que às vezes você vai ter que mudar de ideia ao longo do caminho. Você não pode ficar amarrado. É bom você ter um caminho, é bom você saber onde você quer chegar. Mas às vezes aquele lugar vai ficando mais distante. É melhor você chegar bem, com segurança, num lugar que seja mais próximo, não naquele que você queria chegar, do que se perder. E se eu posso fazer essa metáfora, o navio afundar no meio do caminho. Melhor você aportar num lugar seguro e da próxima vez você vai para aquele lugar que você queria chegar no começo. Então essas decisões, elas têm que ser feitas ali na hora, no campo. E elas demandam o quê? Uma capacidade, um jogo de cintura, você tem que ter flexibilidade. E você tem que explicar para a sua equipe, dizendo: “Olha gente, aquela primeira ideia talvez não seja factível, vamos tentar ir pra cá”. “Ah não, vamos lá. Vamos ter que ralar, vai ser uma última semana de trabalho muito pesado, trabalho braçal na arqueologia no campo, mas a gente consegue, e vamos juntos”. E eu sou um cara que gosta muito de liderar pelo exemplo. O negócio de estar lá, no buraco, peneirando, fazendo as coisas. Eu acho que uma maneira interessante que a gente tem de liderar no sentido positivo que essa palavra pode ter é você participar, você compartilhar. Dormir todo mundo no mesmo lugar, comer a mesma comida, carregar balde, fazer as mesmas coisas que todo mundo faz. Hoje em dia tem coisas que tem pessoas que foram meus alunos e alunas que fazem muito melhor que eu. Também é uma coisa importante, saber que se alguém vai fazer melhor e mais rápido no campo, delegar para aquela pessoa, falar: “Fulana, vai lá e resolve, não sei que melhor que eu fazer isso”. Mas estar lá ali junto e participando dessa... Sobretudo, eu gosto de fazer isso, é uma coisa que me dá prazer estar ali na hora. Isso que eu falei no começo dessa conversa, uma coisa que é muito legal na arqueologia, é que é trabalho braçal. É legal você parar no sol, na chuva, mas é trabalho intelectual também. Você tem que tomar decisões de maneira muito rápida ali, e essas decisões têm que estar embasadas aonde? Na sua experiência prática, mas também na sua formação intelectual. Por que você quer fazer aquilo, naquele sítio, naquela hora. Isso é uma coisa que depende de formação intelectual prévia. Então essa combinação entre intelectual e braçal é muito legal, é muito bacana, na minha opinião.
P - E vocês já chegaram em um sítio e teve um conflito, uma determinada tensão com a população local?
R - Sim, várias vezes.
P - Isso é comum?
R - Não é comum, mas não é incomum. Acontece. Por exemplo, uma vez no Lago do Limão, que é um lugar onde eu trabalhei durante muitos anos, é uma comunidade ribeirinha lá no interior do Amazonas. E lembro que a primeira vez que a gente fez um campo grande lá, nós éramos 30 pessoas. Foi quando eu tive essa furunculose. Morando ali, é uma comunidade que tem 600 pessoas, de repente multiplica, você tem 5% a mais da população. Naquela época eu tinha 33 anos, então era trabalho de dia a noite, todo mundo jogando sinuca, aquela loucura, a comunidade olhando pra nós. E a gente ali, trabalhando num sítio do Sr. Oswaldo, que era um morador da comunidade, na Terra Preta, um sítio lindo, profundo, e a gente foi fazer uma reunião apresentando o trabalho pra comunidade, já no final do campo. Aí o Sr. Oswaldo falou: “Olha, não. Eu quero que vocês vão embora”. Eu falei: “Por quê?” Ele falou: “Porque vocês estão cavando muito buraco na minha terra, estão mexendo com ela”. Claramente a gente chegou a se achando ali. Tava pagando pela... Conversava com o pessoal, era muito bacana, mas tinha uma coisa meio de... E ele falou, a gente foi embora, ele pediu pra gente ir embora, a gente foi embora, mas a gente continuou trabalhando ali. Trabalhamos anos depois, mas na hora, a gente falou: “Não tem nem o que falar, o senhor pediu pra gente sair, a gente vai embora”. Então, isso já aconteceu. Depois do Bolsonaro, a gente começou a ter porteiras fechadas lá no Acre, por causa dessa coisa, dessa visão negativa sobre a ciência, sobre as humanidades. Então, isso acontece muito. Sim, isso não é incomum e acho que vai ser cada vez mais comum, porque à medida que a arqueologia se coloca ao lado de grupos ou de forças que estão lutando contra a destruição da Amazônia, quem é a favor dessa destruição, explícita ou implicitamente, não vai querer ter pessoas. Isso é uma contradição que a gente está vivendo agora. Quanto mais a gente fala sobre arqueologia como ferramenta de proteção, que acho que a gente tem que fazer, mais a gente vai fechar portas em alguns lugares para a realização da arqueologia.
P - Fala mais disso, arqueologia como ferramenta de proteção.
R - Isso vem um pouco dessa viagem de 2019 do Rapé. Eu sempre trabalhei, sempre quis trabalhar, sempre trabalhei ao lado dessa coisa de conversar com as comunidades, aprender com as comunidades. Eu nunca tive uma fórmula, mas eu fui tentando. E o que acontece, Luiza? A primeira vez que eu fui fazer um campo na Amazônia foi em 86. Nós estamos em 95, são 39 anos. Então, nesses 39 anos, eu vi a arqueologia amazônica, sem falsa modéstia, sou parte dessa história, ela crescer e virar um campo importante hoje nas humanidades, o Brasil. E eu tenho muito orgulho de olhar pra trás e saber que eu participei desse... Não fui o único, obviamente, mas participei dessa história. Mas, ao mesmo tempo, a gente viu também, a minha geração, a Amazônia era pra ser destruída. A gente perdeu 20% da Amazônia nesses últimos 40 anos. Então, não dá mais pra você achar que é só fazer a pesquisa e publicar os artigos, é muito bacana. Eu percebi, acho que essa viagem me deu um pouco, me despertou pra isso, e o lugar onde eu estava, naquele contexto, fazer uma arqueologia mais engajada politicamente. Uma arqueologia que esteja a serviço da proteção, ela não vai salvar o mundo, obviamente, da Amazônia. E esse projeto que eu tenho agora, o Amazônia Revelada, ele tem essa pegada, o que a gente quer fazer é achar sítio arqueológico em área ameaçada, usando uma tecnologia chamada lidar, que permite identificar sítios em áreas de floresta, é um sensor que vai num avião, como se fosse um radar, e que ele identifica os sítios que estão embaixo da copa das árvores, aterros, estradas, valas, e o que a gente quer fazer, o que a gente está fazendo, a gente identificou áreas ao longo do arco do desmatamento da Amazônia, desde o Acre até o Pará. A gente foi a campo, conversamos com os moradores desses lugares, apresentamos a proposta, são territórios de conflito fundiário, na maioria dos casos aceitaram, inclusive fizeram muitas sugestões importantes, em outros eles disseram que não queriam, a gente não voou. Fizemos sobrevoo, identificamos um monte de coisa de feição e agora estamos indo para o campo fazer o teste de campo. E a ideia é o quê? Registrar esses sítios nessas áreas ameaçadas. No Brasil, quando você registra um sítio no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, aquele lugar recebe uma camada adicional de proteção. A gente está vendo agora esse PL da devastação que foi aprovado anteontem, ontem de madrugada, na verdade. Ele quer acabar um pouco com o licenciamento ambiental para facilitar essa ideia de destruição. E o nosso projeto vai justamente na contramão disso. A gente quer complexificar mais esse processo de licenciamento ambiental. Mas tem que ser cuidadoso, porque tem um patrimônio arqueológico riquíssimo que é desconhecido e que é importante, que conta uma história importante do Brasil, que é essa história antiga da Amazônia. Eu tenho tentado levar o meu trabalho agora para uma perspectiva mais ativista. Eu acho que a gente tem que fazer uma boa ciência, ela é super importante, mas ela tem que informar uma prática ativista de proteção da Amazônia, que a gente está vivendo em uma época de emergência climática. Eu acho que é fundamental fazer esse tipo de trabalho. Então eu me vejo nos próximos anos da minha vida profissional mais voltado para essa questão de uma arqueologia que é mais ativista. Posso me aposentar o ano que vem aqui na USP. Eu sou diretor aqui do MAE agora, meu mandato termina em julho do ano que vem. Então eu estou pensando, a partir do ano que vem, continuar fazendo pesquisa, a gente está fazendo coisas muito legais aqui com pesquisa básica, não quero parar de fazer isso de jeito nenhum, mas eu quero dedicar mais ainda do meu tempo a essa arqueologia mais ativista, mais ligada à proteção da Amazônia. Acho que é importante.
P - Preciso te perguntar isso, pensando assim, acho que daria para você falar horas sobre isso, mas uma grande descoberta ao longo do seu trabalho, ao longo desses anos na Amazônia, uma grande descoberta que vocês vêm tendo nessa região?
R - Olha, eu acho que a grande descoberta, e não é só minha, é muito legal isso, porque tem uma geração da minha idade, pessoas que têm 60 e poucos anos, 50 e muitos anos, que é uma coisa coletiva isso, muito legal, que junta brasileiros, brasileiras, estrangeiras, estrangeiros, é uma coisa bacana. É um grupo que não é muito grande, mas tem uma... O que é a grande descoberta, eu acho? É mostrar que a Amazônia, tinha muita gente vivendo na Amazônia, indígenas no século XVI. Essa ideia de que a Amazônia é aquele lugar vazio, inexplorado, desconhecido, ela não tem o menor embasamento empírico. A arqueologia mostra pra gente que havia talvez entre 8 e 10 milhões de indígenas na Amazônia no século XVI, no final do século XV e século XVI. E que esses povos criaram a Amazônia que a gente conhece hoje em dia. Então qualquer solução pro futuro da Amazônia tem que incorporar a contribuição intelectual dos povos da floresta, os povos indígenas, também os povos ribeirinhos, quilombolas. E isso acho que é a grande sacada. Eu lembro que tem uma história que a gente sempre conta, é uma piada, mas é real assim, que no ano 2000 teve um evento lá em Belém, sobre os 500 anos da Amazônia, que tinha a ver com os 500 anos do descobrimento do Brasil, e tinha uma mesa sobre a Amazônia. E eu lembro que a gente foi almoçar, o pessoal da mesa, a gente foi almoçar num restaurante. E voltamos, e o motora era um Fiat Uno, eram quatro no Fiat Uno, o cara tava dirigindo que nem um louco, assim. E aí eu falei pro cara: “Vai devagar, motorista, porque se você bater o carro e a gente morrer, vai acabar a arqueologia amazônica, basicamente, no Brasil”. Cabia todo mundo num Fiat Uno naquela época. Era mais gente, mas a piada era boa demais pra se perder. E hoje em dia a arqueologia amazônica cresceu. Eu acho que, sem prejuízo, sem desmerecer as outras arqueologias feitas no Brasil, acho que a área mais dinâmica da pesquisa arqueológica hoje no Brasil é a Amazônia. Porque a gente trabalhou muito para fazer isso acontecer, e também porque tivemos muita sorte. Houve o REUNI, que foi essa política do governo federal, ainda nos primeiros governos Lula, do presidente Lula, que abriu novas... Foram criadas 17 novas universidades, quando o Fernando Haddad era ministro. Não são cursos, são universidades novas. E muitas delas na Amazônia, e essas com cursos de arqueologia. Houve uma expansão do mercado de trabalho acadêmico para arqueologia muito forte. Muitos ex-alunos aqui do museu fizeram doutorado aqui, hoje em dia são professoras e professoras lá na Amazônia. Isso é muito legal. Hoje uma coisa que é muito bacana são as políticas de ação afirmativa que mudaram a Universidade Brasileira. Hoje em dia a gente tem alunas e alunos indígenas que são doutores, arqueólogas e arqueólogos, que fizeram doutorado em arqueologia, que são arqueólogos e arqueólogos hoje em dia, e que trazem uma formação acadêmica muito boa, mas também uma experiência pessoal de vida como indígenas, que é uma coisa que é incomparável, insubstituível. Então isso aconteceu. Tem uma coisa que acontece no Brasil, na arqueologia brasileira e na Amazônia, que é muito particular hoje em dia e que, de certo modo, chama a atenção do mundo. Acho que isso acontece em outros países amazônicos também, mas é muito forte aqui no Brasil. Que essa arqueologia é muito ligada à questão das comunidades, essa arqueologia é ligada à proteção de territórios ameaçados, agora a entrada dos indígenas e das indígenas como protagonistas cada vez maiores nessa história também. Isso é uma coisa muito particular, é um arranjo muito brasileiro, que eu acho que é muito interessante ver acontecer. É uma arqueologia muito de resistência, mas também que leva para um caminho, e que é muito boa do ponto de vista. A gente tem uma galera mais nova que eu, que tem os seus quarenta e poucos anos hoje, que são excelentes arqueólogas, super bem formados. Alguns eu formei, mas nem todos. Mas é um pessoal muito bom, tecnicamente muito bom. São melhores arqueólogos que eu, não tenho a menor vergonha de falar sobre isso, são bons. Tem uma boa formação teórica e sabem fazer arqueologia de campo muito bem. É muito legal ver isso acontecer. Nós criamos, eu ajudei a criar e organizei as reuniões internacionais de arqueologia amazônica. A primeira foi em Belém. Teve uma em Manaus prévia, em 2007, mas a primeira oficial foi em 2008, em Belém. Depois em Manaus, depois fizemos no Equador, depois na Bolívia, no Peru, agora foi na Colômbia, a última é voltar para o Brasil, que é um grupo meio anarquista, é auto-organizado, não tem uma associação, não tem um chefe, as pessoas se auto-organizam, fazem essas reuniões e é muito legal. Hoje em dia tem um campo da arqueologia amazônica que rola, que existe assim, que conseguiu atravessar os anos horrorosos, o governo Bolsonaro, com força e que se articula bem ainda. Isso é muito legal, não sei por que eu caí nesse lugar, mas é muito legal ver isso acontecer. Eu acho que esse é um aprendizado importante, de criar um campo de conhecimento. Eu tenho um grande amigo, que é um cara que eu conheci em 92, que é o Mike Heckenberger, que é um arqueólogo americano. Você perguntou de descobertas, o Mike é um companheiro de viagem. A gente se conheceu em 92, eu lembro que foi no Congresso de Arqueologia, eu morava nos Estados Unidos ainda, americano em Pittsburgh, ele morava lá também, fazia doutorado em Pittsburgh e falaram, tinham falado de nós já, pessoas que nos conheciam, disseram: “Vocês têm que se conhecer”. E aí, em 92, eu fui lá pra Pittsburgh, ele morava lá, e eu lembro que a gente se encontrou, ele falou: “Vamos tomar cerveja, cara.” A gente tava lá no congresso, no segundo congresso. E nós fomos pra um bar lá e ficamos a tarde inteira. Tomamos um pileque ali. Falando de arqueologia, falando mal das pessoas que a gente não gostava. E a gente, meu, a gente é amigo. Ele, o Mike, trabalhou aqui no Brasil. Ele tá vindo pra cá agora, amanhã. Chegando hoje aqui em São Paulo. É um cara que ama o Brasil, que trabalhou anos no Xingu. Foi o primeiro cara a falar em urbanismo na Amazônia. É um visionário, um cara pioneiro. Trabalhei muito com ele no Amazonas também. E o Mike tinha essa coisa também. Ele é um cara que foi expulso da faculdade, é um cara que não fez uma carreira acadêmica linear, assim. É um cara que descobriu a arqueologia um pouco mais velho já. A gente teve um grande mestre, que era o Jim Petersen, que foi o cara que me ensinou muito, ele a mim também. O Jim foi assassinado. Em 2005, a gente estava no campo, juntos, no Amazonas, e o Jim foi assassinado na minha frente, num assalto. Carreguei o corpo dele. Eu estou tentando dizer para você que aconteceu tanta coisa. A arqueologia é uma parte tão importante da minha vida. Tanta coisa. Coisas boas e coisas ruins. Amizades, parcerias que se construíram. Tudo isso é muito... Faz parte dessa caminhada, desse processo de, sei lá, descobrir coisas. Mas acho que a grande coisa que a gente descobriu, talvez, para ser objetivo na minha resposta, foi essa ideia de que tinha mais gente na Amazônia, de que as populações indígenas modificaram o meio ambiente. O Mike falou em cidades na Amazônia pela primeira vez, foi o primeiro cara a falar sobre isso, em 2008. O Mike foi o primeiro cara a publicar um artigo na revista Science, em 2003, com a co-autoria de indígenas, que é uma coisa que hoje em dia se faz, não se fazia naquela época. Então eu aprendi muito com o Mike, o jeito de fazer ciência, de estar no mundo também, de uma coragem que ele tem, muito grande, de correr risco. Porque eu aprendi muito do tipo: “Não, vai dar certo. Não sabemos, vamos lá” Uma autoconfiança, de acreditar que as coisas vão acontecer. Isso é uma coisa que eu acho admirável, eu devo muito a ele. A convivência com ele me ajudou muito a pensar sem medo também. Ele é um cara que eu via o mais que a gente ia pra congresso nos anos 2000. E as pessoas, meu, caíam em cima dele. E ele se defendia. Ele não tinha medo de defender as ideias dele. Aqui no Brasil a gente tem uma tradição intelectual que às vezes é meio medrosa. É claro que a gente tem que respeitar nossos mestres, mas o medo de pensar. E eu aprendi com o Mike não ter medo de pensar. Se você acreditar nas suas ideias e achar que tiver cacife para defender, põe a cara a tapa. Eu não tenho medo de colocar a cara a tapa. Aprendi isso com ele também, essa coragem, esse desapego de defender as suas ideias. Foi um cara muito importante na minha vida, como é o Tijolo, que vocês vão conversar também, que é uma figura que me ensinou muito também. Outras coisas que são importantes para mim também.
P - Como foi voltar e ir com os seus filhos, viver a experiência com eles?
R - Ah, é muito legal, né? Porque, assim, quando você é pai, você é o cara que, a gente é educado para ser o cara que tem as respostas para tudo. E os seus filhos, quando são mais novos, eles esperam dos pais as respostas para tudo. Quando você está no campo, você também tem que ter as respostas para tudo, mas você controla muito, é muito mais variável, às vezes você não consegue controlar. Eu lembro de um exemplo concreto, eu estava com meus dois filhos e um sobrinho meu, voltando de Presidente Médici para Porto Velho, em Rondônia, carro alugado. Tinha uma maneira de alugar carro com um cara que alugava uns carros meio meia boca, mas era muito mais barato. Funde o motor do carro, no meio do caminho começa a fundir aquela BR cheia de caminhão, passando na maior pau. E aquele carro não se acelerava, você tinha que ultrapassar, ele não ultrapassava, aí uma hora a gente pára no lugar. Falei: “Bom, tem um posto de gasolina ali, vamos parar lá”. Paro no posto, quando eu vejo o posto tá abandonado, não tinha ninguém ali, o carro morre. Eu falo: “Puta, eu tô com esses três caras aqui, nesse lugar, no meio do nada, puta que pariu” Então assim, você tem que ter um lado, não precisa estar no campo. Mas assim, tem um lado muito humano, os três olham pra você. Você fala: “E agora? Cadê o super-homem aqui pra resolver? Pra descer aqui e salvar?” E, bom, resolvemos depois. Claro, você resolve. Então, eu acho que tem um lado, eu espero, tem que perguntar pra eles, mas tem um lado de ver o seu pai também fazendo cagada, às vezes, ou tomando decisões erradas. Eu espero que tenha um lado que humanize um pouco essa... Essa relação pai e filho, acho que é uma coisa importante. Você percebe que seu pai tem um dia na vida, ou sua mãe, você percebe que ela é um homem, uma mulher também. A gente tem esse clique, um dia na vida da gente. Então, acho que isso ajuda. Eu lembro que meu filho uma vez quase matou um cara no campo, era um acampamento, tinha um monte de gente, meu filho mais zero, e deram pra ele um arco e uma flecha pra pescar a zagaia. E ele resolveu atirar com a zagaia, ele atirou pro alto assim e ela caiu. A flecha cai do lado de um cara, que era um monte de gente acampada, era um dia de folga. Imagina se acontecesse um acidente ali. Então, você teria que perguntar pra eles. Nenhum deles, eu nunca forcei, nunca quis, na verdade, ser arqueólogo. Nunca projetei isso. Fizesse o que eu fizesse, o que eu faço. Acho que não seria saudável. Nem pra eles e nem pra mim. Meu filho mais novo nunca quis ir pra campo comigo. Nunca foi. Agora ele tá com 18 anos, ele resolveu querer. Falou: “Pai, me leva”. Mas nunca quis ir mais novo. Eu acho que é uma experiência legal. Foi pro mais velho, foi uma experiência bacana. Pro meu filho mais novo, não sei se vai rolar. Não sei se vai calhar de um dia ele ir pra campo comigo. Ele nunca quis ir, sempre insiste. Agora quer, talvez vá no futuro. Acho pra ele, pro meu filho, talvez, intuitivamente, tô tentando pensar como ele talvez esteja pensando. Eu acho que ele quis tá mais forte, mais velho, mais maduro pra estar no campo comigo. Por que no campo? Porque ele é um cara que a gente tem uma relação que é muito legal, a gente se adora, mas ele é um cara que contesta o tempo inteiro. E eu acho que ele achava que se tivesse no campo, ele ia ter que me obedecer, porque tava no campo, e eu falaria assim: “Não, aqui é campo”. Então eu acho que ele falou: “Não, vou esperar, tá mais velho” Eu acho, eu tô tentando entender por quê. Mas sim, é uma experiência bacana ir pro campo, levar os filhos para o campo é muito legal, mas nunca esperei, nunca quis que eles fossem fazer o que eu faço, acho que é um outro caminho. É bom cada um ter seu caminho, eu acho.
P - E seu pai?
R - Ah, ele acha muito legal. Meu pai tem muito orgulho, assim. Meus pais estão vivos ainda. E, sim, a gente tem uma relação muito bacana. Meu pai chegou a me expulsar de casa quando eu tinha 18 anos. Porque eu era meio pentelho. Então, eu acho que hoje... Ah, muito legal. A gente tem uma relação muito carinhosa, assim. Mas também é engraçado, eu acho que na minha família e com os meus amigos, eu tento não pautar a minha relação com as pessoas pelo tipo, eu sou professor titular, eu cheguei no topo da... Eu não quero que a minha identidade para os meus amigos e para a minha família seja eu ser professor titular da USP, entendeu? E ter estudado no exterior, dado aula no exterior, acho que isso é uma parte, é claro que é super importante na minha vida. Mas eu tento também... Eu acho que meu pai me respeita porque eu aprendi isso com ele. Então acho que ele também é uma maneira dele ser... Porque eu não uso isso pra cacifar, digamos assim, uma relação. Eu tô lá como filho, como irmão, conto piada, falo merda. E a arqueologia faz parte disso, mas a parte da arqueologia que eu tento trazer pra minha história é a parte da arqueologia dessa arqueologia do campo, da convivência, e não a parte dos prêmios, dos títulos, essas coisas. Isso é importante, é óbvio, mas isso não é a parte mais importante da minha identidade pessoal, de jeito nenhum. Eu aprendi a usar isso para conseguir coisas importantes na academia. A academia é baseada na hierarquia, mas eu tento não trazer isso para a minha relação. Mas sim, meu pai tem orgulho, ele acha bacana, sem dúvida nenhuma.
P - E pensando como um registro mesmo, que você quiser deixar aqui, mas desse seu caminhar, podendo ser diretor daqui, se tornando professor, talvez em outros países, como foi essa experiência dentro da arqueologia, se tornando uma referência?
R - Olha, eu acho que a arqueologia abriu muitas portas na minha vida. Eu ganhei uma bolsa do CNPq para estudar no exterior. Depois eu dei aula nos Estados Unidos, passei um ano dando aula lá, morei dois anos na Alemanha. Então eu sempre tive essa abertura com o exterior, mas eu nunca tive vontade de sair do Brasil, de verdade. Primeiro porque a minha formação foi paga pelo Estado brasileiro, pela USP, que é uma universidade pública, depois pelo CNPq. Então eu acho que eu tenho uma dívida, até acho que já paguei essa dívida, mas durante muito tempo o Estado do Brasil investiu na minha formação. Seria justo que eu retribuísse esse investimento. Agora ele vai dizer, não, eu vou cuidar da minha vida. Então tem isso, que é uma coisa que acho que é super importante. Segundo, que eu acho que o Brasil, apesar de tudo, a gente passou por algumas épocas difíceis no Brasil, agora também não está fácil, mas acho que o Brasil, para mim, tem uma sociabilidade. Eu sou muito brasileiro, fui criado desse jeito. Tem a ver com a minha educação, dos lugares onde eu vivi, a família da qual eu venho, essa sociabilidade do Brasil, meu pai é um comerciante, então ele é um cara que sempre negociou, quando eu era criança ia trabalhar com ele, ele é um cara que brincava, imitava sotaque, fazia brincadeira, algumas talvez não sejam mais politicamente corretas, mas nunca foi ofensivo, nunca, nunca foi racista também, mas meu pai é um cara que brincava muito, ele é um cara que era paulistano, então ele era atento, vinha do Nordeste, outro era filho de italiano, outro era japonês, então ele é o cara que sabe brincar com essas coisas, essas microidentidades. Isso é uma coisa legal de São Paulo, cidade grande, você tem gente que vem do mundo inteiro, lugares diferentes. Então eu aprendi essa sociabilidade meio brincalhona, meio sacana, do sentido que é muito legal aqui no Brasil. E eu não conseguiria viver, eu acho, muito tempo longe. Quando eu fui com a minha família em 2016, a gente ficou um ano. Fui com a Dayana, que é minha companheira, e o Bernardo. Fiquei um ano dando aula em Harvard, que é uma baita universidade, né? E foi super legal, mas no final eu tava louco pra voltar depois desse ano. Foi muito bem recebido, foi maravilhoso. E o Brasil tava naquela crise do Temer já, horrível. E todo mundo dizendo: “Pô, por que você não fica mais tempo?” E eu dizia que o Brasil pra mim era meio como um sapato velho. Às vezes ele tá meio feio. Mas você põe no pé, é uma delícia, você sai andando. Então, eu acho que o Brasil é um país maravilhoso, tem muita contradição, muito problema, mas é um país que tem uma coisa, tem uma força no Brasil que é muito louca, que tem a ver com o povo do Brasil, que é um povo muito criativo. O Brasil é essa coisa de fazer meme, de fazer piada na desgraça, sacanagem. Tem muita coisa ruim no Brasil, obviamente. Eu cheguei a achar que isso estava morrendo no Brasil na época do Bolsonaro. Eu achava que a gente ia perder isso, essa capacidade de... Porque o Brasil ficou muito nervoso, muito enfezado, muito bravo. Falei, será que a gente vai perder a nossa coisa mais legal, que é essa capacidade de fazer sacanagem, digamos assim, no bom sentido? Mas eu acho que não, que talvez a gente não tenha perdido isso. E é muito legal você fazer... Eu vejo meus amigos que... Tenho amigos maravilhosos que vivem no exterior, brasileiros, que são de outras áreas. Você vai dar aulas para aqueles caras que não estão entendendo. Você tem que fazer aquela disciplina, é uma disciplina obrigatória, tem interesse por aqueles temas. Eu acho que viver aqui e trabalhar aqui tem uma conexão muito direta. A gente está lidando com coisas que têm a ver com a nossa própria história. Isso é muito forte, eu acho. Muito legal. Então, assim, eu acho que o Brasil... Eu tive sorte também de estar na USP, que é uma grande universidade. Tive sorte de contar com muitos apoios da FAPESP, que é uma grande fundação. Eu vejo amigos meus que estão em outras universidades brasileiras que passam mais perrengues, tem menos recurso pra pesquisa. Mas o Brasil tem grandes universidades, o UFMG, e a UFRGS, o UFRJ, Federal de Pernambuco, Federal do Pará, UFAM em Manaus, o Brasil tem grandes universidades públicas. E acho que a gente conquistou muito no Brasil. Tem uma coisa aqui, muito paulistana de ficar falando mal do Brasil o tempo inteiro. Mas a gente conquistou, a gente reconquistou a democracia, a gente tem uma constituição que é maravilhosa, tem um sistema de saúde que tem problemas, mas que funciona. Eu tenho uma pós-doc aqui que é americana, _____. Um dia ela passou mal e foi para o pronto-socorro, pronto-saúde. Ela foi atendida pelo médico. Saiu de lá com remédio. Ela falou: “Nos Estados Unidos? Jamais você vai ser atendido de graça. Você vai sair com remédio, receita, farmácia popular, pega o remédio de graça”. Tem que melhorar, é óbvio que tem, não tô dizendo que seja um transporte público, é uma merda, tem um monte de coisa que a gente tem que melhorar aqui no Brasil, segurança é muito ruim, mas a gente conquistou coisas no Brasil e eu acho que tem uma sacanagem que existe que é de falar mal do Brasil o tempo inteiro pra para retirar essas poucas conquistas que são importantes que a gente conseguiu fazer. Educação superior gratuita. Agora o Pix, que os caras estão atacando. Por que estão atacando? Porque é uma coisa que foge do sistema desses sites de pagamento, PayPal, essas coisas todas. Tem que melhorar, óbvio, tem muita coisa a ser feita, mas a gente tem que aprender a valorizar as coisas boas que a gente conseguiu construir, que são muito brasileiras. Teve gente que sofreu muito para construir isso. E o Brasil tem uma coisa, essa coisa do carnaval. Eu nem pulo mais carnaval hoje em dia, mas eu saber que tem um carnaval... Eu tenho um amigo americano que mora aqui em São Paulo, o Matheus. Ele fala: “Cara, se você pegar um milhão de pessoas muito loucas e bêbadas, chapadas, durante quatro dias em qualquer lugar do mundo, você vai ter muita gente morrendo. Na Europa, os caras vão se matar depois de uma certa hora. Nos Estados Unidos, vai puxar o revólver”. Ele fala: “Em nenhum lugar do mundo você põe tanta gente louca por cinco dias…” Louca no sentindo de “tá todo mundo muito louco, né?” “Durante cinco dias, quantas pessoas morrem no Carnaval?” Perigas até a criminalidade ter diminuído. Isso é um fenômeno muito louco do Brasil que fala muito sobre a gente. A festa para o Brasil é uma coisa muito importante. É a coisa que a gente sabe fazer melhor no mundo, é festa. E o mundo precisa aprender a fazer festa. A gente tá vivendo uma época de guerra, olha o que tá se fazendo na Palestina, em Gaza. A gente perdeu, o mundo perdeu essa capacidade de fazer festa. Então, tem uma lição que a gente pode dar pro mundo, que é fazer uma boa festa com pouco, se divertir com pouco. Isso é uma coisa que a gente ainda sabe fazer aqui no Brasil e eu sinto orgulho disso. Eu acho que é uma coisa que é uma contribuição muito indígena, e muito africana para o Brasil. É claro, o português é mais melancólico. É uma coisa que vem muito da África e das populações indígenas, saber fazer festa aqui no Brasil.
P - E aqui, esse museu?
R - Ah, o museu, para mim... Bom, aqui eu estou em casa, literalmente. Eu estou aqui desde... Eu estou aqui antes do MAE existir. O MAE, dessa maneira, foi criado em 89. Eu entrei em 87. Então, aqui eu estou Eu tô em casa, literalmente. Eu tenho, primeiro, uma dívida muito grande, porque o MAE me apoiou muito na minha formação. Esses anos que eu passei fora, eu passei com o apoio aqui do museu, confiança das minhas colegas e meus colegas, que muitos já se aposentaram. E eu acho que o MAE é um lugar maravilhoso. A gente tem um status muito diferente aqui na universidade. Nós somos um museu universitário, então a gente tem autonomia, digamos assim. Não estamos ligados a nenhum departamento. Nós não temos programas de graduação. Tentamos construir, mas a universidade nunca quis. Temos só dois programas de pós-graduação. Então a gente tem uma carga didática, temos que dar aula, mas muito menos que os nossos colegas dos departamentos. E nós somos poucos aqui, nós somos 17, agora vamos passar 20 até o começo do ano que vem. Então assim, a gente tem feito concursos muito legais nos últimos anos, então tem ingressado um pessoal mais jovem, que é muito bacana. A gente tem atraído gente de fora do Brasil, pessoas que se formaram fora aqui da USP. Então a gente tem um corpo docente que é cada vez mais heterogêneo, que é muito bom. Ah, o MAE é muito legal. E assim, a gente tem uma coisa muito bacana... Bom, nós somos um museu que tem uma exposição, como todo museu, mas a gente tem muito laboratório aqui. E tem uma coisa muito legal que é a convivência nos laboratórios entre nós e os estudantes, as estudantes. Então, é uma convivência muito diferente da que você tem em um departamento, onde você vai dar aula e vai embora. Aqui não. Os alunos vêm para cá, para o laboratório. Faz parte da rotina delas e deles estarem aqui no laboratório. Então tem uma convivência que é muito legal. A gente fez uma festa junina, sexta-feira, julina, nesse caso. Eu não consigo me imaginar trabalhando num lugar que não seja o MAE. Eu acho que daqui a alguns anos eu vou fazer uma transição lenta e talvez vire mais “ongueiro”, uma coisa mais de ONG. Mas eu não quero jamais cortar esse laço com o museu. E eu, agora, assim, como diretor, é uma baita responsabilidade. Porque eu quero fazer um bom trabalho. Quero deixar um legado importante para o museu. Eu acho que eu tenho uma visão também sobre o lugar onde eu quero ver esse museu daqui a alguns anos. Essa experiência que eu tenho, muito grande, de viajar muito para fora do Brasil, mas também para dentro do Brasil, para o interior do Brasil, acho que me permite entender um pouco qual que é o lugar que o MAE pode ocupar. Eu estou tentando colocar isso em prática aqui também, acho que tenho conseguido. Sei lá, é muito bom estar aqui, o MAE é um lugar maravilhoso. Eu tenho muito orgulho de trabalhar aqui. Tem colegas com quem aprendi muito. É um lugar pelo qual eu tenho um carinho imenso. Nós estamos lutando muito agora para sair desse prédio e ir para um prédio... Porque esse prédio aqui não é um prédio de museus. A gente veio para cá em 93, era uma solução provisória. Até hoje nós estamos aqui. Agora tem uma obra que está parada há mais de 10 anos ali no portão 3 da USP, que vai ser retomada agora, e espero que daqui a alguns anos a gente se mude para esse prédio novo. Mas sim, o MAE é um lugar muito bom, tem muita liberdade aqui. Tem uma equipe, tem um apoio técnico muito legal, tem um quadro técnico excelente, é um lugar muito bom para se trabalhar.
P - E pensando em paisagem, você que visitou, pôde visitar a Amazônia, há alguns anos atrás e você ainda frequenta muito, o que mudou? Quais foram as transformações que você pode perceber nesse cenário, nessas paisagens, nesse modo de vida?
R - Olha, pra mim a coisa mais chocante tem sido as secas. Eu lembro que em 97 teve uma seca muito forte, tinha a ver com o El Niño. Em 2005 teve uma seca muito forte, depois em 2010 teve uma seca muito forte também, mas as secas de 2023, 2024, o rio Solimões secou alguns canais dele. O Rio Madeira secou ali perto de Porto Velho. O que eu tenho notado cada vez mais são as secas, cada vez mais fortes. O que eu tenho notado são as queimadas, o cheiro de fuligem. Você já sentia em Manaus nos anos 2000, chegava julho, agosto, o céu ficava meio cinza por causa das queimadas. Mas agora você... Eu estive em Manaus em 2023, era uma coisa meio distópica, um céu meio amarelo, amarelo chumbo, uma coisa meio... O Rio Negro seco, de um jeito, uma coisa meio... Cheiro de queimado no ar. Então, assim, nós sabemos que esses incêndios são criminosos. Tem a ver com mudança climática, porque a floresta tá cada vez mais seca, então é mais fácil de ser queimada, mas a gente sabe que são incêndios criminosos também. Então o que eu mais noto são os rios secando, é o cheiro de fuligem, a fumaça no ar. Eu lembro quando teve aquele dia, aquela chuva negra aqui em São Paulo, eu lembro que eu tava lá no campo. Alguns dias antes, eu estava em Rondônia, eu comentei com a Dayna, com a minha mulher, falei: “Pô, eu vi uma cor de céu em Rondônia que eu nunca vi na minha vida”. E logo depois teve aquela chuva, aquele cinza que foi trazido, a suspensão, aquela fumaça. Mas é isso, acho que é os rios secando. Bom, o lugar que tinha floresta hoje em dia não tem mais, que eu conheci lugares assim, os rios secando, as estações secas cada vez mais secas, o cheiro de fumaça no ar, acho que são as coisas mais notáveis. Uma coisa que a gente nota também, meio anedótica, eu lembro que antigamente tambaqui, aquele peixe que hoje em dia você compra aqui em São Paulo, você comia muito tambaqui lá em Manaus, tambaqui pescado no rio, que é um tambaqui grande. Hoje em dia não existe mais. Tambaqui que você come, inclusive lá em Manaus, é o tambaqui de lago, de criadouro. Que é esse que a gente compra aqui em São Paulo, que é criado com ração. Que é gostoso, mas se você come um tambaqui de verdade, do rio mesmo, é outro gosto. Então tem alguns peixes que eram abundantes antigamente que hoje em dia você não encontra mais. É o caso do tambaqui, por exemplo. Você comprava em Manaus o mercado e hoje em dia você não acha mais. O que mais eu notei? A violência. A violência aumentou muito. Manaus não era uma cidade violenta quando eu comecei a andar por lá. Manaus é uma cidade tranquila, em Iranduba, onde eu trabalhava. Apesar do meu amigo ter sido assassinado em 2005, hoje em dia a violência aumentou muito. Rio Branco é uma cidade que era um exemplo de urbanismo e é uma cidade super violenta hoje em dia. Tem toque de recolher, de facção criminosa. Então a violência é uma coisa que aumentou muito, tanto nas cidades grandes como nas cidades pequenas também. Tem muita pirataria hoje no Rio Solimões. Antigamente eu andava pelo Solimões um lado pro outro, trabalhei muito no Solimões. Tranquilo, voadeiro, levava meus filhos. Hoje em dia eu não sei se eu levaria meu filho pra um campo no Solimões comigo. Não sei nem se eu iria, dependendo do lugar, pra um campo no Solimões, porque a pirataria aumentou muito, o narcotráfico. Hoje em dia o narcotráfico entrou de tal maneira, de 2018 pra cá, sempre houve, mas o narcotráfico entrou com uma força muito grande. As facções, o Comando Vermelho, o PCC estão na Amazônia também. Então, uma mudança notável é, sem dúvida nenhuma, o aumento da violência. Hoje em dia, alguns dos lugares mais violentos do Brasil estão na Amazônia. Isso não era tão comum antes nos lugares por onde eu andava também.
P - E como você conheceu a sua atual companheira?
R - Eu conheci no Sesc Pompeia, num show no Sesc Pompeia. A gente tinha um amigo em comum que estava lá. Ela trabalha com audiovisual, então a gente tem uma vida muito parecida. Quando ela está filmando, ela também some. E quando está aplicada no trabalho, fica obcecada. É muito legal isso, porque ela entende muito. Quando ela está, ela some às vezes. Está filmando, vai. Mesmo estando em São Paulo, tem aqueles horários malucos. Vocês conhecem bem, devem saber disso. É muito parecido com o trabalho de arqueologia. O trabalho de filmagem é muito parecido com o trabalho de campo. Então a gente se conheceu em 2000. E a gente se conheceu, foi engraçado isso, eu levei uma picada de cobra no campo, eu tava até com Tijolo, eu quase morri. Eu ia pra Londres, eu tava trabalhando numa exposição no Museu Britânico. No dia 12 de novembro de 2000, eu tava no campo lá no Rio Purus, levei uma picada de cobra. Fiquei no hospital, fiquei quase duas semanas internado em Manaus, e não fui mais pra Londres pra essa viagem que eu tinha que fazer. E aí eu tinha conhecido ela antes dessa viagem. E aí eu falei pra ela: “Tô aqui, levei a picada de cobra”. Aí a gente começou a sair. E eu tava andando de muleta. Então ela fala que foi essa picada de cobra que colocou a gente juntos. E ela é maravilhosa. Eu viajo muito, ela também. Então, um entende a vida do outro e é legal, a gente se respeita. Vocês sabem disso, o trabalho audiovisual é em equipe. Arqueologia é em equipe também. Quando tem pré-folga, essas coisas famosas, vocês devem conhecer essa instituição. Durante a filmagem, eu às vezes até vou, mas eu falo: “Não, vai você. É o pessoal do seu trabalho, não tem nada a ver. Vocês ficam conversando, tem sempre aquelas histórias de trabalho rolando” Então é muito legal, a gente entende muito a vida um do outro, isso é muito bacana.
P - E o que você gosta de fazer de lazer?
R - De lazer? Eu gosto de correr, eu corro, eu gosto de correr, correr é uma coisa que até trouxe, vou correr hoje no final da tarde. Eu gosto de cozinhar, gosto de fazer feira. O que eu gosto de fazer? Eu gosto de ler, ouvir música. Não tenho nenhum hobby específico. Tem um jardim que eu gosto de cuidar dele em casa, mas não é uma coisa. Não tenho nenhum hobby específico. Eu tenho algumas rotinas. Eu gosto de ir à feira no sábado de manhã. Gosto de fazer feira, comprar peixe, gosto de cozinhar. Não, eu gosto de ler, nada demais. Eu gosto de ver jogo de futebol. Ultimamente, vendo no meu time perder, sofrendo por ele, mas faz parte. Não tenho nenhum hobby, nada específico. O meu trabalho já me absorve muito. Eu tento estar em casa, quando eu não estou viajando, estar em casa no final de semana, ver meus pais, estar com a família, fazer um rango no domingo, esse tipo de coisa.
P - E quais são os seus sonhos?
R - Meus sonhos? Acho que a gente tem que calibrar os sonhos da gente para não ficar muito decepcionado. Eu acho que se eu tiver um sonho muito mais abstrato é viver num mundo mais justo, eu acho. E justiça para mim tem a ver com justiça social, justiça ambiental, justiça climática. Acho que esse é um sonho geral que eu teria pro mundo, né? Nos sonhos mais... Ah, eu acho que, assim... Eu queria continuar fazendo o que eu faço. Um sonho pra mim é ver as pessoas que eu amo felizes, na medida do possível. A gente sabe que isso é muito difícil. Mas meus sobrinhos, meus filhos, meus amigos, minhas irmãs, meus pais. Acho que, me aproximando já da... Não me sinto velho, mas vou fazer 60 anos. Pra mim, acho que uma velhice ativa. Não quero parar de fazer o que eu faço. Quero ter força, capacidade, lucidez e força física também pra poder continuar. Fazendo o que eu faço. Eu sonho muito que a gente consiga acabar com o desmatamento da Amazônia em 2030, como propõe o governo. Que a gente consiga acabar com as queimadas da Amazônia. Eu sonharia muito em ver todas as terras públicas da Amazônia virarem territórios protegidos. Hoje em dia, a gente tem muita terra pública não destinada. Elas são do Estado, mas elas não têm uma destinação. Que essa destinação fosse transformada em territórios protegidos. Eu sonho, por exemplo, que a cidade de Manaus possa ter uma conexão com o resto do Brasil por terra que ela não tem hoje, mas que isso não leve à destruição da floresta, que é um grande desafio pra nós, como reabrir a BR-319, que liga Manaus a Porto Velho, sem provocar uma destruição imensa da floresta. O que mais? Sei lá. Acho que é isso. Meus sonhos ou são muito grandes ou são coisas mais mundanas. Acho que a gente tem que... Eu acho, talvez seja pretensioso falar isso, mas eu acho que quando você leva uma vida que você consegue, seguir uma vida mais ou menos, ela vai se modificando, mas quando você consegue fazer as coisas que você queria ter feito, e é claro que o mundo vai mudando, acho que os seus sonhos vão ficando também menores, de certa maneira. Você vai aprendendo a calibrar a expectativa com relação aos seus sonhos. Acho que você aprende que é melhor você ter sonhos que sejam realizáveis, exequíveis de alguma maneira, do que ter sonhos muito ambiciosos, que você não vai conseguir realizar e vão te fazer sofrer. Porque o problema às vezes não é com a gente, é com as expectativas que a gente coloca pra nós. Acho que é você envelhecer, aprender... Primeiro que tem dia que as coisas dão certo e tem dias que as coisas dão errado na vida, né? E quando elas dão certo você não é o cara mais pica grossa do universo e como elas dão errado, você também não é a pior pessoa do mundo. Tem que aprender a calibrar um pouco essas oscilações e também calibrar os sonhos. E acho que pensar em sonhos que sejam mais exequíveis. Acho que é um pouco isso.
P - Eu sei que faltou muita coisa, mas você gostaria de contar alguma coisa que eu não tenha te perguntado? Alguma passagem da sua vida? Alguém marcante? Algum feito? Algum prêmio? Você acha importante deixar registrado? Algum encontro?
R - Não, eu acho assim, vocês vão falar com o Tijolo, que é um grande amigo meu, que é uma figura importante, ele salvou a minha vida quando eu levei essa picada de cobra, né?
P - Como foi isso?
R - A gente tava fazendo campo, era o último dia do campo, lá no Rio Purus, ele tava com dengue. O Tijolo é um cara, vocês vão conhecer, ele é um cara tão fantástico que a gente tava num dia, nesse mesmo, dois dias antes a gente tava num lugar, tinha muito pernilongo, mas muito pernilongo. Aí ele falou assim: “Esse aqui é o da Dengue”. Falei: “Cara, você tá me sacaneando”. Ele falou: “Não, isso aqui é o da Dengue”. E ele pegou o Dengue. Ele reconheceu no meio daquele mundaréu de carapanã, que a gente fala no norte, e falou “isso aqui é o da Dengue, isso aqui é o da Dengue. Fica esperto”. E ele pegou o Dengue. A gente tava lá no campo, ele falou assim, tinha uma expressão que a gente usou nunca, “eu vou passar um fax”, é coisa de tiozão isso. Enquanto ele tava lá, eu tava indo antes com o cara que era mateiro, abrindo o caminho, e de repente o cara falou: “Ó, tá muito fechado aqui”, eu falei: “Vou voltar pra pegar uma…” Tava de shorts, “Vou pegar uma cavadeira lá na beira do lago”. Quem deixou a gente ali? O pessoal foi jogar uma rede, uma malhadeira. Eles largaram a gente ali e foram embora. Nós ficamos sem barco pra sair. Aí quando eu me viro, eu sinto uma fisgada e eu olho pra minha perna, tem dois furos aqui assim, saindo sangue, e tem uma cobra preta, tinha um tronco na minha frente, uma cobrona preta enrolada na minha frente. Aí eu pulei pra trás e falei: “Puta, levei a picada de cobra”. E aí nós voltamos pra beira e os caras não ouviam a gente. “Vamos voltar, vamos voltar!” Os caras não ouviam a gente. Aí depois de um tempão eles ouvem a gente, voltam, pegam a gente e nós estamos voltando. Era uma canoazinha, a gente tava numa lancha na beira do rio Purus. Tamo indo na canoazinha e de repente pifa o motor da canoa. A gente não tinha remo na canoa, só cagadas. Aí começamos a remar com uma pá que a gente tinha. E eu falei pro Tijolo, eu chamo ele de tigrão, eu falei: “Tigrão, eu tô começando a pretejar a minha vista”. Ele falou assim: “Cara, fica de olho aberto e respira com calma e não fecha o olho de jeito nenhum”. Falam isso, dá uma hora que começa a ficar tudo escuro assim. Eu fiquei calmo, respirando. Bom, aí chegamos lá da beira do outro lado. Me botaram na lancha, a gente tava morando num barco, era a nossa base, aí fomos pro barco, uma hora de viagem. Tinha um enfermeiro no barco. Aí chegamos no barco, eles me tiram do barco, e o cara fala: “Não tenho soro antiofídico. Tem que levar ele pra Canutama, que é a cidade mais…” Aí depois de novo na lancha, eu já não conseguia andar mais, perna inchada, aí fui pra Canutama. Chega em Canutama, a cidade fica no alto de um barranco, o pessoal me carrega para o alto. Chego lá, eu fico esperando vir uma ambulância para me levar para o hospital. Eu já não me lembro direito das coisas. Aí eu chego no hospital, o médico fala: Não, não tem soro aqui. Dá uma… Como é que chama? Dá uma morfina para ele e põe ele no barco amanhã para Lábrea. E nessas horas eu estava já com a perna super inchada e botando sangue pela boca. Ele me falou, ele que olha pra mim, eu tava com a boca toda, parece que eu tinha comido chocolate derretido. Sabe quando fica tudo pastoso assim? E ele deram morfina pra mim, eu fiquei doidão. Eu tava muito louco ali, dando risada. Morrendo, literalmente. E aí a sorte que a gente teve é que parou. Isso é um pouco Amazônia. Parou um helicóptero, porque eu estava fazendo trabalho para a Petrobras, dando apoio para a Petrobras, eu tinha que fazer um gasoduto ali, a gente tinha sítio arqueológico em alguns locais. Parou um helicóptero, o Paulinho Brahma, que eu conheci esse cara. E como eu conheci o Paulinho Brahma? Em Lábrea, a cidade de Lábrea, alguns dias antes, a gente estava, antes de começar esse campo, a gente estava tomando uma cerveja, e ele sentou com a gente na mesa e ele falou, olha, vocês não vão gostar de mim porque eu vou pra garimpeiro. Eu sou piloto e eu vou pra garimpeiro. E a gente falou: “Cara, a vida é muito complicada, não dá…” Depois ele falou: “Mas eu vou pro Greenpeace também”. Ele falou: “Vai pra todo mundo” Que é um pouco isso. Isso tá acabando um pouco, eu acho. O cara que voava pro Greenpeace e voava pra garimpeiro. A gente falou: “Meu, vamos lá”. Fomos tomando cerveja, um cara super legal, Paulinho Brahma. E aí ele parou, o Paulinho, e alguém falou pra ele: “Olha, o Eduardo levou uma picada de cobra e tá no hospital”. Aí ele desligou o helicóptero e foi lá ver. E aí ele falou: “A gente tem que tirar esse cara daqui, levar ele pra lá”. Só que aí caiu uma puta chuva, temporal, aquelas da Amazônia, tiveram que esperar passar a chuva, aí quando passou a chuva já tinha anoitecido. Então ele me tirou a noite de helicóptero. Porque não pode voar à noite o helicóptero, o voo é visual, né? Estamos olhando para os rios, assim. Ele tinha um GPS, daqueles antigos, ele ligou o GPS e falou: “Vamos para Lábrea”. Eu e o Tijolo fomos no compartimento de carga do helicóptero. E ele falou assim para o Tijolo, eu não me lembro disso, o Tijolo falou assim: “Se você perceber que eu estou pousando, se eu fizer algum sinal, você sai do helicóptero e fica de olho na pá, porque a pá, muita gente morre, porque esse aqui já tá indo, larga ele aí que esse aqui não vai chegar, esse aqui não vai durar muito, mas você, né? Porque tá voando à noite…” E aí ele voa à noite pra lá, imagina você voar à noite, cara, porque lá na Amazônia às vezes vem uma nuvem, cria um temporal. Ele foi super corajoso. Podia pegar um temporal no meio do caminho. Ele voou à noite, me levou lá pra Lábrea. Eu não me lembro de nada. Eu me lembro de chegar em Lábrea, eles me botaram na ambulância e eu ia pro hospital, em Lábrea. Um hospital que tinha um monte de gente, um hospital pequeno. E eu lembro que o médico tinha sido meu aluno. Ele falou: “Cara, eu fui aluno dele, é o Eduardo, conheço esse cara”. Médico loiro, não me lembro da cara dele, não me lembrava dele, mas fui aluno dele. Aí eles me deram quatro ampolas de soro lá em Lábrea, no dia seguinte me tiraram de Lábrea para Manaus, em Manaus me deram umas 16 ampolas e eu apaguei dois dias, fiquei dois dias apagado e depois fiquei internado lá no Hospital Tropical de Manaus, mas o Tijolo é o cara que estava do meu lado o tempo inteiro, foi o cara que me falou: “Não, vamos lá. Você vai sair dessa, fica calmo” Eu devo a minha vida a ele e ao Paulinho. E olha como a vida é louca. Isso foi no dia 14 de novembro. Eu falei dia 12, né? Foi no dia 14 de novembro. Todo ano, dia 14, eu ligava pra ele, pro Paulinho e falava: “Cara, valeu, você salvou a minha vida. Obrigado. Hoje é meu aniversário”. Cinco anos depois, no dia 12 de novembro, ele morreu num acidente aéreo em Anavilhanas. Quase cinco anos depois da data do acidente. Fiquei amigo da viúva dele e da filha. Depois que ele morreu, ela me procurou. É muito louco isso, como essas histórias acontecem. Eu devo minha vida ao Tijolo. Ele me ensinou muito. Aprendi muito com ele até hoje. A gente tem umas histórias muito engraçadas juntos. Posso falar uma também?
P - Ahan.
R - Uma vez a gente foi para os Estados Unidos, em 2006. Convidaram a gente. Primeira vez que ele saiu do Brasil. Nós fomos para os Estados Unidos. Chegamos lá, ele acorda super cedo. O Tijolo é um cara que não bebe uma gota de álcool. Ele acorda super cedo. Eu acordo mais tarde e encontro ele na rua. A gente estava na Virgínia. Ele fala: “Porra, cara, puta, asfalto bom aqui, asfalto grosso. A calçada é boa, tudo é bom, né?” Ele tava impressionado. E a gente foi viajando. Nós fomos da Virgínia pra Washington, de Washington pra Nova York. E aí chegamos lá na viagem e compramos comida. Às vezes pra comer no hotel, compramos uma jarra de suco de laranja pra ele. Ele falou: “Pô, esse plástico aqui é muito bom, eu vou cortar esse plástico, vou tomar o suco e vou fazer um funil pra levar pro meu sítio”. Porque ele cresceu, o Tijolo, num mundo... Eu lembro do meu avô falando isso também, lá em Minas. Você não jogava nada fora, que você usa tudo. Tudo tem utilidade. Ele cresceu num mundo, lembro do meu avô também. O meu avô guardava as coisas. Não jogava fora. Meu avô guardava o plástico do leite. Esse hábito a gente lá em casa também, a gente guarda tudo, lava, tenta reutilizar. Então a gente começou a viajar, no começo ele achava tudo maravilhoso nos Estados Unidos, e depois ele começou a ficar chocado com a quantidade de lixo que se produz naquele país, que é uma coisa assustadora mesmo. E eu lembro que no final a gente começou a carregar lixo, a gente lavava essas coisas e levava de um lado pro outro. E no final eu falei: “Cara, nós vamos ter que jogar isso fora. A gente vai poder levar para o Brasil de volta”. E ele ficou, ele foi embora super incomodado com aquela situação, aquela opulência, aquela riqueza que produz tanto lixo, que tem um custo energético, ambiental altíssimos também. Então essa experiência foi muito legal de olhar para os Estados Unidos com ele. E hoje em dia, toda vez que eu vou para os Estados Unidos, eu penso nele porque eu vejo a quantidade de lixo que eles produzem naquele país, que é uma coisa assustadora.
P - Diz muito do nosso estilo de vida atual.
R - Sim, consumista, uma loucura.
P - Você gostaria de falar mais alguma coisa?
R - Acho que não.
P - Tantas coisas.
R - É, acho que sim. Foi ótimo, valeu.
P - Então, só para encerrar, como foi para você contar um pouco, lembrar dessas histórias, dividir com a gente, da família, desde os avós, até hoje os sonhos, como foi estar aqui?
R - Eu vejo agora, Luiza, eu tenho vários amigos meus, sobre o que eu não falei diretamente aqui, mas que são super importantes na minha vida, que estão fazendo 60 anos. Eu sou um pouco mais novo. Vou fazer o ano que vem. Eu acho que assim, eu não quero, eu acho que todo mundo tem problemas na vida, eu tenho um monte de problemas na minha vida também, mas eu acho que se eu for fazer um acerto de contas, com o que eu era, o que eu queria ser, o que eu acabei me tornando, é claro que nunca exatamente, é bom que não seja, mas eu acho que falaria assim, sem falsa modéstia, que eu acho que eu teria orgulho, se eu fosse falar com aquele cara de 16 anos atrás, eu acho que ele ia olhar pra esse cara que tem 50 anos e ia falar: “Pô, esse cara fez um caminho que é o caminho…” Acho que existe uma relação, é claro que a gente muda, a gente não é mais o mesmo... Seria ruim se fosse a mesma coisa, né? Mas eu tento voltar para aquele cara de 16, às vezes, e quando eu olho, eu falo, “porra” Meu casamento primeiro não deu certo, um monte de coisa, mas eu tentei resolver, tentei correr atrás, até hoje é uma luta. As coisas é um equilíbrio constante, então não sei, eu acho que... Eu acho que... Eu quero vida... Depende do esforço da gente, mas acho que consegui levar minha vida para um caminho que me faz feliz. Claro que tem coisas que poderiam ser diferentes, mas eu queria saber tocar violão, por exemplo. Mas fazer o quê? Não tem jeito.
P - Ainda dá tempo.
R - É verdade. Não sei, mas acho que é isso, assim. Eu vejo alguns amigos meio nostálgicos, dizendo: “Pô, tenho agora 60 anos”. Eu acho que 60 anos eu quero fazer, não quero parar, eu quero fazer um monte de coisa ainda. Eu me sinto preparado para esses próximos anos que vão vir para frente. Fisicamente, mentalmente, eu quero continuar. Eu construí um monte de coisa, um monte de relação, parcerias. Eu não quero parar de jeito nenhum. Eu falo às vezes de me aposentar aqui da USP, mas eu não quero parar de jeito nenhum. Cada um faz o que quiser na vida. Eu vejo alguns amigos já querendo parar, dizendo: “Não, já tá na hora de parar”. Eu falo,: “Cara, não consigo nem imaginar isso. Parar pra fazer o quê? Ficar em casa, aflitando, enchendo o saco de todo mundo? Eu acho que não” Mas isso porque eu estou levando a vida para um caminho interessante. Eu acho que essa coisa de você ter um propósito é importante, querer fazer da sua vida sem drama, sem messianismo, cada um faz do jeito que pode, do jeito que quer, tem que ser leve sempre. Acho que leveza é a palavra mais importante. Mas se a gente consegue com leveza ter um caminho, ter um propósito na vida, pode ser uma coisa modesta, não precisa ser… Acho que isso é muito importante.
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